Maria Beatriz Lisboa
A intuição mítica do passado sem o elemento racionalizador seria cega, mas a conceituação lógica sem o núcleo vivencial da intuição originária seria vazia.” W. Jaeger Introdução O presente trabalho continua uma reflexão iniciada no artigo publicado em 1998[1], constituindo-se em um estudo de natureza teórico-conceitual que pretende contribuir para a análise da questão da cura em nossa cultura contemporânea. Partimos de uma hipótese inicial que preconiza a existência de uma crise, em termos sócio-culturais, na sociedade ocidental, envolvendo as relações da sociedade com a biomedicina. Verificamos que durante os últimos cento e cinqüenta anos, a racionalidade científica em medicina representada pela biomedicina procurou dar conta do universo da saúde, atribuindo à pesquisa científica pautada na reprodutibilidade e na verificabilidade dos fatos o critério exclusivo de determinação da cientificidade. Nesse sentido, objetivamos questionar se a crise institucional médica atual não estaria assentada em conceitos e práticas que privilegiam os aspectos técnicos e científicos da doença, abandonando, em contrapartida, a dimensão da “arte de curar”, que implica num compartilhar entre médico e paciente de sensações e signos que compõem os aspectos simbólico e psicológico do sujeito humano. Almejamos neste artigo construir a categoria da intuição como forma de conhecimento e como prática terapêutica, através da análise do processo que se manifesta em médicos e pacientes ao longo do tratamento. Servimo-nos, para tanto, do Método Intuitivo proposto pelo filósofo Henri Bergson, visando colocar os limites de um pensamento estritamente racional e propondo a transposição deste método para a instância da clínica médica. Além deste autor, que centraliza as principais idéias com as quais iremos trabalhar, julgamos necessário a inclusão de mais outros quatro pensadores que também se debruçaram sobre este tema e que nos ajudaram a compor de maneira mais clara a categoria da intuição; são eles: os filósofos Gilles Deleuze, Baruch de Espinosa e François Jullien, e o historiador Carlo Ginzburg. Nosso empenho nas páginas que se seguem será no sentido de responder algumas questões que nós próprios nos colocamos ao iniciarmos este trabalho. Pretendemos, assim, abordar em que sentido a intuição pode estar presente na clínica médica e como a intuição pode ser utilizada como uma forma de pensamento rigorosa e metódica, bem como indagar se é possível colocarmos o pensamento racional à serviço da intuição e se dando vazão e legitimando a intuição estaríamos mais próximos da “cura”. À estas questões iniciais, acrescentamos outras que foram sendo elaboradas ao longo do desenvolvimento deste trabalho e que pretendem responder se a intuição iria contribuir para dar conta da lacuna estabelecida pela medicina ocidental contemporânea entre a teoria e a prática médica; e qual a importância de trazer o indivíduo, as subjetividades e a intuição para o campo da medicina; além de se investigar sobre a importância de se pensar a intuição aplicada à prática clínica. Sabemos, entretanto, que a crise na Saúde não se configura como um bloco monolítico. É bem verdade que, para alguns setores da biomedicina[2], em especial para aqueles que se dedicam à produção de conhecimento, não se verifica crise alguma; a indústria farmacêutica, estreitamente ligada à produção deste tipo de conhecimento é apenas um exemplo nesta área. A crise de que estamos tratando, neste estudo, é a de uma vertente da medicina que ainda hoje é predominante, mas que convive paralelamente com a crítica e a prática de outros saberes médicos. Esta crise se verifica desde o final dos anos 60, como afirmam pesquisas recentes[3], e assinala uma certa insatisfação por parte da clientela com o atendimento da biomedicina, especialmente em relação aos serviços públicos de saúde. Pretendemos abordar este panorama da crise ao longo das páginas seguintes. Gostaríamos desde já de esclarecer que o nosso interesse pela crise na Saúde visou basicamente contextualizar o objeto deste artigo, apresentando esta discussão em termos gerais, sem pretensão de esgotar o assunto. É importante também salientar que este trabalho foi fundamentado, em termos empíricos, a partir da pesquisa de campo desenvolvida pelo projeto “Racionalidades Médicas” (na sua segunda fase), do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Nesta pesquisa foram realizadas entrevistas com pacientes, terapeutas e gerentes de alguns serviços públicos de saúde da rede municipal do Rio de Janeiro, abrangendo aspectos referentes às práticas e representações das três racionalidades estudadas, a saber: a medicina ocidental contemporânea, a medicina homeopática e a medicina chinesa. Enfatizaremos logo de início um dos fatores, apontado por Luz (1996), que estaria possivelmente contribuindo para esta insatisfação dos usuários em relação ao campo da Saúde, e que motivou, em primeira instância, a discussão do nosso objeto. Tal fator adviria do fato de que, durante o processo de afirmação da racionalidade científica como base da cultura ocidental moderna, houve um percurso progressivo de separação entre os dois termos básicos que constituem o núcleo central da medicina, isto é, a arte de curar - tekné, e o conhecimento das doenças - episteme. Na civilização ocidental, desde a Grécia antiga, a arte sempre ocupou um lugar de destaque na medicina; a inspiração era tida como uma fonte de lucidez e não como um encantamento. Acreditava-se que as decisões terapêuticas mantinham sempre um caráter de contingência artística, que contrastava com o caráter absoluto dos fatos científicos. O principal aspecto da arte era creditado ao seu caráter de síntese e ao fato de demandar uma sensibilidade às especificidades de cada situação.[4] A palavra tekné, para os gregos, significava um modo do saber, em especial do saber-fazer. Este fazer, de acordo com Heidegger, é determinado e afinado pela essência da criação, e permanece retido nesta essência. É importante ressaltar que tekné não significa trabalho técnico no sentido atual; sobretudo, nunca quer dizer um gênero de realização prática. Ainda de acordo com este autor, saber quer dizer ter visto, no sentido lato de ver, que indica apreender o que está presente enquanto tal. “A tekné, enquanto experiência grega do saber, é um produzir do ente, na medida em que traz o presente como tal, da ocultação para a desocultação do seu aspecto” (1989: 47). Com a separação arte/ciência, a prática da medicina ocidental foi sendo paulatinamente reduzida à técnica - tal como a conhecemos hoje em dia -, levando em consideração apenas o conhecimento das doenças e deixando de lado a arte de curar doentes. Esta arte, quando bem exercitada e valorizada, pode se constituir num instrumento de percepção e apreensão do ser vivo de maneira sintética; num desvelar do indivíduo tal como ele se apresenta singular e integralmente. Isto implica num compartilhar entre médico e paciente de sensações e signos que compõem os aspectos simbólico e psicológico do sujeito humano. É exatamente desta dimensão que pretendemos tratar aqui. A arte de curar – tekné, tal como os gregos a entendiam, tem muita afinidade com a categoria da intuiçãoque pretendemos construir ao longo deste trabalho e aplicá-la à prática médica. A intuição será tratada como mais um instrumento a auxiliar o médico, mas também o paciente, nos processos de diagnose e terapêutica transcorridos ao longo do tratamento. O foco de atenção da análise será direcionado ao momento da consulta, quando estão colocadas as condições para que o curador possa interagir com seu paciente e que, neste processo de troca, possam emergir determinados signos que se constituam em elementos chaves para a viabilização da cura. A este processo damos o nome de intuição, que podemos definir também como uma habilidade sintética do pensamento, advinda da experiência, e que possibilita a tomada de decisões específicas em sentidos específicos. A intuição assim focalizada não pode ser colocada só na sensibilidade, ela se situa a meio caminho entre a sensibilidade e a razão, pois todas as faculdades[5] do médico devem estar presentes naquele exato momento da consulta, inclusive as faculdades racionais e as experiências vividas em outros casos clínicos. Esta concepção inclui, além do conhecimento racional das doenças, uma atenção médica apurada no momento da consulta, centrada no indivíduo doente como um todo (físico, emocional e espiritual ou mental), ou seja, na singularidade da sua energia vital ou vitalidade. A cura será vista como um processo individual vivenciado pelos atores como recuperação da sua saúde ou equilíbrio provocada ou mediada pela intervenção de um curador. Alguns aspectos da racionalidade da biomedicina Vamos nos deter agora em apresentar alguns aspectos da situação que hoje vivemos em relação aos serviços públicos de saúde, em especial no Brasil, mas que, com certeza, abrange os outros países do mundo ocidental. Nosso olhar estará direcionado aos problemas internos da medicina, colocados na instância do próprio ato médico. De imediato, o que se coloca é que o problema, a nosso ver, é mais profundo do que o meramente econômico. Como o médico cardiologista norte-americano, Dr. Bernard Lown[6] sugere: “A razão básica é haver a medicina perdido o rumo, senão a alma. Partiu-se o pacto implícito existente entre médico e paciente, consagrado durante milênios” (1997:11). O fato é que o modelo hegemônico de saúde está submetido às regras do mercado neo-liberal/capitalista e tornou-se um bem de consumo. O que cabe à saúde da população é regido pela lógica econômica em função de custos e gastos, subordinados à lógica da produtividade das ações. Isto é contraditório, porque apesar do planejamento das ações dos serviços de saúde, regido pela biomedicina, parecer ou intencionar ser o menos dispendioso – atendimento de muitos pacientes em curto espaço de tempo –, na verdade, ele é montado em função de um modelo hospitalar caro e que requer grande quantidade de exames complementares[7]. De acordo com Camargo Jr. (1992), a prática da biomedicina apresenta uma clara desarticulação metodológica. Por um lado, está colocada a prática médica, que é pouco ou quase nada explicitada, reduzida a uma intervenção mecânica e técnica, instalada num nível individual e, portanto, particular; por outro lado, tem-se uma série de representações que procuram dar coerência a esta instância pouco precisa, e que se pretende geral a toda a prática clínica. Essas representações, na verdade, não se encontram explicitadas em nenhum lugar, mas constituem a espinha dorsal da ciência médica. Elas estão baseadas nas seguintes proposições: 1) “as doenças são coisas, de existência concreta, fixa e imutável, e 2) as doenças se expressam por um conjunto de sinais e sintomas, que são manifestações de lesões que devem ser buscadas no âmago do organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta, com utilização de remédio ou cirurgia.”(Camargo Jr., 1992). Categorias como sofrimento, saúde, vida e cura encontram-se perdidas, não sendo nunca explicitadas. Mesmo a categoria de doença também não é definida, como já havia mostrado Canguilhem (1982). Apesar de não haver uma definição para a doença, ela se constitui como a única realidade concreta, expressão da lesão, que o médico da biomedicina se utiliza em seu trabalho. A doença, de acordo com Camargo Jr., representa um tipo ideal (no sentido weberiano do termo), portanto, genérico. A classificação das doenças constitui-se como o principal eixo da teoria da medicina, e o indivíduo que traz a doença se torna, neste caso, um mero canal de acesso a ela. Neste sentido, o empenho do médico é voltado para diagnosticar a doença que o paciente traz, enquadrando-a no rol das categorias nosológicas. Vale ressaltar que doença e lesão, na nossa sociedade, estão intimamente ligadas. Na visão da biomedicina, uma não existe sem a outra. À este respeito, Almeida (1988) aponta a dificuldade da biomedicina em diagnosticar casos em que não se constata lesão ou disfunção de órgãos. Ele afirma que estes casos constituem a grande maioria da clientela extra-hospitalar, onde predominam os sofrimentos ligados ao mal estar existencial, os desconfortos, etc. Para a biomedicina, tudo que não é lesão, é enquadrado no rol do termo “pitiático”, - termo pejorativo para os sofrimentos subjetivos. E, mais uma vez, biologiza-se estes tipos de sofrimento, prescrevendo-se um tranqüilizante ou encaminhando-se para a psiquiatria, área considerada menos nobre na medicina. É assim que a prática adotada pela biomedicina reflete a concepção da ciência hegemônica na nossa sociedade, em que as patologias e a etiologia das doenças são dadas como conceitos fixos e imutáveis, sendo colocados num nível abstrato/superior. Isto faz com que a ação do médico fique submetida e reduzida à interpretação destes conceitos, nada importando, neste caso, exceto o conhecimento intelectual que o médico tem das patologias e sua capacidade em acertar o diagnóstico, que é mediado por toda uma gama de exames complementares. A doença, a nosso ver, não se coloca apenas na instância do orgânico, ela extravasa o indivíduo, na medida em que a consideramos como um processo de individuação, e, portanto, de subjetivação que ocorre no indivíduo através de suas relações e interações com o meio social em que vive. É bom frisar que, apesar do empenho da biomedicina em ser essencialmente objetiva, a prática clínica, de uma certa maneira, trai este empenho, uma vez que, no seu seio escorrem rasgos de subjetividade, expressos pela experiência do médico e por suas interpretações, julgamentos, tomadas de decisões, etc. De acordo com Camargo Jr. (1992), embora os médicos tendam atualmente a privilegiar os exames clínicos em detrimento da observação clínica, esquecem que todo exame, por mais objetivo que sejam os dados que produz, está também sujeito a um processo de interpretação, o que implica o recurso à experiência. Nos últimos dois séculos, a experiência individual não tem sido valorizada como recurso terapêutico. Entretanto, neste trabalho, ressaltamos o valor positivo atribuído à experiência na terapêutica, vista, de acordo com Almeida (1996), tanto no sentido da importância do resgate do conhecimento acumulado pelos terapeutas e seus antepassados, quanto como estratégia de conhecimento pautada na percepção sensorial e na observação sensível. Na biomedicina, a terapêutica tem sido colocada em segundo plano, pela dificuldade em circunscrevê-la no universo científico, pois sendo uma conduta individualizada não pode cumprir com um dos requisitos básicos do experimento científico, que é a reprodutibilidade. Desta maneira, a cientificidade não é condição fundamental para o sucesso terapêutico. O próprio termo terapêutica origina-se do verbo grego therapeuien, que significa servir, prestar assistência.[8] Servir ao outro, nesse sentido, já indica algo da esfera da subjetividade. E o que se vê é que a prática médica depende muito da habilidade individual de seus praticantes. (Camargo Jr., 1992: 225). Habilidade esta identificada por nós, como fazendo parte da arte de curar, sendo a arte referida à instância da criação. É nesta instância da arte de curar, do saber-fazer, ou ainda, de um tipo de saber que incorpora uma determinada prática/experiência, que cabe ressaltar a observação feita por Almeida (1996) em relação ao medicamento, de que a terapêutica tem sido, desde Hipócrates até os dias de hoje, a manifestação de uma ciência empírica: “O empirismo tem sido capaz não só de oferecer a grande maioria dos novos medicamentos, mas de considerar a interação do medicamento com a complexidade e a singularidade do organismo. Contrapõe-se, assim, à característica fundamental do medicamento segundo a lógica racionalista – ação do medicamento definida a priori (pela estrutura química, na medicina contemporânea), sem considerações sobre o organismo receptor.” E complementa: “Apesar de todo o discurso científico da terapêutica química, cerca de 90% dos medicamentos foram “produtos do empirismo”. (Almeida, 1996: 13/15). Consideramos importante a revalorização do empirismo na terapêutica, para que o investimento do médico não fique direcionado somente ao conhecimento da doença e aos meios que se tem para suprimi-la, como vem ocorrendo nos últimos tempos. Mas que ele leve em conta também a singularidade de cada paciente, com sua história de vida, suas vivências, sentimentos, emoções, etc. A relação médico-paciente O que pretendemos com este trabalho é, a partir de um enfoque que promova a saúde e liberte o indivíduo doente, direcionarmos nossa análise ao momento da consulta e à relação médico-paciente. Na verdade, o que vemos é que perdeu-se a arte de curar, substituída pelo tratamento, assim como perdeu-se a arte de ouvir, substituída pela lógica regida pela técnica. E o fato de não se levar isto em consideração tem graves conseqüências. Em nome de um saber mais objetivo e “neutro”, instala-se uma certa “frieza” técnica no lidar com o paciente. A própria racionalidade presente na biomedicina não valoriza a relação médico-paciente como recurso terapêutico. Isto pode ser constatado nos serviços públicos de saúde, onde o médico não mantém vínculo com os pacientes que ele atende. Os pacientes, por sua vez, são atendidos pelos mais diversos médicos a cada retorno seu aos serviços de saúde. Em substituição à relação médico-paciente, o que existe, como foi apontado por Illich e comentado por Almeida, é a relação instituição médica - doença: “O médico e o paciente não participam da relação enquanto indivíduos dotados de subjetividades. O médico é o representante da ordem médica, e o doente tem que amoldar seu sofrimento à objetividade do discurso médico. (...) Ao mesmo tempo que o doente, como indivíduo, se apaga diante da doença, o médico, enquanto pessoa, também se apaga diante das exigências do seu saber.” (Almeida, 1988: 28). E este autor prossegue afirmando que o processo diagnóstico representa o enquadramento da subjetividade do doente na ordem médica. O discurso médico influencia ou conduz o doente a uma forma de relatar o mais objetiva possível. Pois o médico não está preocupado com minúcias ou detalhes; sua função é traduzir o sofrimento em sintoma. “O discurso médico não consegue lidar com os dados da singularidade, e homogeneiza as pessoas nos quadros clínicos e diagnósticos.” (Almeida, 1988:29). No entanto, os pacientes valorizam a atenção médica. Como Luz afirma: “A generalidade e o distanciamento abstrato com que são tratados os pacientes da biomedicina, em função da centralidade da doença no paradigma da medicina científica, criou uma barreira cultural para muitos indivíduos e grupos sociais, que demandam serem efetivamente tratados, e não apenas diagnosticados.”(1997). O tratamento que é demandado pelos pacientes implica o cuidado e a atenção ao indivíduo enfermo, vistos como indispensáveis no processo de recuperação da saúde. Ocorre, entretanto, que atualmente o cuidado foi abandonado pela maior parte dos médicos e se encontra nas mãos das enfermeiras. Os médicos da biomedicina que atuam nos serviços públicos de saúde, em geral, não se atêm ao discurso de seus pacientes, pois isto requer tempo, algo de que eles não dispõem. É verdade que a lógica econômica imposta aos serviços públicos disponibiliza pouco tempo para cada consulta, mas o que vemos é que, em geral, o mais crucial entre os médicos não é a falta de tempo, mas a indisponibilidade para o paciente. Temos que considerar também o fato de que faz parte da racionalidade da biomedicina não se ater ao relato do paciente, que é muitas vezes considerado “impreciso” e “subjetivo”, mas encontrar a doença no corpo, através do exame clínico e de instrumentos técnicos; por isso as consultas podem ser feitas em um curto espaço de tempo, o suficiente para que o médico examine o corpo de seu paciente. Na visão que estamos tentando construir aqui o médico deve tentar aproximar-se do paciente visando restabelecer, ou até mesmo, ampliar a sua saúde. Isto implica num auto-conhecimento e vontade do paciente em se curar. A relação médico-paciente é, portanto, valorizada, sendo vista como um elemento importante da cura, devendo o médico também se colocar por inteiro nesta relação, não só racionalmente como também emocionalmente, para poder apreender os signos trazidos pelo paciente e compô-los em uma prescrição que atenda a multiplicidade de sintomas do doente. É uma relação de troca, de empatia[9], na qual diversos signos estão presentes, além dos símbolos advindos da linguagem verbal. Neste caso, não importam tanto os exames complementares, mas sim a observação sistemática, a escuta, as afecções, os toques e os signos que permeiam esta relação. Voltando-nos um pouco para o campo da Filosofia, vemos que o modelo médico atual está assentado na lógica clássica. Esta lógica, calcada na visão platônica, expressa uma visão de mundo dividida, de um lado, em modelos ideais, que constituem o modelo da forma eterna: a essência; e, por outro lado, nas suas cópias, com gradações que variam das quase-perfeitas - uma vez que a perfeição só existe no mundo das idéias - às mais imperfeitas, bizarras, quase sem forma, amorfas, “loucas”, na medida em que contestam, ao mesmo tempo, o modelo e a cópia.[10] Assim, constitui-se um mundo fixo, previsível, onde tudo pode ser medido e limitado pelas linhas do tempo e do espaço, em conformidade com determinados padrões. Se seguirmos esta lógica platônica, incorreríamos no erro de pensarmos num modelo de cura. Para romper com esta lógica, adotaremos, em contra-partida, o pensamento estóico, no qual uma outra forma da constituição do sentido nos é dada, levando em conta os próprios acontecimentos. Na relação médico-paciente o que deve ser buscado é o relato que o paciente traz no seu conteúdo e naquilo que aparece para além dos sintomas físicos, prenho de acontecimentos, e que são revelados ao terapeuta; além dos próprios acontecimentos transcorridos ao longo da consulta. Ou seja, na visão implementada pelos Estóicos e que nos foi repassada por Deleuze (1974), as verdadeiras entidades são os acontecimentos, não os conceitos; o próprio acontecimento é revelador do sentido. Sendo assim, o pensamento desloca-se: não mais procura por cópias capazes de se adequarem à determinados modelos, mas visa aos próprios acontecimentos. Para que os signos e sinais possam aparecer com mais evidência é necessário que a consulta seja tomada também como um acontecimento, em que tanto médicos quanto pacientes sejam vistos como processos e não como máquinas. É importante que eles não estejam preenchidos por representações duras e imutáveis acerca da doença; pelo contrário, eles devem se colocar numa atitude despojada de representações, sem qualquer comprometimento prévio a uma instância simbólica e levando em consideração os afetos, as forças presentes, os desejos, etc. Pois só assim pode-se abrir uma margem para que a intuição, que provavelmente já estava presente, possa emergir neste momento como uma idéia, a princípio confusa e nebulosa, para ser trabalhada pela inteligência. Neste caso, a prática clínica não estaria baseada somente em conceitos gerais e abstratos, mas em conceitos nascidos também da experiência e/ou da ação, maleáveis e capazes de se adaptarem às novas circunstâncias. A ação estaria, portanto, colada ao pensamento ou, em outros termos, não existiria essa imensa distância estabelecida pela sociedade ocidental entre teoria e prática. Para tanto, é necessário que o doente seja colocado no centro do saber e da prática médica e não a doença, como vem sendo posta pela biomedicina. O doente deve ser tratado como um “todo” na sua singularidade e na sua subjetividade. Além disso, dado o grau de cientificidade com que é exigido aos médicos da biomedicina, o paciente é visto como um objeto a ser explorado e não como um sujeito dotado de sentimentos únicos e singulares. A biomedicina não tem levado em conta a complexidade inerente ao adoecimento. No adoecer de um indivíduo estão em jogo inumeráveis instâncias que compõem aquele todo orgânico: objetivas e subjetivas, visíveis e invisíveis (ou sensíveis). Entretanto, a lógica que rege a medicina atual não vê mais o indivíduo como um todo, seu corpo foi fracionado nos seus diversos elementos orgânicos e os exames clínicos dirigem-se a prováveis patologias que possam estar atingindo estas partes. Para o pensamento hegemônico que comanda hoje a biomedicina, especialmente nos serviços públicos de saúde, o doente não é visto como um ser único, pois a sua doença ou o mal de que sofre se sobrepõe a ele a ponto dele não ser mais reconhecido como o Seu João ou a D. Maria, mas como o diabético ou a portadora do mal de Parkinson. Ou seja, o indivíduo perde a sua singularidade, deixando de ser ele mesmo, portador de um corpo e um espírito[11] único, para ser não mais do que uma patologia. Isto advém do fato de que a idéia de indivíduo foi reduzida à idéia de organismo. O sujeito passa a ser visto, dentro de uma visão mecânica, como um conjunto de órgãos, onde cada um tem a sua função. Outra conseqüência advinda da lógica dominante, em que a intervenção médica se concentra no agudo e no urgente, é o fato de ela não direcionar prontamente seus esforços à prevenção da doença e à promoção da saúde, necessidades básicas da população. Esta é uma importante questão ética e refere-se também ao fato da medicina atual estar voltada para atender ao método e à pesquisa científica, através da objetivação das doenças, deixando de lado a questão da vida e da prática terapêutica (cura). Atualmente o que se encontra na “crista da onda” científica na biomedicina - e que, por conseguinte, recebe maiores recursos financeiros - é a descoberta de um novo agente de cura ou uma experiência inédita que requer recursos tecnológicos sofisticados e de alta precisão, deixando de lado a prevenção e a promoção da saúde. Colocar em debate o critério de cientificidade que hoje se encontra hegemônico no mundo ocidental também é de suma importância. A ciência vem sendo construída pelo homem e hoje parece que se impõe à ele como único critério capaz de legitimar o seu saber. Desconstruir este critério de cientificidade é uma tarefa imposta àqueles que desejam abrir brechas ou alternativas ao modelo de saúde vigente. Isto implica em aceitar e encarar as incertezas que estão sempre presentes na arte de curar. A modernidade procurou banir a dúvida e a incerteza na forma do conhecimento, mas não na vida vivida. Os indivíduos, por mais perícia técnica que possuam, são atravessados por inúmeros acontecimentos sutis que, muitas vezes, não podem ser medidos por instrumentos técnicos e que talvez possam ser captados pelos canais da sensibilidade. Ou seja, o que estamos propondo aqui é que a sensibilidade possa se ampliar de tal forma que ela não se restrinja aos signos da doença, mas sim aos signos que o doente emite como um todo. Ao colocarmos os limites do conhecimento racional, almejamos abrir espaço para que a afetividade, a generosidade, a compaixão, as emoções, enfim, os sentimentos ligados ao cuidar possam surgir no seio da própria racionalidade[12]. Novamente nos utilizaremos da filosofia para trabalharmos certos conceitos que se não forem questionados na raiz de onde partiram sua concepção, fazem-se passar, aos olhos da nossa contemporaneidade, como absolutos, eternos e verdadeiros. Esquecemos, entretanto, que são conceitos criados por determinados autores em um certo momento histórico e que, se são aceitos hegemonicamente hoje em dia, passaram por um longo processo de aprovação social que, sem dúvida, conviveu com a crítica de outros saberes. Introduziremos, neste momento, um filósofo do século XVII contemporâneo de Descartes que, por possuir idéias libertárias foi execrado tanto por judeus quanto por cristãos, colocando em risco a sua própria vida, mas que mostra-se atualmente, para uma vertente da filosofia, um pensador que contribui para a construção de uma ética atual e contemporânea. Estamos nos referindo a Baruch de Espinosa. O conceito de razão implementado por este autor difere do que nos acostumamos a entender por razão. Em primeiro lugar: “Ele chama a atenção para o fato de que o homem não é sua razão, não se identifica com ela (como em Descartes: sou este algo que pensa; ou em Kant: somente posso conhecer o sujeito empírico submetendo-o ao sujeito transcedental), assim como não é separado do mundo, do outro, das coisas - homens, animais, vegetais, minerais. Isto garante que haja uma empatia entre o homem e tudo que o cerca. E o conhecimento real baseia-se nesta empatia, mas a ela, conjuntamente a ela, acrescenta a razão”. (Martins, 1998). Entretanto, para Espinosa, o conhecimento racional não é um conhecimento perfeito, ele se situa entre o conhecimento das opiniões e o conhecimento intuitivo. Propõe assim três gêneros de conhecimento: o primeiro opera com o que ele chamou de idéias inadequadas, que são imagens provenientes de nossa experiência sensorial e de nossa memória. “A idéia inadequada ou imaginativa é uma opinião em que depositamos nossa confiança enquanto nenhuma outra imagem a puser em dúvida.” (Chaui, 1995: 38). O racional é o segundo gênero de conhecimento, não é perfeito, é universal: “A razão conhece adequadamente as noções comuns, isto é, as leis necessárias entre um todo e suas partes, bem como as relações necessárias entre as partes de um mesmo todo.” (Chaui, 1995: 38). O terceiro gênero de conhecimento é o intuitivo que, para Espinosa, é o mais perfeito de todos, pois é um conhecimento que supera o racional na medida em que faz a passagem do conhecimento universal para o conhecimento singular que só tem sentido num determinado contexto e na relação real onde esse conhecimento vai ser vivenciado. Assim é que, na relação com o paciente, o médico deve utilizar todo o seu conhecimento não para substituir a sua relação com o doente, mas sim para aplicar este conhecimento na relação que se instaura durante a consulta, isto é, partindo de conceitos universais e abstratos sobre as doenças, chegar à singularidade daquele determinado indivíduo doente. Nesta visão, a cura de um indivíduo depende, em primeiro lugar, dele tomar consciência da sua doença, tentando entender os motivos que o levaram a contrair esta enfermidade e se esforçar para reverter este quadro, transformando sentimentos, condutas e valores negativos ou conflitantes que desequilibraram seu organismo. A doença, nesta visão, configura-se como um processo de individuação pois, por mais que ela exista enquanto entidade nosológica, em cada paciente ela assume características diferentes. Ela é, assim, um processo de sofrimento e dor que, se bem encaminhado, pode ser revertido em cura e, portanto, levar a uma maior consciência de si. No nosso entender o médico que direciona a sua atenção exclusivamente à doença perde o funcionamento, o fluxo e o processo em que o paciente está inserido, isto é, perde a visão do todo, atendo-se a partes isoladas e estanques do indivíduo. Além disto, ele não direciona seus esforços para tratar daquele paciente específico, no sentido de curá-lo ou de restabelecer o equilíbrio perdido, ele focaliza apenas uma doença “abstrata”. Isto é prejudicial não apenas para o médico, mas principalmente para o paciente, que perde a estruturação do seu ser como um todo e não consegue visualizar uma perspectiva de cura ou de restabelecimento da sua própria saúde, ficando, assim, nas mãos do médico. Esta é uma questão que deve ser tratada em termos políticos, pois sabemos que não é do interesse de muitos médicos dar autonomia e liberdade aos seus pacientes para que a hegemonia instituída pela medicina na sociedade atual continue gozando dos mesmos poderes. Alimentar uma terapia que estimule o paciente a associar a sua doença a um processo de auto-conhecimento é o mesmo que alimentar um conhecimento libertador e crítico, que pode não satisfazer aos interesses hegemônicos. Considerando a necessidade da reversão deste quadro, acreditamos ser relevante trazer o método intuitivo proposto por Henri Bergson - que será melhor explicitado adiante - para o campo da medicina, uma vez que estamos lidando com indivíduos mutáveis em um processo (mutável) de cura. Isto implica, em primeiro lugar, em recolocar a figura do doente no centro da prática e do saber da medicina, ao invés da categoria de doença. O que significa dizer que o médico não deve se basear apenas no conhecimento racional, fixo e já dado das patologias; mas deve dirigir a sua atenção ao doente e à relação que se instaura entre ambos, concretizada no momento da consulta. Ou seja, ele deve estar aberto para os acontecimentos que emergem a cada momento. Em segundo lugar, este método retoma a visão holística da integralidade corpo-espírito dos sujeitos. Sendo o sujeito doente composto por um corpo material e um espírito que lhe dá vida, quando visamos à cura temos que aliar o conhecimento das doenças à arte de curar sujeitos/espíritos doentes. Finalmente, colocar somente a inteligência a serviço do tratamento é reduzir a totalidade da vida a um dos seus aspectos. Se queremos uma visão mais global do processo temos que utilizar também o dispositivo da intuição para acessar a realidade. Afirmar a intuição implica uma maior consciência de si e, portanto, uma maior autonomia do paciente frente ao processo de adoecimento, facilitando um projeto de construção da própria saúde. Este processo de reequilíbrio da saúde deve ser entendido, de acordo com Luz, como a recuperação de um tempo de vida saudável, de uma vitalidade, que corresponde à recuperação da singularidade do paciente face à doença e ao adoecimento. Isto é importante na medida em que “poderíamos falar de uma recuperação do tempo interno desses pacientes, e possivelmente de um processo de ressubjetivação” (1998: 30). A intuição como forma de conhecimento e como prática terapêutica Aproximando-se mais do núcleo deste trabalho que é a construção da categoria de intuição aplicada à prática clínica, chegamos ao ponto central de onde parte toda a concepção bergsoniana da intuição, na qual a realidade é tomada como fluxo. Ou seja, nesta visão, a mudança e a mobilidade são a própria consistência da realidade. Bergson alia o espírito ao tempo, nesse sentido vale a pena nos determos um pouco na questão do tempo elaborada por este filósofo antes de entrarmos no método intuitivo proposto por ele. Bergson está preocupado em distinguir tempo e espaço, pois para este filósofo, “ao longo de toda a história da filosofia, tempo e espaço sempre foram colocados juntos e tratados como coisas do mesmo gênero”. Segundo ele, “estuda-se então o espaço, determina-se sua natureza e função, depois transporta-se para o tempo as conclusões obtidas.” (1974: 109). Para este filósofo, o que advém da experiência é sempre um misto de espaço e de duração; e a decomposição desse misto revela dois tipos de multiplicidade. Segundo as palavras de Deleuze: “Uma está representada pelo espaço: é uma multiplicidade de exterioridade, de simultaneidade, de justaposição, de ordem, de diferenciação quantitativa, de diferença de grau, numérica, descontínua e atual. A outra se apresenta na duração pura: é uma multiplicidade interna, de sucessão, de fusão, de organização, de heterogeneidade, de discriminação qualitativa ou de diferença de natureza, virtual e contínua, irredutível ao número.” (1987: 36). A duração não pára de se dividir, mas muda de natureza ao dividir-se, por isso é uma multiplicidade não-numérica, de modo que, em cada estágio da divisão, pode-se falar de indivisibilidades[13]. A duração de cada um revela e coexiste com outras durações, expondo uma simultaneidade de fluxos. Esta simultaneidade de fluxos nos conduz à duração interna, à duração real. Em resumo, para Bergson, não há mais que um só tempo, ainda que haja uma infinidade de fluxos atuais que participam necessariamente do mesmo todo virtual; sendo a duração esse tempo único, esta totalidade virtual. O conjunto do tempo é constituído por um movimento de conservação – do passado que conserva o presente na medida em que passa –, e um movimento de mudança – dado pelo presente que passa – ambos se dando simultaneamente. Por exemplo, a imagem passada do presente coexiste com o próprio presente que se encontra passando. Ou ainda, no interior do próprio perceber, assistimos a imagem percebida se duplicando em imagem lembrança: toda imagem atual se duplica em imagem virtual, enquanto lembrança. A formação da imagem lembrança não se faz depois do presente ter passado, mas é contemporânea à passagem do presente. Como Bergson sugere, segundo as palavras de Deleuze: “Quando buscamos uma recordação que nos escapa, nos situamos primeiro num passado em geral e depois em uma determinada região do passado. Nossa recordação permanece, todavia, num estado virtual. Pouco a pouco aparece como uma nebulosidade que se condensa e passa do estado virtual ao atual.” (1987: 56/57). Nesse sentido, o passado em geral é composto por níveis distintos, em que cada um contém a totalidade do passado, ainda que em estados diferentes de contração e de distensão. Este passado não sucede o presente, mas coexiste com ele. Sendo assim: “Passado e presente não designam dois momentos sucessivos, mas dois elementos que coexistem: um que é o presente que não cessa de passar; o outro, que é o passado que não cessa de ser, mas mediante o qual todos os presentes passam.” (Deleuze, 1987: 59). O virtual tem uma realidade que se estende a todo o universo: gigantesca memória, onde tudo coexiste em uma unidade. Somente quando nos instalamos neste nível em que as recordações se dão, a imagem-virtual pode se atualizar; e a atualização não tem como regras a semelhança e a limitação, mas sim a diferença ou a divergência e a criação. É próprio do virtual só se atualizar na matéria diferenciando-se, ou seja, criando suas linhas de diferenciação; sendo esta diferenciação uma criação. A vida, nesse sentido, passa a ser produção, criação de diferenças; e, ao atualizar-se, ao diferenciar-se, perde contato com o resto de si mesma, ou seja, com tudo aquilo que permanece no estado virtual. Enfim, segundo Bergson, a vida como movimento se aliena na forma material que suscita. Pois, para darmos conta dos nossos interesses práticos, necessitamos distinguir o que pertence ao imaginário daquilo que pertence ao real. Entretanto, na passagem do tempo, o presente real invade o imaginário (virtualidade) e o imaginário invade o real. “Pois, o momento seguinte contém sempre, além do precedente, a recordação que este deixou; por outra parte, ambos momentos se contraem ou se condensam um no outro, pois um não havia desaparecido quando o outro já aparece.”(Deleuze, 1987: 51). A duração é essencialmente memória, consciência, liberdade. “Bergson não emprega a palavra inconsciente para designar uma realidade psicológica fora da consciência, se não para designar uma realidade não-psicológica: o ser tal como é em si. O psicológico é o presente, o passado é ontologia pura”. Bergson alia duração à subjetividade. Para ele, a subjetividade é interior ao tempo, pois somente na duração conservamos o tempo de maneira imediata, sem mediação. Vivenciar a experiência do tempo ou da duração é estar presente no aqui e agora, mergulhando no interior do momento; é apreender a emergência de algo, nele se fazendo, neste sentido sujeito e objeto não são pré-determinados, eles são construídos na medida em que o tempo passa; é também ter consciência do momento presente na medida em que ele atualiza os momentos passados. Somente esta experiência do tempo traz o novo, advém a criação; tudo mais são representações, são elementos já conhecidos. No distraimento de si, você vê a duplicação do momento passado e presente. O que nos distancia de estarmos sempre presentes no aqui e agora são nossos interesses práticos. Portanto, para se conhecer o todo, não é preciso sair de si mesmo, pelo contrário, tem que se apreender o todo em si, que coexiste com o momento presente. A duração totalmente pura é a forma que a sucessão dos nossos estados de consciência adquire quando o nosso eu se deixa viver, quando não estabelece uma separação entre o estado presente e os anteriores. Para Bergson, portanto, consciência é conservação e acumulação do passado no presente, mas também antecipação do futuro. Para este autor, não haveria para a consciência o presente, se este se reduzisse ao instante matemático. “Este instante é apenas o limite, puramente teórico, que separa o passado do futuro; ele pode a rigor ser concebido, não é jamais percebido; quando cremos surpreendê-lo, ele já está longe de nós. O que percebemos de fato é uma certa espessura de duração que se compõe de duas partes: nosso passado imediato e nosso futuro iminente. (...) Digamos, pois, que a consciência é o traço de união entre o que foi e o que será, uma ponte entre o passado e o futuro.”(Bergson, 1974: 77). Bergson parte, portanto, do pressuposto de que a realidade é contínua e indivisível, um eterno fluxo sempre em movimento. E afirma existirem duas formas de conhecimento, colocadas lado a lado, constituindo duas direções divergentes da atividade do pensamento: uma, que é obtida pela inteligência e, outra, pela intuição. A primeira visa a inserir o ser humano no mundo material de forma eficaz; sua função básica consiste em presidir ações. Para Bergson, toda nossa existência visa basicamente à satisfação das nossas necessidades e interesses práticos. E, com isso, deixamos de lado nossa natureza enquanto seres mutáveis e criativos que somos, perdendo contato com o impulso diferenciador que nos constitui. A inteligência acessa a realidade abstraindo os momentos fixos e transformando-os em conceitos pela combinação com conceitos já existentes, que são como desdobramentos dos nossos sentidos, auxiliares de nossas ações. Do movimento, a inteligência retém somente as suas coordenadas; ela busca, portanto, a fixidez, perguntando-se onde o móvel está, onde o móvel estará, onde o móvel passa. “A duração do movimento se decompõe então em “momentos” correspondentes a cada uma das posições. Mas os momentos do tempo e as posições do móvel são apenas instantâneos tomados por nosso entendimento na continuidade do movimento e da duração. Com essas visões justapostas tem-se um sucedâneo prático do tempo e do movimento que serve às exigências da linguagem e que se espera que sirva às do cálculo; mas nada mais se tem do que uma recomposição artificial. (...) Em suma, o tempo assim considerado não é mais do que um espaço ideal onde supomos alinhados todos os acontecimentos passados, presentes e futuros, que estão, ainda mais, impedidos de aparecer-nos em bloco: o fluir da duração seria esta própria imperfeição.” (Bergson, 1974: 110/111). O conjunto da matéria aparece, portanto, à inteligência como um espaço homogêneo onde as representações se alinham, permitindo os seus cálculos e as suas previsões. Isto nos permite concluir que a inteligência só possui do real representações descontínuas. A inteligência, quando destinada à satisfação de interesses materiais, isto é, aplicada ao terreno prático, é eficaz; o problema se coloca quando ela se propõe a dar a chave do conhecimento do real tal como ele é em si. Pois, para Bergson, a realidade se apresenta como um perpétuo devir e a inteligência, ao fixar o real em representações esquemáticas, enquadrando-as em categorias fixas e imutáveis, perde o movimento que o caracteriza. O erro da inteligência é pensar que o real já está dado. Ao contrário, ele devém a cada momento, e o faz diferenciando-se. Nesta instância, a inteligência engendra ilusões causadas por se generalizar idéias que só se aplicam ao terreno prático e circunstancial. A mais flagrante de todas as ilusões consiste, segundo Bergson, em crer que podemos pensar no instável por meio do estável, no movente por meio do imóvel, ou seja, a inteligência é incapaz de compreender a essência da natureza do espírito, uma vez que esta essência consiste em fluir, ao passo que a inteligência só retém do real momentos fixos e descontínuos, levando-nos, com isso, a uma compreensão inadequada da realidade. A duração real é assim sistematicamente desviada; a ciência sempre procurou extrair e reter do mundo material somente aquilo que fosse suscetível de se repetir e de ser calculado, consequentemente, aquilo que não dura; segundo o autor, a ciência incide no tempo e no movimento com a condição de eliminar do tempo, a duração e do movimento, a mobilidade. Para Bergson: “A essência da duração está em fluir. O real não são os ‘estados’, simples instantâneos tomados por nós ao longo da mudança; é, ao contrário, o fluxo, é a continuidade de transição, é a mudança ela mesma.” (1974: 110). De acordo com este autor, pensar intuitivamente é pensar na duração, pois o objeto da intuição é o próprio tempo, ou seja, a duração, uma vez que a essência da realidade está na mobilidade, na própria passagem do tempo. Para este filósofo, a imagem de um acontecimento passado coexiste com o presente que passa, sendo esta a experiência da duplicação. Para que a intuição possa emergir é necessário se desinteressar da vida prática e saber ver a passagem do tempo em seu duplo jogo simétrico, ou seja, estar presente no aqui e agora, sentindo a passagem do tempo, ou em outras palavras, ser espectador daquilo que é visto ao mesmo tempo do que de si mesmo. A experiência do tempo é a experiência do novo e da criação, sendo a criação caracterizada com o deixar-emergir num ato ou num produto. A intuição se dá quando o pensamento racional - nos moldes da inteligência prática/interesseira - é submetido à crítica a partir da intuição, permitindo que a atenção se volte para o espírito ou para a sensibilidade. Neste momento, o sujeito vive o instante presente; e, num lapso de tempo, por meio de uma consciência imediata pautada nos sentidos e na sensibilidade, sobrevém um problema ou uma idéia criativa. Para Bergson, colocar o problema é mais crucial do que resolvê-lo, pois implica em uma invenção, ao passo que a resolução advém, cedo ou tarde. Assim como o domínio da inteligência é a matéria, para Bergson, o domínio da intuição é o espírito. E ele sugere também que existe algo de divino no espírito que se insere como criador de novas idéias, fruto do pensamento intuitivo, porque, para ele, somente este conhecimento é realmente criador, no sentido de trazer algo novo; o pensamento intelectual, por outro lado, somente re-elabora idéias já pré-concebidas. Mas como fazer da intuição, que se apresenta sempre como um conhecimento difuso, um modo de conhecimento preciso? Pois sabemos que a intuição, enquanto experiência imediata da duração, é a princípio obscura. Para dar conta desta questão, Bergson empenhou-se em elaborar um método filosófico que fornecesse uma compreensão adequada da realidade que a todo momento flui. Bergson propõe então que os conceitos nasçam da experiência efetiva do real, captados pela intuição, para só então serem repassados à inteligência,pois a intuição necessita da inteligência para se transmitir. O que Bergson está propondo, em última instância, é a conversão da inteligência à intuição. Pois só assim os conceitos rígidos, abstratos e universais fabricados pela inteligência tornar-se-iam “fluidos, capazes de seguir a realidade em todas as suas sinuosidades e de adotar o próprio movimento da vida interior das coisas” (Bergson, 1974:32). Podemos dizer que, neste caso, os conceitos estariam bem mais próximos da prática, e do saber-fazer - tekné, comentado anteriormente. Desta forma, um acordo poderia se estabelecer entre a inteligência e a intuição fundando o método em que a inteligência se torna crítica, na medida em que passa a reconhecer suas ilusões e permitindo, com isso, uma melhor compreensão da realidade. Estas duas formas de pensamento não seriam, portanto, excludentes, mas sim complementares, ambas necessitando da experiência para se exercerem. Convém esclarecer que não estamos opondo razão à intuição, a razão está presente tanto no pensamento intelectual quanto no intuitivo, só que no primeiro ela está pautada em ideais transcendentes ou previamente concebidos e no segundo, a razão vai estar à serviço da intuição. Para que a intuição possa emergir é necessário que tanto o terapeuta quanto o paciente se envolvam por completo na relação que se instaura no momento da consulta. O que chamaremos de envolvimento por completo é a presença, em especial do médico, de todo o seu ser, incluindo seu corpo e seu espírito - tal como definimos anteriormente -, a tudo o que diz respeito ao seu paciente: seus gestos, seus olhares, suas palavras, seu silêncio. É necessário que haja um caminho de ida e volta entre o paciente e o médico, onde a percepção se duplica e o espírito se vê vendo, ou seja, ao mesmo tempo em que o médico está com a sua atenção voltada para o paciente, ele também se volta para si mesmo, tendo consciência do seu ser presente naquele momento. Isto requer uma atenção rigorosa, isto é, uma consciência de si, do outro e da interação que está se dando entre ambos. Requer também que haja um rompimento com os investimentos de interesse, ou seja, que a mente não esteja ocupada com lembranças ou antecipações que não fazem parte do universo presente naquela situação. Esta visão retoma o viver o aqui e o agora preconizado pelos Pré-Socráticos e também pelos Budistas. É necessário, portanto, que haja um certo “quietismo de sentir”, um certo “vazio”, para que só o espírito ou a sensibilidade possam viver neste fluxo. E assim, o tempo, o processo e o co-funcionamento são cruciais para que a consciência possa se desprender dos interesses práticos e de modelos pré-definidos, para entrar no próprio fluxo do tempo, onde estão presentes os sinais capazes de dar as chaves para os caminhos da cura. Abriremos agora um pequeno parêntese para introduzir um filósofo francês contemporâneo que estuda o pensamento chinês, chamado François Jullien. Este autor alia o “quietismo de sentir”, condição básica para que a intuição possa emergir, a uma categoria que é muito valorizada na China e que talvez não exista uma palavra exata para defini-la em termos ocidentais, mas que ele a traduziu como insipidez. Segundo este filósofo, a insipidez configura-se como aquilo que está no início de todos os possíveis ou que carrega todas as possibilidades de existência, mas sem diferenciar nenhuma em particular, tendo, portanto, o poder de se transformar sem fim. Na cultura chinesa, é reconhecida como a grande qualidade, podendo ser comparada ao neutro, à base ou ao centro (ou "Tao"). Prezar a insipidez, segundo Jullien, é ir ao encontro do nosso julgamento mais imediato. É o domínio aonde apenas a experiência sensível repousa no puro "quietismo do sentir". “Seu prazer não é o de descobrir outros signos, outra “hermenêutica”, mas antes constatar uma ausência de signos, de ver suspender nossa avidez de sentido.” (Jullien, 1991). Ou ainda, a insipidez é uma experiência da consciência inteira, ela exprime nosso estar no mundo sobre um modo mais radical. A insipidez, que pode ser confundida com o próprio Tao, é a neutralidade necessária para que a intuição possa emergir deste maravilhar-se contemplativo. É menos o investimento pessoal que conta: no lugar de impor um modelo ao mundo, deve-se apoiar sobre o potencial da situação. Ela é simbolizada pela pureza da água, podendo ser comparada a este nível inconsciente, a que nos referimos anteriormente, sem imagens nem representações, aonde apenas a experiência sensível repousa. Aí estão presentes todas as possibilidades, mas sem que nenhuma sobressaia à outra. A sabedoria chinesa aponta para a importância da insipidez, da não-ação, do maravilhar-se contemplativo como sendo a base para o encontro da nossa própria consciência. É preciso ressaltar que, para a filosofia chinesa bem como para esta vertente da filosofia ocidental que estamos trabalhando, pensamento e ação estão integrados num mesmo processo, onde tudo inicia-se nesse nível sensível. Portanto, para que sejamos capazes de aprender (no sentido de criar algo novo), não devemos procurar por alguma coisa que esteja fora de nós, pelo contrário, é do interior da nossa sensibilidade que o pensamento emerge. Voltando ao pensamento bergsoniano, chamaremos a atenção para a emoção criadora, que é o que acessa a intuição. Este autor distingue dois tipos de emoção: as superficiais e as profundas; as primeiras estão condicionadas às representações e, portanto, à resolução de interesses práticos relacionados a hábitos e obrigações; as últimas introduzem os indivíduos “num movimento de co-criação com a própria vida, confiando a ela a gênese não só da abertura da alma, capaz de nos prover de uma intuição do todo, como também do dinamismo criativo, enquanto movimento indispensável para a aquisição da liberdade” (Maciel, 1997:134). Estas são nomeadas de emoções criadoras. Isto quer dizer que a intuição só é acessada quando é atravessada por esta emoção. É a emoção que nos abre para o tempo. De acordo com Bergson, ela antecede a representação e, portanto, a linguagem; é, nesse sentido, originária, buscando sentimentos profundos do nosso ser. “Sendo extraída do espírito, a emoção criadora é pura afecção pelo todo, melhor pura expressão do todo, que se evidencia na gênese do ato criador. É a emoção do divino em nós, se entendermos por divindade este impulso criador que é a própria vida.” (Maciel, 1997: 139). É através da emoção criadora que a intuição se torna experiência ampliada, ao mesmo tempo em que a inteligência se converte à ela. “Bergson afirma que as idéias novas, nascidas de uma intuição, surgem no espírito por força de um arrebatamento, como se a emoção as fizesse surgir ainda obscuras, coincidentes com o autor que as intui, imediatas na unicidade do acontecimento, para só depois irem se desdobrando com clareza e distinção. A inteligência é que se responsabilizará por esse desdobramento.” (Maciel, 1997: 143). Gilles Deleuze ao elaborar o que ele chamou de a Nova Imagem do Pensamento aproximou-se muito das idéias de Bergson, no sentido de que a criação de uma nova idéia tem seu início nos sentimentos e emoções que são experimentados no dia-a-dia e não em algo que esteja fora do ser humano, num nível abstrato/superior. Deleuze constrói esta Nova Imagem do Pensamento a partir de uma crítica ao pensamento ocidental clássico, que é calcado na representação. Esta concepção, ao separar o sujeito que pensa do objeto a ser pensado, remeteu à idéia de um ser transcendente e criou um fosso entre pensamento e ação, teoria e prática, ou ainda entre ciência e ação. A ação, nesse sentido, ficou submetida ao pensamento. Esta lógica clássica, calcada no platonismo, expressa uma visão de mundo dividida, de um lado, em essências transcendentes aqui identificadas ao mundo verídico, que só podem ser apreendidas pelo pensamento e, por outro lado, nas aparências que estão relacionadas ao mundo sensível. O pensamento filosófico clássico, segundo Deleuze, tem como pressuposto implícito uma Imagem do pensamento, pré-filosófica e natural, tirada do elemento puro do senso comum, ao mesmo tempo em que determinada pelo bom senso. Este pensamento baseia-se no pressuposto de que ele é natural, “dotado para o verdadeiro, em afinidade com o verdadeiro, sob o duplo aspecto de uma boa vontade do pensador e de uma natureza reta do pensamento.” (Deleuze, 1988: 218). E é sobre esta imagem que se presume que cada um saiba o que significa pensar. Os pressupostos em filosofia estão relacionados ao seu começo, pois começar em filosofia significa eliminar todos os pressupostos; ocorre, entretanto, que os pressupostos filosóficos são subjetivos e objetivos e, neste caso, segundo Nietzsche, essencialmente morais: “... pois só a Moral é capaz de nos persuadir de que o pensamento tem uma boa natureza, o pensador, uma boa vontade, e só o Bem pode fundar a suposta afinidade do pensamento com o Verdadeiro.” (Deleuze, 1988:219). Este pensamento traz, portanto, a crença na existência de um real dado, de uma verdade dada e de que o pensamento é capaz de encontrar essa verdade por meio da razão. Para tanto, torna-se necessário se libertar dos interesses sensíveis, das paixões, etc. para atingir o mundo das idéias, ou seja, buscar a verdade que o pensamento sempre almejou e que estava separada dele. Pensar é comparado a uma ponte que ata o pensamento ao objeto de que ele se encontrava separado; sendo fundamental, para tanto, a utilização de um bom método, pois, com ele, tornamo-nos menos suscetíveis ao erro. O pensamento clássico é calcado no modelo da recognição. A recognição, segundo Deleuze (1988), se define pelo exercício concordante de todas as faculdades - tal como foi definida anteriormente -, sobre um objeto suposto como sendo o mesmo; sendo também implícito o princípio subjetivo da colaboração das faculdades para “todo mundo”, ou seja, para o senso comum. Pensar, nesse sentido, significa reconhecer e representar o real tal como ele é. Este pensamento está centrado na figura do sujeito cognoscente e é visto como algo natural ou inato ao espírito humano, na medida em que todo homem tem a capacidade de pensar. A célebre frase de Descartes (Eu)"Penso, logo existo" sintetiza bem este pensamento, supondo a concordância de todas as faculdades no “Eu” que pensa. Neste modelo, não só o objeto é reconhecido, mas também os valores sobre este objeto. Reconhecer um objeto, neste sentido, é saber se utilizar dele e agir sobre ele. Encontramos aí uma finalidade prática não só em relação aos valores estabelecidos, mas à toda a imagem do pensamento[14]. É evidente que os atos de recognição existem e ocupam grande parte de nossa vida cotidiana. Mas o que foi colocado em questão por Deleuze[15] é se o destino do pensamento se encontra aí, e se o pensamento só advém quando o reconhecemos. A crítica que este filósofo faz desta imagem é que este pensamento, ao se fazer representante do senso comum, não rompe com a opinião vigente da maioria - opinião tomada aqui nas suas duas metades, a saber: senso comum e bom senso - ficando a serviço do poder e da moral vigente. Deleuze propõe uma Filosofia isenta de pressupostos, tomando como ponto de partida uma crítica radical da imagem do pensamento e dos “postulados” que ela implica. Propõe, assim, um pensamento sem imagem, renunciando à forma da representação assim como do elemento do senso comum. Como se o pensamento só pudesse começar e sempre recomeçar a pensar ao se libertar da imagem e dos postulados.(Deleuze, 1988: 220). O pensar, para esta filosofia, não é reconhecer, mas sim problematizar, ou seja, colocar uma nova idéia. Pensar, nesse sentido, é o que advém da falência dos hábitos, não é natural; para nascer precisa sempre de uma ocasião fortuita ou da contingência de um encontro. Conforme Deleuze: “Há no mundo alguma coisa que força a pensar. Este algo é o objeto de um encontro fundamental e não de uma recognição. (...) Pode ser apreendido sob tonalidades afetivas diversas, admiração, amor, ódio, dor. Mas, em sua primeira característica, e sob qualquer tonalidade, ele só pode ser sentido. É a este respeito que ele se opõe à recognição, pois o sensível, na recognição, nunca é o que só pode ser sentido, mas o que se relaciona diretamente com os sentidos num objeto que pode ser lembrado, imaginado, concebido.” (1988: 231). É necessário que algo violente o pensamento, uma estranheza ou uma inimizade para tirá-lo de seu estado natural. É justamente quando não reconhecemos que somos forçados a pensar ou, porque não dizer, a criar. Nesse sentido, o pensar só advém ao pensamento quando somos forçados e configura-se como uma força que só se relaciona a partir de um fora. Portanto, o que está no centro deste pensar não é o sujeito, mas o acontecimento. O pensar, para Deleuze, é consciente, mas a gênese do pensar é inconsciente. As forças, segundo Nietzsche[16], que se relacionam conosco e que nos forçam a pensar são inconscientes - da ordem do sensível - e se dão num nível pré-representativo, aquém da recognição. No encontro destas forças está o afeto, uma vez que uma força tem sempre dois poderes: um poder de afetar e outro de ser afetado. Este afeto é chamado por Deleuze de signo. Todo processo de aprendizagem inicia-se nos signos. Os signos são objetos do encontro de micro-percepções inconscientes, que se dão através da experiência, ou seja, na duração, para usar o termo bergsoniano. O pensamento, quando afetado pelas forças, procurará dar sentido aos signos e esse sentido advirá como um problema, que é a própria criação de uma nova idéia. Sendo assim, o sentido é que se encontra no centro deste pensamento e não a idéia de verdade. Diante da incapacidade de reação advinda do não-reconhecimento, não agir, manter-se perplexo instigado pelo problema de onde a idéia possa emergir. Segundo Deleuze: “Aprender é o nome que convém aos atos subjetivos operados em face da objetividade do problema (Idéia), ao passo que saber designa apenas a generalidade do conceito ou a calma posse de uma regra das soluções.”(1988: 269). Desta maneira, o problema é colocado quando a sensibilidade, sentindo aquilo que só pode ser sentido, entra num jogo discordante com as outras faculdades e força a memória a lembrar aquilo que só pode ser lembrado. Esta, por sua vez, comunica a violência sofrida ao pensamento, forçando-o a pensar aquilo que só pode ser pensado. Este esforço divergente é a violência daquilo que força a pensar, em que cada faculdade enfrenta seu limite e só recebe da outra (ou só comunica à outra) uma violência que a coloca em face de seu elemento próprio. Contrário ao modelo da recognição, no qual todas as faculdades convergem para o esforço comum de reconhecer um objeto. O problema fornece apenas as condições para que uma faculdade possa se comunicar com outra. “Sob este aspecto, as Idéias, em vez de terem um bom senso ou um senso comum como meio, remetem a um para-senso que determina a única comunicação das faculdades disjuntas”. (Deleuze, 1988: 241). Sendo assim, o que causa o pensar para Deleuze, isto é, o que impulsiona o pensamento é o signo. O signo é composto por uma pista que possa levar à cura, um indício, ou ainda um sintoma que se expressa em algo ou em alguém, acrescido pela impressão captada pelo sujeito cognoscente. A pista por si só não expressa um signo, é necessário que o sujeito que observa saiba captar aquele sinal, relacionando-o com outros sinais para compor um signo, que pode se traduzir num diagnóstico ou numa prescrição médica, para dar um exemplo em relação aos casos clínicos. Este signo remete à idéia de ser do sensível ou àquilo que torna sensível a partir de uma linguagem pré-verbal, pré-significante. O que só pode ser sentido aparece como causa do pensar. Não existe, portanto, neste pensamento o inatismo ou a naturalidade no pensar. Para que o pensamento inicie-se é necessário, antes de tudo, a experimentação, ou a ocasião, ou a contingência de um encontro. Nesta vivência encontramos signos que nos afetam; se eles não são reconhecidos, de imediato um estranhamento se impõe. Neste momento, nosso conhecimento intelectual/racional dissipa-se, por não sabermos utilizar tais signos na nossa vida prática, por não sabermos, portanto, nos servir deles. Isto coloca uma questão que nos força a pensar nos levando ao fora do saber, ao não-sabido. E nesta instância, somente a sensibilidade poderá suscitar uma resposta ao problema, trazendo-a sob a forma de uma nova idéia ou uma nova criação. Fazendo um contraponto com Bergson, intuir é ter essa sensibilidade para os signos. Somente a emoção criadora é capaz de gerar a intuição (para Bergson) ou o pensamento criativo (para Deleuze). A partir da emoção, a intuição poderá emergir e se articular ao intelecto para criar um novo pensamento. Daí a importância da atenção apurada para se observar os pequenos detalhes, os sinais imperceptíveis, os gestos, os toques e os silêncios, pois eles podem traduzir aquilo que as palavras, muitas vezes, não conseguem expressar. Um paradigma de conhecimento similar a este já existiu na humanidade mais primitiva e povoou a medicina do final do século passado, entretanto não vingou diante do poder hegemônico. Ele nos foi apresentado pelo historiador Carlo Ginzburg e constituía-se em um paradigma indiciário baseado na semiótica médica: “a disciplina que permite diagnosticar as doenças inacessíveis à observação direta na base de sintomas superficiais, às vezes irrelevantes aos olhos do leigo” (1991: 151). O que caracteriza esse saber, segundo Ginzburg, é a capacidade de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experimentável diretamente. Ele quer nos mostrar que são justamente nos pormenores mais negligenciáveis, ou seja, nos elementos subtraídos ao controle da consciência como no caso dos signos de uma pintura ou nos pequenos gestos inconscientes, em relação aos sintomas da psicanálise ou ainda nos indícios imperceptíveis, em relação à investigação de um detetive, que nos permitem captar uma realidade mais profunda que, de outra forma, seria inatingível. Por meio de exemplos retirados de diversos momentos históricos, Ginzburg aponta para a relevância do saber nascido da experiência, como ele afirma, da concretude da experiência, residindo aí a força desse tipo de saber: “Essas formas de saber eram mais ricas do que qualquer codificação escrita; não eram aprendidas nos livros mas a viva voz, pelos gestos, pelos olhares; fundavam-se sobre sutilezas certamente não-formalizáveis, freqüentemente nem sequer traduzíveis em nível verbal” (1991: 167). São, portanto, formas de saber mudas, no sentido de que suas regras não prestam-se a serem formalizadas nem ditas. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo elementos imponderáveis, tais como: faro, golpe de visa, olhar–clínico, intuição. Como Ginzburg sugeriu, a medicina, assim como outras ciências humanas, são disciplinas eminentemente qualitativas e conjeturais que, ao se basearem em casos, situações e documentos individuais, torna problemático a adoção de um paradigma científico centrado na física clássica. (1991: 156). É neste sentido que consideramos importante o médico estar atento a todos os detalhes, minúcias, enfim, indícios, por mais desprezíveis que possam parecer, trazidos por seus pacientes; porque, muitas vezes, sinais insignificantes ou muito sutis podem revelar queixas escondidas que afetam demasiadamente o paciente. Concluindo Este trabalho insere-se numa perspectiva mais ampla situada no campo da Saúde que propõe a retomada da prevenção da doença, bem como da promoção da saúde, valorizando a consulta médica e a relação médico-paciente - tomados como elementos importantes no processo de cura. Propõe, assim, que possamos sair do paradigma técnico-cientificista que rege a biomedicina e que encontra-se hoje instalado no modelo hospitalar.Afirmamos aqui a hipótese inicial da psicanálise de que a origem das doenças pode estar nas emoções e que, portanto, há sintomas psíquicos, inconscientes nas doenças, para além dos sintomas físicos e biológicos. Consideramos as doenças como processos de individuação e, portanto, de subjetivação que podem se expressar na disfunção ou lesão de órgãos. A cura deve ser buscada tanto no sentido de restabelecer a saúde física quanto no encaminhamento dos motivos subjetivos/emocionais que possivelmente contribuíram para desencadear aquele processo. Para tanto, propomos a utilização do Método Intuitivo, preconizado por Bergson, por acreditarmos que o pensamento racional/científico é apenas uma faceta do nosso pensamento, que cobre determinadas instâncias das necessidades que são impostas às nossas vidas. Ele se mostra, entretanto, insuficiente para cobrir os aspectos simbólicos e psicológicos dos sujeitos, e incapaz de se adaptar à maleabilidade da vida que a todo momento flui. A intuição mostra-se, neste caso, mais eficaz para apreender a realidade, pois ela é captada por meio de uma consciência imediata, pautada nos sentidos e na sensibilidade e que possibilita a tomada de decisões. Em suma, almejamos com este trabalho contribuir para o resgate do pensamento holístico, onde corpo e mente possam compor uma mesma e única totalidade e a sensibilidade estar presente no corpo inteiro; que a razão e a emoção possam estar mais próximas e onde pensamento e ação caminhem juntos. Acreditamos que o resgate destes princípios possam levar a uma maior autonomia do paciente, uma vez que esta “nova” postura que busca pela intuição implica uma maior consciência de si, pois a atenção se volta para si, para o outro e para o momento presente. Com uma postura mais atenta diante dos problemas da realidade, tanto no sentido racional quanto no emocional, acreditamos que o paciente possa gozar de melhores condições para visualizar uma perspectiva de cura, retomando assim a sua singularidade, bem como sua autonomia e liberdade diante da vida. Fonte: www.artesdecura.com.br http://www.fw2.com.br/clientes/artesdecura/REVISTA/medicina_integral/intuicao_e_arte.htm |
Amor
Sejam felizes todos os seres.
Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.