A NATUREZA DO TEMPO
CAPÍTULo III
A NATUREZA DO TEMPO
Sucessão e consciência. - Origem da idéia de um Tempo universal. - A Duração real e o tempo mensurável. - A simultaneidade imediatamente percebida: simultaneidade de fluxo e simultaneidade no instante. - A simultaneidade indicada pelos relógios. - O tempo que se desenrola. - O tempo desenrolado e a quarta dimensão. - Que sinal permitirá reconhecer que um Tempo é real.
Não há dúvida de que o tempo,
para nós, confunde-se inicialmente
com a continuidade de nossa vida interior.
O que é essa continuidade?
A de um escoamento ou de uma passagem, mas de um escoamento e de uma passagem que se bastam a si mesmos, uma vez que o escoamento não implica uma coisa que se escoa e a passagem não pressupõe estados pelos quais se passa: a coisa e o estado não são mais que instantâneos da transição artificialmente captados; e essa transição, a única que é naturalmente experimentada, é a própria duração.
Ela é memória, mas não memória pessoal, exterior àquilo que ela retém, distinta de um passado cuja conservação ela garantiria; é uma memória interior à própria mudança, memória que prolonga o antes no depois e os impede de serem puros instantâneos que aparecem e desaparecem num presente que renasceria incessantemente.
Uma melodia
que ouvimos de olhos fechados,
pensando apenas nela, está muito perto de coincidir
com esse tempo que é a própria fluidez de nossa vida interior;
mas ainda tem qualidades demais, determinação demais, e seria preciso começar por apagar a diferença entre os sons, e depois abolir as características distintivas do próprio som, conservar dele apenas a continuação do que precede no que se segue e a transição ininterrupta, multiplicidade sem divisibilidade e sucessão sem separação, para encontrar por fim o tempo fundamental. Assim é a duração imediatamente percebida, sem a qual não teríamos nenhuma idéia do tempo.
Como passamos desse tempo interior para o tempo das coisas? Percebemos o mundo material e essa percepção nos parece, com ou sem razão, estar concomitantemente em nós e fora de nós: por um lado, é um estado de consciência; por outro, é uma película superficial de matéria onde coincidiriam o senciente e o sentido. A cada momento de nossa vida interior corresponde assim um momento de nosso corpo e de toda a matéria circundante, que lhe seria" simultânea": essa matéria parece então participar de nossa duração conscientel.
Gradualmente, estendemos essa duração ao conjunto do mundo material, porque não vemos nenhum motivo para limitá-la à vizinhança imediata de nosso corpo: o universo nos parece formar um único todo; e, se a parte que está à nossa volta dura à nossa maneira, o mesmo deve acontecer, pensamos nós, com aquela que a rodeia por sua vez, e assim indefinidamente. Nasce, desse modo, a idéia de uma Duração do universo, isto é, de uma consciência impessoal que seria o traço-de-união entre todas as consciências individuais, assim como entre essas consciência e o resto da natureza2.
Tal consciência captaria numa única percepção, instantânea, acontecimentos múltiplos situados em pontos diversos do espaço; a simultaneidade seria precisamente a possibilidade que dois ou mais acontecimentos teriam de entrar numa percepção única e instantânea. Que há de verídico, que há de ilusório nesse modo de conceber as coisas? O que importa por enquanto não é descobrir o que há de verdade ou de erro, mas perceber nitidamente onde termina a experiência e onde começa a hipótese. Não há dúvida de que nossa consciência se sente durar, nem de que nossa percepção faz parte de nossa consciência, ou de que algo de nosso corpo e da matéria que nos cerca entra em nossa percepção3: assim, tanto nossa duração como uma certa participação sentida, vivida, de nosso ambiente material nessa duração interior são fatos da experiência.
Mas, em primeiro lugar, como mostramos outrora, a natureza dessa participação é desconhecida: poderia estar relaciona da com a propriedade que as coisas exteriores teriam sem que elas mesmas durem - de se manifestar em nossa duração na medida em que agem sobre nós e de escandir ou balizar, assim, o curso de nossa vida consciente4.
Em segundo lugar, supondo que esse ambiente" dure", nada prova rigorosamente que encontraríamos a mesma duração quando mudássemos de ambiente: durações diferentes, ou seja, com ritmos diversos, poderiam coexistir. Levantamos outrora uma hipótese desse tipo no que concerne às espécies vivas.
Distinguimos durações com tensão mais ou menos alta, características dos diversos graus de consciência, que se escalonariam ao longo do reino animal. No entanto, na época não percebíamos e continuamos não vendo hoje nenhuma razão para estender para o universo material essa hipótese de uma multiplicidade de durações. Deixamos em aberto a questão de saber se o universo era divisível ou não em mundos independentes uns dos outros; o mundo que nos épróprio, com o elã particular que nele a vida manifesta, bastava-nos. Mas, caso fosse preciso decidir a questão, optaríamos, no estado atual de nossos conhecimentos, pela hipótese de um Tempo material uno e universal.
Não é mais que uma hipótese, mas está fundada num raciocínio por analogia que devemos ter por conclusivo enquanto não nos tiverem oferecido nada mais satisfatório. Esse raciocínio, que mal é consciente, poderia ser formulado, acreditamos, da seguinte maneira. Todas as consciências humanas são de mesma natureza, percebem da mesma maneira, de certa forma andam no mesmo passo e vivem a mesma duração.
Ora, nada nos impede de imaginar quantas consciências humanas quisermos, disseminadas aqui e acolá pela totalidade do universo, mas suficientemente próximas umas das outras para que duas delas consecutivas, tomadas ao acaso, tenham em comum a porção extrema do campo de sua experiência exterior. Cada uma dessas duas experiências exteriores participa da duração de cada uma das duas consciências. E, como as duas consciências têm o mesmo ritmo de duração, o mesmo deve acontecer com as duas experiências. Mas as duas experiências têm uma parte comum. Então, mediante esse traço-de-união, elas se juntam numa experiência única, desenrolando-se numa duração única que será, como queiram, a de uma ou de outra das duas consciências.
Uma vez que o mesmo raciocínio pode se repetir progressivamente, uma mesma duração vai recolher ao longo de seu caminho os acontecimentos da totalidade do mundo material; e poderemos então eliminar as consciências humanas que tínhamos inicialmente disposto aqui e acolá como retransmissores para o movimento de nosso pensamento: não haverá mais que o tempo impessoal em que todas as coisas se escoarão. Nessa nossa formulação da crença da humanidade talvez estejamos pondo mais precisão do que convém.
Cada um de nós contenta-se
em geral em ampliar indefinidamente,
por meio de um vago esforço de imaginação,
seu ambiente material imediato, o qual,
percebido por cada um de nós,
participa da duração de sua consciência.
Mas quando esse esforço se torna mais preciso, quando procuramos legitimá-Io, surpreendemos a nós mesmos desdobrando e multiplicando nossa consciência, transportando-a para os confins extremos de nossa experiência exterior e depois para o fim do novo campo de experiência que ela assim se ofertou, e assim por diante indefinidamente: de fato, são consciências múltiplas oriundas da nossa, semelhantes à nossa, que encarregamos de montar a corrente através da imensidão do universo e de atestar, pela identidade de suas durações internas e pela contigüidade de suas experiências exteriores, a unidade de um Tempo impessoal.
Essa é a hipótese do senso comum. Afirmamos que poderia igualmente ser a de Einstein, e que a Teoria da Relatividade é feita sobretudo para confirmar a idéia de um Tempo comum a todas as coisas. Essa idéia, hipotética em todos os c~sos, parece-nos até ganhar um rigor e uma consistênCIa particulares na Teoria da Relatividade, entendida como deve ser entendida. Será essa a conclusão que se extrairá de nosso trabalho de análise. Mas não é esse o ponto importante por enquanto. Deixemos de lado a questão do Tempo único. O que queremos estabelecer é que não se pode falar de uma realidade que dura sem introduzir nela uma consciência.
O metafísico fará
intervir diretamente uma consciência universal.
O senso comum pensará nisso vagamente.
O matemático, é verdade, não terá de se ocupar dela, uma vez que se interessa pela medida das coisas e não por sua natureza. Mas, caso se perguntasse o que mede, caso fixasse sua atenção no próprio tempo, conceberia necessariamente uma sucessão e, por conseguinte, um antes e um depois e, por conseguinte, uma ponte entre os dois (se não, haveria apenas um dos dois, puro instantâneo): ora, mais uma vez, é impossível imaginar ou conceber um traço-de-união entre
o antes e o depois sem um elemento de memória e, por conseguinte, de consciência.
Talvez o emprego dessa palavra repugne se associarem a ela um sentido antropomórfico. Mas, para conceber uma coisa que dura, não é de modo algum necessário pegar a memória que nos é própria e transportá-Ia, mesmo atenuada, para o interior da coisa. Por mais que se diminua sua intensidade, corre-se o risco de deixar na coisa algum grau da variedade e da riqueza da vida interior; conservando-lhe assim seu caráter pessoal, humano, em todo caso. É o caminho inverso que é preciso se
guir. Haverá que considerar um momento do desenrolar do universo, isto é, um instantâneo que existiria independentemente de qualquer consciência, e, em seguida, tentar evocar conjuntamente um outro momento tão próximo quanto possível daquele e fazer entrar assim um mínimo de tempo no mundo, sem deixar passar com ele o mais leve lampejo de memória. Verão que isso é impossível. Sem uma memória elementar que ligue os dois instantes entre si, haverá tão-somente um ou outro dos dois, um instante único por conseguinte, nada de antes e depois, nada de sucessão, nada de tempo.
Pode-se conceder a essa memória o estritamente necessário para fazer a ligação; será, se quiserem, essa própria ligação simples prolongamento do antes no depois imediato com um esquecimento perpetuamente renovado do que não for o momento imediatamente anterior. Nem por isso se terá deixado de introduzir memória.
A bem dizer, é impossível distinguir entre a duração, por mais curta que seja, que separa dois instantes e uma memória que os ligasse entre si, pois a duração é essencialmente uma continuação do que não é mais no que é. Eis aí o tempo real, ou seja, percebido e vivido. Eis também qualquer tempo concebido' pois não se pode conceber um tempo sem representá-Io percebido e vivido. Duração implica portanto consciência; e pomos consciência no fundo das coisas pelo próprio fato de lhes atribuirmos um tempo que dura.
Aliás, quer o deixássemos em nós ou o puséssemos fora de nós, o tempo que dura não é mensurável. A medida que não é puramente convencional implica com efeito divisão e superposição. Ora, não se conseguiria superpor durações sucessivas para verificar se são iguais ou desiguais; por hipótese, uma não existe mais quando a outra aparece; a idéia de igualdade constatável perde aqui toda significação. Por outro lado, embora a duração real se tome divisível, como veremos, pela solidariedade que se estabelece entre ela e a linha que a simboliza, ela própria consiste num progresso indivisível e global.
Escutem a melodia fechando os olhos, pensando apenas nela, não justapondo mais sobre um papel ou sobre um teclado imaginários as notas que vocês conservavam assim uma para a outra, que aceitavam então tomar-se simultâneas e renunciavam a sua continuidade de fluidez no tempo para se congelar no espaço: encontrarão indivisa, indivisível, a melodia ou a porção de melodia que terão recolocado na duração pura. Ora, nossa duração interior' considerada do primeiro ao último momento de nossa vida consciente, é algo parecido com essa melodia. Nossa atenção pode desviar-se dela e conseqüentemente de sua indivisibilidade; mas, quando tentamos cortá-Ia, é como se passássemos bruscamente uma lâmina através de uma chama: dividimos apenas o espaço ocupado por ela.
Quando assistimos a um movimento muito rápido, como o de uma estrela cadente, distinguimos muito nitidamente a linha de fogo, divisível à vontade, da indivisível mobilidade que ela subtende: é essa mobilidade que é pura duração. Por mais que o Tempo impessoal e universal, caso exista, se prolongue infindavelmente do passado ao porvir, ele é feito de uma peça só; as partes que nele distinguimos são simplesmente as de um espaço que desenha seu rasto e que se toma a nossos olhos seu equivalente; dividimos o desenrolado, mas não o desenrolar. Como passamos, primeiro, do desenrolar para o desenrolado, da duração pura para o tempo mensurável? É fácil reconstituir o mecanismo dessa operação.
Se eu passear meu dedo sobre uma folha de papel sem olhar para ela, o movimento que realizo, percebido de dentro, é uma continuidade de consciência, algo de meu próprio fluxo, duração, enfim. Se, agora, abrir os olhos, verei que meu dedo traça sobre a folha de papel uma linha que se conserva, onde tudo é justaposição e não mais sucessão; tenho aí algo da ordem do desenrolado, que é o registro do efeito do movimento e que também será seu símbolo. Ora, essa linha é divisível, ela é mensurável. Ao dividi-Ia e medi-Ia, poderei portanto dizer, se me convier, que divido e meço a duração do movimento que a traça.
Portanto, é bem verdade que o tempo se mede por intermédio do movimento. Deve-se acrescentar, porém, que, se essa medida do tempo pelo movimento é possível, é sobretudo porque nós mesmos somos capazes de realizar movimentos e porque esses movimentos têm então um duplo aspecto: como sensação muscular, fazem parte da corrente de nossa vida consciente, duram; como percepção visual, descrevem uma trajetória, criam para si um espaço. Digo "sobretudo", pois, a rigor, poder-se-ia conceber um ser consciente reduzido à percepção visual e que contudo conseguisse construir a idéia de tempo mensurável.
Seria então preciso que sua vida transcorresse na contemplação de um movimento exterior prolongando-se sem fim. Também seria preciso que ele pudesse extrair do movimento percebido no espaço, e que participa da divisibilidade de sua trajetória, a pura mobilidade' ou seja, a solidariedade ininterrupta do antes e do depois dada à consciência como um fato indivisível: fizemos há pouco essa distinção quando falamos da linha qe fogo traçada pela estrela cadente.
Tal consciência teria uma continuidade de vida constituída pelo sentimento ininterrupto de uma mobilidade exterior que se desenrolaria indefinidamente. E a ininterrupção do desenrolar também seria distinta do rasto divisível deixado no espaço, o qual também é da ordem do desenrolado. Ele se divide e se mede porque é espaço. O outro é duração. Sem o desenrolar contínuo, não haveria mais que espaço, e um espaço que, não subtendendo mais uma duração, não representaria mais o tempo.
Todavia, nada impede supor que cada um de nós trace no espaço um movimento ininterrupto do começo ao fim de sua vida consciente. Poderia andar dia e noite. Realizaria assim uma viagem coextensiva à sua vida consciente. Toda a sua história iria se desenrolar então num Tempo mensurável.
É num tipo de viagem dessas que pensamos quando falamos do Tempo impessoal? Não exatamente, porque vivemos uma vida social e até cósmica, tanto ou mais que uma vida individual. Substituímos muito naturalmente a viagem que faríamos pela viagem de qualquer outra pessoa, e depois por um movimento ininterrupto qualquer que lhe seria contemporâneo. Chamo" contemporâneos" dois fluxos que são para minha consciência um ou dois, indiferentemente: minha consciência os percebe juntos como um escoamento único caso queira realizar um ato indiviso de atenção, distingue-os ao contrário de longo a longo se preferir dividir sua atenção entre eles, fazendo inclusive ambas as coisas concomitantemente se decidir dividir sua atenção, mas não cortá-Ia em dois. Chamo "simultâneas" duas percepções instantâneas apreendidas num único e mesmo ato mental, podendo a atenção mais uma vez fazer delas uma ou duas, à vontade.
Posto isto, é fácil ver que é do nosso maior interesse tomar por "desenrolar do tempo" um movimento independente daquele de nosso próprio corpo. A bem dizer, encontramo10 já tomado. A sociedade adotou-o para nós. É o movimento de rotação da Terra. Mas, caso o aceitemos, caso compreendamos que seja tempo e não só espaço, é porque sempre há uma viagem de nosso próprio corpo, virtual, e ela poderia ter sido para nós o desenrolar do tempo.
Pouco importa, aliás, que seja um corpo móvel ou outro que adotemos como contador do tempo. A partir do momento em que exteriorizamos nossa própria duração em movimento no espaço, o resto se segue. Doravante, o tempo nos aparecerá como o desenrolar de um fio, ou seja, como o trajeto do corpo móvel encarregado de contá-lo. Teremos medido, diremos nós, o tempo desse desenrolar e, por conseguinte, também o do desenrolar universal.
Mas todas as coisas não nos pareceriam desenrolarse com o fio, cada momento atual do universo não seria para nós a ponta do fio, se não tivéssemos à nossa disposição o conceito de simultaneidade. Veremos mais adiante o papel desse conceito na teoria de Einstein. Por enquanto, gostaríamos de deixar bem clara sua origem psicológica, acerca da qual já dissemos algo.
Os teóricos da Relatividade jamais falam de outra coisa senão da simultaneidade de dois instantes. Antes desta, contudo, háuma outra, cuja idéia é mais natural: a simultaneidade de dois fluxos. Dizíamos que faz parte da própria essência de nossa atenção poder repartir-se sem se dividir.
Quando estamos sentados
na margem de um rio, o correr da água,
o deslizar de um barco ou o vôo de um pássaro,
o murmúrio ininterrupto de nossa vida profunda
são para nós três coisas diferentes ou uma só,
como quisermos.
Podemos interiorizar o todo, lidar com uma percepção única que carrega, confundidos, os três fluxos em seu curso; ou podemos manter exteriores os dois primeiros e repartir então nossa atenção entre o dentro e o fora; ou, melhor ainda, podemos fazer as duas coisas concomitantemente, nossa atenção ligando e no entanto separando os três escoamentos, graças ao singular privilégio que ela possui de ser uma e várias. Tal é nossa primeira idéia da simultaneidade.
Chamamos então simultâneos dois fluxos exteriores que ocupam a mesma duração porque estão ambos compreendidos na duração de um mesmo terceiro, o nosso: essa duração é apenas a nossa quando nossa consciência olha somente para nós, mas tornase igualmente a deles quando nossa atenção abarca os três fluxos num único ato indivisível.
Todavia, da simultaneidade de dois fluxos jamais passaríamos para a de dois instantes se ficássemos na duração pura, pois toda duração é espessa: o tempo real não tem instantes. Mas formamos naturalmente a idéia de instante e também a de instantes simultâneos desde que adquirimos o hábito de converter o tempo em espaço. Pois, embora uma duração não tenha instantes, uma linha termina em pontos5. E, a partir do momento em que a uma duração fazemos corresponder uma linha, a porções da linha deverão corresponder "porções de duração" e a uma extremidade da linha uma" extremidade de duração": será esse o instante - algo que não existe realmente, mas virtualmente.
O instante é
o que terminaria uma duração
se ela se detivesse.Mas ela não se detém.
O tempo real não poderia portanto fornecer o instante;
este provém do ponto matemático, isto é, do espaço.
E no entanto, sem o tempo real, o ponto não seria mais que ponto, não haveria instante. Instantaneidade implica portanto duas coisas: uma continuidade de tempo real, ou seja, de duração, e um tempo espacializado, ou seja, uma linha que, descrita por um movimento, tomou-se por isso simbólica do tempo: esse tempo espacializado, que comporta pontos, ricocheteia no tempo real e faz surgir nele o instante.
Isso não seria possível sem a tendência - fértil de ilusões - que nos leva a aplicar o movimomento contra o espaço percorrido, a fazer coincidir a trajetória com o trajeto, e a decompor então o movimento que percorre a linha assim como decompomos a própria linha: se quisermos distinguir na linha pontos, esses pontos irão tomar-se então "posições" do corpo móvel (como se este, movente, pudesse alguma vez coincidir com algo que é repouso! Como se não renunciasse assim, de imediato, a mover-se!). Então, tendo pontilhado posições sobre o trajeto do movimento, ou seja, extremidades de subdivisões de linha, fazemo-Ias corresponder a "instantes" da continuidade do movimento: simples interrupções virtuais, puras visões mentais.
5. Que o conceito de ponto matemático seja natural é, aliás, algo de que sabem muito bem aqueles que ensinaram um pouco de geometria para crianças. Os espíritos mais refratários aos primeiros elementos concebem imediatamente e sem nenhuma dificuldade linhas sem espessura e pontos sem dimensão.
Descrevemos outrora o mecanismo dessa operação; mostramos também como as dificuldades levantadas pelos filósofos em tomo da questão do movimento desvanecem-se a partir do momento em que se percebe a relação entre o instante e o tempo espacializado, a relação entre o tempo espacializado e a duração pura. Limitemo-nos aqui a fazer notar que, embora a operação pareça científica, ela é natural ao espírito humano; nós a praticamos instintivamente. Sua receita está depositada na linguagem.
Simultaneidade no instante e simultaneidade de fluxo são portanto coisas distintas, mas que se compl~tam reciprocamente. Sem a simultaneidade de fluxo, não consideraríamos substituíveis um pelo outro esses três termos, continuidade de nossa vida interior, continuidade de um movimento voluntário que nosso pensamento prolonga indefinidamente, continuidade de um movimento qualquer através do espaço. Duração real e tempo espaci~izado não seriam portanto equivalentes e, por consegumte, não haveria para nós tempo em geral; haveria apenas a duração de cada um de nós. Mas, por outro lado, esse tempo só pode ser contado graças à simultaneidade no instante. É preciso essa simultaneidade no instante para 1? notar a simultaneidade de um fenômeno e de um momento de relógio, 2? pontilhar, ao longo de nossa própria duração, as simultaneidades desses momentos com momentos de nossa duração que são criados pelo próprio ato de pontilhamento.
Desses dois atos, o primeiro é o essencial para a medida do tempo. Mas, sem o segundo, haveria aí uma medida qualquer, desembocaríamos num número t que representaria qualquer coisa, não pensaríamos em tempo. É portanto a simultaneidade entre dois instantes de dois movimentos exteriores a nós que faz com que possamos medir o tempo; mas é a simultaneidade desses momentos com momentos marcados por eles ao longo de nossa duração interna que faz com que essa medida seja uma medida de tempo.
Deveremos nos demorar sobre esses dois pontos. Abriremos primeiro um parêntese. Acabamos de distinguir duas "simultaneidades no instante": nenhuma das duas é a simultaneidade que mais importa na Teoria da Relatividade, isto é, a simultaneidade entre indicações dadas por dois relógios afastados um do outro. Desta falamos na primeira parte de nosso trabalho; iremos nos ocupar especialmente dela mais adiante. Mas está claro que a própria Teoria da Relatividade não poderá impedir-se de admitir as duas simultaneidades que acabamos de descrever: limitar-se-á a acrescentar uma terceira, aquela que depende de um acerto de relógios.
Ora, mostraremos com certeza que as indicações de dois relógios R e R' afastados um do outro, acertados entre si e marcando a mesma hora, são ou não são simultâneas segundo o ponto de vista. A Teoria da Relatividade tem o direito de afirmá-Io - veremos sob que condição. Assim, porém, reconhece que um evento E, que ocorre ao lado do relógio R, está dado em simultaneidade com uma indicação do relógio R num sentido completamente diferente daquele - no sentido que o psicólogo atribui à palavra simultaneidade.
E o mesmo pode ser dito no tocante à simultaneidade do evento E' com a indicação do relógio "vizinho" R'. Pois, se não se começasse por admitir uma simultaneidade desse tipo, absoluta, e que não tem nada a ver com acertos de relógios, os relógios não serviriam para nada. Seriam maquinismos que nos divertiríamos em comparar uns aos outros; não seriam utilizados para classificar eventos; em suma, existiriam para si e não para nos prestar serviços.
Perderiam sua razão de ser para o teórico da Relatividade, bem como para todo o mundo, pois também ele só os faz intervir para marcar o tempo de um evento. Todavia, é bem verdade que a simultaneidade assim entendida só é constatável entre momentos de dois fluxos se os fluxos passarem "pelo mesmo lugar". Também é bem verdade que o senso comum, a própria ciência até agora estenderam a priori essa concepção da simultaneidade a eventos separados por qualquer distância. Sem dúvida imaginavam, como dizíamos acima, uma consciência coextensiva ao universo, capaz de abarcar os dois eventos numa percepção única e instantânea. Mas aplicavam sobretudo um princípio inerente a toda representação matemática das coisas e que também se impõe à Teoria da Relatividade.
Nele encontra-se a idéia de que a distinção entre "pequeno" e "grande", entre "pouco afastado" e "muito afastado", não tem valor científico, e de que, se se pode falar de simultaneidade fora de qualquer acerto de relógios, independentemente de qualquer ponto de vista, quando se trata de um evento e de um relógio pouco distantes um do outro, tem -se igualmente o direito de dizê-Io quando é grande a distância entre o relógio e o evento, ou entre os dois relógios. Não há física, não há astronomia, não há ciência possível, se não for dado ao cientista o direito de figurar esquematicamente numa folha de papel a totalidade do universo.
Admite-se portanto implicitamente a possibilidade de reduzir sem deformar. Estima-se que a dimensão não é um absoluto, que existem somente relações entre dimensões e que tudo se passaria do mesmo modo num universo apequenado à vontade se as relações entre partes fossem mantidas. Mas como impedir então que nossa imaginação e mesmo nosso entendimento tratem a simultaneidade das indicações de dois relógios muito afastados um do outro como a simultaneidade de dois relógios pouco afastados, ou seja, situados "no mesmo lugar"?
Um micróbio inteligente encontraria entre dois relógios "vizinhos" um intervalo enorme; e não reconheceria a existência de uma simultaneidade absoluta, intuitivamente percebida, entre suas indicações. Mais einsteiniano que Einstein, só falaria aqui de simultaneidade se tivesse podido anotar indicações idênticas em dois relógios microbianos, acertados entre si por sinais ópticos, que teriam substituído nossos dois relógios "vizinhos".
A simultaneidade que é absoluta a nossos olhos seria relativa aos dele, pois ele reportaria a simultaneidade absoluta às indicações de dois relógios microbianos que ele, por sua vez, perceberia (que, aliás, perceberia de modo igualmente equivocado) "no mesmo lugar". Mas pouco importa por ora: não estamos criticando a concepção de Einstein; queremos simplesmente mostrar a que se prende a extensão natural que sempre se praticou da idéia de simultaneidade, depois de tê-Ia haurido da constatação de dois eventos "vizinhos".
Essa análise, que nunca foi tentada até agora, revela-nos um fato de que, aliás, a Teoria da Relatividade poderia tirar partido. Vemos que, se nosso espírito passa aqui com tanta facilidade de uma pequena distância para uma grande, da simultaneidade entre eventos vizinhos para a simultaneidade entre eventos longínquos, se estende para o segundo caso o caráter absoluto do primeiro, é porque está habituado a crer que se pode modificar arbitrariamente as dimensões de todas as coisas, com a condição de conservar as relações que há entre elas.
Mas já é tempo de fechar o parêntese. Voltemos à simultaneidade intuitivamente percebida de que falávamos inicialmente e às duas proposições que enunciamos: 1? é a simultaneidade entre dois instantes de dois movimentos exteriores a nós que nos permite medir um intervalo de tempo; 2? é a simultaneidade desses momentos com momentos pontilhados por eles ao longo de nossa duração interior que faz com que essa medida seja uma medida de tempo.
O primeiro ponto é evidente. Vimos acima como a duração interior se exterioriza em tempo espacializado e como este, antes espaço que tempo, é mensurável. Doravante, será por intermédio dele que mediremos qualquer intervalo de tempo. Como o teremos dividido em partes que correspondem a espaços iguais e que são iguais por definição, teremos em cada ponto de divisão uma extremidade de intervalo, um instante, e tomaremos por unidade de tempo o próprio intervalo.
Poderemos então considerar qualquer movimento que ocorra ao lado desse movimento modelo, qualquer mudança: ao longo de ~odo esse desenrolar pontilharemos" simultaneidades no u:stante". Tantas quantas forem as simultaneidades asSIm constatadas, tantas serão as unidades de tempo contadas para a duração do fenômeno. Medir tempo consiste portanto em enumerar simultaneidades. Qualquer outra medida implica a possibilidade de superpor direta ou indiretamente a unidade de medida ao objeto medido.
Qualquer outra medida aplica-se portanto aos intervalos entre as extremidades, ainda que, de fato, nos limitemos a contar as extremidades. Mas, quando se trata do tempo' só é possível contar as extremidades: será simplesmente uma convenção dizer que desse modo mediu-se o intervalo. Se, todavia, observarmos que a ciência opera exclusivamente com medidas, perceberemos que no que concerne ao tempo a ciência conta instantes, anota simultaneidades, mas continua sem domínio sobre o que se passa nos intervalos.
Pode aumentar indefinidamente o número das extremidades, encurtar indefinidamente os intervalos; mas o intervalo sempre lhe escapa, mostralhe apenas suas extremidades. Se todos os movimentos do universo se acelerassem de repente na mesma proporção, inclusive aquele que serve de medida para o tempo, algo mudaria para uma consciência que não fosse solidária dos movimentos moleculares intracerebrais; entre o nascer e o pôr do sol, ela não receberia o mesmo enriquecimento; constataria, pois, uma mudança; mesmo a hipótese de uma aceleração simultânea de todos os movimentos do universo só tem sentido se imaginarmos uma consciência espectadora cuja duração, totalmente qualitativa, comporte o mais ou o menos sem por isso ser acessível à medida6.
Mas a mudança só existiria
para essa consciência capaz de comparar
o escoamento das coisas com o da vida interior.
No tocante à ciência, nada teria mudado.
Avancemos mais. A rapidez do desenrolar desse Tempo exterior e matemático poderia tornar-se infinita, todos os estados passados, presentes e por vir do universo poderiam estar dados de uma só vez, no lugar do desenrolar poderia haver apenas o desenrolado: o movimento representativo do Tempo teria se tornado uma linha; a cada uma das divisões dessa linha corresponderia a mesma parte do universo desenrolado que a ela correspondia antes no universo desenrolando-se; nada teria mudado aos olhos da ciência. Suas fórmulas e seus cálculos continuariam sendo o que são.
É verdade que, no momento preciso em que se teria passado do desenrolar ao desenrolado, teria sido preciso dotar o espaço de uma dimensão suplementar. Fizemos notar, há mais de trinta anos7, que o tempo espacializado é na realidade uma quarta dimensão do espaço. Somente essa quarta dimensão nos permitirá justapor o que está dado em sucessão: sem ela, não teríamos o lugar.
Quer um universo tenha três dimensões, ou duas, ou uma só, quer não tenha nenhuma e se reduza a um ponto, sempre se poderá converter a sucessão indefinida de todos os seus eventos em justaposição instantânea ou eter 6. É evidente que a hipótese perderia significado caso se concebesse a consciência como um "epifenômeno" que se acresceria a fenômenos cerebrais dos quais ela não seria mais que o resultado ou a expressão. Não insistiremos aqui nessa teoria da consciência-epifenômeno, que cada vez mais tende a ser considerada arbitrária. Já a discutimos detalhadamente em vários trabalhos nossos, sobretudo nos três primeiros capítulos de Matiere et Mémoire e em diversos ensaios deL'Energie spirituelle.
Limitemo-nos a recordar: I? que essa teoria de forma nenhuma é extraída dos fatos; 2? que é fácil encontrar suas origens metafísicas; 3? que, tomada ao pé da letra, seria contraditória consigo mesma (sobre este último ponto e sobre a oscilação que a teoria implica entre duas afirmações contrárias, ver as páginas 203-23 de L'Energie spirituelle). No presente trabalho, tomamos a consciência tal como nos é brindada pela experiência, sem fazer nenhuma hipótese sobre sua natureza e suas origens.(7. Essai sur Ies données immédiates de Ia conscience, p. 83.) na pelo simples fato de lhe conceder uma dimensão adicional. Caso não tenha nenhuma, reduzindo-se a um ponto que muda indefinidamente de qualidade, pode-se supor que a rapidez de sucessão das qualidades se tome infinita e que esses pontos de qualidade estejam dados de um só golpe, contanto que para esse mundo sem dimensão se traga uma linha onde os pontos se justaponham. Caso já tivesse uma dimensão, caso fosse linear, precisaria de duas dimensões para justapor as linhas de qualidade - cada uma indefinida - que eram os momentos sucessivos de sua história.
Mesma observação também se tivesse duas, se fosse um universo superficial, tela indefinida sobre a qual se desenhariam indefinidamente imagens achatadas que o ocupassem cada uma por inteiro: a rapidez de sucessão dessas imagens também poderá tornar-se infinita, e de um universo que se desenrola passaremos novamente a um universo desenrolado, contanto que nos seja concedida uma dimensão suplementar. Teremos então, empilhadas umas sobre as outras, todas as telas sem fim dando-nos todas as imagens sucessivas que compõem a história inteira do universo; possuiremos todas juntas; mas de um universo achatado teremos tido que passar para um universo volumoso.
Portanto é fácil entender como o mero fato de atribuir ao tempo uma rapidez infinita, de substituir o desenrolar pelo desenrolado, nos obrigaria a dotar nosso universo sólido de uma quarta dimensão.
Ora, só pelo fato de que a ciência não pode especificar a "rapidez do desenrolar" do tempo, de que conta simultaneidades mas deixa necessariamente de lado os intervalos, ela versa sobre um tempo cuja rapidez de desenrolar podemos supor infinita e, assim, confere virtualmente ao espaço uma dimensão adicional.
Imanente a nossa medida do tempo é portanto a tendência a esvaziar seu conteúdo num espaço de quatro dimensões onde passado, presente e futuro estariam justapostos ou superpostos desde todo o sempre. Essa tendência exprime simplesmente nossa incapacidade de traduzir matematicamente o próprio tempo, a necessidade que temos de substituí-lo, para medi-lo, por simultaneidades que contamos: essas simultaneidades são instantaneidades; não participam da natureza do tempo real; elas não duram. São simples visões mentais, que balizam com paradas virtuais a duração consciente e o movimento real, utilizando para isso o ponto matemático que foi transportado do espaço para o tempo.
Mas, embora desse modo nossa ciência só encontre espaço, é fácil ver por que a dimensão de espaço que veio substituir o tempo continua chamando-se tempo. É porque nossa consciência está aí. Ela volta a insuflar duração viva ao tempo ressecado que virou espaço. Nosso pensamento, interpretando o tempo matemático, refaz em sentido inverso o caminho que percorreu para obtê10. Da duração interior passara para um certo movimento indiviso ainda estreitamente ligado a ela e que se tornara movimento modelo, gerador ou contador do Tempo; do que há de mobilidade pura nesse movimento e que é o traço de-união do movimento com a duração, passou para a trajetória do movimento, que é puro espaço; dividindo a trajetória em partes iguais, passou dos pontos de divisão dessa trajetória aos pontos de divisão correspondentes ou "simultâneos" da trajetória de qualquer outro movimento: a duração deste último movimento acha-se assim medida; tem-se um número determinada de simultaneidades; será a medida do tempo; será doravante o próprio tempo.
Mas isso só é tempo porque podemos nos reportar ao que fizemos. Das simultaneidades que balizam a continuidade dos movimentos estamos sempre prontos para voltar aos próprios movirnentos, e, por meio deles, à duração interior que lhes é contemporânea, substituindo assim uma série de simultaneidades no instante, que podem ser contadas mas que não são mais tempo, pela simultaneidade de fluxo que nos devolve à duração interna, à duração real.
Haverá quem se pergunte se é útil voltar à duração e se o que a ciência fez não foi precisamente corrigir uma imperfeição de nosso espírito, afastar uma limitação de nossa natureza, esparramando a "pura duração" no espaço. Dirão: "0 tempo que é pura duração está sempre em via de escoamento; só apreendemos dele o passado e o presente, o qual já é passado; o porvir parece fechado ao nosso conhecimento, justamente porque o cremos aberto à nossa ação - promessa ou espera de novidade imprevisível. Mas a operação pela qual convertemos o tempo em espaço para medi-Io informa-nos implicitamente sobre seu conteúdo.
A medida de uma coisa é às vezes reveladora de sua natureza, e vê-se que a expressão matemática tem justamente aqui uma virtude mágica: criada por nós ou respondendo ao nosso chamamento, ela faz mais do que lhe pedimos; pois não podemos converter em espaço o tempo já escoado sem tratar do mesmo modo o Tempo inteiro: o ato pelo qual introduzimos o passado e o presente no espaço esparrama nele, sem nos consultar, o porvir. Esse porvir continua sem dúvida oculto por um anteparo; mas agora o temos lá, pronto, dado com o resto. Ou mesmo, o que chamávamos escoamento do tempo não passava do deslizar contínuo do anteparo e da visão gradualmente obtida do que estava à espera, globalmente, na eternidade.
Tomemos portanto essa duração pelo que ela é, por uma negação, por um impedimento incessantemente recuado de ver tudo: nossos próprios atos não nos aparecerão mais como uma oferta de novidades imprevisível. Fazem parte da trama universal das coisas, dada de um só golpe. Não os introduzimos no mundo; é o mundo que os introduz já prontos em nós, na nossa consciência, à proporção que os alcançamos. Sim, somos nós que passamos quando dizemos que o tempo passa; é o movimento para a frente de nossa visão que atualiza, momento após momento, uma história virtualmente dada por inteiro."
- É essa a metafísica imanente
à representação espacial do tempo.
Ela é inevitável.
Clara ou confusa,
foi sempre a metafísica natural do espírito
a especular sobre o devir.
Não nos cabe discuti-Ia aqui, menos ainda pôr outra em seu lugar. Dissemos em outro lugar porque vemos na duração o próprio tecido de nosso ser e de todas as coisas, e como o universo é a nossos olhos uma continuidade de criação.
Era um modo de permanecermos o mais perto possível do imediato; não afirmávamos nada que a ciência não pudesse aceitar e utilizar; ainda recentemente, num livro admirável, um matemático filósofo afirmava a necessidade de admitir um advance of Na tu re e vinculava essa concepção à nossaS. Por ora, limitar-nos-emos a traçar uma linha de demarcação entre o que é hipótese, construção metafísica, e o que é dado puro e simples da experiência, pois queremos nos ater à experiência. A duração real é experimentada; constatamos que o tempo se desenrola, e, por outro lado, não podemos medi-Io sem essa obra que leva em conta a Teoria da Relatividade) é certamente urna das mais profundas já escritas sobre a filosofia da natureza.
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convertê-Io em espaço e supor desenrolado tudo o que conhecemos dele. Ora, é impossível espacializar pelo pensamento apenas uma parte: uma vez iniciado, o ato pelo qual desenrolamos o passado e abolimos assim a sucessão real nos conduz a um desenrolar total do tempo; fatalmente, então, somos levados a atribuir à imperfeição humana nossa ignorância de um porvir que seria presente e a ter a duração por uma pura negação, uma "privação de eternidade". Fatalmente voltamos à teoria platônica. Mas, como essa concepção deve surgir do fato de que não temos meios para limitar ao passado nossa representação espacial do tempo escoado, é possível que a concepção seja errônea e, em todo caso, é certo que é uma pura construção do espírito. Atenhamo-nos, pois, à experiência.
Se o tempo tem uma realidade positiva, se o atraso da duração com relação à instantaneidade representa uma certa hesitação ou indeterminação inerente a uma certa parte das coisas que mantém dependente dela todo o resto, enfim, se há evolução criadora, entendo muito bem que a parte já desenrolada do tempo apareça como justaposição no espaço e não mais como sucessão pura; posso conceber também que toda a parte do universo que está matematicamente ligada ao presente e ao passado - ou seja, o desenrolar futuro do mundo inorgânico - seja representável pelo mesmo esquema (mostramos outrora que em matéria astronômica e física a previsão é na realidade uma visão). Pressente-se que uma filosofia onde a duração é tida por real e até por ativa poderá muito bem admitir o Espaço-Tempo de Minkowski e de
Einstein (no qual, aliás, a quarta dimensão denominada tempo não é mais, como em nossos exemplos acima, uma dimensão totalmente assimilável às outras). Ao contrário, nunca conseguirão extrair do esquema de Minkowski a idéia de um fluxo temporal. Não valeria, então, mais a pena ater~se até segunda ordem àquele dos dois pontos de vista que não sacrifica nada da experiência e, por conseguinte - para não prejulgar a questão -, nada das aparências? Como, aliás, rejeitar totalmente a experiência interna quando se é físico, quando se opera com percepções e, por isso mesmo, com dados da consciência?
A NATUREZA DO TEMPO
É verdade que uma certa doutrina aceita o testemunho dos sentidos, isto é, da consciência, para obter termos entre os quais seja possível estabelecer relações, e depois só conserva as relações e considera os termos inexistentes. Mas essa é uma metafísica enxertada na ciência, não é ciência. E, a bem dizer, é por abstração que distinguimos termos, é também por abstração que distinguimos relações: um contínuo fluente do qual tiramos ao mesmo tempo termos e relações e que, além de tudo isso, é fluidez, eis o único dado imediato da experiência.
Mas temos de fechar esse parêntese longo demais. Acreditamos ter atingido nosso objetivo, que era o de detenninar as características de um tempo onde há realmente sucessão. Suprimam essas características e não haverá mais sucessão, mas justaposição. Podem dizer que ainda se trata do tempo - somos livres para dar às palavras o sentido que quisermos, desde que comecemos por defini-Ias -, mas saberemos que não se trata mais do tempo experimentado; estaremos diante de um tempo simbólico e convencional, grandeza auxiliar introduzida visando o cálculo das grandezas reais. Foi talvez porque não analisamos num primeiro momento nossa repres~ntação do tempo que flui, nosso sentimento da duração real, que tivemos tanta dificuldade para determinar a sIgnificação filosófica das teorias de Einstein, ou seja, sua
76 - DURAÇÃO E SIMULTANEIDADE
77- A NATUREZA DO TEMPO relação com a realidade. Aqueles que se incomodavam com a aparência paradoxal da teoria disseram que os Tempos múltiplos de Einstein eram puras entidades matemáticas. Mas aqueles que gostariam de dissolver as coisas em relações, que consideram toda realidade, mesmo a nossa, como algo matemático confusamente percebido, diriam de bom grado que o Espaço-Tempo de Minkowski e de Einstein é a própria realidade, que todos os Tempos de Einstein são igualmente reais, tanto e talvez mais que o tempo que flui conosco.
De ambos os lados, queimam-se etapas. Acabamos de dizer, e mostraremos em breve com mais detalhes, por que a Teoria da Relatividade não pode exprimir toda a realidade. Mas é impossível que ela não exprima alguma realidade. Pois o tempo que intervém na experiência de Michelson-Morley é um tempo real- real também o tempo a que retornamos com a aplicação das fórmulas de Lorentz. Se partimos do tempo real para desembocar no tempo real, talvez tenhamos feito uso de artifícios matemáticos no intervalo, mas esses artifícios devem ter alguma conexão com as coisas.
Portanto, trata-se de distinguir
o que é real e o que é convencional.
Nossas análises estavam simplesmente destinadas
a preparar esse trabalho.
Mas acabamos de pronunciar a palavra "realidade"; e, no que se seguirá, falaremos constantemente do que é real, do que não o é. Que queremos dizer com isso? Se fosse preciso definir a realidade em geral, dizer qual a marca pela qual a reconhecemos, não poderíamos fazê10 sem classificarmos a nós mesmos numa escola: os filósofos não estão de acordo e o problema recebeu tantas soluções quantas são as nuanças que o realismo e o idealismo comportam. Deveríamos, ademais, distinguir o ponto de vista da filosofia do da ciência: aquela prefere considerar real o concreto, todo carregado de qualidade; esta extrai ou abstrai um certo aspecto das coisas e só retém dele o que é grandeza ou relação entre grandezas. Felizmente, só nos interessa, em tudo o que se seguirá, uma única realidade, o tempo.
Nessas condições, será fácil seguir a regra que impusemos a nós mesmos no presente ensaio: a de não afirmar nada que não possa ser aceito por qualquer filósofo, qualquer cientista - nada que não esteja implicado em toda filosofia e em toda ciência.
Todo o mundo concordará conosco que não se concebe tempo sem um antes e um depois: o tempo é sucessão. Ora, acabamos de mostrar que ali onde não há alguma memória, alguma consciência, real ou virtual, constatada ou imaginada, efetivamente presente ou idealmente introduzi da, não pode haver um antes e um depois: há um ou outro, não há os dois; e é preciso os dois para fazer tempo. Portanto, no que se seguirá, quando quisermos saber se estamos lidando com um tempo real ou com um tempo fictício, teremos simplesmente de nos perguntar se o objeto que nos apresentam poderia ou não poderia ser percebido; tornar-se consciente.
É um caso privilegiado; único até. Em se tratando de cor, por exemplo, a consciência sem dúvida intervém no começo do estudo para dar ao físico a percepção da coisa; mas o físico tem o direito e o dever de substituir o dado da consciência por algo mensurável e enumerável sobre o qual passará a operar, dando-lhe simplesmente, por uma questão de comodidade, o nome de percepção original. Pode fazê-lo porque, eliminada essa percepção original, algo perdura ou ao menos se supõe que perdure. Mas que restará do tempo se eliminarem dele a sucessão? E que resta da sucessão se vocês suprimirem até a possibilida de de perceber um antes e um depois? Concedo-lhes o
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direito de substituir o tempo por uma linha, por exemplo, porque é preciso medi-lo. Mas uma linha só deveráchamar-se tempo ali onde a justaposição que ela nos oferece seja convertível em sucessão; caso contrário, será arbitrariamente, convencionalmente que vocês darão a essa linha o nome de tempo: terão de nos advertir a esse respeito para não nos expor a uma grave confusão.
Quanto mais se vocês introduzirem em seus raciocínios e seus cálculos a hipótese de que a coisa denominada por vocês "tempo" não pode, sob pena de contradição, ser percebida por uma consciência, real ou imaginária. Não será então, por definição, com um tempo fictício, irreal, que vocês operarão? Ora, é esse o caso dos tempos com que lidaremos com freqüência na Teoria da Relatividade. Encontraremos alguns percebidos ou perceptíveis; estes poderão ser tidos por reais.
Mas há outros que, de certa forma, a teoria proíbe de serem percebidos ou de se tomarem perceptíveis: caso se tomassem perceptíveis, mudariam de grandeza - de modo tal que a medida, exata quando se aplica ao que não se percebe, seria falsa tão logo percebêssemos. Estes tempos, como não declarálos irreais, ao menos na qualidade de "temporais"? Admito que para o físico é cômodo ainda denominá-los tempo - veremos mais adiante a razão disso.
Mas, caso assimilemos esses Tempos ao outro, cai-se em paradoxos que certamente foram nocivos para a Teoria da Relatividade, embora tenham contribuído para tomá-Ia popular. Portanto, não deve causar espanto se a propriedade de ser percebido ou perceptível for exigida por nós, no presente estudo, para tudo o que nos oferecerem como sendo real. Não resolveremos a questão de saber se qualquer realidade possui essa característica. Aqui, apenas trataremos da realidade do tempo.
CAPÍTULo N
A PLURALIDADE DOS TEMPOS
Os Tempos múltiplos e retardados da Teoria da Relatividade: como são compatíveis com um Tempo único e universal. - A simultaneidade" científica", que pode ser quebrada e transformada em sucessão: como é compatível com a simultaneidade "intuitiva" e natural. - Exame dos paradoxos relativos ao tempo.
A hipótese do viajante
encerrado numa bala de canhão.
O esquema de Minkowski.
- Confusão que está na origem de todos os paradoxos.
Cheguemos por fim ao Tempo de Einstein e retomemos tudo o que dissemos supondo inicialmente um éter imóvel. Temos a Terra em movimento na sua órbita. O dispositivo de Michelson - Morley está ali. Fazem a experiência; repetem-na em diversas épocas do ano e, por conseguinte, para velocidades variáveis de nosso planeta.
O raio de luz
sempre se comporta como
se a Terra fosse imóvel.
Esse é o fato.
Qual é a explicação?
Mas, para começar, que estamos dizendo quando falamos das velocidades de nosso planeta? A Terra estaria, ~m termos absolutos, em movimento através do espaço? E evidente que não; estamos na hipótese da Relatividade e não existe mais movimento absoluto. Quando você fala da órbita descrita pela Terra, coloca-se em um ponto de vista arbitrariamente escolhido, o dos habitantes do Sol (de um Sol que se tomou habitável). Agrada-lhe adotar esse sistema de referência. Mas por que o raio de luz lançado contra os espelhos do aparelho de Michelson-Morley levaria em conta a sua fantasia? Se tudo o que efetivamente se produz é o deslocamento recíproco da Terra e...(?)
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Fonte:
USP
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