domingo, 22 de agosto de 2010

ESSÊNCIA E VERDADE. em Heidegger



ESSÊNCIA E VERDADE. UMA INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA DA TÉCNICA MODERNA.
Por Marcos Paulo L. Vieira

O que se realiza no presente texto é uma interpretação ontológica do fenômeno da técnica moderna a partir do pensamento de Martin Heidegger. Tal esforço encontra seu impulso primordial e sua sustentação basilar na análise de sua conferência intitulada A questão da técnica. Através de uma cuidadosa análise dessa conferência, procuramos inicialmente mostrar que a essência da técnica não poderia ser apreendida tecnicamente, ou seja, por meio da análise das práticas e dos usos técnicos em sua imensa diversidade. De fato, a essência da técnica só se deixa pensar por meio de um saber que a compreenda em sua essência, isto é, um saber filosófico.

O presente texto desdobra-se em cinco movimentos. 1º delimitação e refutação dos modos ordinários de compreensão da técnica moderna; 2º compreensão originária da essência da técnica como um modo peculiar de desencobrimento; 3º determinação da essência da ciência moderna desde seu caráter existencial; 4 ºelucidação dos nexos ontológicos travados entre a essência mesma da técnica moderna e a essência existencial da ciência moderna e, por fim, 5 º a elucidação da necessidade de se manter a vigília do questionar filosófico face a essência da técnica moderna enquanto um modo de desencobrimento suprêmo.
Eis os movimentos constitutivos do texto devidamente elencados. 

Começaremos agora mostrando em que situação hermenêutica eles precisam figurar. A expressão situação hermenêutica quer ser entendida aqui no mesmo sentido expresso por Heidegger nestas palavras em Ser e Tempo:
Uma investigação ontológica é um modo possível de interpretação. Esta é a elaboração e apropriação de uma compreensão. Toda interpretação possui sua posição prévia, visão prévia e conceptualidade prévia. No momento em que, enquanto interpretação, se torna tarefa explícita de uma pesquisa, então o conjunto dessas “pressuposições”, que denominamos de situação hermenêutica, necessita de um esclarecimento prévio que, numa experiência fundamental, assegure para si o “ objeto” a ser explicitado. Uma interpretação ontológica deve liberar o ente na constituição de seu próprio ser. Para isso, vê-se obrigada, numa primeira caracterização fenomenal, a conduzir o ente tematizado a uma posição prévia pela qual se deverão ajustar todos os demais passos da análise. Estes, porém, devem ser orientados por uma possível visão prévia do modo de ser dos entes considerados. Posição prévia, visão prévia, portanto, já delineiam, simultaneamente, a conceptualidade prévia para a qual se devem dirigir todas as estruturas ontológicas”.[1]
 
Pois bem, em que situação hermenêutica os movimentos constitutivos de nosso texto precisam aparecer. Que posição, visão e conceituação prévias seriam adequadas para que pudéssemos iniciar uma interpretação ontológica da técnica moderna? Poderíamos aproximar um pouco mais o foco do âmbito do perguntar e aí então teríamos: onde precisamos existencialmente nos situar para que a técnica moderna se nos afigure como algo questionável em sua essência? Onde exatamente precisamos nos encontrar dispostos, com que tonalidade afetiva e qual seria a compreensão e o tratamento conceitual adequados que fariam com que a técnica moderna se nos apresentasse, hoje, como algo de questionável em sua essência?

Que ela possa vir a ser questionada, isso significa inicialmente: insinou-se faticamente uma estranheza fundamental entre a nossa compreensão e a coisa que se tornou questionável. Para que algo adquira o modo de ser de algo questionável é necessário, portanto, que entre o nosso estar-aí existencialmente situado e a coisa que se nos mostra como questionável tenha havido um certo abalo no que diz respeito a estabilidade de uma relação compreensiva clara de uma determinada conjuntura. Se pudermos seguir com esse modo de entender as coisas é preciso conceder que: à medida que a técnica moderna se nos mostra como aquilo por cuja essência se pode perguntar, compreendemos então que a conjuntura, na qual a nossa relação com a técnica se configurava, sofreu um abalo.

Mas como semelhante abalo teria sido possível, se hoje não conseguiríamos nem ir nem vir em nossas grandes cidades sem uma eficiente técnica de controle de tráfego ? Como, se o empenho de nossas atividades profissionais está atrelado à potência e velocidade cada vez mais formidáveis dos processadores dos nossos computadores pessoais? Como, se a indústria de alimentos dispõem em nossos refrigeradores alimentos que de segundo a segundo sobrepotenciam mais e mais a nossa capacidade vital? Como teria sido possível que uma conjuntura tão adequada e favorável como essa, do ponto de vista existenciário, pudesse ter sido, mesmo que por alguns segundos, posta como questionável em sua essência? E é precisamente isso que se dá quando perguntamos pela essência da técnica. A pergunta pressupõe tacitamente um abalo radical entre o nosso ser-aí e a essência da técnica. Eis aí a posição prévia mais adequada para começar um questionamento ontológico-existencial concreto da essência da técnica. Tal questionamento deve partir também da visão prévia adequada que nos permita ver livremente que a satisfatória, pacífica e familiar conjuntura que se configura na nossa relação com os produtos da técnica encobre uma radical indigência no que diz respeito ao saber de sua essência. 

Assumir uma tal indigência significa ganhar o âmbito a partir do qual uma conceptualidade prévia precisa ser articulada com vistas a uma interpretação ontológica adequada do ser mesmo da técnica moderna. Assumir, portanto, o abalo de nossa relação existencial com a técnica, a estranheza de sua conjuntura e a indigência de uma clara compreensão da essência da técnica significa muito perfeitamente conquistar a situação hermenêutica, a mais adequada, desde a qual podemos então, efetivamente, dar início a uma investigação ontológica no que diz respeito a essência da técnica moderna.

Em conseqüência disso, precisamos compreender inicialmente que uma investigação, uma interpretação ontológica da essência da técnica deve guardar a seguinte advertência metodológica preliminar, qual seja: a essência da técnica não se deixa apreender tecnicamente, isto é, por meio de meras análises das práticas e dos usos técnicos ou mesmo de um relatório completo e total a respeito dos avanços dos produtos técnicos em sua imensa multiplicidade. Uma interpretação ontológica da essência da técnica, que se entende bem a si mesma, precisa, além de conquistar uma adequada situação hermenêutica, definir-se como um saber que compreende a essência do ser-técnico enquanto um tema constante de demonstração explícita, isto é, ela precisa ser estritamente filosófica.

Em virtude dessa advertência preliminar abandonamos, pois, uma concepção exclusivamente antropológico-utilitária da técnica moderna e efetuamos, com isso, o primeiro passo para um modo possível de ganhar também esse espaço a partir do qual a técnica e sua “amigável” conjuntura se tornem inteiramente questionáveis em sua essência. Desse modo, a tonalidade afeitva, o encontra-se disposto e a compreensão fundamental, ou em outros termos a situação hermenêutico-existencial que abrirá a técnica em sua questionabilidade essencial é justamente a de uma indigência compreensiva radical face ao caráter ontológico da técnica moderna. É precisamente daqui que precisamos partir. 

Em contrapartida, a aparente riqueza, o ilusório sentimento de seguraça e a suposta sobrepotenciação de poder que a técnica moderna insúfla e irradia por todas as partes do globo, encobrem, em verdade, um estado de coisas muito mais originário e anterior, qual seja: a absoluta indigência do nosso ser-aí hodierno no que diz respeito ao saber da essência da técnica moderna. E é justamente neste horizonte hermenêutico que pretendemos nos situar em nossa interpretação da essência da técnica consoante aos impulsos indispensáveis da obra de Martin Heidegger.

Fiéis, pois, à nossa situação hermeneutica de uma certa suspensão dos conhecimentos ordinários à respeito da técnica, recebemos de Heidegger uma indicação positiva no interior do texto A Questão da Técnica. Heidegger afirma ali que é uma peculiar forma de desencobrimento que rege a vigência da técnica moderna. Esse peculiar desencobrimento se opera como um provocar explorador que provoca a natureza, explorando-a para que esta venha a fornecer a sua energia. Tal energia seria, então, beneficiada e armazenada. O termo desencobrimento precisa ser entendido como um apelo envolvente que se dirige à nossa existência e no qual, em resposta, nós nos inserimos de um modo radical e irremissível, existindo. Ou seja: todos os nossos movimentos existenciários e existenciais pertencem essencialmente a este desencobrimento que apela envolvendo. 

O envolvimento deste envolver designa-se círculo de desencobrimento. Pois bem, segundo a compreensão heideggeriana a técnica moderna é um modo específico deste desencobrimento que apela envolvendo e no qual nos inserimos existindo. Nós só existimos porque respondemos ao apelo envolvente do desencobrimento, nunca ao contrário. Na época da técnica essa resposta é agressiva, exploradora e provocativa.

Um exemplo: suponhamos que pudéssemos estar neste momento em uma região da Terra, em um lugar em que plantas e animais, homens como nós e rochas formam um todo e instalam um mundo. Neste lugar “descobre-se”, por uma série de sondagens geológicas, petróleo. Descobre-se que em um ponto específico daquele lugar há uma exsudação e afloramento de petróleo. Mapea-se a área e perfura-se, então, poços neste local. A prospecção científica apodera-se desta região e a converte em um ponto a partir do qual os geólogos começarão a mapear as características terrestres indicadoras de sítios favoráveis à perfuração em busca do precioso líquido oleoso betuminoso de origem natural composto por diferentes substâncias orgânicas que se encontra por si subsistente e simplesmente dado naquele ponto do planeta. O homem respondeu ao apelo daquele todo envolvente na forma de uma furiosa exploração provocadora. Os caminhos daquela região foram de maneira eficaz convertidos em reserva petrolífera. As semente não brotam mais de acordo com a dádiva do seu possível, porquanto não há mais cultivo, cuidado, espera. Em contrapartida, uma laboriosa equipe de geofísicos já se encarregou de por em obra a instalação de torres de perfuração. 

Prontamente, uma torre sustenta a corrente de perfuração, formada por uma série de tubos acoplados. A corrente gira unida ao banco giratório situado na base da torre. A broca de perfuração situada no final da corrente é formada por três rodas cônicas com dentes de aço endurecido. Em conseqüência , a rocha é levada à superfície por um sistema contínuo de fluído circulante impulsionado por uma bomba. Quando esse poço é perfurado, o gás que compõe uma solução com o petróleo é liberado e começa a se expandir. Essa expansão, junto com a diluição da coluna de petróleo pelo gás, menos denso, faz com que o petróleo aflore à superfície. 

Creio que agora certamente possamos compreender em que medida o desencobrimento que rege a vigência da técnica moderna é um apelo envolvente provocador e explorador ao qual o homem responde provocando, explorando e dessa forma se inserindo no ente na totalidade. A partir do exemplo pode-se muito claramente entender que para o sentimento de nossa época, inserir-se no ente na totalidade significa primordialmente: ouvir e ver sempre e necessariamente a constância e a uniformidade daquilo que está disposto para uma exploração e situar a compreensão exclusivamente na cobiça e na sanha do domínio integral do ente disponível para as diversas formas de exploração.

Em consonância ao que vimos, todos os modos possíveis de resposta ao apelo do desencobrimento estão integralmente comprometidos com um comportamento existencial de exploração de algo que se encontra inteiramente disponível. O processo de reposta ao apelo provocador é, com efeito, unidimensional. Dito melhor: exploração, extração, transformação, estocagem, distribuição, consumo, reprocessamento e nova exploração. O exemplo da extração de petróleo em uma dada região mostrou-nos que o todo do ente é compreendido como reservatório energético preparado e mantido pelos esforços iniciais de objetivação ôntica das ciências positivas ( nesse caso: a geologia e a sismologia). A Gestell enquanto composição se constitui precisamente deste encontro. É justamente, portanto, no âmbito dessa dinâmica que a ciência se subordina à Composição à medida que uma referência originária ao ser mesmo, enquanto o desencoberto, é simplesmente dispensada. Em conseqüência, começa a se perfilar a conversão do real, não mais em objetidade cientificamente determinada, mas em disponibilidade constante mantida pela ciência tecnicizada e custodiada pela Composição.

Pois, na essência mesma da técnica como aquele poder que conduz o homem, num conjunto de comportamentos, a explorar e desafiar o ente na totalidade e a compreender o todo do ente enquanto o disponível não resta mais nenhuma referência essencial ao ser mesmo e, nem sequer algo como uma elaboração autônoma de uma compreensão do ser além do ser-disponível de uma constante disponibilidade
No âmbito da disponibilidade, então, a produção do disponível, o uso do disponível, o abuso do disponível, o consumo do disponível, a usura do disponível e a nova volúpia da produção do sempre disponível perfazem o círculo organizado tecnicamente de um permanente e violento saque de um mundo que deixou de ser mundo humano.

A técnica em seu empenho histórico, em sua vigência, é um modo de responder ao apelo do desencoberto como Composição , que em seu empenho total provoca o ente em sua totalidade , para que este entregue as suas energias para uma extração e acumulação posteriores e contínuas. A Composição se define como o poder de um tal apelo que reúne o homem para uma semelhante provocação. Uma provocação que, em verdade, se expressa em um conjunto de comportamentos que reúnem em si os diversos modos de um “pôr à disposição” a natureza nos modos de objetivação do ente na totalidade para um representar seguro deste.
Quando a humanidade, tomada pelo poder da Composição, desvela a entidade como fundo de recursos, passa a requerer também a manutenção constante desse fundo. 

O exemplo do petróleo ilustra bem isso. A certeza, pois, de que o real, o ente em sua totalidade estará “posto” como fundo de recursos sempre disponíveis deve ser assegurada de uma maneira permanente com o auxílio dos procedimentos científicos, isto é, técnicos. Para um tal fim, é necessário fechar qualquer outra possibilidade de desvelamento que não seja aquele em que o real esteja desencoberto como disponibilidade constante, fundo de recursos para diversas formas de utilização e exploração eficazes.
Eis onde se situa o extremo e o maior perigo: o desencoberto (o círculo de consumação existencial) não ser mais compreendido enquanto tal pelo homem. Em consonância com isto temos uma forma do desencoberto, transmutada em disponibilidade constante, pretendendo impor-se como a hegemônica, trancando desse modo qualquer outra possibilidade de desvelar que não seja, precedentemente, o apelo que desafia o homem para uma provocação que se movimenta no sentido de uma exploração organizada do ente na totalidade. Em conseqüência disso, dá-se como que um “trancamento” da realidade existencial fática na “forma armada” da disponibilidade constante, enquanto fundo de recursos energéticos em permanente manutenção. Isso significa, muito claramente, um impedimento para o surgimento de um desencobrimento mais originário e essencial. Significa também, para Heidegger, um impedimento à verdade compreendida como abertura da consumação existencial e “des-trancamento” de mundo em sua mostração fenomenal.

Enfrentar um tal perigo tentando solucioná-lo, porém, não significa estruturar um movimento discursivo e prático que intentaria uma espécie de “demonização” da técnica e dos seus produtos. Significa, antes disso, tentar manter desperta e viva a necessidade de uma vigília do questionar pela essência desta época histórica que já vem sendo preparada bem antes da mera operacionalização de máquinas e utensílios técnicos.
A Composição é a ameaça suprema, ao passo que tenta subtrair do ente na totalidade o seu caráter de desencoberto e ao homem o seu lugar de realização existencial própria. A essência da técnica passa realmente a ser o maior perigo para a essência do Ser-aí humano à medida que ela pretende fazer submergir todas as possibilidades de desencobrimento em uma única requisição, a saber, aquela que requisita o real e o próprio homem como uma constante apresentação de fundos de reservas energéticas sempre disponíveis.

A partir da nossa análise da compreensão heideggeriana da essência da técnica entendemos que a única possibilidade de salvação diante dessa perigosa conjuntura é a vigília do questionar da essência, isto é, o pôr em curso o filosofar autêntico. Isto é: é somente a partir da vigília do questionar filosófico da essência que o perigo de a natureza (a natureza humana, sobretudo) se tornar um vasto fundo disponível – um reservatório de energia gigante onde bebem a técnica e a indústria cientificizada modernas -, pode ser abolido.
É, então, com a vigília pensante que podemos reconhecer um caminho diverso de desvelamento que possa abrir ao homem uma relação criadora mais originária, e não mais exploradora, com o real. Pensando, nós entramos em uma relação compreensiva com a essência da técnica como Composição e a reconhecemos como o poder que conduz a uma resposta humana para um apelo que provoca o homem a desenvolver uma particular maneira de lidar com o ente em sua totalidade. Este estado de vigilância filosófica talvez não nos liberte imediatamente do perigo que habita no domínio planetário da essência da técnica, mas certamente nos coloca em face desse perigo de uma forma mais atenta, desperta e comprometidamente livres.

Comprometer nosso ser-livre no âmbito de uma vigília questionadora, pensando acerca daquilo que constitui, de uma maneira crescente, a nossa época: eis no que teria consistido o empenho primordial e único desse texto. Um semelhante intento também pode se expressar nos seguintes termos: procurar ter tornado visível a compreensão, segundo a qual, uma resposta verdadeira a uma questão essencial é sempre um ressoar mais audível e penetrante dessa mesma questão. Isto significa mantê-la viva em meio à vigília do questionar da essência.
 Fonte:
CONSCIENCIA:.ORG 
http://www.consciencia.org/heidegger_essencia_verdade-marcos.shtml

IDENTIDADE E DIFERENÇA em Heidegger

 

Sobre identidade e diferença em Heidegger

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens {1}
Resumo: A proposta do ensaio é pensar a implicação ontológica entre ser e identidade na filosofia de Heidegger. Temos o objetivo de abordar o conceito de identidade, buscando acenar como esta estaria relacionada com a diferença ontológica entre ser e ente, atrelado ao ser-aí e sua compreensão de ser (estes entendidos como experiências constitutivas da existência). Presumimos que a identidade pode ser pensada, neste contexto, como a co-originariedade do ser-aí com o ser, bem como a co-originariedade do ser em geral. O exercício empreendido aqui busca estofo na conferência O princípio de identidade  (1957), partindo da interpretação de diversas passagens de texto, buscando aproximações às temáticas da obra Ser e tempo (1927).

Palavras-chave: Heidegger, Ser e tempo, principio de identidade, diferença ontológica.
Nosso exercício de interpretação começa a partir da seguinte proposição de Heidegger:
O apelo da identidade fala desde o ser do ente. Onde porém, o ser do ente no pensamento ocidental chega propriamente à palavra, à saber, em Parmênides (…) “O mesmo, pois, tanto é apreender (pensar) como também ser”. Neste caso, coisas diferentes, pensar e ser são pensados como o mesmo. Que quer isso dizer? Algo absolutamente diverso em comparação com aquilo que ordinariamente conhecemos como a doutrina da metafísica, que a identidade faz parte do ser. Parmênides diz: “O ser faz parte da identidade” (HEIDEGGER, 1973, p. 378).

O ser vem à luz no ente. Ente que podemos apontar como aquilo que é. Nesse modo de enunciação, delineia-se o que os gregos vêm apontar com “o mesmo”(tó autó). Assim, o ente é à medida que ele mesmo é. Nessa proposição, não vemos mais que a apresentação de um ente que se confirma como ente (Seindes) ao ser (Sein). Essa formulação indica não só uma mesmidade, quando a lemos inteira, mas redunda numa indicação quando analisamos essa oração por partes. Daí dizermos: um ente que, uma vez sendo… Compreendemos, assim, o ente como um modo de o ser se dar. Destarte, podemos afirmar que todo ente é ao ser, ou, apenas, que todo ente é.

Em outra parte da proposição grifada, dizemos que esse ente: (…) confirma-se como ente ao ser. Confirmar-se ou “co-afirmar-se” é grifar o caráter de mesmo que há no ente que é. É também firmar que ente é o que se desdobrou à superfície do fenômeno. É o ser que se geminou em ente mediante um apelo, mediante uma evocação. Daí Heidegger afirmar que: “O apelo da identidade fala desde o ser do ente” (HEIDEGGER, 1973). Perguntamos: não seria este desdobrar, esse geminar, isso que Heidegger chama de identidade? Não teríamos, a partir da identidade, a possibilidade de olhar para essas duas partes geminadas e apontar o mesmo? Isto é, não poderíamos olhar para essas “coisas diferentes” e reconhecer nelas uma co-pertinência, a ponto de, mesmo manifestando-se diferentemente, apontarmos a mesmidade? Certamente, sim; nossa certeza legitima-se na proposição de Parmênides quando este traz à palavra tal experiência originária: “O mesmo, pois, tanto é pensar como também ser” (PARMÊNIDES apud HEIDEGGER, 1973).

Dois modos de interpretação são possíveis e próprios a essa sentença:

O primeiro privilegia o aspecto de unidade expresso pela identidade que vimos tematizando. Por esse pensamento, como também em Tales de Mileto, o múltiplo torna a ser pensado como unidade; assim, coisas tidas como diferentes são pensadas como o mesmo. Essa interpretação permite que transponhamos tais proposições para a linguagem abstrata da lógica, sem, com isso, reduzi-la a um princípio formal de identidade, mas apenas valendo-nos do recurso de visualização que ela nos proporciona. Assim, teríamos: O mesmo, pois, é A como também B, onde os dois objetos estão subordinados a uma idéia de igualdade através do termo “o mesmo”. Mas seria isso apenas igualdade? Não, pois ela acaba sendo lida como identidade, fazendo que apreendamos que A é o mesmo que B. Donde, em última instância, conclui-se que o A, que também é B, é o mesmo que A; ou que A é A (ou que B é B). Assim, mesmo essa expressão formal, aqui demonstrada, remonta a identidade, podendo ser interpretada como a relação entre ser e ente tratada no parágrafo acima.

O segundo modo de interpretar a sentença busca investigar a relação de conteúdo que Parmênides propõe. Explicaremos: naquela, vemos o pensar (noein) ser apresentado como o mesmo que ser. Aqui, mais que a relação de identidade entre duas coisas supostamente distintas, vê-se outra de co-pertinência. Isso tornou possível interpretações problemáticas como as que vemos na modernidade. Dizem-se problemáticas, por apontar o ser como aquilo que é determinado pelo pensamento, ou o pensamento como lugar do ser. Ocorre que a modernidade, quando vai à questão, já lê na sentença de Parmênides o pensar com uma anterioridade sobre o ser, de “quem pensa” sobre o ser que “é pensado”. Assim, o foco do questionamento da identidade desviou-se para investigações das estruturas transcendentais de um sujeito que seria responsável por esse pensar que promoveria o ser. Desde modo, fica claro que a modernidade interpreta o fenômeno da identidade não como uma co-pertinência, mas como uma relação de causalidade. Pode-se, assim, observar que, nos modos conceituais dessa doutrina metafísica, a identidade de que falamos não ocupou outro lugar, senão o de uma categoria. Entretanto, esse momento na história da filosofia deu a colaborar com questões que ecoam até hoje, e, em boa medida, preparou o solo para a abordagem da questão da identidade tal qual se vê hoje, no pensamento de Heidegger.

Dizendo de maneira radical, o problema da identidade, tal como vemos expresso na experiência do pensamento antigo, é “algo absolutamente diverso daquilo que ordinariamente conhecemos como a doutrina da metafísica, na qual a identidade faz parte do ser” (HEIDEGGER, 1973). Com essa menção à modernidade, remetemo-nos ainda à primeira citação de nosso texto. Nessa podemos encontrar a distinção fundamental entre as duas formas de interpretar a relação entre identidade e ser. Para os modernos (e leia-se aqui toda a porção final da metafísica ocidental até Hegel) “a identidade faz parte do ser”. Isto é, a identidade seria uma propriedade do ser, uma fração ou categoria desse ser, capaz de ser determinada, predicada e “re-arranjada” ao sabor das conveniências da ontologia. 

Em contrapartida, ainda na citação, vemos o pensamento grego antigo dizer “o ser faz parte da identidade”. Tal disparidade parece sugerir que a forma de lidar com a experiência da identidade poderia passar ora pela condição de sujeito ora pela de predicado. Ou melhor: ora, seria aquilo que promove o ser; ora, o que seria promovido por ele. Esse desacordo, que nasce de uma leitura dicotômica do problema, parece sugerir-nos que devemos nos enveredar para uma das duas propostas. Parece que nos é cobrada a definição por uma opção entre uma das partes desse problema. Mas será que uma investigação sobre a questão da identidade se resolve com uma “tomada de partido”? Seria a atitude mais própria deixarmo-nos seduzir pelo conforto de adotar a primeira ou a segunda alternativa?

Essas duas perguntas podem ser respondidas com facilidade se rememorarmos que, embora o exame que empreendamos nos ponha diante de uma encruzilhada nitidamente marcada por uma petição de princípios, a experiência do ser dá-se como unidade e, deste modo, a identidade é também uma; daí Heidegger afirmar: “(…) a unidade da identidade constitui um traço fundamental do ser do ente. Em toda parte, onde quer que mantenhamos relação com qualquer tipo de ente, somos interpelados pela identidade” (HEIDEGGER, 1973). Constituir um traço fundamental não significa dizer que identidade é parte do ser do ente. Antes, é afirmar que é o modo com o que esse ente é, ou seja, é enquanto ser na identidade.

Ademais, como diz a citação, desde sempre na lida com o ser do ente (que somente através de uma relação de identidade é possível) somos interpelados, abordados, tomados por uma experiência que, em seu modo constitutivo, não exprime anterioridades. Daí afirmar-se que o ser apenas se confirma como ente através da identidade.
 
Em resposta às perguntas que ficaram pendentes acima, podemos afirmar que, certamente, a questão não se resolve com uma opção arbitrária. Não nos cabe aqui estabelecer um primado de um termo sobre o outro (talvez nem nos seja possível); resta-nos apontar, num e noutro o modo de formular, a co-pertinência que lhe é determinante. Com isso, reiteramos a unidade da experiência da identidade e do ser. Assim, também respondemos à segunda pergunta pendente. Deste modo, demonstramos a unidade do ser e da identidade, além de ministrar conceitos como o de diferença ontológica.

Um breve balanço de nosso argumento até então vem demonstrar a necessidade de uma maior explicitação de alguns aspectos que podem, num primeiro instante, parecer inconsistentes. Afirmamos, inicialmente, que o ser teria geminado em ente mediante um apelo. Asseveramos também que a relação de identidade é una, pois o ser é uno. Assim, proporemos algumas perguntas:

1.      Como poderia o ser ter se duplicado e ainda assim ser uno?

2.      Sabemos que uma co-pertinência é uma relação entre duas ou mais coisas. Como, então, poderíamos afirmar a unidade da identidade já que ela é co-pertinência?;

3.      Como seria possível manter a idéia de diferença sem comprometer a interpretação da unidade entre identidade e ser? (artifício que visa a afastar a leitura eivada dos caracteres metafísicos da tradição, que já enxerga, nessa relação, uma causalidade) e, finalmente,

4.      O que poderíamos entender, aqui, como “apelo”, “chamado”, “fala” e outros tantos termos que se referem à identidade, mas que permanecem enigmáticos?

As três primeiras perguntas denotam uma preocupação lógica com o nosso discurso; requerem o rigor e a coerência de uma não-contradição, operando num registro binário, buscando ler formalmente a questão e desprezando assim seu caráter fenomenal. Podem ser respondidas numa única manobra, que consiste no esclarecimento do sentido da terminologia aplicada. Assim, o que apontamos como “geminação” são dois modos do mesmo mostrar-se. A saber, ser e ente desde os quais se infere uma dimensão de “ser-identidade”. Isso é o que podemos apontar como co-pertinência, sendo ela no seu âmbito ontológico o modo dessa geminação ou, na esfera ôntica, a expressão de dois modos possíveis do mesmo mostrar-se. Portanto, isso que chamamos de “diferença ontológica” entre ser e ente é, no fundo, o que torna possível a experiência da identidade e o que possibilita a asserção desse fenômeno e sua afirmação como unidade. A confirmação disso vem com a seguinte citação do texto de Heidegger:

Interpretamos a mesmidade como comum-pertencer (co-pertinência). Facilmente se representa este comum-pertencer no sentido da identidade, pensada mais tarde e universalmente conhecida (…) O ser é determinado a partir de uma identidade, como traço dessa identidade(…) A mesmidade do pensar e ser, que fala na proposição de Parmênides, vem mais longe que a identidade metafísica, que emerge do ser e é determinada como traço dele (HEIDEGGER, 1973, p. 379).

Tendo esclarecido as três primeiras perguntas, partamos agora para a quarta, que tem seu interesse voltado ao conteúdo conceitual da questão tratada. Ela pergunta pelo significado de termos como apelo, chamado, fala que reincidem na citação do autor e no nosso trabalho.

Heidegger (1973) diz: “o apelo da identidade fala desde o ser do ente”. O que poderíamos entender por apelo? Todo apelo é um chamado, uma invocação. Tal invocar é um modo de agir, uma ação com a voz. Essa voz que age se dirigindo a algo que é alvo da evocação, algo do qual se espera reação, reposta. Assim, podemos dizer que o apelo à identidade requer uma resposta, que se caracteriza como aquilo que chamamos desdobramento ou deslocamento, precisamente, o deslocamento do ser em sua condição de em-si e para-si à sua condição de para-o-outro, como o ente. O que, ainda utilizando uma terminologia hegeliana, poderíamos entender como o deslocamento do ser (sein) para o ser-aí (Dasein),[2] ser-aí que, distintamente da conceituação heideggeriana, qualquer ente efetivamente é. O “aí” (Da) do termo ser-aí é um indicativo desse deslocamento, desse “deslocare”. Entretanto, o “aí” faz mais que definir uma dimensão espacio-locativa, aponta para uma dimensão mundana desse ser. Para a determinação de um ser situado por um arcabouço existencial, no qual entre existenciais como “mundanidade”, “facticidade” e a “linguagem”, como existencial que reúne o ser em um “ethos” desde o qual é possível a compreensão deste ser enquanto um ser-situado-aí em um mundo. Destarte, dizer que “o ser fala”, ou que a identidade é apelada, é o mesmo que fazer referência a esse “local” desde o qual é possível não só uma compreensão de ser, mas uma de identidade.

O ser (sein) enquanto ser-aí (Dasein) tem compreensão de si e dos outros entes que lhe vêm ao encontro, é capaz de compreender o que é enquanto ente efetivo e mesmo o que significa “ser” em sua compreensão mais abstrata. O ser-aí reconhece, através desse processo, a identidade das coisas que são à medida que são o que são, ou: “consigo mesmo é cada A (ente) ele mesmo o mesmo” (HEIDEGGER, 1973). O aspecto existencial que marca o tom desse argumento sobre a identidade encontra legitimação na seguinte passagem do texto heideggeriano: “Em toda parte, onde quer que mantenhamos qualquer tipo de relação com qualquer tipo de ente, somos interpelados pela identidade” (HEIDEGGER, 1973), pois só somos interpelados pela identidade; por sermos capazes de ter uma compreensão do ser e, logo, da própria identidade. Donde se conclui que esta interpelação já é, sempre, desde uma compreensão, a de ser que, à medida que existe, é tomada pelo sentido disso que se faz como ser-identidade.

Essa indicação é o que temos por meio do próprio termo “interpelar” ou “interpelação”. Uma análise mais detida na etimologia deste no alemão nos passa a idéia de identidade como aquilo que é conjugado entre o ser e a sua compreensão. Assim, em “auffordern” (termo utilizado pelo nosso autor para referir-se a essa interpretação),“auf” é a preposição que nos aponta um para, um em direção à…, donde presume-se que lidamos com um ponto desde o qual a compreensão do ser tem lugar; deste, parte em direção a outro ponto que, tomando por referência, infere a identidade. Destarte, identidade nasce nessa relação entre dois pólos.

O verbo “fordern” expressa bem o caráter dessa relação. É uma manifestação de exigência, de reclamação, de requerimento ou, finalmente, utilizando um termo que já nos é conhecido, apelação. É importante observar que, mesmo no termo da língua portuguesa, “interpelar” (adotado como tradução para “auffordern”), essa interpretação etimológica vigora. Vejamos: o prefixo latino “inter”, corresponde à preposição alemã “auf”. Entretanto, esse em vez de referir-se ao deslocamento de um pólo ao outro, menciona a relação que se dá no intervalo desses dois pólos. O outro termo que compõe interpelar, correspondente à palavra alemã “fordern”, é também um verbo, o verbo apelar. O mesmo “apelar”, que, durante toda essa argumentação, esteve em questão, por caracterizar o modo com o qual a identidade é inferida de uma relação entre ser e sua compreensão, mediante o ente. É isso que chamamos de conjugação entre ser e um ente capaz de ter compreensão de ser, entre ser e ser-aí; é nisso que consiste a co-pertinência ou co-originariedade entre ser-identidade.

A interpretação do ser em sua identidade apontou que o ser enquanto ser-aí possui compreensão do seu ser e dos outros entes que lhe vêm ao encontro. Assim, conclui-se que esta interpelação já é compreensão de ser. A compreensão de um ser que é, à medida que existe, tomado pelo sentido disso que se faz como face conjugada do ser compreendido. Duas conseqüências são avistadas desde as presentes afirmações: a) A possibilidade de pensarmos ser e identidade como o mesmo; b) A revelação do modo com que a identidade (ou diferença) ontológica é capaz de apontar a co-originariedade de que tratamos. O corpo do argumento subseqüente compor-se-á do exercício de demonstração desses três pontos, tendo por intuito primordial indicar o modo com o que essa co-originariedade se dá.

Acima, deparamo-nos com a seguinte citação de Heidegger (1973): “Em toda parte, onde quer que mantenhamos qualquer tipo de relação com qualquer tipo de ente, somos interpelados pela identidade”. O período marca, a idéia de totalidade, ele diz, “em toda parte”, “qualquer tipo de relação”, “qualquer tipo de ente”. A idéia de totalidade aqui nos é importante, pois abarca tudo que de algum modo é, dizendo respeito a qualquer parte, ente ou relação que se manifeste em uma dimensão de ser. Diz, pois, respeito ao ser que se abre como totalidade. 

Do ponto de vista dos entes, teríamos que esse ser estaria vigente na totalidade. Por outro lado, do ponto de vista do ser, este seria unidade absoluta incapaz de dissociar-se em partes. Daí a totalidade expressa na citação analisada pode ser perfeitamente lida como unidade. Aquela oração diz: “Em toda parte (…) somos interpelados pela identidade”. Entretanto, podemos afirmar (com base na reflexão acima): na totalidade, ou, onde quer que haja totalidade, somos interpelados pela identidade; ou, mesmo, na unidade, somos interpelados pela identidade. Ora, o ser-aí é um ente; um ente que não poderia deixar de integrar essa totalidade (caso contrário, não poderíamos tratá-la como tal). Ipso facto, a identidade, enquanto relação, é também um ente que integra a mesma totalidade. Assim, podemos afirmar que: o ser-aí, que sempre e a cada vez somos, é sempre interpelado pela identidade nessa unidade.

O aposto, que sempre e a cada vez somos, não apenas grifa que somos, mas que só somos enquanto existimos (isto é, enquanto esforçamo-nos por mantermo-nos no exercício de ser, de “essencializar-nos”). Mas qual seria o propósito dessa ressalva referente ao existir do ser-aí? Ela é importante, pois permite que apontemos que, somente existindo, o ser-aí é; somente sendo, na unidade do ser, pode ser interpelado pela identidade. Assim, o ser-aí se deixa tomar pela apelação da identidade. A formulação a qual chegamos parece deixar nítido que a identidade diz respeito à constituição de todos os fenômenos (HEIDEGGER, 1996). Entretanto, o fenômeno se manifesta a um ente específico, o ente que somos (daí Heidegger afirmar na citação “somos interpelados”).

Dizer respeito à constituição de todos os entes não quer dizer compor uma dimensão essencial desses entes. Não se trata disso, pois isso seria nivelar todos os entes “por baixo”; isto é, compreender o ser-aí, constituinte da experiência homem, como também um ente simplesmente dado, como possuidor do modo de ser de “coisa”, o que nos devolveria para o registro metafísico tradicional. Entendemos essa leitura uma desconsideração do caráter fenomenal do ser-aí tal qual vemos tematizado em Ser e tempo, bem quanto seu modo de existir. Assim, a identidade aponta para o ser que irrompe no ente, em qualquer ente. Entretanto, essa irrupção não se dá fora do registro de compreensão, por isso, compreensão, aqui, deve sempre dizer compreensão de ser, compreensão do ser que se é enquanto ser-aí; compreensão das estruturas e relações que determinam esse ser enquanto ser-aí; compreensão do ser dos entes que são simplesmente dados.

Afirmamos que esta compreensão pertence a um ser que é à medida que existe e que, ao existir, é tomado pelo sentido disso que se faz como ser-identidade. A compreensão do ser é sempre a do ser de um ente. Assim, o ser, enquanto ser-aí, tem compreensão de si e dos outros entes que lhe vêm ao encontro; é capaz de compreender o que é ente e mesmo ser em sentido abstrato. Ter compreensão de si e dos demais entes integrantes da totalidade é compreender o ser em sua unidade. Unidade marcada pelo ser desse ser-aí, desse ente que tem compreensão de ser. Heidegger nos certifica dessa proposição na seguinte passagem: “Phýsis e lógos são a mesma coisa. Lógos caracteriza o ser de um ponto de vista novo e antigo, ao mesmo tempo: o que é ente, o que é consistente e estável, acha-se reunido em si mesmo por si mesmo e se mantêm nessa reunião” (HEIDEGGER, 1973). 

Cremos que não há porque discordar de que o que Heidegger descreve na citação é a co-pertinência do ser da totalidade (phýsis) e do ser-aí, como o ente dotado de compreensão de ser. Pois não ficaria aqui explícito o que vimos tratando durante todo este trabalho como co-originariedade? Não ficaria claro nessa citação que o papel do ser como identidade frente ao ser-aí, à medida que esse enquanto unidade como o ser, é interpelado pelo ser ser-identidade? Ora, não seria exatamente isso que Heidegger (1973) diz com: “o ente que é (…) acha-se reunido em si mesmo e por si mesmo e se mantêm nessa reunião”?

Por enquanto, podemos afirmar que a identidade revela a co-originariedade na forma da co-pertinência ao ser da totalidade com o ser-aí quando torna possível pensar ser e ser-aí como o mesmo. Já vimos Heidegger interpretar essa mesmidade da identidade como co-pertinência. Para esse autor, essa é a mesmidade do ser e do pensar. Na citação imediatamente acima, temos a mesmidade ligada ao ente que se acha reunido em si mesmo, por si mesmo, e se mantêm nessa reunião. Essa mesmidade é pensada como reunião, como o conjunto de uma totalidade, como unidade; em última análise, a própria unidade originária de ser e pensar. 

Encontramos a legitimação dessas afirmações na análise do seguinte documento:
Se pensarmos o comum-pertencer (co-pertinência) como de costume, então como já se mostra a ênfase dada à primeira parte da expressão, o sentido do pertencer é determinado a partir da comunidade, quer dizer, a partir da sua unidade. Nesse caso “pertencer”(pertinência) significa integrado, inserido na ordem de uma comunidade, instalado na unidade de algo “múltiplo”, reunido para a unidade do sistema mediado pelo centro unificador de uma adequada síntese: a filosofia representa esse comum-pertencer como nexus e connexio, como a necessária junção de um com o outro (HEIDEGGER, 1973, p. 380).

 A análise da citação privilegiará a noção de comum da co-pertinência. Foi dito que o ente é e acha-se reunido em si mesmo, por si mesmo, e se mantém nessa reunião. Isso pode também ser dito da seguinte forma: o ente é, se acha unido em si mesmo, por si mesmo, e se mantém nessa unidade. Co-pertinência diz pertinência do ente com si mesmo, por si mesmo, na unidade em que é com seu ser. Assim, como nos diz a citação, o sentido desse pertencer do ente é marcado por essa unidade. Co-pertinência diz respeito à comunidade (ou a uma “comum-unidade”) a algo que pode ser pensado como-um; é comunhão, “co-originariedade”.

Isto posto, a demonstração da co-originariedade desde a identidade consiste em um argumento muito simples, que pode ser sintetizado assim: a) o ser que se abre na identidade é unidade, b) o ser-aí é (e só pode ser na medida em que é ser), portanto, c) o ser-aí é com o ser que se abre na unidade.
A co-originariedade pode também ser pensada desde o pertencer dessa co-pertinência. Do ponto de vista do pertencer, Heidegger parece ser mais explícito, como vemos nessa outra citação:
Se compreendermos o pensar como a característica do homem então refletimos sobre um comum-pertencer que se refere ao homem e ser. No mesmo instante nos surge a questão: que significa ser? Quem ou o que é o Homem? 

Qualquer um vê facilmente que, sem a suficiente resposta a essas perguntas falta-nos o chão em que possamos decidir algo seguro sobre o comum-pertencer de homem e ser. Contudo, enquanto questionamos desta maneira ficamos presos à tentativa de representar a comunidade do homem e ser como uma integração e de dispor esta ou a partir do homem ou a partir do ser e assim explicitá-la. Nisto os conceitos tradicionais de homem e ser formam pontos para a integração de ambos (HEIDEGGER, 1973, p. 380).

Ao propor o pensar como característica do homem (ser-aí), Heidegger faz referência ao homem e ao ser, algo que ele chama de co-pertinência, grifando o caráter de pertinência entre ambos. Interpretar o pensar como característica do homem não significa falar de uma atividade discursiva promovida por uma faculdade intelectual. Antes, é o modo de ser de algo que pensa. Nosso autor alude a certa tendência a representar a “comunidade de homem como uma integração e de dispor desta ou a partir de homem ou a partir do ser” (HEIDEGGER, 1973). Entretanto, o pensar ou a co-pertinência não oscila entre dois pólos, pois, pelo menos do modo com que Heidegger se refere aqui, pensar não é uma característica de um sujeito, nem o integrar do homem no ser da totalidade, mas a co-pertinência originária do modo de ser do homem (na condição existencial de ser-aí) com o ser. 

Explicando: pensar não é introduzir um particular que estava “de fora” no interior de um universal que o comportaria, mas o conceber que esse suposto particular pertence, e sempre pertenceu, a esse universal. Assim, podemos afirmar a co-pertinência como a co-originariedade de “ser-pensar”.

O ensaio buscou pensar as noções de identidade e diferença tais quais tratadas no universo conceitual do pensamento de Heidegger. Teve como propósito uma apresentação dos termos da questão e suas implicações mútuas, assumindo por objetivo mostrar como a identidade se apresenta ao homem através de um apelo mediado por uma compreensão de ser. Especificamente, objetivou-se apontar o homem como o único ente possuidor do privilégio ontológico de compreender o ser em seu sentido, podendo, inclusive, pensar a natureza desta apelação e estabelecendo a diferença ontológica entre ser e ente. Diferença que também aponta indiretamente à identidade do ser consigo próprio e à co-pertinência entre o homem ser-aí e o ser de todas as coisas. A hipótese que se buscou validar é a de que a identidade viria suprir a falta de um chão em que pudéssemos decidir algo sobre a co-pertinência entre ser-aí e ser, tarefa que se norteou em todo momento pelo problema: “Em que constelação de homem e ser estamos nós?” (HEIDEGGER, 1973), tal qual formulada por nosso autor.

 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
 [1] Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, Professor na Faculdade de Formação de Professores da UERJ e da Professor da Universidade Cândido Mendes/UCAM. Autor de Filosofia Primeira – Estudos sobre Heidegger e outros autores.

Discurso de posse do Prof. Kahlmeyer-Mertens no IHGN 

http://www.youtube.com/watch?v=OIyDKCxhy8Y&feature=related 

Fonte:
CONSCIÊNCIA:.ORG
http://www.consciencia.org/heidegger_identidaderoberto.shtml

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