sábado, 7 de maio de 2011

Mario Sergio Cortella - Capacidade de Cuidar

e: | Criado em: 04/07/2010

Trecho da entrevista parte do documentário Somos Um Só. Parceria entre SESC e TV Cultura. Produzido pela DIP - Digital Produções. O consultor de Espiritualidade, Mario Sergio Cortella, discute os conceitos de fertilidade e capricho.

Capítulo 3 - O que é a Espiritualidade

e: | Criado em: 21/12/2010

www.otrabalhointerno.com

Grupo de estudo do livro "O Trabalho Interno"

Assuntos abordados no Vídeo:

*A dificuldade de vislumbrar o "O que posso vir a ser" devido às ilusões acerca de Si mesmo

* A Necessidade de comprometimento e abertura para deixar de lado as auto-imagens para a possibilitar a Evolução

* Diferença entre Psicoterapia e o Trabalho Espiritual

* A utilidade de um trabalho em grupo para ver em si mesmo as fraquezas tão facilmente vistas nos outros

Sérgio Cortella - O que é espiritualidade? - Somos1só

De: | Criado em: 09/11/2010

Trecho da entrevista do documentário Somos Um Só. Parceria entre SESC e TV Cultura. Produzido pela DIP -- Digital Produções. O consultor Sérgio Cortella fala da espiritualidade e da existência do ser humano, da vida, dos sentidos e da conexão com o sócio ambientalismo e com a beleza.

Mais informações:
http://www.somos1so.com.br

Reencarnação no Faustão - Informação e Confusão

e: | Criado em: 13/09/2010

Em que pese ser importante levantar e discutir o tema que milhões de pessoas acreditam; ainda que respeitemos o currículo do Prof. Mário Sergio Cortela, muitos equívocos e gafes são facilmente identificáveis nas suas definições, por qualquer estudioso do espiritismo ou da reencarnação. A Globo poderia chamar alguém que conhecesse mais do assunto (há vários) e, então, o esclarecimento seria real e o proveito enriquecedor. Bom para levantar discussões, mas... retificações necessárias e importantes deverão ser feitas pelos que conhecem o assunto de verdade.

Jesus Cristo - historico e apócrifos do novo testamento 5de5 - (Final)

De: | Criado em: 29/07/2009

O Jesus histórico, numa excelente produção jornalística brasileira. Os evangelhos apócrifos, textos arqueológicos do cristianismo do seculo 1.

Jesus Cristo - historico e apócrifos do novo testamento 4de5


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De: | Criado em: 29/07/2009

O Jesus histórico, numa excelente produção jornalística brasileira. Os evangelhos apócrifos, textos arqueológicos do cristianismo do seculo 1.

Jesus Cristo - historico e apócrifos do novo testamento 4de5


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De: | Criado em: 29/07/2009

O Jesus histórico, numa excelente produção jornalística brasileira. Os evangelhos apócrifos, textos arqueológicos do cristianismo do seculo 1.

Jesus Cristo - historico e apócrifos do novo testamento 4de5


De: | Criado em: 29/07/2009

O Jesus histórico, numa excelente produção jornalística brasileira. Os evangelhos apócrifos, textos arqueológicos do cristianismo do seculo 1.

Jesus Cristo - historico e apócrifos do novo testamento 3de5

De: | Criado em: 29/07/2009

O Jesus histórico, numa excelente produção jornalística brasileira. Os evangelhos apócrifos, textos arqueológicos do cristianismo do seculo 1.

Jesus Cristo - historico e apócrifos do novo testamento 2de5

De: | Criado em: 29/07/2009

O Jesus histórico, numa excelente produção jornalística brasileira. Os evangelhos apócrifos, textos arqueológicos do cristianismo do seculo 1.

Jesus Cristo - historico e apócrifos do novo testamento 1de5

De: | Criado em: 29/07/2009

O Jesus histórico, numa excelente produção jornalística brasileira. Os evangelhos apócrifos, textos arqueológicos do cristianismo do seculo 1.

Não Nascemos Prontos - Mario Sergio Cortella - 4/4


De: | Criado em: 17/06/2010

Mario Sergio Cortella - Não nascemos prontos parte 3/4

De: | Criado em: 21/05/2008

Palestra com Mario Sergio Cortella
Tema:Não nascemos prontos parte3/4

Mario Sergio Cortella - Não nascemos prontos parte 2/4

De: | Criado em: 21/05/2008

Palestra com Mario Sergio Cortella -
Tema:Não nascemos prontos parte

Mario Sergio Cortella - Não nascemos prontos parte 1/4

De: | Criado em: 21/05/2008

Palestra com Mario Sergio Cortella
Tema:Não nascemos prontos 1/4

Mário Sérgio Cortella - Jogo de Idéias

De: | Criado em: 17/11/2009

Trecho de entrevista com Mário Sérgio Cortella para o Jogo de Idéias, programa de TV do Itaú Cultural com convidados da música, da literatura, do teatro, da educação, entre outras áreas.

Filosofia explica o que é a Ética - Mario Sergio Cortella

De: | Criado em: 07/03/2010

Mario Sergio Cortella explica de uma forma simples,como a ética influencia no nosso dia-a-dia. Veja mais vídeos em http://zonadodenny.blogspot.com/

A MORTE E A DOR - Arthur Schopenhauer


Arthur Schopenhauer

A Morte

O Grande Desengano. 
 O laço formado com inconstância pela criação é desfeito pela morte, sendo a penosa aniquilação o principal erro do nosso ser; o grande desengano.

A Filosofia; Filha da Morte.
Morte, gênio inspirador, a musa da filosofia. Sem a qual dificilmente se teria filosofado.

A Noite Eterna.
Quão longa é a noite da eternidade comparada com o curto sonho da vida.
Não Sobreviver; Persistir.
A indestrutibilidade que a duração infinita da matéria oferece, poderia consolar aquele que não pode conceber outra imortalidade. “O quê?” – dir-se-á – “a persistência de uma matéria bruta, de um pouco de pó, seria a continuidade do nosso ser?”

Sim, um pouco de pó. Conhecem o que é esse pó? Aprendam a conhecê-lo antes de o desprezar. Essa matéria, pó e cinza, dentro em pouco dissolvida na água, brilhará no esplendor dos metais, projetará faíscas elétricas, manifestará o seu poder magnético, converter-se-á em animal e em planta, e no mistério de sua essência criará essa vida, cuja perda chora amargamente nosso espírito acanhado. Não será nada, então, persistir na indestrutível matéria?
Dogma da Imortalidade.
A natureza nos ensina a doutrina da imortalidade, quando se observa, no Outono, o pequeno mundo dos insetos, e se nota que um prepara o leito para o longo sono do Inverno, que outro prepara o casulo onde se transforma em crisálida, para renascer na Primavera, e que, enfim, esses insetos se contentam, quando próximos da morte, em colocar os ovos em lugar favorável para renascerem um dia rejuvenescidos, num novo ser?

A natureza nos expõe a esses exemplos com o intuito de demonstrar que não há diferença fundamental entre a morte e o sono; ambos, perigo algum constituem à existência. O cuidado com que o inseto prepara a célula, o buraco, o ninho e o alimento para a larva, que há de nascer na Primavera, e morre, uma vez isso feito, – assemelha-se muito ao cuidado com que o homem, à noite, arruma a roupa, prepara o almoço para o dia seguinte, indo depois dormir sossegadamente.

E isto não sucederia se o inseto que morre no Outono não fosse exatamente igual ao que deve nascer na Primavera, assim como o homem que se deita, é o mesmo que se levanta no dia seguinte.
A Vida e a Morte.
Nascimento e morte são condições da vida, e se equilibram, formando os dois polos, as duas extremidades da existência, e ao seu redor giram todas as suas manifestações. Um símbolo da mitologia hindu, a mais sábia de todas, dá como atributo a Siva, o Deus da morte e da destruição, um colar de caveiras e o “lingam”, órgão e símbolo da geração, pois o amor é a compensação da morte, e um ao outro se neutralizam.

Para tornar mais evidente o contraste da morte do homem com a vida imortal da natureza, os gregos e os romanos adornavam os seus sarcófagos com baixos relevos figurando danças, caças, lutas entre animais, bacanais e, numa palavra, todos os espetáculos de uma vida mais forte, mais agradável e alegre, e até mesmo sátiros unidos a cabras.
Necessidade da Morte.
  A individualidade do homem tem tão pouco valor que nada perde com a morte; há alguma importância nos característicos gerais da humanidade, que são indestrutíveis. Se concedessem ao homem uma vida eterna, sentiria tanta repugnância por ela que acabaria desejando a morte, farto da imutabilidade de seu caráter e de seu ilimitado entendimento. Se exigíssemos a imortalidade perpetuaríamos um erro porque a individualidade não deveria existir, e o verdadeiro fim da vida é livrar-nos dela.

Se não houvesse penas e trabalhos, 
acabaria o homem por enfastiar-se,
e voltaria a sofrer as dores do mundo 
em tudo o que se encontrasse ao seu alcance.

Num mundo melhor o homem não se sentiria feliz, o essencial seria fazer com que ele seja o que não é, isto é, transformá-lo completamente. A morte realiza a principal condição; deixar de ser o que é; tendo isto em conta, concebe-se-lhe a necessidade moral. Ser colocado noutro mundo, e mudar inteiramente de ser, é no fundo uma só e mesma coisa. Seria conveniente que a morte, que destruiu uma consciência individual, a reanimasse de novo dando-lhe uma vida eterna? Qual o conteúdo, quase invariável desta consciência? Uma torrente de ideias e preocupações mesquinhas, acanhadas, terrenas. Melhor seria deixá-la repousar eternamente.
Supremo Consolo.
Contemplando a expressão de suave serenidade refletido no rosto da maioria dos mortos, parece que o fim de toda a atividade da vida, seja um consolo para a força que a mantém.
Indiferença da Natureza perante a Morte. A vida e a morte, o nascer e o morrer, é o maior jogo de dados que conhecemos; ansiosos, interessados, agitados assistimos a cada partida, porque a nossos olhos tudo se resume nisso. A natureza, pelo contrário, que é sempre sincera e nunca mente, contempla a partida com ar indiferente, não se preocupa com a morte ou a vida do indivíduo, entregando a vida do animal e também a do homem a todos os acasos, não fazendo o mínimo esforço para os salvar.

Esmagamos sem querer o inseto que se acha em nosso caminho; a lesma necessita de todo meio para se defender, não pode fugir, esconder-se, nem enganar, está condenada a ser presa de todos os seus inimigos; o peixe saltita tranquilamente na rede ainda aberta; o sapo devido a sua moleza não pode salvar-se; o pássaro não vê o falcão voar sobre sua cabeça, nem a ovelha vê o lobo que a espreita oculto na mata.

Todos esses animais inofensivos e fracos, vivem no meio de perigos ignorados, dos quais podem ser vítimas a todo momento. A natureza exprime com esse procedimento, no seu estilo lacônico, oracular, que lhe é indiferente a destruição de seus seres, não podendo ser por eles prejudicada, e que em casos semelhantes tão indiferente é o efeito como a causa. Por isso abandona sem defesa esses organismos, obras de uma arte eterna, à vontade do mais forte, aos caprichos da sorte, à crueldade da criança, ao mau numor de um imbecil.

A natureza, mãe soberana e universal de todo o criado, sabe que quando seus filhos sucumbem, voltam ao seu seio, onde os conserva ocultos, expondo-os a mil perigos sem temor algum; a sua morte é para ela um divertimento, um jogo. A natureza é indiferente no que se relaciona ao homem ou ao animal; não se deixa impressionar conosco, durante a vida ou na morte. Tampouco devíamos nos comover porque fazemos parte dela.
A Folha Seca Interroga o Destino.
Se dirigíssemos o pensamento para um longínquo futuro e procurássemos representar-nos às futuras gerações com os milhões de homens distintos e diferentes de nós pelos usos e costumes, perguntaríamos a nós mesmos: “De onde vieram? Onde estão agora?

Onde se achará o profundo seio do nada,
produtor do mundo, que os oculta?” 

Mas a esta pergunta, devíamos sorrir, por onde se poderá achar senão onde toda a realidade é, e será, no presente em tudo o que este representa e contém, em ti, insensato que interrogas, pois ignorando a tua própria essência, assemelhas-te a uma folha seca que oscila no ramo de uma árvore, e, no Outono, pensando na sua próxima queda, lamenta sua sorte, sem querer consolar-se com a ideia dos tenros brotos que na Primavera virão adornar a árvore. E a folha seca se queixa: “Já não sou eu, serão outras folhas”. Oh! folha insensata onde queres tu ir? De onde poderiam vir as outras folhas? Onde está esse nada em que temes sucumbir? Reconhece, pois, o teu próprio ser oculto na força íntima, sempre ativa da árvore, nessa energia que não acarreta a morte nem o nascimento de todas as suas gerações de folhas. Não sucede com as gerações de homens o mesmo que com as folhas de uma árvore?

A Dor

A Vida é Dor. 
Quem deseja, sofre; quem vive, deseja; a vida é dor. Quanto mais elevado é o espírito do homem, mais sofre. A vida não é mais do que uma luta pela existência com a certeza de sermos vencidos. A vida é uma incessante e cruel caçada onde, às vezes como caçadores, outras como caça, disputamos em horrível carnificina os restos da presa.

A vida é uma história da dor, 
que se resume assim: 
sem motivo queremos sofrer e lutar sempre,
morrer logo, e assim consecutivamente
durante séculos dos séculos, 
até que a Terra se desfaça.

Deus, Criador.
Se é certo que um Deus fez este mundo, não queria eu ser esse Deus: as dores do mundo dilacerariam meu coração. Se imaginássemos um demônio criador, ter-se-ia o direito de lhe censurar, mostrando-lhe a sua obra: “Como te atreves a perturbar o sagrado repouso do nada, para criares este mundo de angústia e de dores?”

Nosso Inferno. 
O inferno de nossa vida supera o de Dante no ponto de que cada um de nós é o demônio do seu vizinho. Há também um arquidemônio, a quem os outros obedecem: é o conquistador, que dispõe os homens uns em frente dos outros e lhes grita: “Vosso destino é sofrer e morrer; portanto, matem-se mutuamente”. E assim procedem os homens.
O Melhor dos Mundos. Se mostrássemos aos homens as horríveis dores e os atrozes tormentos a que está constantemente exposta sua existência, tremeriam de espanto; e se ao mais convencido otimista fizéssemos visitar os hospitais, os lazaretos, as salas de tortura dos cirurgiões, as prisões, os campos de batalha, os tribunais de justiça, os sombrios refúgios da miséria, e se por último, o fizéssemos contemplar a torre de Ugolino(1), acabaria por reconhecer de que modo é este “o melhor dos mundos possíveis”.

Nosso Mundo; Modelo de Horrores. 
Se considerarmos a dificuldade que teve Dante em descobrir o céu e suas alegrias, logo se verá que classe de mundo é o nosso. Por quê? Porque o nosso mundo nada apresenta de análogo. E para descrever o Paraíso viu-se o poeta obrigado a dar parte das notícias que lhe deram os seus antepassados, sua Beatriz e vários santos. Sem dúvida,

Dante descobriu muito bem o Inferno.
Por quê?
Porque achou o assunto e o modelo 
na realidade do nosso mundo.

A Tragicomédia de Nossa Vida.
Vista e examinada minuciosamente de alto e de longe, a vida de cada homem tem o aspecto de uma comédia; em sua total consideração ou em seus aspectos mais dignos de apreço, se apresentará como uma contemplação trágica. O afã e o trabalho de cada dia, os desejos e receios cotidianos, as desgraças de cada hora, os acasos da sorte sempre disposta a nos enganar são outras tantas cenas da comédia.

As aspirações iludidas, as ilusões desfeitas, os esforços baldados, os erros que completam nossa vida, as dores que se acumulam até terminar na morte, o último ato, eis a tragédia. Parece que o destino quis juntar o escárnio ao desespero, e, fazendo de nossa vida uma tragédia, não nos permite conservar a dignidade de uma personagem trágica. Por isso é que em todos os atos da vida representamos o lamentável papel de cômicos.
Da Dor ao Aborrecimento.
A dor e o aborrecimento são os dois últimos elementos entre os quais oscila a vida do homem. Os homens exprimiram esta oscilação de modo curioso; depois de haverem feito do inferno o lugar de todos os tormentos e dores, que deixaram para o céu? Justamente o aborrecimento.
Rio Abaixo. A vida é um mar cheio de escolhos e turbilhões que o homem evita à força de prudência e cuidados, sem embora desconhecer que, à medida que avança sem poder retardar a marcha, corre para o definitivo e inevitável naufrágio, a morte, fim fatal de sua acidentada navegação, é parte ele muito mais perigoso que todos os turbilhões e escolhos de que conseguiu escapar.
Disfarces da Dor.
Nossos esforços para banir a dor de nossa vida não conseguem outro resultado senão o de fazê-la mudar de forma. Em sua origem tomam o aspecto da necessidade, cuidado, para atender as coisas materiais da vida, e quando, após um trabalho incessante e penoso, conseguimos afastar a horrível máscara da dor neste determinado aspecto, adquire outros mil disfarces, segundo a idade e as circunstâncias: o instinto sexual, o amor apaixonado, a inveja, o rancor, os ciúmes, a ambição, a avareza, o temor, a enfermidade, etc. Toma o aspecto triste e desolado do tédio, da sociedade, quando não encontra outro modo de se apresentar.E se com novas armas conseguimos afastá-la novamente, recuperará sua antiga máscara, e a dança recomeça.
Condenados à Morte. Na primeira mocidade, colocamo-nos perante o destino, como as crianças, que, em frente ao pano de um teatro, impacientes e alegres, esperam as maravilhas que virão surgir em cena. É uma felicidade não podermos saber nada de antemão. Para quem sabe o que realmente vai se passar, as crianças são inocentes condenados não à morte, mas à vida, e que desconhecem ainda a sua sentença.

Todos Desterrados.
Se não fosse a dor, poderíamos dizer que a nossa existência no mundo não teria nenhuma razão de ser. É um absurdo pensar que a dor, que nasce da vida e enche o mundo, seja apenas um acidente, e não o próprio fim. Cada desgraça pessoal apresenta-se com uma exceção, mas, como somos todos desgraçados, a desgraça geral é a regra.
Vivemos Combatendo. Na desgraça, pensar em outros que são mais desgraçados, é o nosso maior consolo: é este o remédio eficaz ao alcance de todos. Porém, como os carneiros, que saltam no prado, enquanto o carniceiro faz a sua escolha no meio do rebanho, assim, em nossas horas felizes, não sabemos que desastre nos prepara o destino, justamente nesse momento: enfermidade, ruína, loucura, perseguições, etc.

Tudo que defendemos, resiste-nos, tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. A história nos diz que a vida dos povos é uma sucessão de guerras e revoltas; os anos de paz não passam de curtos entreatos. O mesmo acontece com a vida do homem, em constante luta contra as penas ou o aborrecimento, males abstratos, e contra seus semelhantes. Em todas, as partes e ocasiões temos que travar combate com um adversário.

A vida é uma guerra sem quartel, 
e a morte nos encontra com as armas na mão.

O Tempo, Mais um Tormento.
A rapidez do tempo, que se conserva atrás de nós como um vigia dos forçados, é mais um tormento da existência, que nos faz viver apressadamente sem sossego e sem deixar-nos respirar. São poupados semente aquele que o tempo condenou ao aborrecimento.

Necessidade da Dor.
Todos nós necessitamos sofrer certo número de preocupações, de penas e misérias, da mesma maneira que um barco tem necessidade de lastro para conservar seu equilíbrio. Se assim não fosse, se súbito nos libertássemos do peso da dor e das contrariedades,o orgulho do homem o faria em bocados ou pelo menos ele seria levado às maiores irregularidades e até à loucura furiosa, do mesmo modo que o nosso corpo rebentaria se repentinamente deixasse de sentir a pressão atmosférica.

O quinhão de quase todos os homens durante sua vida resume-se em pesares, trabalho e miséria, porém, se todas as aspirações humanas se realizassem, como que se preencheria o tempo?

O que preencheria sua vida? Se os homens vivessem no país das fadas, onde nada exigisse esforço e onde as perdizes voassem já assadas e recheadas ao alcance da mão, num país, onde cada um pudesse obter a sua amada sem dificuldade alguma, eles morreriam de tédio ou se enforcariam, outros despedaçar-se-iam entre si, causando-se maiores males que os impostos pela natureza. E isto demonstra que para nós não há melhor cenário que aquele que ocupamos, nem melhor existência do que a atual.

Se pensamos (e só é possível ter-se uma ideia aproximada) na dor, nos tormentos de todas as espécies que o sol ilumina no seu curso, sentimo-nos propensos a desejar que a sua luz perca o poder criador da vida, como acontece com a Lua, e que a superfície do nosso planeta se faça tão gelada e estéril como a do astro da noite.
A Grande Mentira da Vida.
Nossa vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade do nada. Mesmo aquele que não considera a existência como uma carga, à medida que passam os anos tem a consciência clara do que a vida é, em todos os seus aspectos, uma imensa mistificação, para não dizer uma formidável zombaria.
O Espectador se Aborrece.
O homem que sobrevive a duas ou três gerações pode ser comparado ao espectador de um circo, que assiste às mesmas farsas duas ou três vezes seguidas. Como a farsa estava calculada para uma única representação sua repetição não causa efeito no ânimo do espectador, o qual se aborrece por estarem dissipadas a ilusão e a novidade.
Uma Bela Expressão. 
A vida é uma carga enfadonha e aborrecida, uma tarefa que devemos desempenhar com tanto trabalho, que involuntariamente pensamos no descanso: e neste sentido a palavra defunctus é uma bela expressão.
Vítimas e Algozes. 
 Povoado por almas torturadas 
e por diabos que torturam, 
o mundo é um imenso inferno.
A Filosofia não é o Catecismo.
Ainda ouvirei dizer que a minha filosofia entristece tudo, isto porque digo a verdade àqueles que só gostariam que eu lhes dissesse: “Deus, Nosso Senhor fez tudo muito bem”. Ide à igreja, e deixai os filósofos em paz, ou, pelo menos, não lhes exijam que ajustem as suas doutrinas ao vosso catecismo. Recorrei aos filosofastros e encomendai-lhes teorias ao vosso gosto. Não há nada que dê mais prazer ou que seja mais fácil do que perturbar o otimismo dos que ensinam filosofia.
A Dor de Viver.
Se o ato da geração fosse somente obra de razão e reflexão, em vez de ser uma necessidade ou uma voluptuosidade, subsistiria a espécie humana? Não sentiríamos piedade pela geração futura, para lhe poupar a dor de viver, ou, ao menos, não hesitaríamos em impor-lhe a sangue frio tão pesada carga?
Inveja e Compaixão.
Não há uma só pessoa 
que seja verdadeiramente digna de inveja;
e quantas são dignas de compaixão.
Pranto, Dor e Aborrecimento.
Nossa razão se obscurece ao considerarmos que as inúmeras estrelas fixas, que brilham no céu, não têm outro fim senão o de iluminar mundos onde reinam o pranto, a dor, e onde, no melhor dos casos, só vinga o aborrecimento; pelo menos a julgar pela amostra que conhecemos.
O Mundo; Lugar de Expiação.
Brama criou o mundo por uma espécie de pecado ou desvario, e permanece nele para expiar sua falta.

– Muito bem! – Segundo o budismo, uma perturbação inexplicável criou o mundo, produzindo-se depois um longo repouso na beatitude serena, chamada Nirvana, que será conquistada pela penitência. Perfeitamente. Para os gregos o mundo e os deuses eram a obra de uma necessidade insondável, explicação admissível, porque nos satisfaz provisoriamente.

Ormuzd combate com Ariman: isto podemos admitir. Mas um Deus como esse Jeová, que animi causa, por seu bel-prazer, criou este mundo de lágrimas e dores, e que ainda se alegra e se aplaude de o haver criado, achando-o bom, isso já é demasiado forte. Sob este ponto de vista, podemos considerar a doutrina dos judeus como a última entre todas as que professam os povos civilizados, sobretudo, sendo que tomemos em consideração de ser ela a única que não possui qualquer vestígio de imortalidade.

Ainda que a teoria de Leibnitz fosse verdadeira, embora se admitisse que entre os mundos possíveis este é o melhor, essa demonstração não nos daria nenhuma teodiceia, porque o Criador não se limitou a criar o mundo, mas também a possibilidade de sua criação: por isso deveria ter criado um mundo melhor.

A dor que enche o mundo 
protesta irada contra a hipótese de uma obra perfeita
devida a um ser infinitamente bom e sábio, 
e também todo poderoso. 

E, por outra parte, é bem evidente a notória imperfeição, a burlesca caricatura que é o homem, obra acabada da criação. Não é possível explicar essa dissonância. Quando consideramos o mundo como obra de nossa própria culpa, e, portanto, como alguma coisa que não pode ser melhor, as dores e miséria da humanidade são provas em apoio desta tese.

Se o mundo é obra de um criador, as dores voltam-se contra ele dando lugar a cruéis sarcasmos; mas se é obra nossa, a acusação é contra o nosso ser e a nossa vontade. Isto nos faz pensar que viemos ao mundo já viciados, como os filhos de pais gastos pelos desregramentos, e que se a nossa existência é tão miserável, e tem por desfecho a morte, é porque assim merecemos, para expiar nossa culpa.

Generalizando, nada é mais certo: a culpa do mundo é que causa os sofrimentos, e entendemos esta relação no sentido metafórico, e não no físico e empírico. Por isso, a história do pecado original reconcilia-me com o Antigo Testamento; para mim é a única verdade metafísica que o livro contém – expressa em forma alegórica.

A nada se assemelha tanto nosso destino 
como à consequência de uma falta, 
de um desejo culpado. 

Para ter orientação na vida, e considerar a vida em seu verdadeiro aspecto, basta habituarmo-nos ao pensamento de que este mundo é um vale de lágrimas, em lugar de penitência; a penal colony, como a definiram os mais antigos filósofos, e alguns padres da Igreja. Não é mister que eu diga o que vale a sociedade de nossos semelhantes; aquele estão conscientes que mereciam outra melhor, assim como se sabe que não é a menor pena do presidiário a sociedade em que ele se encontra.

Um espírito elevado, uma alma delicada, um gênio pode sentir a mesma necessidade de isolamento que um nobre prisioneiro que se encontra na cadeia rodeado de criminosos vulgares. Se sempre nos lembrássemos de que viemos ao mundo para expiar uma culpa, acolheríamos sem surpresa e sem indignação as imperfeições de nossos semelhantes, os tormentos que aqui sofremos, cuja miserável constituição intelectual e moral se revela até no rosto.

A certeza de que o mundo e o homem não podem mudar nos encheria de dó pelo próximo. Com efeito, que podemos esperar de tais seres? Penso, às vezes, que a melhor maneira dos homens se cumprimentarem em vez de ser “Cavalheiro, Senhor, Sir”, poderiam ser, “companheiro de sofrimentos, soci malorum, my fellow-sufferer”… Por mais irritante que pareça esta expressão, tem mais fundamento que as usuais, e recorda-nos a paciência, indulgência e amor ao próximo, e, usada por todos, beneficiaria a cada um.
A Dor é a Única Positiva.
Do mesmo modo que o rio corre manso e sereno, enquanto não encontra obstáculos que se oponham à sua marcha, assim corre a vida do homem quando nada se lhe opõe à vontade. Vivemos inconscientes e desatentos: nossa atenção desperta no mesmo instante em que nossa vontade encontra um obstáculo e choca-se contra ele. Sentimos ato contínuo tudo o que se ergue contra a nossa vontade, tudo o que a contraria ou lhe resiste: ou o que é mesmo, tudo o que nos é penoso e desagradável.

No entanto, não prestamos atenção à saúde geral do nosso corpo, mas percebemos ligeiramente aonde o sapato nos molesta; não pensamos nos negócios e só nos importamos com uma ninharia que nos incomoda. Isto quer dizer que o bem-estar e a felicidade são valores negativos, e só a dor é positiva. É um absurdo acreditar o contrário; que o mal é negativo. Ele é positivo, porque se faz sentir.

Toda a felicidade, todo o bem é negativo, e toda a satisfação também o é, porque suprime um desejo ou termina um pesar. Acrescentamos a isto que, em geral, nunca sentimos uma alegria maior que a que sonhávamos, e que a dor sempre a excede.

Se quereis certeza das diferenças 
entre o prazer e a dor, 
comparem a impressão do animal 
que devora outro, 
com a impressão do devorado.

Bolhas de Sabão.
O homem só vive no presente, que se converte no passado, e afunda-se na morte. Exceto as consequências que podem influir no presente, e que são filhas de sua vontade, ou de seus atos, a sua vida passada já não existe. Devia portanto ser-lhe indiferente que esse passado fosse de prazeres ou tristezas.O presente foge-lhes das mãos, transformando-se no passado. O futuro é incerto.

Fisicamente,
o andar não é mais do que uma queda
evitada a cada instante; 
da mesma maneira a existência é a morte 
suspensa,adiada, 
e a atividade de nosso espírito 
não é mais que uma luta constante contra o tédio.

É pois fatal que a morte alcance a vitória. Por haver nascido lhe pertencemos, e durante nossa vida não faz senão brincar com a presa antes de a devorar. E assim como quem faz bolhas de sabão, e apesar da segurança de que acabará por rebentar, se entretém em fazê-la aumentar de volume, assim seguimos o curso de nossa existência, prodigalizando-lhe cuidados e atenções.
A Felicidade Não Pode Viver no Presente.
A vida é uma constante mentira, quer nas coisas pequenas como nas grandes. Quando nos faz uma promessa, não a cumpre, a não ser para mostrar-nos que era pouco desejável o nosso desejo. Da mesma maneira nos engana a esperança quando não se realiza o que esperávamos.

E se a vida cumpre o que nos prometeu,
é só para nos tornar a tirar. 

A beleza do paraíso, que à distância admiramos, 
desaparece logo que nos deixamos seduzir. 

A felicidade está no futuro, ou no passado; o presente é uma pequena nuvem escura que o vento impele sobre a planície cheia de sol. Diante e atrás dela, tudo é luminoso; só a nuvem é que projeta uma sombra.
A Vida na Paz e na Guerra, e Sua Finalidade.
A vida nunca se apresenta como um mimo que nos é dado gozar, mas sim como uma tarefa que tem de se cumprir à força de trabalho; disto nasce e toma origem uma concorrência sem tréguas, uma luta sem fim, uma miséria geral, uma agitação em que tomam parte todas as forças do espírito e do corpo.

Milhões de homens, reunidos em nações, trabalham para o bem público, trabalhando assim cada um em seu próprio interesse, porém, as vítimas deste trabalho morrem aos milhares. Às vezes, por preconceitos absurdos, outras, por uma política sutil, as nações se aniquilam numa guerra. É preciso que o sangue do povo corra em abundância para expiar a culpa de alguns, ou para realizar os caprichos de outros.

Enquanto reina a paz no mundo, a indústria e o comércio prosperam, as invenções se multiplicam, os navios sulcam os mares, transportando para toda parte produtos do mundo, as ondas tragam milhares de homens. O tumulto é imenso, enquanto uns se agitam e movem, outros meditam. Mas qual é a suprema finalidade de tantos esforços?

Manter, no caso mais favorável, a vida de seres efêmeros em uma miséria suportável, e uma ausência relativa de dor que o tédio aceita constantemente, e ademais a reprodução desses seres, e a renovação de seus esforços.

Indefesa do Homem.
De todos os seres, o homem é o mais necessitado: só tem vontades e desejos, um conjunto de centenas de necessidades. Abandonando a si próprio, vive na terra sem segurança nenhuma a não ser sua miséria. A luta pela vida, cada dia renovada, a necessidade que o constrange, e as imperiosas exigências materiais, preenchem a sua existência. Ao mesmo tempo, outro instinto o atormenta; o de perpetuar a sua raça.

Ameaçado por todos os lados pelos perigos que o rodeiam, usa de sua prudência sempre vigilante para poder escapar.

Com passo inquieto, lançando em volta olhares angustiosos, segue o seu caminho em luta constante com os casos e com seus inúmeros inimigos. O homem não se sente seguro entre os da sua raça e nem nos mais longínquos desertos. Qualibus in tenebris vitae, quantisque periclis degitur hocc’aevi, quodcunque est! Lucr. 11, 15.
Trabalhar ou Aborrecer-se.
A necessidade imperiosa do homem é assegurar a existência, e feito isto, já sabe o que fazer. Portanto, depois disso, o homem se esforça para aliviar o peso da vida, torná-la agradável e menos sensível: “matar o tempo”, isto é, fugir ao aborrecimento.

Livres da preocupação de assegurar a existência, e livres seus ombros de todo fardo moral ou material, eles mesmos constituem sua própria carga, e sentem-se felizes porque viveram uma hora desapercebida, embora isto significa que sua vida a qual se esforçam com tanto zelo para prolongá-la, ficou encurtada pelo mesmo espaço de tempo.

 O aborrecimento merece tê-lo em conta; ele se reflete na fisionomia. O aborrecimento é a origem do instinto social, porque faz com que os homens, que pouco se amam, se procurem e se relacionem. O Estado considerado como uma calamidade pública, e por prudência toma medidas para o combater. O aborrecimento como o seu extremo oposto, a fome, pode impelir o homem aos maiores desvarios; o povo precisa panem et circenses.

Fundado na solidão e na inatividade, o rude sistema penitenciário de Filadélfia faz do aborrecimento um instrumento de suplício tão terrível, que mais de um condenado tem-se suicidado para fugir a ele. A miséria é sofrimento pungente do povo; o desgosto é para os favorecidos.

Na vida civil, o domingo significa o tédio, 
e os seis dias, o desgosto.

A Felicidade é um Sonho.
Sentimos a dor, mas não a ausência da dor; sentimos a inquietação mas não a ausência; o temor, mas não a tranquilidade. Sentimos o desejo e a aspiração, como sentimos a sede e a fome; mas, apenas satisfeitos, se acabam, como o bocado que, uma vez engolido, já não existe para o nosso paladar. Enquanto possuamos os três maiores bens da vida, saúde, mocidade e liberdade, não temos consciência deles, e só com a perda deles é que os apreciamos, porque são bens negativos.

Somente os dias de tristeza
é que nos fazem recordar 
as horas felizes da vida passada. 

À medida que os prazeres aumentam, nossa sensibilidade diminui; o hábito já não é um prazer. As horas passam lentamente quando estamos tristes; correm rapidamente quando são agradáveis; porque a dor é positiva e faz sentir sua presença. O aborrecimento nos dá a noção do tempo e a distração nos faz esquecer. Isto prova que a nossa existência é mais feliz quando menos a sentimos: de onde se deduz que mais feliz seríamos se nos livrássemos dela.

Uma grande alegria, 
assim não a julgaríamos 
se ela não viesse atrás de uma grande dor.

Não podemos atingir um estado de alegria serena e duradoura. Esta é a razão porque os poetas são obrigados a rodear seus protagonistas de tristes ou perigosas circunstâncias, para no fim os livrar delas. No drama e na poesia épica, o herói sofre mil torturas: nos romances os heróis lutam pondo em relevo os tormentos do coração humano.

“A felicidade não passa de um sonho 
– dizia Voltaire, tão favorecido pelo destino? 
– a única realidade é a dor”. 

E acrescenta: “Há oitenta anos que a experimento e nada faço senão resignar-me e dizer a mim mesmo que as moscas nasceram para serem comidas pelas aranhas, e os homens para serem devorados pelos desgostos”.
O Eterno Estribilho.
Vista exteriormente assombra a insignificância da vida da maioria dos homens, vista interiormente é sinistra e lúgubre. Formada por inúmeras dores e aspirações impossíveis, o homem passa sonhando pela meninice, mocidade, virilidade e velhice, rodeado de ideias banais.

Os homens assemelham-se a relógios 
que não sabem porque andam:

cada vez que um novo ser nasce, dá-se corda no relógio da vida humana para seguir repetindo o eterno e gasto estribilho de uma caixa de música, frase por frase, compasso por compasso, com pequenas variações.

Joguetes da Natureza. 
O homem, cada um dos homens, é um sonho a mais, um sonho fugaz criado pela tenaz e constante vontade de viver, imagem efêmera que o espírito infinito da natureza desenha na página do tempo e do espaço; impressa nela alguns instantes logo se desfaz para dar lugar a muitas outras. O mais triste, o ponto que nos deve fazer pensar profundamente, é que a vontade de viver há de pagar cada uma dessas imagens efêmeras e caprichosas com o preço de dores profundas e inúmeras, e da morte por longos anos. Eis porque nos tornamos repentinamente sérios perante um cadáver.

O Teatro e os Artistas. 
O mundo é um vasto campo de batalha 
onde os seres somente devorando-se 
uns aos outros conseguem conservar 
e defender a vida;

onde todo animal carnívoro é o túmulo vivo de tantos outros; onde o viver significa sofrer longos tormentos; onde a capacidade para a dor aumenta na proporção da inteligência, e atinge, portanto, no homem o mais elevado grau. Os otimistas quiseram adaptar o mundo ao seu sistema, e apresentá-lo a prior como o melhor dos mundos possíveis. 

O absurdo é evidente. 

Dizem-me para abrir os olhos e contemplar a beleza do céu iluminado pelo sol, as montanhas, os vales, as torrentes, as plantas, os animais, que sei eu! Acaso será o mundo uma lanterna mágica? 

A contemplação é bela, confesso, mas aí representar, é coisa completamente diferente. Após o otimista surge o homem que nos fala das causas finais, e elogia as sábias leis que preservam os astros de se chocarem no seu percurso; que evitam o mar e a terra de se confundirem, e os mantém separados; que faz com que nem o frio nem o calor sejam eternos, e que, pela inclinação da eclítica, não permite a primavera, ser eterna podendo assim amadurecer os frutos, etc.

Mas tudo isso não são mais que simples “conditiones sine quibus non”. Porque se os planetas devem ter uma existência mais longa, embora seja o período que demora em chegar a eles a luz de uma estrela longínqua, e se não desaparecem após o nascimento, era preciso que as coisas estivessem mal arquitetadas, para que a base fundamental ameaçasse ruína. 

Chegamos aos resultados desta obra tão elogiada, e observamos os atores que se movimentam nesta, tão sábia e solidamente construída. Vemos que a dor aparece juntamente com a sensibilidade, e à medida que esta se torna inteligente, a dor e o desejo caminham par a par, e o primeiro chega a tal desenvolvimento que finalmente, a vida do homem nada mais é que um assunto trágico ou cômico. 

A sinceridade de certos homens
não lhes permite a união ao coro dos otimistas, 
e com eles entonar a aleluia.

A Vida é um Pesado Gracejo. 
Se considerarmos a vida objetivamente, é duvidoso que ela seja preferível ao nada. Atrever-me-ia até a dizer que se a reflexão e a experiência pudessem fazer um acordo, elevariam a voz em favor do nada. Se batêssemos nas pedras dos sepulcros e perguntássemos aos mortos se querem ressuscitar, moveriam negativamente a cabeça. É esta a opinião de Sócrates na Apologia de Platão. O alegre e feliz Voltaire dizia: “Amamos a vida, porém o nada não deixa de ter o seu lado bom”. Em outra parte dizia: “Ignoro o que seja a vida eterna, mas esta é um pesado gracejo”.


De Ontem a Hoje. 
A juventude é uma infatigável aspiração de felicidade; a velhice, pelo contrário, é dominada por um vago e persistente sentimento de dor, porque já estamos nos convencendo que a felicidade é uma ilusão, que só o sofrimento é real. Por isso, o homem sensato deseja mais sofrer que gozar. Em plena juventude, quando eu ouvia bater à porta, saltava de alegria, e pensava: “Bom! Alguma coisa sucede”. Mais tarde, experimentado pela vida, o mesmo ruído sobressaltava-me de angústia, e pensava: “Que sucederá, meu Deus?…”

A Dura Jornada. 
Na velhice ao perder os sonhos da sua juventude todo homem que estudou a história do passado e a da sua época, e recolheu o fruto da sua experiência e da alheia, se não estiver com o espírito perturbado por preconceitos muito arraigados, chegará à conclusão de que este mundo é o reino do acaso e do erro, que é governado a seu modo sem compaixão alguma, auxiliados pela maldade e pela loucura, que ao homem empolgam constantemente.

Mil trabalhos e esforços é preciso 
para impor uma ideia nobre,porque 
dificilmente encontra uma oportunidade 
de apresentar-se, enquanto que a vulgaridade artística, 
os sofismas, a malícia e a astúcia reinam 
de geração em geração, aqui e alhures 
sem serem interrompidos.
Nota
  1. Referência à obra “A Divina Comédia” (Inferno, canto XXXIII), de Dante Alighieri, que viveu entre os anos 1265-1321. “Ugolino foi murado numa torre com os filhos. Quando o desespero lhe inspira um gesto equívoco – morder as próprias mãos –, os filhos lhe oferecem a própria carne para mitigar sua fome. Ugolino recusa. Morrem os filhos. E o pai acaba por lhes comer os cadáveres antes de por sua vez perecer”.

    do mesmo autor

    Fonte:
     http://ateus.net/artigos/filosofia/a-morte-e-a-dor/
    Sejam felizes todos os seres  Vivam em paz todos os seres
    Sejam abençoados todos os seres

    A ÉPOCA DAS IMAGENS DE MUNDO -Martin Heidegger


    Martin Heidegger

    Com a metafísica se consuma uma reflexão sobre a essência do ente e uma decisão sobre a essência da verdade. A metafísica funda uma época, na medida em que lhe concede o fundamento da sua configuração essencial através de uma interpretação específica do ente e de uma acepção específica da verdade.

     Este fundamento governa todas as manifestações que caracterizam uma época. Reciprocamente, é preciso que o fundamento metafísico possa ser reconhecido nestas manifestações, para que haja uma reflexão apropriada sobre elas.

    A reflexão é a coragem de tornar dignos de questionamento, no mais alto grau, a verdade das próprias premissas e o âmbito dos próprios propósitos (cf. apêndice 1).

    A ciência pertence às manifestações 
    mais essenciais da época moderna 
    [Neuzeit].  

    Uma manifestação de igual porte é a técnica maquinal. Não se deve de forma alguma compreender mal esta última, como se fosse a simples aplicação da ciência natural moderna à prática. A técnica maquinal é propriamente uma metamorfose autônoma da prática, de tal forma que ela mesma exige o emprego da ciência natural matematizada.

    A técnica maquinal continua sendo, até agora, a decorrência mais visível da técnica moderna, que é idêntica à essência da metafísica moderna.
    Uma terceira manifestação da época moderna, igualmente importante, reside no processo por meio do qual a arte entra para o domínio da estética. Isto significa que a obra de arte se transforma em objeto de uma vivência. Do mesmo modo, a arte passa a equivaler a uma expressão da vida humana.

    Uma quarta manifestação moderna se anuncia no modo como a ação humana passa a ser concebida e consumida: como cultura. A cultura é, então, a realização dos valores superiores através do cultivo dos dons supremos do homem. Trata-se, na essência da cultura tomada como tal cultivo, de cultivar a si mesma expressamente e de se tornar, assim, uma política da cultura.

    Uma quinta manifestação da época moderna é o desendeusamento. Esta expressão não designa o abandono puro e simples dos deuses, o ateísmo rude. O desendeusamento é o processo duplo por meio do qual, por um lado, a imagem de mundo se cristianiza, na medida em que a base do mundo se cristaliza como o infinito, incondicionado e absoluto, enquanto, por outro lado, a cristandade troca o sentido do seu cristianismo pelo de uma visão de mundo [Weltanschauung] (a visão de mundo cristã).

    Assim, ela se torna adequada à época moderna. O desendeusamento é a condição em que ocorre a indecisão a respeito de Deus e dos deuses. A cristandade tem a maior parcela de responsabilidade pelo desdobramento desta indecisão. Mas o desendeusamento não exclui a religiosidade. De fato, precisamente graças a ela a relação com os deuses se transmuta em vivência religiosa. Quando isto acontece, é porque os deuses fugiram.

     O vazio deixado é preenchido 
    pela investigação histórica 
    e psicológica sobre o mito.

    Qual acepção do ente e qual interpretação da verdade encontram-se na base destas manifestações?
    Restringimo-nos a perguntar sobre a primeira manifestação mencionada, a ciência.

    Em que reside a essência da ciência moderna?
    Que acepção do ente e da verdade fundamentam esta essência? Se for possível obter o acesso ao fundamento metafísico sobre o qual a ciência enquanto moderna repousa, então a essência da época moderna se tornará reconhecível, em geral, a partir dele.

    Quando empregamos a palavra “ciência” nos dias de hoje, damos a entender algo essencialmente distinto da doctrina e scientia medievais, bem como da epistéme grega. A ciência grega nunca foi exata, e precisamente devido ao fato de não poder ser exata, nem precisar ser, de acordo com a própria essência. Por isso, não faz sentido algum sustentar que a ciência moderna é mais exata que a da Antiguidade. Tampouco se pode dizer que a doutrina galileana sobre a queda livre dos corpos é verdadeira [wahr], e que é falsa a doutrina aristotélica, segundo a qual os corpos leves tendem ao alto; pois a concepção grega da essência dos corpos, do lugar e da relação entre ambos repousa sobre uma interpretação diferente do ente. Por conseguinte, a interpretação grega do ente condiciona uma forma correspondente de ver e investigar os processos naturais, e diferente.

    Ninguém se permite flagrar afirmando
    que a poesia de Shakespeare representa um progresso, 
    se comparada com a de Ésquilo. 

    Contudo, ainda mais impossível é dizer que a concepção moderna do ente é mais correta [richtig] que a grega. Se, em vista disso, quisermos conceber a essência da ciência moderna, devemos, antes de tudo, nos libertar do hábito de diferenciar a ciência moderna da antiga de forma simplesmente gradual, tomando a perspectiva do progresso.

    A essência daquilo que hoje em dia se chama ciência consiste na pesquisa. Em que consiste a essência da pesquisa?

    Ela consiste no fato de o conhecimento se instalar em um âmbito do ente, da natureza ou da história, enquanto procedimento [Vorgehen]. Procedimento não significa, aqui, apenas o método ou processamento [Verfahren], pois cada procedimento exige de saída uma esfera dentro do qual se move. Mas o procedimento básico da pesquisa consiste precisamente em franquear tal esfera. Ele se consuma através da projeção de um traço fundamental [Grundriss] de algum âmbito do ente: por exemplo, quando, na natureza, um traço básico dos processos naturais é projetado.

    O projeto delineia de que modo o procedimento cognitivo adere, obrigatoriamente, à esfera franqueada. Esta obrigatoriedade é o rigor da pesquisa. O procedimento se assegura do âmbito de ser da sua esfera de objetos através do projeto do traço fundamental e da determinação do rigor. Um olhar na direção da primeira ciência moderna, e ao mesmo tempo a normativa, a saber, a física matemática, esclarecerá o que se quer dizer. Na medida em que a física atômica moderna ainda é física, o mesmo pode ser dito dela, em essência, pois só a essência é visada aqui.

    A física moderna se chama matemática,
    pois emprega em sentido eminente 
    uma matemática bastante específica.

    Só que ela só pode prosseguir de modo matemático porque já é matemática em um sentido profundo. Tà mathémata significa em grego aquilo que o homem já sabe de antemão ao considerar os entes e ao lidar com as coisas: nos corpos, é o corpóreo, nas plantas, é o botânico, nos animais, é o zoológico e no homem, é a humanidade [das Menschenartige]. Pertence ao rol de todos estes conhecimentos prévios, isto é, ao rol do matemático, também o conhecimento dos números.

    Quando nos deparamos com três maçãs sobre a mesa, reconhecemos que há três delas. Mas o número três, a tríade, já eram nossos conhecidos. Isto significa que o número é algo matemático. Os números ao mesmo tempo são o mais evidente dentre os sempre-já-conhecidos e exibem a forma mais familiar do matemático. Só por esta razão a designação “o matemático” foi reservada, logo a seguir, para o numérico. Contudo, o numérico não determina de modo algum a essência do matemático.

    A física é, em geral, o conhecimento da natureza, e por isso especialmente o conhecimento do materialmente corpóreo em seu movimento, pois em tudo o que é natural anuncia-se o materialmente corpóreo, em toda parte e imediatamente, ainda que corporeidade e movimento assumam formas diferentes. Se a física se configura expressamente como matemática, isto significa que algo se descobre de antemão, através dela e para ela, como o já-conhecido. Esta descoberta corresponde a nada menos que o projeto do que a natureza, a partir de agora, deve ser, em vista do conhecimento buscado. A natureza é o sistema autossuficiente do movimento dos pontos de massa coordenados espaço-temporalmente.

    Outras determinações decorrentes deste traço fundamental da natureza assim franqueado e instalado são: o movimento significa deslocamento. Nenhum movimento ou direção de movimento difere de qualquer outro. Cada lugar é igual ao outro. Nenhum ponto no tempo tem precedência sobre qualquer outro. A força se define por — isto é, é — seu resultado, de acordo com o movimento, que por sua vez é deslocamento dentro da unidade do tempo [Jede Kraft bestimmt sich nach dem, d. h. ist nur das, was sie an Bewegung und d. h. wieder an Orstveränderungsgrösse in der Zeiteinheit zur Folge hat].

    Todo processo deve ser visto de antemão a partir deste traço fundamental. Um processo natural só se torna visível dentro do âmbito de visibilidade aberto por ele. Esta projeção da natureza se certifica dela, à medida que a pesquisa física junge a si cada passo investigativo. Esta junção obrigacional, o rigor da pesquisa, recebe o seu caráter próprio do projeto.

    O rigor da ciência natural matematizada é a exatidão. Aqui, todos os processos devem ser determinados de antemão como grandezas espaço-temporais de movimento, para que possam ser sequer representados como processos naturais. Tal determinação se consuma na medida através de números e contas. Contudo, não é por isso que a ciência natural é exata, isto é, porque calcula corretamente. Ao contrário, ela precisa calcular deste modo porque o jugo com que sua esfera de objetos está comprometido tem o caráter da exatidão. Por sua vez, todas as ciências do espírito, e de fato todas as ciências da vida, têm de ser inexatas, se quiserem, precisamente, permanecer rigorosas.

    De fato, é possível açambarcar [auffassen] o vivente como uma grandeza de movimento espaço-temporal, mas aí já não se o abarca [fassen]. O elemento de inexatidão nas ciências do espírito não é nenhuma lacuna, mas a satisfação de uma exigência essencial deste modo de pesquisar. Sem dúvida, se comparadas com o rigor das ciências exatas, a projeção e certificação da esfera de objetos das ciências históricas não são apenas executadas de forma diferente. Os resultados são alcançados de modo muito mais árduo do que os alcançados pelo rigor.

    No rigor do procedimento, a ciência se transforma em pesquisa através do projeto e do asseguramento deste. Projeto e rigor se desdobram, porém, de modo iminente, até a sua forma definitiva, no método. O método assinala a segunda característica essencial da pesquisa. Para que a esfera projetada se torne objetiva, é preciso que possam vir ao nosso encontro todas as suas camadas e entrelaçamentos.

    Assim, o procedimento precisa ter uma visão desimpedida para a mutabilidade daquilo que vem ao seu encontro. A abundância do particular, isto é, dos fatos, só se mostra dentro do âmbito de visão do caráter de sempre-outro da mudança.

    O procedimento deve, por isso, representar o mutante em sua mutabilidade, torná-lo fixo, ao mesmo tempo em que concede ao movimento a sua mobilidade. A regra é aquilo que, nos fatos, permanece, e o que enquanto tal é constante nas suas modificações. A lei é aquilo que é constante nas modificações junto com a necessidade do seu desenrolar. Os fatos se tornam os fatos que são, pela primeira vez, ao adentrar o âmbito de visão da regra e da lei. A pesquisa factual no domínio da natureza é, em si, a instalação e comprovação da regra e da lei. O método por meio do qual uma esfera de objetos chega a ser representada tem a característica do esclarecimento a partir do claro, da explicação. Esta permanece ambígua. Ela fundamenta um desconhecido através de um conhecido e, ao mesmo tempo, certifica-se deste através de um desconhecido. A explicação se consuma na investigação. Esta ocorre nas ciências da natureza segundo a forma respectiva de cada campo de investigação e do objetivo que, através do experimento, a explicação visa. Mas a ciência da natureza não se transforma em pesquisa por causa do experimento; ao contrário, o experimento se torna possível pela primeira vez e unicamente porque o conhecimento da natureza é tomado como pesquisa. Uma vez que a física moderna é essencialmente matemática, e apenas por esta razão, ela também pode ser experimental. Uma vez que nem a doctrina medieval, nem a epistéme grega são ciências, no sentido da pesquisa, elas nunca chegam a ser experimentais. De fato, Aristóteles foi o primeiro a compreender o que empeiria (experientia) significa: a observação das próprias coisas, de suas particularidades e modificações sob condições cambiantes, e por isso o conhecimento do modo como as coisas se relacionam segundo a regra. Uma observação, porém, que visa tal conhecimento, isto é, o experimentum, ainda é essencialmente distinta do experimento na pesquisa, daquilo que pertence à ciência enquanto pesquisa. É o caso mesmo quando os antigos e medievais trabalham com números e medições; é o caso, ainda, quando a observação recorre a determinadas precauções e instrumentos de trabalho, pois aqui falta, sem exceção, o que é decisivo no experimento: começar com uma lei, que é tomada por base. Preparar e estabelecer um experimento significa representar uma condição de acordo com a qual um sistema específico de movimentos pode ser acompanhado na necessidade do seu decurso, de tal forma que o sistema pode ser dominado de antemão pela calculação. O estabelecimento de uma lei se consuma com respeito ao traço fundamental da esfera de objetos. Esta concede a medida, assim como condiciona uma representação previamente explicativa das condições. Tal representação, através da qual e em vista da qual o experimento começa, não é nenhuma fantasia aleatória. Por isso Newton declarou: hypotheses non fingo, as bases tomadas por ponto de partida não são aleatoriamente imaginadas. Elas se desdobram a partir do traço básico da natureza, e se inscrevem nele. O experimento é o método cujo planejamento e execução são sustentados e conduzidos por uma lei tomada por base, para que os fatos possam comprovar a lei ou negar-lhe a confirmação. Quanto mais exato for o traço básico projetado para a natureza, mais exata se torna a possibilidade do experimento. O famoso escolástico medieval Roger Bacon não pode de modo algum ser o precursor da pesquisa experimental moderna; antes, ele é um continuador de Aristóteles, uma vez que, neste meio tempo, por ação da cristandade, a posse da verdade passou a ser da fé, do consentimento à palavra escrita e à doutrina da Igreja.

    O conhecimento e doutrina supremos passaram a ser a teologia, entendida como interpretação da palavra sagrada sobre a revelação, fixada nas Escrituras e anunciada pela Igreja. Nesse caso, o conhecimento não é pesquisa, mas a compreensão correta da palavra normativa e das autoridades que a proclamam. Eis porque a aquisição do conhecimento na Idade Média dá a primazia ao esclarecimento das palavras e das opiniões doutrinais das diversas autoridades.

    O componere scripta et sermones, o argumentum ex verbo é decisivo, e ao mesmo tempo a razão pela qual a filosofia platônica e a aristotélica, tal como transmitida pela tradição, se transformou em dialética escolástica. Se Roger Bacon exige o experimentum — e ele o faz —, não é porque tem em mente o experimento da ciência enquanto pesquisa. Ao contrário, ele exige, ao invés do argumentum ex verbo, o argumentum ex re, ao invés do esclarecimento das opiniões doutrinais, a observação das próprias coisas, ou seja, a empeiria aristotélica.

    O experimento investigativo moderno, porém, não é uma observação mais acurada, em escala maior ou mais refinada em grau, mas um procedimento planejado de forma essencialmente distinta, com vistas à comprovação da lei, no contexto de um projeto exato da natureza e a serviço dele. Nas ciências históricas, o correspondente ao experimento do pesquisador da natureza é a crítica das fontes. Este nome significa aqui o conjunto da descoberta, classificação, asseguramento, exploração, armazenamento, e interpretação das fontes.

    É verdade que o esclarecimento histórico baseado na crítica das fontes não encontra, para os fatos, regras e leis. Mas tampouco ele se limita a simplesmente relatar os fatos. O procedimento visa, tanto no caso das ciências históricas como no caso como no caso das ciências naturais, instalar de antemão algo enquanto permanente, assim como fazer da história [Geschichte] um objeto.

    A história só pode se tornar objetiva 
    quando é passado. 

    O permanente no passado é o que outrora-sempre-já-foi, o comparável, de tal modo que o singular e o diverso são compensados e aplainados, quando depositados na conta da história. Na comparação permanente de tudo com tudo, o compreensível é extraído pelo cálculo, garantido e fixado como traço fundamental da história. O âmbito da pesquisa histórica só se estende até onde alcança a explicação histórica.

    O singular, o raro, o simples — em uma palavra, o grande na história — nunca é imediatamente compreensível e permanece, por isso, incompreensível. A pesquisa histórica não nega o grande na história; melhor dizendo, ela o explica como exceção. Nesta forma de explicação, o grande é comparado com o habitual e o nivelado. Não existe outra forma de explicação histórica, enquanto explicação significar a recondução ao compreensível do qual já se partiu, e enquanto a historiografia [Historie] permanecer pesquisa, isto é, explicação.

    Visto que a historiografia enquanto pesquisa projeta o passado e o torna objetivo como um conjunto de resultados que pode ser explicado e recenseado, por isso mesmo a crítica das fontes é requerida enquanto instrumento da objetivação. À medida que a historiografia se aproxima do estudo da imprensa, os critérios da crítica também se modificam.

    Toda ciência é necessariamente individual, uma vez que se funda sobre o projeto de uma esfera de objetos delimitada, de acordo com o seu caráter de pesquisa. Mas cada ciência individual precisa também se especializar em campos específicos da investigação à medida que, por meio de seu procedimento, seu projeto se desdobra. Esta particularização (especialização) não é de forma alguma apenas a manifestação concomitante e mais visível da impossibilidade crescente de se abarcar com a vista os resultados da pesquisa.

    Ela não é um mal necessário, mas uma necessidade essencial da ciência enquanto pesquisa. A especialização não é a consequência, mas o fundamento do progresso de toda pesquisa. O método da pesquisa é tal que ela não se dispersa em investigações casuais, de modo a se perder nelas, pois a ciência moderna se caracteriza por um terceiro processo fundamental: a exploração organizada [Betrieb] (cf. apêndice 2).

    Com isso se entende, em primeiro lugar, o fenômeno de uma ciência, seja ela natural ou humana, só atingir hoje a reputação de ciência quando é passível de ser institucionalizada. Só que a pesquisa não é uma exploração organizada porque o seu trabalho é realizado em instituições; ao contrário, os institutos são necessários porque a ciência, em si mesma e enquanto pesquisa, tem o caráter de exploração organizada.

    O procedimento que conquista as esferas
    individuais de objetos
    não se limita a acumular resultados.

     É bem antes o caso que ele se prepara para um novo procedimento, com a ajuda dos seus resultados. No conjunto de máquinas necessário para que a física execute a desintegração do átomo aloja-se a física inteira até agora. Da mesma forma, os fundos usáveis como fontes pela pesquisa histórica só se tornam empregáveis se as próprias fontes são asseguradas com base na explicação histórica.

    Nestes procedimentos, o método da ciência é envolvido e isolado por seus resultados. O método guia-se sempre e cada vez mais pelas possibilidades de procedimento mostradas por ele mesmo. Esta compulsão a orientar-se pelos próprios resultados, como se fossem caminhos e meios do método que progride, é a essência do caráter de exploração organizada da pesquisa. Este, por sua vez, é o fundamento interno da necessidade do seu caráter institucional.

    Na exploração organizada, o projeto de uma esfera de objetos é, pela primeira vez, encaixado no ente. Enquanto medidas adotadas, de forma alguma as disposições que facilitam uma união planejável dos modos de proceder, exigem a comunicação e correção recíprocas dos resultados e regulam o intercâmbio da força de trabalho são simples consequências externas da ampliação e ramificação do trabalho de pesquisa. Elas são muito antes o sinal, vindo de longe e até agora ainda não compreendido, de que a ciência moderna está adentrando o trecho decisivo da sua história.

    A ciência toma posse agora, pela primeira vez, 
    da sua essência própria e total.

    O que ocorre de modo iminente com a difusão e consolidação do caráter institucional das ciências? Nada menos que o asseguramento da primazia do método diante do ente (natureza e história) que se torna, assim, objetivo, através da pesquisa. Sobre a base do seu caráter de exploração organizada, as ciências alcançam a reunião e unidade que lhes correspondem. Por isso, uma pesquisa histórica ou arqueológica que esteja ativa de modo institucional está essencialmente muito mais próxima da pesquisa física instalada de modo correspondente do que uma disciplina da sua própria faculdade de ciências do espírito que ainda se aferre à simples erudição.

    O desdobramento decisivo do caráter moderno, 
    operacional da ciência forja
    uma nova espécie de homem. 
    O erudito desaparece.

    É substituído pelo pesquisador, que se engaja em empreendimentos de pesquisa. É o que dá incisividade ao seu trabalho, não a erudição. O pesquisador já não precisa ter biblioteca em casa, até porque está sempre viajando. Ele debate em colóquios e dá conferências em congressos. Ele se compromete com encomendas de editores, que agora também determinam que livros devem ser escritos (cf. apêndice 3).

    O pesquisador se vê impelido, por si mesmo e necessariamente, para o âmbito em que assume a configuração essencial do homem técnico, de modo essencial. Só deste modo ele se torna eficaz e, no sentido da sua época, efetivo. A seu lado, podem ainda resistir, em algumas épocas e lugares, os românticos da erudição e da universidade, cada vez mais ralos e vazios. O caráter efetivo de unidade e, por isso, a efetividade da universidade não consistem, todavia, em uma força espiritual que unificasse originariamente as ciências, que brotasse e se alimentasse de si mesma, e que se preservasse por si mesma.

    O que é real e efetivo é que a universidade é uma instalação que torna (de uma forma singular, porque administrativamente autocontida) possíveis e visíveis tanto a separação das ciências no seu processo de especialização como a unidade peculiar à exploração organizada.

    As forças essenciais e próprias da ciência moderna tornam-se efetivas de modo imediato e inconfundível na exploração organizada; por isso, também, apenas as atividades de pesquisa autóctones estão autorizadas a assinalar e instituir, a partir de si mesmas, a unidade interna adequada a si mesmas.
     
    O sistema real das ciências consiste tanto na unidade do método, que corresponde a um acréscimo fundado no planejamento, como na tomada de posição com respeito à objetivação do ente. A vantagem que se exige deste sistema não consiste em uma relação qualquer de unidade entre as regiões de objetos — uma relação rígida e ficticiamente baseada em conteúdos —, mas na máxima agilidade, livre e ao mesmo tempo regrada, das permutações, interrupções e retomadas das pesquisas, de acordo com a tarefa que as comanda a cada momento.

    Quanto mais a ciência se especializa exclusivamente na operosidade e dominação do seu processo de trabalho, e mais realista e livre de ilusões é o deslocamento da exploração organizada em institutos e escolas de pesquisa, mais irretorquivelmente as ciências conquistam a consumação da sua essência moderna. Quanto mais, porém, a ciência e os pesquisadores levam a cabo a sua configuração moderna, mais inequivocamente poderão se colocar a serviço, espontânea e imediatamente, da utilidade pública, e mais irrestritamente deverão se retirar para a condição de irrelevância oficial que caracteriza todo trabalho útil à coletividade.

    A ciência moderna se fundamenta e ao mesmo tempo se individualiza nos projetos de esferas de objetos determinadas. Estes projetos se desdobram nos métodos correspondentes e assegurados através do rigor. O método respectivo se instala na exploração organizada. Pesquisa e rigor, método e exploração organizada se exigem reciprocamente, são a essência da ciência moderna, transformam-na em pesquisa.

    Refletimos sobre a essência da ciência moderna para reconhecer o seu fundamento metafísico. Que concepção do ente e que conceito de verdade servem de base para a transformação da ciência em pesquisa?
    O conhecimento enquanto pesquisa pede que o ente preste contas a respeito do modo como e do ponto até o qual ele próprio pode se tornar disponível para o ato de representar. A pesquisa dispõe do ente, que pode ser computado de antemão no seu curso futuro ou contabilizado como algo passado. No cômputo prévio, a natureza é disposta [gestellt]; no cômputo retrospectivo, a história é igualmente disposta.

    A natureza e a história transformam-se em objeto de uma representação explicativa. Esta conta com a natureza e faz as contas com a história. Só é, ou seja, é reconhecido como existente,o que, desta forma, torna-se objeto. Só existe ciência sob a forma da pesquisa quando o ser dos entes é buscado em tal objetividade.

    Esta objetificação do ente se consuma em um re-presentar [Vor-stellen] que visa trazer cada ente diante de si mesma, de tal forma que o homem calculador possa se assegurar do ente, isto é, ter certeza dele. Portanto, só existe ciência sob a forma da pesquisa quando, e só quando, a verdade se transforma em certeza da representação.

    Na metafísica de Descartes se definem, pela primeira vez, o ente como objetividade da representação e a verdade como certeza da representação. O título de sua obra principal é Meditationes de prima philosophia, “considerações acerca da Filosofia primeira”. Próte philosophia é a denominação cunhada por Aristóteles para o que mais tarde se chamou Metafísica.

    A totalidade da metafísica moderna, 
    Nietzsche inclusive, 
    mantém-se dentro da interpretação do ente 
    e da verdade preparadas por Descartes 
    (cf. apêndice 4).

    De fato, se a ciência enquanto pesquisa é uma manifestação essencial da época moderna, então o que constitui o fundamento metafísico da pesquisa deve determinar a essência da época moderna antecipadamente, e muito antes dela. Pode-se constatar a essência da época moderna no fato de o homem se libertar de seus compromissos medievais e para si mesmo. Esta caracterização, embora correta, ainda é preliminar. Ela conduz aos equívocos que impedem compreender o fundamento essencial da época moderna e por isso também de avaliar o alcance de sua essência a partir deste fundamento.

    Decerto, a época moderna, por consequência da libertação do homem, conduz ao subjetivismo e ao individualismo. Mas é igualmente certo que nenhuma época antes dela produziu um objetivismo comparável, e que em nenhuma outra época anterior o não-individual tornou-se legítimo, sob a configuração do coletivo. O essencial aqui é o jogo necessário, recíproco e relevante entre subjetivismo e objetivismo. Este condicionamento recíproco repercute em processos mais profundos.

    O essencial não é que homem se liberte de suas obrigações prévias para a sua própria liberdade, mas que a própria essência do homem se liberte, na medida em que ele se transforma em sujeito. Claramente, a palavra subjectum deve ser entendida como a tradução da grega hupokeímenon. A palavra nomeia o que se estende adiante [vor-liegendes], o que reúne o todo em si mesmo. Este significado metafísico do conceito de sujeito não tem, a princípio, nenhuma relação relevante com o homem, e menos ainda com o “eu”.

    Contudo, se o homem se transforma no sujeito primeiro e em sentido mais próprio, isto significa que o homem se transforma no ente sobre o qual se fundam todo o ente no seu modo de ser e na sua verdade. O homem se transforma no centro de referência do ente enquanto tal. Mas isto também só é possível se a acepção do ente em sua totalidade também muda. Onde se torna visível esta mudança? Qual é, em conformidade com ela, a essência da época moderna?

    Quando refletimos sobre a época moderna, perguntamos sobre a imagem de mundo moderna. Nós a caracterizamos por meio do distanciamento frente às imagens de mundo antiga e medieval. Contudo, por que perguntamos sobre uma imagem de mundo, ao interpretar uma época histórica? Possuirá cada época histórica sua imagem de mundo, de tal forma que conseguir para si mesma uma imagem de mundo é sua preocupação expressa? Ou será que perguntar sobre uma imagem de mundo já não é uma forma exclusivamente moderna da representação?

    O que é isto: uma imagem de mundo [Weltbild]? Evidentemente, uma imagem do mundo [Bild von der Welt]. Mas o significa, aqui, mundo? O que significa imagem? O mundo representa aqui o nome do ente na sua totalidade. Este nome não se limita ao cosmos e à natureza. A história também pertence ao mundo. Ainda assim, nem história, nem natureza, nem suas interpenetrações recíprocas sob formas sub-reptícias ou evidentes esgotam o mundo. O significado pensado através desta denominação é também o de fundamento do mundo, bem como o da relação deste fundamento com o mundo (cf. apêndice 5).

    A princípio, com a palavra “imagem” pensa-se na afiguração [Abbild] de alguma coisa. Por conseguinte, a imagem de mundo seria um retrato do ente em sua totalidade. Todavia, a imagem de mundo diz mais. Com ela, queremos dar a entender o próprio mundo, o ente em sua totalidade, na medida em que ele nos dá critérios e impõe obrigações.

    A imagem não significa aqui um simples decalque, mas aquilo que sobressai na expressão coloquial alemã “wir sind uber etwas im Bilde”, literalmente: “nós estamos na imagem a respeito de algo”. Isto significa que a própria coisa é da forma como aparece diante de nós. Pôr-se na imagem de alguma coisa significa estabelecer diante de si o próprio ente, como ele mesmo é, e fixá-lo como algo permanente diante de si. Ainda falta, porém, uma determinação decisiva da essência da imagem. “Nós estamos na imagem a respeito de algo” não significa apenas que o ente em geral é uma representação nossa, mas antes que ele está diante de nós, em tudo o que lhe pertence e em todas as suas conexões, como um sistema.

    Em “nós estamos na imagem” 
    ressoam também “estamos informados”, 
    “estamos preparados e instruídos”. 

    Quando o mundo se torna imagem, o ente em sua totalidade é fixado como aquilo pelo qual o homem se orienta, portanto como aquilo que o homem coloca diante de si e quer, num sentido essencial, fixar diante de si (cf. apêndice 6). A imagem do mundo, entendida de modo essencial, não significa uma imagem do mundo, mas o mundo concebido enquanto imagem. O ente em sua totalidade agora é tomado de tal forma que ele só passa a ser na medida em que é posto por um homem que o representa e produz.

    Quando surge uma imagem de mundo, uma decisão essencial se consuma a respeito do ente em sua totalidade. O ser é buscado e encontrado na representabilidade do ente.
     
    Não pode haver imagem de mundo em nenhum lugar em que o ente não seja interpretado assim, e tampouco o mundo pode adentrar uma imagem. A época histórica que por fim se apresenta como moderna em relação à anterior consiste em que o ente se torna ente na representabilidade.

    As expressões coloquiais “imagem do mundo da época moderna” e “imagem do mundo moderna” repetem a mesma coisa e dão a entender algo que nunca pôde existir antes, a saber, as imagens de mundo medieval e antiga. A imagem do mundo não passou a ser moderna, de medieval que era antes.

    Melhor dizendo, o que caracteriza em geral a essência da época moderna é que o mundo se transforma em imagem. Para a Idade Média, por sua vez, o ente é o ens creatum, o que foi produzido por um Deus criador que é, pessoalmente, a causa suprema. Ser ente significa, aqui, pertencer a um nível específico dentro da ordem da Criação, e corresponder de alguma forma, enquanto causado, à causa da Criação (analogia entis) (cf. apêndice 7).

    O ser do ente nunca consiste em ser trazido à presença do homem na qualidade de objeto, em ser fixado na esfera da informação e da disponibilidade, para que só então passe a ser.

    O mundo grego está ainda mais distante da interpretação moderna do ente. Uma das sentenças mais antigas do pensamento grego sobre o ser diz que tò gàr auto noeîn estín te kaì eînai. A sentença de Parmênides quer dizer que a percepção do ente pertence ao ser, porque ele mesmo assim o exige e determina. O ente é o que se franqueia e se descerra, o que, enquanto presente, chega ao homem, isto é, àquele que se abre ao presente, porque o percebe. O ente não passa a ser porque o homem o percebeu no sentido de um representar do tipo da percepção subjetiva. Muito antes o homem é o percebido pelo ente; o homem é o abordado pela presença que se abre e reúne junto a ele.

    A essência do homem na grande época dos gregos é ser olhado pelo ente, mobilizado e detido por ele, portanto também por ele carregado; é ser envolvido pelos seus contrastes e escolhido para assinalar suas discrepâncias. Por isso este homem precisa, para preencher sua essência, recolher (légein) e salvar (sódzein) o que se abre em sua abertura, acolhê-lo e preservá-lo, embora se expondo sempre às suas confusões divisivas (aletheúein).

    O homem grego é na medida em que percebe o ente, 
    e por isso, entre os gregos,
    o mundo nunca pode se transformar em imagem.

    Em compensação, que Platão tenha determinado a entidade do ente como eîdos (aspecto, visada) é a precondição longínqua, dominante há muito tempo através de uma mediação secreta, de o mundo precisar se transformar em imagem (cf. apêndice 8).

    A percepção entre os gregos significa algo bem diferente da representação moderna, cujo significado se expressa na palavra repraesentatio. Re-apresentar significa aqui: trazer para diante de si, de quem representa, o ente à mão, e fazer com que esta relação consigo repercuta como se fora o âmbito normativo. Quando isto acontece, o homem se instala na imagem a respeito do ente. Na medida em que o homem se instala na imagem desta forma, ele se põe em cena, isto é, no âmbito do ato de representar, universal e publicamente. Deste modo o homem se põe como a cena em que, daqui por diante, o ente se re-presenta, apresenta, isto é, precisa ser uma imagem.

    O homem se torna o representante 
    do ente no sentido do objeto.

    A novidade neste processo não consiste, de modo algum, simplesmente na posição diferente do homem no meio do ente, em comparação com a medieval e antiga. O decisivo é que o homem se relaciona com esta posição como com algo que ele mesmo produziu, algo a que ele se submete voluntariamente e que, enquanto fundamento, assegura-lhe todo possível desdobramento futuro da sua humanidade. Agora pela primeira existe algo em geral como uma posição do homem.

    O homem postula o modo como se posiciona 
    diante de si mesmo 
    e do ente enquanto objetivo.

    Surge um modo de ser-homem que estipula o âmbito das capacidades humanas como o âmbito que concede todo critério e completude para a dominação do ente. A época histórica que se determina a partir deste acontecimento não é apenas nova [neu] em comparação retrospectiva com uma anterior, mas ela se estabelece propriamente e a si mesma como nova. Ser novo pertence ao mundo, quando este se tornou imagem.

    Uma vez que se esclareceu o caráter de imagem do mundo enquanto representabilidade do ente, devemos retraçar a força originária de nomeação da palavra e do conceito “representar”, ainda que estes estejam desgastados, para que se compreenda a essência moderna da representabilidade.

    Representar significa 
    “pôr diante de si mesmo 
    e de volta para si mesmo” 
    [vor sich hin ...zu sich her]. 

    Através do representar, o ente alcança a constância de um estar [stehen] e assim recebe o selo de ser. O processo por meio do qual o mundo se torna imagem é o mesmo por meio do qual o homem se torna o subjectum em meio ao ente (cf. apêndice 9).

    Apenas porque o homem se transforma, de modo universal e essencial, em sujeito, e na medida em que o faz, ele precisa logo a seguir perguntar-se expressamente como quer que seja a essência moderna que ele já é, e como ela deve ser — se o homem quer e deve ser uma arbitrariedade limitada a si mesma e um Eu abandonado à sua livre vontade ou o “nós” da sociedade, se quer e deve ser um indivíduo ou uma comunidade, uma personalidade dentro da coletividade, se quer e deve ser um simples membro de um grupo corporativo, sob a forma do Estado e da nação, como povo, ou uma humanidade universal.

    Apenas enquanto o homem já é sujeito, essencialmente, persiste a possibilidade de deslizar na falta de essência e aberração [Unwesen] do subjetivismo no sentido do individualismo. Mas também só onde o homem continua a ser o sujeito, faz sentido a luta expressa contra o individualismo, que define a comunidade enquanto objetivo de todo esforço e alvo de toda utilidade.

    O entrelaçamento decisivo para a época moderna de ambos os processos — a transformação do mundo em imagem e do homem em sujeito — lança ao mesmo tempo uma luz sobre o processo fundamental da história moderna, à primeira vista bastante contraditório. Quanto mais completamente e amplamente o mundo é conquistado e fica à disposição, mais objetivo fica sendo o objeto, mais subjetivamente, isto é, insistentemente ergue-se o sujeito e mais irresistivelmente a consideração do mundo e a doutrina do mundo se transformam em doutrina do homem, em antropologia.

    Não é nenhuma surpresa que o humanismo surja quando da transformação do mundo em imagem. Do mesmo modo, porém, como uma imagem de mundo seria impossível na época superior do mundo grego, tampouco ele poderia dar legitimidade ao humanismo. Em sentido histórico estrito, o humanismo não é nada além de uma antropologia estético-moral. O título de antropologia não designa nenhuma pesquisa pertencente às ciências naturais. Também não designa a doutrina estabelecida no contexto da teologia cristã sobre a criação, queda e redenção do homem. Ele assinala a explicação do homem que explica e avalia a totalidade do ente a partir do próprio homem e a ele retorna (cf. apêndice 10).

    O enraizamento cada vez mais exclusivo da interpretação do mundo na antropologia, que se instaura desde o fim do séc. XVIII, torna-se explícito no momento em que a posição do homem frente ao ente se determina como visão de mundo. Desde então, esta palavra tornou-se corrente. A partir do instante em que o mundo se transforma em imagem, a posição do homem se torna visão de mundo.

    A expressão “visão de mundo” 
    dá ensejo ao mal-entendido 
    de que se trataria de uma consideração
    passiva do mundo.

    Por isso, desde o século XIX já se enfatizou, com razão, que uma visão do mundo significa também, e acima de tudo, uma visão sobre a vida. A prova do quão decisivamente o mundo se tornou imagem, no mesmo instante em que o homem, enquanto sujeito, deu ao seu viver o privilégio de ser o centro de todas as relações, é que a expressão “visão de mundo” passa a ser o nome para a posição do homem no meio do ente.

    Isto significa que o ente só é legítimo na medida em que é trazido para dentro deste viver e remetido de volta a ele, isto é, enquanto for uma experiência vivida [Erlebnis]. Assim como o humanismo é estranho ao mundo grego, é impossível uma visão de mundo católica, e absurda uma medieval. É necessário e apropriado ao homem moderno que tudo deva se tornar experiência vivida, à medida que ele se apodera incondicionalmente desta configuração da sua essência, assim como é garantido que os gregos jamais poderiam experimentar vivências durante o festival de Olímpia.

    O processo básico da época moderna é a conquista do mundo como imagem. A palavra “imagem” significa agora o produto [Gebild] do produzir representacional. O homem luta aí por uma posição em que possa ser o ente que dá a norma a todos os outros e estabelece parâmetros. Já que esta posição se estabelece, ramifica e declara como visão de mundo, a relação moderna com o ente no seu desdobramento decisivo transforma-se na disputa entre as visões de mundo, mas não entre quaisquer delas.

    A luta só ocorre entre aquelas que já decidiram com o mais alto grau de firmeza as posições fundamentais mais básicas do homem. Em prol da luta entre visões de mundo, o homem mobiliza a violência irrestrita do cálculo, do planejamento e do cultivo de todas as coisas, e o faz de acordo com o sentido desta luta.

    A ciência enquanto pesquisa é uma forma indispensável desta autoinstalação do mundo, um dos caminhos pelos quais a época moderna se lança à consumação de sua essência, com uma velocidade insuspeitada por aqueles que dela participam. Com a luta entre as visões de mundo, a época moderna entra pela primeira vez no trecho decisivo da sua história, e supostamente passível da mais longa duração (cf. apêndice 11).

    Um sinal deste processo é que por toda parte manifesta-se o gigantesco, nas configurações e roupagens mais distintas. Entre estas se inclui o gigantesco no sentido do cada vez menor. Pensemos nas cifras da física atômica. O gigantesco se impõe também até na forma que consiste, aparentemente, na sua negação: na aniquilação das grandes distâncias pela aviação e na representação casual e fácil que as transmissões de rádio permitem fazer da cotidianidade de mundo exóticos e distantes.

    Contudo, pensamos de forma muito superficial 
    quando compreendemos o gigantesco 
    a partir da extensão infinita 
    e vazia do puramente quantitativo.

    Pensamos de forma muito limitada quando concluímos que o gigantesco sob a configuração de um ainda-não-lá progressivo surge apenas da busca de superação e ultrapassamento. Não estamos sequer pensando, quando achamos que a manifestação do gigantesco pode ser esclarecida com o clichê do americanismo (cf. apêndice 12).

    O gigantesco é muito antes aquilo em virtude de que o quantitativo se transforma em uma certa qualidade, e deste modo em uma forma peculiar do grande. Não apenas cada época histórica é grandiosa frente às outras do seu modo distinto, mas também tem o seu próprio conceito de grandeza. Tão logo o gigantesco do planejamento, cálculo, instalação e asseguramento se transmudam, a partir do quantitativo, em uma qualidade legítima, o gigantesco e o aparentemente calculável de forma irrestrita e total se transforma no incalculável.

    O incalculável permanece a sombra invisível 
    lançada sobre todas as coisas,
    quando o homem se transforma 
    em sujeito e o mundo em imagem 
    (cf. apêndice 13).

    Através desta sombra, a época moderna se coloca em uma região inacessível à representação e confere ao assim incalculável a sua peculiaridade histórica e a sua determinação particular. Esta sombra, porém, aponta na direção de algo distinto, cujo conhecimento é vedado aos contemporâneos (cf. apêndice 14). O homem não poderá sequer uma vez experimentar e refletir sobre o vedado enquanto vaguear na simples negação da época histórica.

    A fuga para a tradição, 
    ao misturar humildade e presunção,
    não consegue nada além de fechar os olhos 
    e tornar-se cega para o instante histórico.

    O homem não saberá o incalculável, isto é, não o preservará em sua verdade, a não ser no questionamento criativo, em configurações que tiram sua força da reflexão autêntica. Elas posicionam o homem do futuro numa posição intermediária: ele pertence ao ser e, contudo, permanece um estranho no meio do ente (cf. apêndice 15).

    Hölderlin sabia algo a respeito. Seu poema intitulado “Aos alemães” conclui:

    “Bastante limitado é o tempo de nossa vida /
    O número de nossos anos vemos e contamos / 
    Mas os anos dos povos /
    Um olho mortal os viu? /
    / Se tua alma por sobre tua própria época / 
    Nostalgicamente se arroja, 
    tu te demoras enlutado, /
    Então, nas praias frias / 
    Entre os teus e não os conheces.”

    Apêndices

    1. Tal reflexão nem é necessária a todos, nem pode ser levada a termo por todos, nem sequer todos podem suportá-la. Ao contrário, a falta de reflexão pertence em grande medida a determinados modos de realizar e ser ativo. O questionamento envolvido na reflexão nunca decai no abissal e no não questionado, pois pergunta, de antemão, pelo ser. O ser permanece, para a reflexão, como o mais digno de questionamento. Nele, a reflexão encontra a resistência máxima que a faz deter-se e começar a levar a sério o ente, remetendo-o à luz do ser.

    A reflexão sobre a essência da época moderna insere o pensar e o decidir no âmbito de efetividade das próprias forças essenciais desta época. A atuação e modo de atuação destas forças não são tocadas pela avaliação cotidiana. Só a prontidão para suportar ou, ainda, para se evadir na falta de historicidade se apresentam como respostas. Neste contexto, porém, não basta, por exemplo, afirmar a técnica, nem mesmo, numa atitude incomparavelmente mais essencial, postular de modo absoluto a “mobilização total”, quando ela é reconhecida como existente.

    Seria antes o caso de conceber, em primeiro lugar e de modo perseverante, a essência da época a partir da verdade do ser que a rege, pois só assim se experimentará o mais digno de questionamento. Este acarreta forçosamente um trabalho criativo que se estende na direção do futuro por sobre o presente, desde o fundamento, e permite uma mudança do homem, surgida da necessidade do próprio ser.

    Nenhuma época histórica pode ser descartada pela negação da sua pretensão a prevalecer. A negação só torna irrelevante o próprio negador. Todavia, para que no futuro a essência da época moderna seja suportada, a época moderna exige, em vista da referida essência, uma capacidade de alcançar a origem e um alcance da reflexão tais que os contemporâneos só podem, hoje, preparar, mesmo assim parcialmente, embora sem poder dominá-los.
    2. A palavra “exploração organizada” não tem um sentido depreciativo. Dado que a pesquisa é essencialmente exploração organizada, a operosidade como possibilidade permanente desta desperta ao mesmo tempo uma aparência da mais alta efetividade, que acarreta também o esvaziamento do trabalho de pesquisa.

    A exploração organizada se transforma em puro organizacionismo e operacionalidade [Betriebsamkeit], quando não mais se mantém aberta para uma realização constantemente renovada do seu projeto, mas toma este último como algo dado e o deixa para trás, nunca mais o confirmando, apenas limitando-se a acumular resultados e perseguir sua própria contabilidade.

    A pura operacionalidade e o organizacionismo [blosser Betrieb] precisam sempre ser combatidos, precisamente onde a pesquisa é, essencialmente, exploração organizada. Se buscássemos na erudição tranquila o que é mais científico na ciência, então pareceria, decerto, que a recusa à exploração organizada se dá por meio da negação do caráter essencialmente exploratório, ativo e organizador da pesquisa.

    Quanto mais a pesquisa se transforma em pura exploração organizada e atinge seus níveis de desempenho mais altos, mais insistentemente se acerca o perigo de ela se transformar em pura operacionalidade. Por fim chega-se à situação em que a diferença entre exploração organizada e puro organizacionismo não apenas se torna irreconhecível, como também inexistente e ineficaz. Precisamente este estado de indiferenciação entre essência a falta de essência, entre essência e aberração, cercada pela mediocridade da compreensão vigente, transforma a pesquisa na configuração da ciência, e principalmente transforma a época moderna, em geral, passível de durar longamente. De onde a pesquisa tira o seu contrapeso contra a pura operacionalidade em meio à sua exploração organizada?

    3. A importância crescente da essência da atividade editorial não se baseia apenas no fato de o editor (um pouco pela via do comércio de livros) identificar mais precisamente as necessidades do público ou dominar, melhor que os autores, os aspectos comerciais envolvidos. Muito antes, o trabalho próprio do editor tem a forma de um procedimento planejador que, através da produção encomendada e coordenada de livros e escritos, institui o modo como o público [Öffentlichkeit] pode dispor do mundo como imagem e assim se assegurar devidamente dele.

    O predomínio de obras reunidas, séries de livros, obras em fascículos e edições de bolso já é uma consequência do labor editorial, que por sua vez coincide com os propósitos dos pesquisadores. Estes não só se tornam reconhecidos e destacados através de séries e coleções, mas também alcançam uma linha de frente mais ampla, e assim um impacto dirigido.
    4. A posição fundamental de Descartes é sustentada pela metafísica platônico-aristotélica e move-se, malgrado o novo começo que representa, no âmbito da mesma pergunta: o que é o ente? O fato de esta pergunta jamais ser formulada expressamente nas Meditationes cartesianas só prova o quanto a mudança acarretada pela resposta a ela determina a posição fundamental. A interpretação cartesiana do ente e da verdade já cria a premissa que torna possível uma teoria do conhecimento ou metafísica do conhecimento.

    Através de Descartes, pela primeira vez, o realismo é convocado a provar a existência real [Realität] do mundo exterior e a se redimir no ente em si.
    As mudanças essenciais na posição básica de Descartes que foram atingidas no pensamento alemão a partir de Leibniz não ultrapassam, de modo algum, esta posição fundamental. Elas desdobram pela primeira vez seu alcance metafísico e produzem as premissas do século XIX, o século até agora mais obscuro de toda a época moderna. Elas confirmam de modo mediado a posição fundamental de Descartes de uma forma que esta quase não reconheceria, embora nem por isso menos efetiva.

    Em contrapartida, a pura escolástica cartesiana, bem como o racionalismo desta, perderam completamente a força remota e duradoura para continuar a configurar a época moderna. Com Descartes começa a consumação da metafísica ocidental. Uma vez que, porém, tal configuração só é possível, desde sempre, enquanto metafísica, o pensamento moderno tem sua própria grandeza.
    Ao interpretar o homem com subjectum, Descartes cria a pressuposição metafísica da antropologia futura de todos os tipos e orientações. Descartes celebra seu maior triunfo com o advento da antropologia. A antropologia entabula o processo de transição da metafísica até o estágio do fim e exclusão de toda filosofia.

    A consequência intrínseca da posição antropológica de Dilthey é que ele nega a metafísica, não compreende mais a pergunta que está na base da metafísica e se opõe, desamparado, à lógica metafísica. Sua “filosofia da filosofia” é a forma ilustre de suprimir a filosofia, ao invés de superá-la. Por isso, a antropologia também tem, de fato, o privilégio de ver claramente o que é exigido pela sua própria afirmação, quando é de um tipo que se serve de toda a filosofia até hoje, ao mesmo tempo explicando a obsolescência de toda filosofia. Através dela, a situação espiritual se esclarece, enquanto elucubrações tão penosas e absurdas quanto as filosofias nacional-socialistas só produzem confusão.

    A imagem de mundo precisa da erudição filosófica e a emprega, mas não precisa da filosofia, porque, enquanto imagem do mundo, já empreendeu seu próprio esclarecimento e configuração do ente. Uma coisa, contudo, a antropologia não pode fazer. Ela não consegue superar Descartes, nem tampouco sequer contrapor-se a ele; pois como a consequência pode se insurgir contra a base sobre o qual ela mesma se ergue?

    Descartes só pode ser superado por meio da superação daquilo que ele mesmo fundamentou, ou seja, por meio da superação da metafísica moderna e isto significa, ao mesmo tempo, da metafísica ocidental. “Superar” significa aqui questionar de um modo mais primevo sobre o sentido, isto é, sobre o âmbito do projeto e por isso, ao mesmo tempo, pela verdade do ser. Esta pergunta também se descobre ao mesmo tempo como a pergunta pelo ser da verdade.

    5. O conceito de mundo, tal como desenvolvido em Ser e tempo, só pode ser compreendido a partir do horizonte da pergunta pelo estar-aí [Da-sein], a qual se insere, por sua vez, na pergunta fundamental pelo sentido do ser (não do ente).

    6. À essência da imagem de mundo corresponde a conexão recíproca, o sistema. Não se quer dar a entender aqui nem a simplificação artificial e externa, nem a justaposição dos dados, mas a unidade do instalado no re-presentar enquanto tal, unidade que se desdobra a partir do projeto da objetividade enquanto tal. Na Idade Média, um sistema é impossível; pois então somente o ordenamento segundo correspondências é essencial e, de fato, somente é essencial o ordenamento do ente no sentido da criação divina, e considerado enquanto um produto.

    Ainda mais distante do mundo grego é o sistema, mesmo quando se fala modernamente, embora de modo totalmente inadequado, em um sistema platônico e aristotélico. O organizacionismo dentro da pesquisa é uma execução e instalação dentro do sistemático, o qual, reciprocamente, também determina a instalação. O sistema não predomina apenas no pensamento, quando o mundo se transforma em imagem. Onde, porém, o sistema tem um papel condutor, persiste sempre a possibilidade da desfiguração e desvirtuação nos termos de um sistema artificial e amontoado. Chega-se a este ponto quando falta a força original do projeto.

    O caráter unificado e ao mesmo tempo diversificado da sistemática de Leibniz, Kant, Fichte, Hegel e Schelling ainda não foi compreendido. Sua grandeza não consiste em ter se desdobrado, como em Descartes, a partir do subjectum enquanto ego e susbstantia finita, mas em poder se desdobrar tanto a partir da mônada, como em Leibniz, quanto a partir do transcendental, a partir da essência de uma razão finita enraizada na imaginação, como em Kant, tanto a partir do eu infinito, como em Fichte, quanto a partir do espírito enquanto saber absoluto, como em Hegel, ou ainda, como em Schelling, a partir da liberdade enquanto necessidade de cada ente, o qual permanece determinado pela diferença entre fundamento e existência.

    Para a interpretação moderna do ente, a representação dos valores é tão essencial quanto o sistema. Quando o ente se tornou objeto do re-presentar, viu-se de certa forma privado do seu ser. Esta perda é pressentida de modo obscuro e incerto o suficiente para que seja substituída, de todo e apressadamente, por uma atribuição de valor ao ente assim interpretado e, de modo geral, por uma medição do ente segundo valores, que faz dos próprios valores o objetivo de toda ação e todo esforço.

    Quando o que se compreende por cultura é isto, os valores se tornam valores culturais, e estes, de modo geral, a expressão dos propósitos supremos da criação a serviço da autocertificação do homem enquanto subjectum. Para fazer dos próprios valores objetos em si basta um passo. O valor é a objetivação dos propósitos relativos às necessidades da autoinstalação no mundo, ou seja, na imagem deste. O valor parece expressar que nos ocupamos com o que é mais valioso, ao tomarmos uma posição em relação a ele; contudo, o valor é o véu exaurido e esfarrapado que encobre a objetividade do ente já superficial e nivelada. Ninguém morre por simples valores. Que seja considerada para o esclarecimento do século XIX a posição intermediária singular de Hermann Lotze, que ao mesmo tempo traduziu as Idéias de Platão em termos de valores e adotou como tarefa, sob o título Microcosmos, o “ensaio de antropologia” (1856).

    Esta posição intermediária alimenta o modo de pensar de Lotze no que ele tem de nobre e simples, isto é, ainda sob influência do espírito do idealismo alemão, mas também o abre ao positivismo. Sendo que o pensamento de Nietzsche permanece cativo da representação de valores, ele tem de expressar o mais essencial de uma forma que se volta sobre si mesma, como transvaloração [Umwertung] de todos os valores. Somente quando conseguirmos compreender o pensamento de Nietzsche de modo independente da representação de valores, ocuparemos uma posição a partir da qual a obra do último pensador da metafísica se transformará em uma tarefa do questionamento, e a hostilidade de Nietzsche contra Wagner se tornará compreensível enquanto necessidade histórica.
    7. A correspondência, pensada enquanto traço básico do ser dos entes, oferece o esboço de uma possibilidade e uma maneira determinada de pôr em obra a verdade do ser em meio ao ente. Há um vínculo mútuo entre a obra de arte medieval e a ausência de imagem de mundo desta época.
    8. Mas um sofista, no tempo de Sócrates, não ousou dizer que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são, que são, e das que não são, que não são”? A sentença de Protágoras não soa como se Descartes a tivesse proferido? Não compreendeu Platão, definitivamente, o ser do ente como o visado, a idéa? Não é a relação com o ente como tal, para Aristóteles, a theoria, o puro olhar? Só que a sentença sofística de Protágoras é tão pouco um subjetivismo quanto o pensamento de Descartes poderia levar a uma inversão do pensamento grego.

    Decerto, uma mudança decisiva na interpretação do ente e do homem acontece por meio do pensamento de Platão e do questionamento de Aristóteles, mas ela permanece interior à experiência grega fundamental. Esta interpretação, enquanto luta contra a sofística e por isso dependente desta, resulta precisamente no fim do mundo grego, o qual contribui, indiretamente, para tornar possível o advento da época moderna.

    Eis porque, mais tarde, e não apenas para a Idade Média, o pensamento platônico e aristotélico passou a valer, de forma absoluta, como o pensamento grego, e todo pensamento pré-platônico como uma simples preparação para Platão. Porque vemos, graças a um hábito antigo, o mundo grego através de um ponto de vista humanista, a reflexão sobre o ser que se mostrou à Antiguidade grega continua vedada a nós, de tal modo que só concedemos ao ser o que tem de único e estranho. A sentença de Protágoras diz: “pánton chremáton métron estìn ánthropos, tôn mèn ónton hos ésti, tôn dè me ónton hos ouk éstin” (cf. Platão, Teeteto 152 a).
    “De todas as coisas (ou seja, de todas as que o homem usa e de que ele necessita, e por isso mantêm permanentemente à mão, chrémata chrêsthai) o homem (a cada vez) é a medida, das que estão presentes, que e como estão presentes, e daquelas a que estar presentes é vedado, que não estão presentes.” O ente sobre cujo ser se decide aqui é entendido enquanto aquilo que, dentro do âmbito humano, está presente neste âmbito a partir de si mesmo.

    Contudo, quem é o homem? Platão responde, na mesma passagem, com uma indicação, ao fazer com que Sócrates diga: “Okoûn hoúto pos légei, hos oîa mèn hékasta emói phaínestai toiaûta mèn éstin emoí, oîa dè soí, toiaûta dè aû soí. ánthropos dè sú te kaì ego”, “ele (Protágoras) não entende algo deste tipo? O ‘enquanto tal’ de uma coisa se mostra a mim, tal aspecto ela tem para mim, mas para ti, por tua vez, seu ‘enquanto tal’ é como é para ti? Homem, porém, sou eu do mesmo modo que tu”.
    Portanto, o homem, aqui, é o particular (eu, tu, ele e ela). E este egó não coincide com o ego cogito de Descartes? Nunca; pois é diferente o essencial que determina, ainda que [em ambos os casos] com igual necessidade, as duas posições metafísicas (a de Protágoras e a de Descartes). O essencial de uma posição metafísica fundamental abarca:
    1. a forma e maneira como o homem é homem, isto é, como ele mesmo é; a forma essencial deste ser si mesmo [Selbstheit], que de forma alguma coincide com a egoidade [Ichheit], mas se determina a partir da relação com o ser enquanto tal;
    2. a interpretação essencial do ser do ente;
    3. o projeto essencial da verdade;
    4. o sentido de acordo com o qual o homem, cá e lá, é a medida.
    Nenhum dentre os momentos essenciais mencionados de uma posição metafísica básica pode ser abstraído ou concebido a partir dos outros. Cada um deles caracteriza a totalidade de uma posição metafísica. Por que razão e em que proporção estes quatro momentos enquanto tais e de antemão sustentam e compõem uma posição metafísica fundamental é algo que já não se pode perguntar e responder através da metafísica. É o que está destinado à superação da metafísica.
    Decerto, para Protágoras o ente permanece remetido ao homem enquanto egó. De que espécie é esta remissão ao eu? O egó se demora no âmbito do desencoberto que lhe é assinalado. Ele percebe, assim, todo presente [Anwesende] dentro deste âmbito como o que é [seiend]. A percepção do presente se funda no demorar-se dentro do âmbito do desencobrimento. O pertencimento do eu ao que está presente é por meio do permanecer junto ao presente.

    O pertencimento ao presente franqueado traça a fronteira que exclui o ausente. O homem recebe, a partir desta fronteira, a medida para o que se apresenta e se ausenta, e a preserva. Ao restringir-se àquilo que se desencobre a cada vez, o homem dá a si mesmo a medida que delimita um si mesmo em relação a um isto e aquilo. O homem não estabelece a partir de uma egoidade isolada a medida a que todo ente, em seu ser, está submetido.

    O homem inserido na relação fundamental grega com o ente e o desencobrimento deste ente é métron (medida), conforme toma a seu encargo não ultrapassar o círculo — delimitado por referência ao eu — do desencobrimento, ao executar a mensuração. Por conseguinte, o homem reconhece o encobrimento do ente bem como a impossibilidade de decidir sobre a presença e a ausência deste ou sobre o aspecto do permanente.

    Eis porque diz Protágoras: “perì mèn theôn ouk écho eidénai, oúth’ hos eisín, oúth’hos ouk eisín, oúth’ hopoîoí tines idéan.
     
    Não estou em condições de saber claramente
    (isto é, definido de forma grega, “visualizar” algo)
    alguma coisa sobre os deuses:
    nem que existem, nem que não existem, 
    nem qual é o seu aspecto (idéa)”
    (Diels, Fragmentos dos pré-socráticos
    Protágoras B 4).


    Pollà gàr ta kolúonta eidénai, he t’ adelótes kaì brachùs òn ho bios toû anthrópou. “Muitos são os fatores que impedem de perceber o ente como tal: tanto a obscuridade (encobrimento) do ente quanto a brevidade do modo de vida humano”.
    Deveríamos nos surpreender que Sócrates, a respeito da circunspeção de Protágoras, tenha dito a seu respeito: eikós méntoi sophòn ándra me lereîn. “É de supor que ele (Protágoras), sendo um homem sensato, não está simplesmente tagarelando [quando define o homem como métron]” (Platão, Teeteto 152b).
    A posição metafísica fundamental de Protágoras é apenas uma restrição, isto é, uma preservação da posição fundamental de Heráclito e Parmênides. A sofística só é possível sobre a base da sophia, isto é, da interpretação grega do ser como presença e da verdade como desencobrimento. O desencobrimento é sempre uma determinação essencial do ser, razão pela qual o presente se determina a partir do desencobrimento, e a presença a partir do desencoberto como tal.

    Todavia, quão afastado está Descartes do começo do pensamento grego, e quão distinta é a interpretação do homem que ele representa como sujeito? O conceito de subjectum permite que se deduza a essência da mudança da posição metafísica fundamental, precisamente porque nele a essência grega do ser, hupokeîsthai do hupokeímenon, ainda ecoa, sob a forma irreconhecível e impassível de questionamento da presença (a saber, do que estende diante de nós de forma permanente).
    Uma coisa é preservar o âmbito do desencoberto, sempre limitado pela percepção do presente (do homem como métron). Outra diferente é penetrar no círculo das possibilidades irrestritas da objetificação, através da computação do que é acessível e representável a todos, de modo uniformemente obrigatório.
    Na sofística grega, todo subjetivismo é impossível, porque aqui o homem nunca pode ser sujeito; ele não pode sequer ser sujeito, pois o ser aqui é presença e a verdade é desencobrimento.
    No desencobrimento ocorre a phantasia, o vir a aparecer do presente enquanto tal para um homem que se apresenta para o que aparece. Por sua vez, o homem definido enquanto sujeito da representação fantasia, isto é, move-se no domínio da imaginatio, conforme seu representar imagina o ente enquanto objetivável no mundo enquanto imagem.
    9. Como é possível que o ente se interprete absolutamente e de maneira enfática como subjectum, e que, por conseguinte, o subjetivo atinja uma primazia? Pois antes de Descartes, e até dentro do âmbito da metafísica cartesiana, o ente enquanto ente é um sub-jectum (hupo-keímenon), algo que, a partir de si mesmo, jaz adiante e que é ao mesmo tempo a base de propriedades constantes e estados mutáveis.

    O primado de um subjectum insigne (como fundamento daquilo mesmo que subjaz), porque incondicionado de uma maneira essencial, surge da exigência que o homem faz de um fundamentum absolutum inconcussum veritatis (de um fundamento da verdade, no sentido da certeza, que repouse sobre si mesmo e seja inabalável). Por que e como tal exigência veio a adquirir uma validade decisiva? A exigência brota daquela libertação do homem em que ele se liberta do compromisso frente à verdade cristã da revelação e da Igreja e para uma legislação que lhe diz respeito, ainda que se institua a partir de si mesma.

    Através desta libertação a essência da liberdade é reposta, isto é, a liberdade é um compromisso com algo obrigatório. Como, porém, é proporcional a esta liberdade que o próprio homem que se liberta estipule o que é obrigatório, este é, daí em diante, determinado de maneira distinta. O obrigatório pode ser a razão humana e sua lei, ou o ente estabelecido e ordenado como objetivo por esta mesma razão, ou o caos a ser dominado pela objetificação cuja realização é exigida em uma dada época histórica.
    Esta libertação se liberta sempre, sem o saber, a partir do compromisso com a verdade revelada, na qual o homem garante a salvação da sua alma e se torna seguro dela. A libertação desde aquela certeza da salvação que se conforma à revelação deve portanto ser, em si mesma, uma libertação para uma certeza em que o homem se assegura do verdadeiro, já que o verdadeiro é sabido pelo próprio saber humano. Isto só foi possível porque o homem, em processo de libertação, responsabilizou-se pela certeza do seu saber. Tal só pôde ocorrer uma vez que o homem decidiu, a partir de e para si mesmo, o que é sabível e o que devem significar o saber e a segurança do sabido, isto é, a certeza.

    A tarefa metafísica de Descartes se transformou na seguinte: criar o solo metafísico da libertação do homem para a liberdade — entendida como autodeterminação segura de si. Este solo precisava não apenas ser mais seguro, mas também, ao mesmo tempo, ser de uma espécie através da qual — já que toda estipulação de critério a partir de outro âmbito estava vedada — a liberdade exigida fosse postulada na forma essencial da certeza de si. Tudo aquilo que é assegurado a partir de si mesmo deve, ao mesmo tempo e conjuntamente, assegurar-se do ente para quem tal saber é seguro e através do qual todo sabível deve ser assegurado.

    O fundamentum, o solo desta liberdade, que subjaz à liberdade, isto é, o subjectum, deve ser seguro ao ponto de satisfazer as exigências essenciais mencionadas. Torna-se necessário, deste ponto de vista, um sujeito específico. Qual é este algo seguro que edifica e garante o solo? O ego cogito (ergo) sum.

    O seguro é uma proposição que afirma indubitavelmente a presença do pensamento humano e o próprio homem ao mesmo tempo (ou seja, simultaneamente e com igual duração). Em outras palavras, com o pensamento do homem, este também é dado. Pensar é re-presentar, é relação representante com o representado (idea enquanto perceptio).
    Aqui, representar significa: a partir de si mesmo, postular alguma coisa diante de si, assegurar-se do que foi posto e considerá-lo fixado. A posição que está segura do que pôs e de si mesma deve ser um cômputo, pois apenas a computabilidade concede àquilo a ser representado que ele seja assegurado de antemão e constantemente. A representação não é mais a percepção do que se apresenta, de cujo desencobrimento a própria percepção depende.

    De fato, a percepção assim entendida é uma forma legítima de presença para o que, desencoberto, se apresenta. A representação não é mais uma forma do desencobrir-se para…; agora ela é um capturar e conceber …. O presente não tem mais a primazia, senão o ataque. De acordo com a nova liberdade, o representar é, agora, um penetrar no âmbito do assegurado que previamente já se assegurou de si mesmo. O ente não é mais o presente; melhor dizendo, é o postulado em contraposição ao representar através do próprio representar: o posto-diante, ob-jeto.

    Re-presentar é o ato objetivante
    que antecede, investiga e domina. 

    O representar empurra tudo para a unidade do que é objetivado em conjunto. A representação é coagitatio.
    Toda relação com alguma coisa, seja querendo-a, tomando posição frente a ela ou sentindo-a já são, de antemão, representacionais: são cogitans, o que geralmente se traduz por “pensantes”. Eis porque Descartes pode incluir sob o nome de cogitationes, à primeira vista estranho, todas as formas da voluntas e dos affectus.

     No cogito ergo sum o cogitare é compreendido neste sentido novo e essencial. O subjectum, a certeza basilar, é o ser-co-representado [Mitvorgestelltsein], sempre seguro, do homem representador junto com o ente representado, seja ele humano ou não humano, em todo caso objetivo. A certeza basilar é o indubitável cogitare = me esse, sempre representável e representado. Esta é a equação fundamental de todo computar do representar que se assegura de si mesmo. Nesta certeza basilar, homem tem certeza de ser o re-presentante de todo re-presentar, e por isso o âmbito de representabilidade. Por conseguinte, o homem assegura-se de toda certeza e verdade, isto é, agora: ele é.

    O homem só pode e deve ser ele próprio este ente insigne, o subjectum, que tem a primazia, entre todos os subjecta, em termos de veracidade primeira (isto é, certeza), porque é necessariamente co-representando desta forma na certeza basilar (no fundamentum absolutum inconcussum do me cogitare = me esse), só porque, ao libertar-se por si mesmo e a si mesmo, ele necessariamente pertence ao subjectum desta liberdade. Na equação fundamental da certeza e, portanto, no subjectum propriamente dito, o ego é nomeado. Isto não significa que é homem seja determinado egoticamente ou de modo egoísta. Significa apenas que ser sujeito se transformou agora na marca distintiva do homem, enquanto essência pensante-representante. O eu do homem é posto a serviço deste subjectum.

    A certeza que subjaz na sua base é de fato subjetiva, no sentido em que predomina na essência do sujeito, mas não egoísta. A certeza é obrigante para cada eu enquanto tal, isto, para cada subjectum. Nada pode, porém, furtar-se a esta objetificação, que decide, ao mesmo tempo, sobre o que deve ser admitido como objeto.

    A ampliação incondicionada e irrestrita do âmbito da objetificação possível e do direito à decisão sobre tal objetificação pertence à essência da subjetividade do subjectum e do homem enquanto sujeito.
    Agora se esclareceu em que sentido o homem quer e precisa ser, enquanto sujeito, a medida e o centro do ente (isto é, dos entes que agora são objecta, objetos).

    O homem não é mais o métron do sentido da tomada de coordenadas do perceptível, quando este é remetido ao âmbito vigente aqui e agora do desencobrimento do presente — âmbito na direção do qual, respectivamente, todo homem vem à presença. O homem, na medida em que é subjectum, é a co-agitatio do ego.

    O homem se fundamenta como instância normativa para todos os outros padrões e cômputos que tomam a medida do que pode ser reconhecido como certo, isto é, como verdadeiro, isto é, como existente. A liberdade, na sua versão moderna, é liberdade do subjectum. Nas Meditationes de prima philosophia, a liberação do homem para uma nova liberdade é remetida para um novo fundamento, isto é, o subjectum. Nem a liberação do homem moderno começa pela primeira vez com o ego cogito ergo sum, nem a metafísica de Descartes é um simples suplemento acrescentado mais tarde. Neste caso, a metafísica cartesiana seria externamente anexada a esta liberação, no sentido de uma ideologia. Na co-agitatio, a representação reúne o conjunto das objetividades no conjunto da representabilidade.

    O ego do cogitare descobre agora sua essência na reunião, segura de si mesma, do conjunto do representável: na con-scientia. A consciência é a posição representacional e unificante do objetual junto com o homem representador no âmbito da representabilidade que ele salvaguarda. Todo o presente recebe o sentido e forma da sua presença [Anwesenheit] a partir da consciência, a saber, da presença [Praesenz] na repraesentatio.

    A con-scientia de um ego
    na medida em que é a consciência 
    de um subjectum da coagitatio
    determina o ser do ente, 
    onde o ser é a subjetividade 
    de um subjectum insigne.
    As Meditationes de prima philosophia oferecem o esboço para uma ontologia do subjectum do ponto de vista da subjetividade determinada enquanto consciência. O homem se tornou subjectum. Por isso, ele pode determinar e preencher a essência da subjetividade, de acordo com o modo como se compreende e quer.

    O homem enquanto criatura racional da época do Esclarecimento não é menos sujeito que o homem que se compreende como nação, que se quer como povo, que se cultiva enquanto raça e que, finalmente, proclama-se senhor de todo o planeta. Em todas estas posições fundamentais da subjetividade também são possíveis várias espécies de egoidade e egoísmo, pois o homem se determina constantemente enquanto eu e tu, enquanto nós e eles. O egoísmo subjetivo, para o qual o eu já é de antemão determinado como sujeito, mesmo que não o saiba, não poderá ser vencido através de uma incorporação do vários eus dentro do nós.

    A subjetividade só se torna mais poderosa. No imperialismo planetário da humanidade tecnicamente organizada, o subjetivismo do homem atinge seu ápice, do alto do qual ele se precipitará sobre a planície da uniformidade organizada, para nela se instalar. Esta uniformidade se torna o instrumento mais seguro da dominação completa, porque técnica, da Terra. A moderna liberdade da subjetividade se dissolve completamente na objetividade que lhe corresponde.

    O homem não pode deixar para trás 
    este destino [Geschick] de sua essência moderna, 
    nem o interromper
    por meio de um golpe de força.

    Mas ele pode refletir, por antecipação, sobre o fato de o sujeito nem ter sido a única possibilidade da essência humana concedida à humanidade, nem será, no futuro, uma vez que o homem histórico tem uma essência sempre capaz da ação de iniciar. [Aber der Mensch kann vordenkend bedenken, dass das Subjektsein des Menschentums weder die einzige Möglichkeit des anfangenden Wesens des geschichtlichen Menschen je gewesen, noch je sein wird].

    Uma sombra passageira de nuvem sobre uma terra oculta: tal é o ensombrecimento que a verdade — preparada pela certeza da salvação da cristandade e transformada em certeza da subjetividade — lança sobre um evento [Ereignis] que ela mesma não pode testemunhar.
    10.
    A antropologia é a explicação do homem 
    que, no fundo, já sabe o que o homem é e,
    portanto, nunca poderá perguntar
    quem ele é. 

    Pois a antropologia teria de reconhecer, ao fazer a pergunta, que foi abalada e superada. Como se pode esperar que ela o faça, quando sua tarefa própria e exclusiva é a confirmação retroativa da certeza de si do subjectum?
    11. Pois agora se completa a dissolução na trivialidade [das Selbstverständliche] da essência moderna em processo de consumação. Só quando a trivialidade é considerada do ponto de vista das visões de mundo cresce um solo fecundante para uma possibilidade primal de questionamento do ser.

    Este questionamento franqueia o espaço de decisão sobre se o ser será capaz, novamente, de um deus, e se a essência da verdade do ser é capaz de reivindicar de modo mais originário a essência do homem. Só onde a consumação da época moderna atinge a falta de atenção em que consiste sua grandeza específica, a história do futuro é preparada.
    12.
    O americanismo é algo europeu. 
    É a variedade ainda não compreendida do gigantesco que ainda está à solta, a partir da essência metafísica da época moderna que ainda não foi consumada e completada.

    A interpretação americana do americanismo 
    através do pragmatismo 
    ainda está fora do âmbito da metafísica.
    13.
    A opinião cotidiana
    vê na sombra apenas a ausência de luz, 
    quando não a negação desta. 

    Na verdade, porém, a sombra é a manifestação evidente, ainda que impenetrável, do fulgor oculto. De acordo com este conceito de sombra, experimentamos o incalculável que se furta à representação, embora se anuncie no ente e indique a retração do ser.
    14. É como se a própria recusa devesse ser a manifestação suprema e mais resistente do ser? A essência secreta do ser, concebida a partir da metafísica (isto é, da pergunta pelo ser sob a configuração da pergunta: o que é o ente?), se descobre ao olhar imediato como recusa, como o não-ser por excelência, como o nada. Mas o nada, enquanto o nada de ente, é a contrapartida mais aguda de tudo o que é simplesmente nulo.

    O nada nunca é coisa alguma,
    nem tampouco é algo
    no sentido de um objeto. 

    Ele é o próprio ser,
    à verdade do qual o homem será cedido [ubereignet], 
    quando tiver superado a si mesmo como sujeito, 
    isto é, quando ele não mais representar
    o ente como objeto.

    e,

    [ "O mistério da vida
    só será decifrado no dia
    que for descoberta
    a verdade do Nada "]


    15. Este intervalo aberto é o estar-aí [Da-sein], entendendo-se a palavra no sentido do âmbito extático do desencobrimento e encobrimento do ser.

    Tradução de Claudia Drucker, com consulta às traduções de Wolfgang Brockmeier para o francês, em Chemins que ne mènent nulle part (Paris: Gallimard, 1986, pp. 99-146), e de William Lovitt para o inglês, em The Question Concerning Technology and Other Essays (Nova Iorque: Harper, 1977, pp. 115-154).

    • autor: Martin Heidegger
    • tradução: Claudia Drucker
    Fonte:
    ateus.net
    http://ateus.net/artigos/filosofia/a-epoca-das-imagens-de-mundo/
    Sejam felizes todos os seres  Vivam em paz todos os seres
    Sejam abençoados todos os seres