sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

O ANJO CUSTÓDIO DE PORTUGAL - Vitor Manuel Adrião


Rare Krisna Rare Rama - 11min.
    
O Anjo Custódio de Portugal (memória cultual) 
– Por Vitor Manuel Adrião
            by lusophia

Anjo Tutelar do Reino

Sintra, 13.11.2013

A tradição do culto ao Anjo Custódio, ou no mínimo o costume de invocar o seu nome, surge em Portugal ainda este não era nação fundada, havendo ecos do mesmo mas sob a expressão de Arcanjo São Miguel “protector dos portucalenses” condava ainda o Conde D. Henrique, pai do nosso primeiro rei, em Santa Maria de Bouro, em Amares no distrito de Braga, no cimo de cujo outeiro o cavaleiro Pelágio Amares, das hostes do conde, fundaria a capela consagrada a São Miguel nos fins do século XI, culto angeológico prosseguido a partir de 1148 no mosteiro próximo, primeiro benditino e depois cisterciense, de Santa Maria e São Miguel de Bouro (1), ainda que a ocupação local por anteriores eremitas cristãos faça recuar o culto do Arcanjo ao ano 500 d. C., segundo a sua história miraculada, nas pessoas dos ermitãos, mais lendários e simbólicos que outra coisa, São Maurício, falecido no ano 527, e São Deolo, morto em 562.

Cerca de 1109 nasceu o infante Afonso Henriques, futuro primeiro rei de Portugal, e os seus pais, D. Henrique e Dona Teresa, sobretudo o progenitor talvez adivinhando o futuro auspicioso do filho, fizeram com que fosse consagrado ao Arcanjo “protector dos portucalenses” na hora de receber o sacramento do batismo pela mão do arcebispo S. Geraldo, na igreja de São Miguel do Castelo de Guimarães, que ainda lá está a pia batismal como pretende a versão romântica do século XIX. Possivelmente esse templo faria parte do primitivo complexo palatino de Dona Mumadona Dias, na viragem do século IX para o X, e teria permanecido como principal templo da Guimarães condal no tempo de D. Henrique de Borgonha, mas muito provavelmente já não sendo aquele que ainda hoje se vê datado do século XIII, de traça românica tardia preanunciando em alguns aspectos a ascensão do gótico (2). Com efeito, ele foi mandado construir pela Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, a mais antiga do país, sendo em 1239 sagrado pelo primaz de Braga, Silvestre Godinho (3), sempre com a preocupação sagrada de que a Virgem Maria estivesse disposta em igualdade como par angeológico do primeiro Arcanjo dos Céus, aos quais Portugal seria consagrado.

Portanto, D. Afonso Henriques foi consagrado ao Arcanjo São Miguel parecendo até que os lances principais da sua vida parecem reproduzir na Terra o que aquele será e fará nos Céus. O primeiro desses lances será o de ter armado a si próprio cavaleiro em 1125, acabado de fazer 17 anos de idade, na catedral de Zamora no dia de Pentecostes, acto só praticado pelos reis num gesto claramente político, ainda assim como se não houvesse autoridade maior na Terra capaz de o investir e nada existisse antes dele como linhagem real reconhecida do país autónomo e independente, nisto sendo verdade posto ser o progenitor de pátria em formação da qual passou a ser Rex a partir de 1139, ano da batalha de Ourique (25 de Julho), mas só reconhecido como tal pela Santa Sé em 1179, pela bula de 23 de Maio, Manifestis probatum, emitida pelo Papa Alexandre III.

Essas iniciativas de D. Afonso Henriques mais que políticas parecem sobretudo ajustar-se a um propósito transcendente conformado ao simbolismo vivo de Melki-Tsedek, consignado “Rei do Mundo” pela exegética do conhecimento tradicional, em certa medida identificado ao Arcanjo Miguel ou Mikael, patrono da Igreja e da Sinagoga, por via dos seus atributos iconográficos da espada da Lei e a balança da Justiça, prerrogativas reais, sobre o que diz René Guénon (4):

“Deve notar-se que a expressão ‘Rei do Mundo’, bem como a de ‘Rei da Justiça’, referem-se directamente ao Poder Real. Se agora tomarmos o nome de Melki-Tsedek no seu sentido mais rigoroso, os atributos próprios do ‘Rei da Justiça’ são a balança e a espada; e estes atributos são também os de Mikael, considerado como ‘Anjo do Julgamento’ (5). Esses dois emblemas representam respectivamente, na ordem social, as duas funções, administrativa e militar, que pertencem como atributo particular aos Kshatriyas (6) e são os elementos constitutivos do Poder Real. São também, hieroglificamente, os dois caracteres formando a raiz hebraica e árabe Haq, que significa simultaneamente ‘Justiça’ e ‘Verdade’ e que, entre vários povos antigos, tem servido precisamente para designar a Realeza.”

Noutra parte da mesma obra, adianta o autor:

“O vocábulo Metraton comporta todas as acepções de Guarda, de Senhor, de Enviado, de Mediador; é o autor da Teofonias no Mundo sensível; é o ‘Anjo da Face’ e também o ‘Príncipe do Mundo’ (Sâr Ha-Olâm), e por esta última designação vê-se que não nos afastámos nada do nosso tema. Para empregar o simbolismo tradicional, diremos que tal como o Chefe da Hierarquia Iniciática é o ‘Pólo Terrestre’ (7), assim Metraton é o ‘Pólo Celeste’. E este reflecte-se naquele, com o qual está em relação directa, seguindo o ‘Eixo do Mundo’.

“O seu nome é Mikael, o Grande Sacerdote, que é holocausto e oferta a Deus. O Grande Pontífice neste Mundo simboliza Mikael, Príncipe da Clemência. Em todas as passagens onde a Escritura fala da aparição de Mikael, trata-se da Glória da Shekinah (8). Por outro lado, Metraton não tem apenas o aspecto da Clemência, tem também o da Justiça. Não é somente o ‘Grande Sacerdote’ (Koen Ha-Gadol), mas igualmente o ‘Grande Príncipe’ (Sâr Ha-Gadol) e o ‘Chefe das Milícias Celestes’, quer dizer, está nele o princípio do Poder Real, bem como o do Poder Sacerdotal ou Pontifical a que corresponde, propriamente, a função de ‘Mediador’.

“Além disso, é preciso notar que Melek, ‘Rei’, e Maleak, ‘Anjo’ ou ‘Enviado’, na realidade não são senão duas formas de uma mesma palavra; para mais, Malaki, ‘Meu enviado’ (isto é, o enviado de Deus ou ‘o Anjo no qual é Deus’, Maleak Ha-Elohim), é o anagrama de Mikael (9).”

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Sendo o primeiro de todos os Arcanjos a ponto de se confundir com a Divindade Absoluta, a Mikael ou Mirrail os hebreus e os muçulmanos apodam-no de “Anjo no qual é Deus” (Maleak Ha-Elohim e Manka-Allah), motivo para os latinos darem a Michaelis ou Miguel a exclamação de espanto: Quis ut Deus, “Quem é Deus”. Nesta linha de pensamento, o Professor Henrique José de Souza (1883-1963), fundador da Sociedade Teosófica Brasileira, recorrendo à filologia hebraica e árabe para traduzir o sentido esotérico do nome deste Arcanjo, escreveu (10):

“Mankaallah (Man-Ka-Allah) = Tu és igual a Deus!

Mankaallan = Mi-Ka-El, Miguel.

Mahakala = Shiva, o Espírito Santo, o Terceiro Logos, o Mundo Terrestre.

Al-Djabal = Todo-Poderoso, Veste Deífica de Mikael, o Elohim (Espírito) de Eloha (Mónada).

Mikael criador de Mahiman, o Gladiator de Deus. Mistérios da Obra do Eterno.”

Mikael ou Miguel é o Príncipe dos Arcanjos e o mais próximo de Deus – Quis ut Deus. É invocado para a coragem, a defesa forte e a protecção divina. Iconograficamente, é representado revestido de couraça e capacete apresentando-se armado de espada flamejante e escudo. É o destruidor da idolatria. Disputou com Satan o corpo de Mosés no Monte Sinai. É o Arcanjo que proclama a Unidade de Deus. A Ciência Teúrgica dá-lhe por planeta de afinidade o Sol (na Terra), correspondendo ao domingo (Dominicus, Soledie), cuja cor natural é o laranja e as formas geometricas de manifestação o quadrado e o hexaedro. No Psaltério salvífico, a sua Força e Guarda é invocada no Salmo 111 (“Bem-aventurado o homem que teme o Senhor…”).

São Miguel

Bafejado pela Força do Capitão de Deus, encomiando pela mediação dele a sua alma ao Divino, invocando para si, os seus e a nação que criava a protecção e fortaleza dos Céus, D. Afonso Henriques desde a primeira hora aclamou a função sagrada de São Miguel como Anjo da Guarda dos portucalenses dando sortes às suas armas arrancando vitórias nas horas críticas em que só se adivinhavam derrotas. Assim foi aquando da tomada de Santarém aos mouros, onde no mais aceso da batalha o rei viu aparecer o braço de São Miguel empunhando a espada por cima das forças cristãs e dar a vitória impossível a estas, na hora em que a derrota se avizinhava por desvantagem numérica (11).

A milagrosa vitória escalabitana de D. Afonso Henriques serviu de pretexto para fundar nesta cidade de Santarém a Ordem de São Miguel da Ala (da Asa ou Asinha), que é a Ordem de Cavalaria mais antiga de Portugal e das mais antigas do Mundo (12). Coadjuvaram o rei na fundação da Ordem, dentre outros, D. Egas Moniz, D. Pedro Afonso, D. Gonçalo Gonçalves, D. Pedro Paes, D. Gonçalo de Sousa, D. Lourenço Viegas e D. Fuas Roupinho. Instituída no dia 8 de Maio de 1171, os seus cavaleiros observavam a Regra de São Bento por suas intimidades com a Ordem de Cister (13), e em 14 de Janeiro de 1177 o Papa Alexandre III reconheceu por breve ou bula a Ordo Equitum S. Michaelis Sive de Ala (Ordem de Cavalaria de S. Miguel da Ala), transcrita e editada pelo abade Ascanio Tamburini (14).

O Arcanjo São Miguel ficou assim, desde o conde D. Henrique mas pela mão do seu filho Afonso Henriques, como padroeiro protector do condado depois país, inclusive com Ordem militar mas também religiosa consagrada ao seu culto tutelar, em guisa de cópia terreal da Milícia Celeste, acontecimento primaz no mundo da época, muito mais sob patrocínio régio igualmente mostrando preocupação em expressar ao Rei dos Céus. Desde aí que a devoção e o culto a São Miguel Arcanjo como Custódio de Portugal propagou-se para e com a recuperação dos territórios cristãos lusitanos, sobre o que diz Jorge Cardoso (15):

“São Miguel Arcanjo. Foi sempre conhecido dos Portugueses por Anjo Custódio deste Reino, depois que o invicto Rei D. Afonso Henriques venceu com o seu patrocínio a Albaraque nos campos de Santarém; e por isso lhe erigiu copiosas Capelas, assim na Igreja de Alcáçova da dita Vila, como nos Mosteiros de Santa Cruz de Coimbra e Santa Maria de Alcobaça, onde as suas santas Imagens são veneradas, e milagrosas.”

Tão grande devoção a São Miguel Arcanjo Custódio de Portugal teve-a igualmente o rei D. Manuel I, que inclusive encetou conversações junto da Santa Sé para tratar da beatificação do seu antecessor D. Afonso Henriques, as quais resultaram infrutíferas arrastando-se esse processo até hoje. Sobre isto, diz António de Vasconcelos (16):

“E entre razões que me moveram a tomar esta empresa tão dificultosa, que requeria engenho e língua mais Angélica que humana, foi a particular devoção que o Reino de Portugal professou ao Anjo da sua Guarda, porque já o felicíssimo Rei D. Manuel, em quem a grandeza do ânimo competia com a piedade do culto divino, movido com afecto de devoção e obrigado com muitos benefícios, impetrou do Sumo Pontífice um Breve, para que em todo o seu Reino se fizesse a festa ao Anjo da Guarda de Portugal no terceiro Domingo de Julho, com procissão solene, missa e ofício particular, que no Arcebispado de Lisboa e em outros se compuseram. E estando ainda o Reino de Portugal no berço da sua criação, já el-Rei D. Afonso Henriques experimentava os particulares favores e ajudas do Anjo da sua Guarda e do Arcanjo S. Miguel, dos quais foi em grande maneira devoto. Porque no ano de 1181, sendo já bom Rei de 86 anos muito gasto no exercício das armas, e maltratado de uma perna que quebrou em Badajoz, por cuja ocasião caíra do cavalo, e também por certa obrigação em que estava el-Rei D. Fernando de Castela, seu genro, Alboiaque, Rei de Sevilha, veio sobre Santarém com poderoso exército formado em toda a Andaluzia, e para o receber ajuntou el-Rei D. Afonso a sua gente, que para tão grande número, como o bárbaro trazia, era bem desigual, o que foi bem considerado por el-Rei, como homem prático na guerra, porém muito pio e afectuoso para as coisas do Céu: determinou pedir de lá o principal socorro, e ajuda, em que mais se estribava que na do exército de seus vassalos. Na noite antes do dia em que determinava dar batalha, recolheu-se em oração, gastando a maior parte dela com Deus, como em semelhantes apertos costumava, e particularmente se encomendou com grande afecto e confiança ao Anjo da sua Guarda, e ao Arcanjo S. Miguel, metendo-lhe nas mãos a empresa que diante tinha, e pedindo-lhe para ela socorro e ajuda, valendo-se para isso dos exemplos da Escritura, em que os santos Anjos deram gloriosas vitórias aos seus devotos; e animado com a confiança e esperança que neles tinha, saiu aos Mouros em seu carro, como costumava, depois que lhe sucedeu o desastre da perna: posta a gente em ordem de batalha campal, rompeu o Alboiaque, ferindo e matando a muitos, e metendo os mais em fuga, os quais deixaram no arraial um grande e riquíssimo depósito. É certo que no fervor da batalha foi visto junto del-Rei um braço com uma asa, que o acompanhava por todas as partes a quem ele acometia, e fazia tão grande estrago nos inimigos que logo parecia força de braço Angélico mais que humano. Em memória de tão assinalada mercê, instituiu el-Rei D. Afonso Henriques a Cavalaria da Ala, cuja insígnia era uma Asa vermelha em campo branco cercada de ouro, a qual com o tempo se foi extinguindo com outras muitas coisas. Além destas razões, não é a menor saber o grande afecto de devoção com que o nosso muito santo Padre Paulo V mandou fazer, não há muito tempo, ofício e missa particular para celebrar a festa dos Anjos da Guarda na Igreja no primeiro dia do mês de Outubro.”

Sobre tudo o dito, já tive oportunidade de escrever numa outra obra (17) que aqui transcrevo em guisa de resumo:

“Dentre os 4 Arcanjos principais – Miguel, Gabriel, Rafael, Anjo Custódio – dispostos nos 4 Mundos da Kaballah – Atziluth, Briah, Yetzirah, Assiah – o “mais elevado”, ou seja, Miguel como arquétipo, manifesta-se pelo “menos elevado”, o Anjo Custódio seu protótipo, por sua vez arquétipo de toda a Terra como primaz desta em lugar cimeiro, fonte terreal de toda a Luz, que é dizer, a Lusitânia.

“Foi por inspiração Bernardina que D. Afonso Henriques fundou em Santarém a Ordem de São Miguel da Ala (ou da Asa), após a tomada da cidade aos mouros em 1171. Diz a lenda de fundação que como reconhecimento do Céu, durante o ardor da luta em volta do estandarte real e a pelejar pelo rei, brandindo a sua espada apareceu o braço alado de São Miguel Arcanjo, de quem D. Afonso Henriques era muito devoto cujo auxílio invocara antes da batalha, e por isso após a vitória cristã ele instituiu a Ordem de São Miguel da Ala pelo documento Constituitiones Militiuns S. Michaekis Sive de Ala. Após, o Papa Alexandre III, por bula de 14/1/1177, reconheceu a Ordem Equitum S. Michaelis Sive de Ala, que se manteve por largos séculos e enquanto durou a Ordem do Templo serviu de medianeira entre ela e a Coroa de Portugal.

“Os atributos de São Miguel ou Mikael (“O Primeiro no qual é Deus”, e também “Quem é Deus”) são os mesmos de Melki-Tsedek, a balança e a espada, como distintivos do Rei de Justiça (Lex) e Senhor de Salém (Pax), aquele modelo de Deus, este émulo de Deus (Quis ut Deus).

“A manifestação de Mikael assinala sempre a glória da Shekinah, a Grande Paz e Luz do Messias, o que se representa na Árvore Sephirótica da Kaballah pela décima sephiroth (esfera): Malkuth, com o significado de o “Reino” (Melki) e o “Justo” (Tsedek).

“A Shekinah, “Presença Real de Deus”, representa-se sephiroticamente por Sandalphon, raiz da Árvore da Vida e do Saber (Otz Chaim) cuja copa é Metraton, ambos o mesmíssimo Mikael como Guardião dos homens e das almas, dos vivos e dos mortos, o mesmo que aparece no início e no final da Manifestação Divina e Humana a qual é representada por Malkuth, cujo Nome Divino é Adonai-Ha-Aretz, “Rei e Senhor da Terra”.

“O primeiro tratado cabalístico aparecido na Península Ibérica referente a este assunto, Kether-Malkuth, consagrado ao Altíssimo Adonai e sendo parte integrante do Fons Vitae pertencente ao espólio literário do Mosteiro de Alcobaça, logo, certamente do conhecimento dos templários mais ilustrados, foi escrito pelo primeiro judeu filósofo da Hispânia no século XI, Salomão Ibn Gabirol. Este Avicebrão dos latinos, natural de Málaga, veio a radicar-se em Portugal onde faleceu em 1070.

“O culto ao Anjo Custódio de Portugal foi celebrado com toda a pompa e devoção desde muito cedo em todo o país, mormente na região saloia do Termo. Segundo António de Vasconcelos e como já disse, D. Afonso Henriques, na conquista de Santarém, invocou São Miguel Arcanjo, tendo aí instituído a Ordem de São Miguel da Ala, cuja insígnia é uma asa vermelha em campo branco, cercado a ouro. A devoção ao Arcanjo cresceu de tal modo que D. Manuel I o invocava como “nosso anjo guardador”, tendo-se antecipado ao movimento do culto em Espanha. Com efeito, D. Manuel solicitou (6/6/1504) do Papa Leão X a instituição do Anjo Custódio de Portugal, a celebrar no 3.º domingo de Julho, dando aso a uma tradição que ainda se mantém. Anteriormente (1480), ao fundir num só vários ofícios litúrgicos, o prior de Odivelas, Fr. António Castanheira, já encontrara o ofício do Anjo Custódio, pelo que o gesto de D. Manuel corresponde a um sancionamento de uma tendência cultual anterior, de raiz judaica (pois que Mikael é o Orago da Sinagoga), depois incorporada nas Ordenações Manuelinas (Liv. I, tit. 78), onde se determinam os actos da festa: procissão solene, missa e ofício particular em Lisboa e noutras terras (18).

“De maneira que o culto a Mikael ou Metraton está profundamente enraizado tanto no catecismo popular da Torah como no esoterismo judaico da Kaballah, esta que significa tanto Tradição como Conhecimento. Na Sinagoga Ele ocupa o “Lugar do Altíssimo”, enquanto na Igreja Bizantina situa-se no “Trono de Salomão”, correspondendo na Igreja Romana à “Cadeira do Sumo Pontífice”.”

Sendo São Miguel consignado Anjo Custódio, este último termo, Custódio, com o sentido de “Guarda, Guardião, Tutelar, Protector, Paraninfo”, etc., (19) vai bem com a finalidade litúrgica da Custódia ou Ostensório, utilizada para expor o Santíssimo ou levá-lo em procissão, por conter a presença Divina tal qual São Miguel escuda a Deus como seu prolongamento – Quis ut Deus.

FaHlNRr[1]

Celebrado pela Igreja Ocidental em 29 de Setembro e pela Igreja Oriental em 8 de Novembro (21 de Novembro na maioria das confissões ortodoxas, que ainda utilizam o calendário juliano), reconhece-se na Igreja Universal o Arcanjo Mikael como “Capitão de Deus” dos “Poderes não encarnados do Céu” (as restantes Cortes Angélicas) na chamada Festa de São Miguel e todos os Anjos. Por outra parte, a Igreja Católica também celebra a Festa do Santo Anjo da Guarda em 2 de Outubro, enquanto a Festa do Anjo Custódio de Portugal é realizada em 10 de Junho, coincidindo com o Dia de Portugal, depois de ter sido restaurada e aprovada pelo Papa Pio XII que fez fé no testemunho dos três pastorinhos de Fátima a quem o Anjo Custódio de Portugal aparecera diversas vezes em 1915 e 1916 anunciando as posteriores aparições de Nossa Senhora nesta sua Terra de Santa Maria, tendo dado às três crianças a comunhão com o “preciosíssimo, corpo, sangue, alma e divindade de Jesus Cristo”. Pio XII não fez mais que restabelecer o que o seu antecessor Leão X instituira em 1504 a pedido do rei D. Manuel e dos bispos portugueses, a Festa do Anjo Custódio do Reino, cujo culto já então era muito antigo em Portugal.

A data da festividade do Anjo Custódio não foi sempre a mesma. Antes de determinação de Pio XII, ela festejava-se ou no terceiro domingo de Junho ou de Julho, ficando aquele mês para a celebração que quase desapareceu no século XIX, com as derrotas napoleónicas e os triunfos liberais e depois republicanos fazendo cair a devota e esplendorosa festa que equiparou com a importantíssima do Corpus Christi desde o reinado de D. João I, até que finalmente o supradito Papa restaurou a celebração do Anjo Custódio de Portugal já no século XX, ainda que não tenha a pompa e grandeza de outrora.

Gravura que mostra a tropa francesa a ser derrotada pelo Anjo Custódio. Batalha do Vimieiro. Gravura a buril de João Cardini, a partir de obra de Francisco de Paula.

O facto da população portuguesa desde muito cedo ter-se posto sob a guarda do Arcanjo São Miguel, deve-se ao facto dele ser o vencedor da morte, como é crença geral, pois que na sua função psicopompa ou de condutor de almas conduz estas do mundo dos vivos pelo oceano dos mortos ao Paraíso celeste. O simples facto de evocar São Miguel era já meia garantia que ele atenderia o rogo do crente na hora final e o conduziria com segurança, evitando o mundo tenebroso das almas danadas, ao Reino dos Céus onde soberanamente o Trono de Deus resplandece, facto reproduzido ao nível imediato, simbolicamente, pelo trono dos reis de Portugal.

Como Anjo da Guarda, São Miguel assiste protector a um e todos os portugueses e a todo Portugal, tal a devoção geral que lhe é consagrada. O culto do Anjo da Guarda radica na crença primeva e universal de que todos os seres humanos são assistidos pessoal e colectivamente, a título vitalício, por daimones ou génios protectores, equivalentes aos djins citados no Alcorão. A Igreja Católica do do Oriente e do Ocidente perfilhou a crença e celebração dos Anjos da Guarda quase desde o seu início, fundada em duas passagens bíblicas, uma do Antigo Testamento e outro do Novo Testamento, ou sejam, em Salmos, XCI, 10-12, “Deus mandou aos Seus Anjos que te guardem em todos os caminhos”, e em Mateus, XVIII, 10, “Tende cuidado em não escandalizar a um destes meninos, porque os seus Anjos vêem sempre a Face de Meu Pai, que está nos Céus”. Já Orígenes, nos séculos II-III d. C., advogava que “junto de cada homem há sempre um Anjo que o ilumina, protege e guarda de todo o mal”.
 Acrescentando Manuel J. Gandra (20): “O Anjo da Guarda, como conselheiro e hierofante do ser humano e o guia mais seguro para aceder ao mundus imaginalis, ‘orientado pelo mistério do pressentimento’ (como sublinha Câmara Cascudo), era devoção já implantada em Portugal na centúria de Quinhentos. A evocação de uma tal intimidade teofânica com o ‘divino e invisível companheiro’, de resto consentânea com as exigências ontológicas e hermenêuticas da filosofia profética portuguesa, supõe, contudo, a obediência a regras protocolares bem definidas, a que não é indiferente o teor vertigínico de considerável número de preces destinadas ao seu obséquio”. Ora este Anjo Custódio da crença individual e colectiva portuguesa é exactamente São Miguel, reconhecido Guerreiro Celeste cujas armas sagradas sempre prontas para a peleja contra o mal, são a garantia da perpétua Assistência Divina na Terra e no Céu às armas e almas de Portugal, de cujas ermidas, capelas, igrejas e catedrais sobem nuvens de incenso e orações perfumadas das bocas fiéis osculando o santo nome do divino Custódio, num preito sentido de profunda gratidão.

13[1]

Apesar de tudo e mercê de duas esculturas de São Miguel e do Santo Anjo Tutelar do Reino (vide imagem no cabeçalho deste estudo) patentes na capela de São Pedro de Alcântara na Basília Real de Mafra, anacronicamente há quem consigne ambos como entidades distintas em guisa de despromoção do Capitão dos Céus, acto literício talvez inconsciente provocado por bibliografia excessiva nem toda conformada ao tema previsto que leva a perder o rumo e ao cometimento de imprecisões elementares, segundo me parece, atendendo a que os predicados canónicas e litúrgicos de São Miguel dispõem-no, como resultante dos mesmos, na função de Anjo Tutelar, pelo que um e outro são a mesma entidade, um como princípio e outro como função. Nem os testemunhos documentais históricos, nem a própria tradição angeológica, nem coisa nenhuma afirmam o contrário, pelo que manifesto a minha absoluta estranheza sobre essa prerrogativa de origem avulsa singular sem aceitação colectiva.

A escultura de mármore de corpo inteiro, em tamanho natural (2,450 m de altura), do Santo Anjo Tutelar do Reino retrata um mancebo de olhar resoluto e gestos firmes. Possuído da dignidade dos Arcanjos, segura na mão direita as Armas Portuguesas pelas quais deve zelar. Como os restantes Arcanjos (S. Miguel, S. Gabriel e S. Rafael) seus companheiros de capela, o Anjo Tutelar apresenta uma superior expressão corpórea em comparação com as restantes peças da galilé e do interior da igreja. Trata-se de uma aparente contradição pois é sabido que estes Seres apenas assumem uma forma, um corpo, para que os humanos possam vê-los. Por isso o seu corpo não corresponde a nenhum modelo real, não sendo pecaminoso em si nem para o olhar que o apreende. Por extensão, o Santo Anjo Tutelar do Reino tem as mesmas prerrogativas que os seus congéneres: louva constantemente a Deus e, como guerreiro, protege o Reino de ataques externos, físicos e psíquicos, ao mesmo tempo que contribui para a sua expansão territorial (21).

Apesar de vários autores, sobretudo Joaquim da Conceição Gomes (22) e Ayres de Carvalho (23), atribuírem a escultura do Anjo Tutelar a Filippo della Valle cerca de 1733, contudo, na década de 90 do último século Alain Jacobs pretendeu invalidá-la dando-a como obra do artista belga Laurent Delvaux (1696-1778) (24), informação reiterada por Teresa Leonor M. Vale (25). Talvez o belga Laurent Delvaux possa ser o autor da peça em questão, talvez até tenha frequentado a Escola de Arquitectura e Belas-Artes de Mafra e talvez mesmo colaborado com algum dos mestres da mesma, mas há um “senão”: a obra escultórica do Convento de Mafra é exclusiva de artistas portugueses/italianos, também nisto conformados à ideia subjacente da translatio imperii que assiste de raiz ao imóvel, ou seja, a trasladação da Arte do 4.º Império (Roma, Itália) para o Saber do 5.º Império (Lisboa, Portugal) retratada neste monumento régio-religioso da Utopia por ser todo ele consagrado ao tema quinto-imperial. Alemães, belgas, franceses, ingleses, espanhóis, etc., frequentaram a Escola de Mafra, sim, mas as suas pressupostas obras não têm aqui a fama da exposição pública. Com isso, permito-me duvidar da veracidade desse desmentido que parece-me ser mais uma tendência nacionalista francófona que propriamente uma conclusão cientifíca isenta de tendenciosismo.

Se o Anjo Custódio de Portugal aparece ao lado de São Miguel, falta a expressão terreal deste em Mafra, ou seja, São Jorge, que mesmo assim foi projecto monumental destinado a figurar possivelmente no largo defronte à basílica mas que não passou de esquisso ou molde o qual ainda existe nas arrecadações deste convento. Tudo tresandando a simbolismos e significados transcendentes…

De tudo o dito, concluiu-se a presença de uma só Entidade em três funções distintas em guisa de “Senhor dos Três Mundos”:

São Miguel (In Divinus) – Supramundo (Spiritus)

Anjo Custódio (In Patris) – Mundo (Anima)

São Jorge (In Regnum) – Inframundo (Corpus)

Como Alma (Anima) o Anjo Custódio está relacionado à tradição romana do Genius Loci, isto é, o Génio, Jina ou divindade tutelar local, espécie de Egrégora ou “Alma Psicomental” criada pela colectividade servindo de veículo a acção do respectivo deus protector da cidade, do país e até do continente, conforme a sua grandeza hierárquica da categoria de Arcanjo ou Agnisvatta, em sânscrito, isto é, “Senhor do Fogo”, a quem os Rosacruzes chamavam “Espírito de Raça” (26) e os romanos de “Génio do Lugar” (27).

IOM_ET_GENI_LOCI[1]

Vultuoso número de autores conceituados na historiografia religiosa nacional partilham a unanimidade identitária de São Miguel e o Anjo Custódio serem um só, distintos nas funções mas de essência única, ou seja, o mesmo Ser. Diz António Carvalho da Costa (28):

“No ano de 1329, em que reinava D. Afonso IV, era Abade deste Mosteiro Paio da Vaia, e confessava dever cento e dois jantares a cada ano a D. Rodrigo, Bispo de Tuy. Haverá cento e tantos anos que daqui foi Abade Diogo Anes Aranha, instituidor da Capela do Outeiro, de que falámos na Freguesia de Pacó. Deviam já ser anexas desta Freguesia as de S. João da Parada e S. Lourenço do Cabrão, em que o Reitor apresenta Vigário, dois dízimos e outros foros que fez a Comenda de Cristo, que tem trezentos mil reis. Tem esta Freguesia 120 vizinhos com um Reitor, que apresenta o Ordinário, e há nela uma Capela de S. Miguel o Anjo, Ermida antiga, que no tempo da Rainha D. Teresa se chamava S. Miguel de Veiga, e nela eram obrigados os Bispos de Tuy a cantar cada ano uma Missa por sua Alma, e pelos Reis seus sucessores. A esta Ermida vai a Câmara dos Arcos no terceiro Domingo de Julho, em que se festeja o Anjo Custódio, acompanhando o seu Mordomo, que sempre é mancebo nobre, e solteiro; dizem Missa; voltam a ensaiar os cavalos a Requeijó, onde lhes dão um refresco de doces. Chegam ao terreiro da Vila, ali correm suas parelhas, lançam canas, e fazem uma escaramuça dobrada, com perfeição grande. A Rainha D. Teresa, quando deu à Sé de Tuy este Mosteiro, deu-lhe mais a Igreja de S. Miguel de Aurega na ribeira do Lima, que devia então ser Paróquia.”

O mesmo autor, na página 7 da sua obra citada, descreveria sobre a presença cultual histórica do Anjo Custódio em Guimarães:

“Com a muita concorrência de Romeiros, e devotos que vinham visitar a sagrada Imagem da Virgem Santa Maria, edificaram-se junto do seu Mosteiro algumas casas, que assim como podiam ser para acolhimento e agasalho dos que vinham visitar esta Senhora, também podiam ser para morada de alguns seus devotos; e como elas foram fundadas contíguas umas com as outras, lhe puseram o nome de Burgo, e aos seus moradores o de Burgueses. Este foi o primeiro fundamento da nova Vila de Guimarães, e este o seu princípio que foi muitos anos depois da Vila Velha, como tenho mostrado pelos Autores citados, e o reforça e verifica esta verdade que antes da Vila Velha experimentar as suas últimas ruínas, tinha jurisdição dividida da nossa e ambas eram governadas por diferentes Ministros; tanto assim que ainda hoje numa Procissão, que costuma fazer todos os anos a Câmara ao Anjo Custódio na terceira Dominga de Julho, que sai da igreja Colegiada com o seu Cabido e mais Clérigos da serventia dela, vão os Vereadores com suas varas em corpo de Câmara acompanhados do seu Procurador, Misteres e Escrivão, e os Ministros da Justiça, Corregedor, Provedor e Juiz de Fora, e entram na Vila Velha, e na sua igreja de São Miguel reza o Cabido certas orações; e quando esta Procissão sai da Colegiada, leva o Juiz de Fora um pendão de cor vermelha, e nele um painel do Santo Anjo, e chegando ao distrito da Vila Velha, o entrega ao Vereador mais velho, em razão deste não poder entrar com vara alçada onde não tem jurisdição; e no presente se está observando este estilo.”

Por sua vez, Nicolau de Oliveira enfatiza o culto particular de D. Manuel I a S. Miguel Arcanjo Custódio de Portugal na sua capela do Hospital de Todos os Santos, em Lisboa (29):

“O Mestre de Capela serve a Capela do Anjo Custódio [no Hospital de Todos os Santos, em Lisboa], tem de obrigação Missa quotidiana por El-Rei D. Manuel, tem de ordenado sessenta e dois mil réis, a saber de Capelão quarenta, e dois para sobrepeliz, dezasseis de mestre, quatro mil réis e um moio de trigo para um tiple, e não o tendo não o haverá, tem mais um alqueire de grãos para a Quaresma, um quarto de carneiro por dia de todos os Santos, outro pela Páscoa, e pelo Natal entra com os outros Capelões na repartição de um porco, tem mais cada sábado noventa réis para a barba.”

AnjodePortugal[1]

Assinalando a festa do Anjo Custódio em todo o País no mês de Julho, fazendo um apanhado geral dos eventos relacionados à mesma, D. António Caetano de Souza registou (30):

“O Anjo Custódio do Reino de Portugal se festeja em todo ele na terceira Dominga do mês de Julho, com solene Procissão, em todas as Cidades e Vilas que são cabeças de Comarcas, a que o Senado das suas Câmaras com o Cabido, são obrigados a assistir. Foi estabelecida esta Festa pela devota piedade do invicto Rei D. Manuel, para a qual alcançou Breve da Sé Apostólica, e se celebra com Ofício de Rito Duplex Maius em todo o Reino, e nas Ordens do seu governo incorporou a obrigação desta solenidade por Lei a seus vassalos” (p. 213). “D. Manuel, em quem a piedade da Religião Católica tinha tanto lugar, que não sei, quando leio a sua vida, se foi a maior de todas as suas virtudes. Para fazer perpétua esta Festa, alcançou da Sé Apostólica um Breve, para a celebrar na terceira Dominga do mês de Julho ao Anjo Custódio do Reino, que com ofício particular se reza no Arcebispado de Lisboa. Ordenou também, que com Procissão solene seja esta Festa celebrada, o que mandou incorporar por Lei na Ordenação do Reino, liv. I tit. 66§ 48. O Senado da Cidade de Lisboa, em obséquio desta Lei, faz Procissão, acompanhada do Cabido e de todas as Comunidades, Clero e das Bandeiras dos Ofícios, que se juntam como no dia de Corpo de Deus, e correm as ruas naquele dia; porque assim o determinou El-Rei D. Manuel, querendo que fosse este dia tão solene como o do Corpo de Deus. Desta piedosa acção se lembra Damião de Góis na Chronica do dito Rey, part. 4 cap. 86; e Mariz Dial 4, cap. 19; Faria na Europa Port. tomo 2, part. 4, cap. I, num. 104; o Padre António Vasconcelos no Tratado do Anjo da Guarda, liv. I cap. I, part I, pág. 2; e Pegas no Tit. 5 ad Ord, lib. I, tit. 66, n. 48. Na Vila de Guimarães, se leva em Procissão um Anjo grande de prata dourada, que foi tomado na célebre batalha de Aljubarrota, que o invicto Rei D. João I deu à Igreja Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, a quem deveu esta insigne vitória” (p. 217).”

Acerca das ofertas do rei D. João I à Colegiada vimaranense da Senhora da Oliveira, há o seguinte registo histórico da autoria de Vilhena Barbosa (31):

“Entre os mais objectos preciosos tomados na batalha de Aljubarrota, e oferecidos a Nossa Senhora da Oliveira, figuravam doze anjos de prata doirada. Os cónegos desfizeram onze destes anjos para ornar o seu templo com mais alguns castiçais, turíbulos, navetas e outras peças. Deixaram todavia um para memória, que existe no tesouro da Colegiada e tem de peso 24 marcos. Antigamente costumavam conduzir este anjo na procissão do Corpo de Deus, pondo-lhe nas mãos o Santíssimo Sacramento. Depois, pelos anos de 1540, e de então até à actualidade, deixou de tomar lugar naquela festividade, para sair tão-somente na procissão do Anjo Custódio. E para que representasse bem o do Anjo Custódio de Portugal, puseram-lhe na mão esquerda o escudo das armas portuguesas, e na mão direita uma espada! Por felicidade tem este anjo uma inscrição, que diz: Esta obra mando fazer em noble sñor rey Don Juan, hijo del noble sñor rey Don Enrique. Refere-se a D. João I de Castela, filho de D. Henrique II. Alguns dos outros anjos que se desfizeram, tinham sido feitos por ordem deste último monarca, conforme se lia nas respectivas inscrições.”

O ciclo dos Descobrimentos Marítimos em Quatrocentos e Quinhentos foi posto sob o padroado do Divino Espírito Santo intercedendo através do Anjo da Guarda S. Miguel, e foi assim que o nome da Ilha de S. Miguel, arquipélago dos Açores, e a sua descoberta atribuem-se à aparição desse Arcanjo aos navegadores portugueses. É curiosa a relação entre Santa Maria (primitivo nome religioso de Portugal, Terra de Santa Maria) e S. Miguel, que da primeira ilha açoriana descoberta passou depois à segunda onde é padroeira, como se pretendesse o Arcanjo na primazia celeste sobre o oceano dos mortos, e a Mãe na primazia terrestre sobre o oceano dos vivos. Diz António Cordeiro (Angra, 1641 – Lisboa, 2.2.1722) (32):

“Mas deixando estas fábulas, a verdade é que vindo desta segunda vez o ditoso Frei Gonçalo Velho Cabral, e pondo a popa no Norte da Ilha de Santa Maria, foi dar directamente na ilha que buscava a 8 de Maio de 1444, dia da Aparição de S. Miguel o Anjo: e assim o descobridor lhe chamou logo Ilha de S. Miguel, governando já então em Portugal o Infante D. Pedro, filho de el-Rei D. João I, e irmão de el-Rei D. Duarte, que também já era falecido, e tinha deixado de só seis anos a D. Afonso V, a quem o dito D. Pedro seu tio entregou o governo do Reino em 1448, e aqui chegaram então a estas duas ilhas, de Santa Maria, e S. Miguel, ilhas dos açores, ou por se verem alguns nelas que de fora vinham, ou por nelas haverem muitos milhafres, que no pilhar se parecem com os açores, e ultimamente Ilhas Terceiras, como em seu lugar veremos” (p. 172). “Foi esta segunda vinda dos descobridores, e povoadores portugueses da Ilha de S. Miguel, no ano de 1445 do nascimento de Cristo, a 29 de Setembro, dia da dedicação de S. Miguel o Anjo, tendo já sido na primeira vinda a aparição do mesmo S. Miguel a 8 de Maio do ano antecedente de 1444, que parece que quis Deus denotar que até então andavam diabos naquela ilha, veio o Anjo S. Miguel lançá-los dela, como no princípio do mundo lançou do Céu aos diabos; e que se de todo o Género Humano um divino Guarda-Mor, um S. Miguel o Anjo, quis ser desta ilha o seu especial Anjo da Guarda; vejam lá agora lá os moradores dela quanto devem como Anjos proceder, ou seguir a S. Miguel, lançando fora de si o pior do pecado, e quanto devem celebrar um seu tão grande Anjo” (p. 175).”

5[1]

Com a inclusão da missa do Anjo Custódio de Portugal no Missal de Braga (33), as evocações, prédicas e sermões sobre o mesmo encheram de graça e fervor as assembleias seculares na unidade da aclamação do “Anjo nosso protector”. Pelo valor que possui e a raridade literária que hoje é, acho por bem encerrar este estudo com a transcrição integral do Sermão do Anjo Custódio de Portugal do Padre Manuel da Silva, proferido no terceiro domingo de Junho de 1677 na Sé Patriarcal de Lisboa (34):

1. Tendo em nós as memórias dos benefícios recebidos uma devida correspondência, ou significação do nosso agradecimento: Qui meminit sine impendio gratus: assaz devidas são as memórias que hoje consagramos ao Anjo Custódio deste Reino de Portugal; pois são tão singulares os benefícios, que sua protecção e assistência temos recebido, e recebemos. Para que em nós fosse perpétuo o agradecimento do benefício que recebemos no Sacramento do Altar, ordenou Cristo Senhor nosso que houvesse em nós uma perpétua memória de tão singular benefício: Hac quotiesumque feceritis, in mei memoriam facietis. E porque mais deste que de outros muitos benefícios, que de sua liberal mão recebemos, há-de haver tão contínua e agraciada memória? A razão, acho eu, que é porque no Sacramento do Altar assiste-nos Cristo, e nos há-de assistir até ao fim do mundo em tantas custódias, quantas são aquelas em que se acha pelos Sacrários dos Templos, fazendo-nos perpetuamente corpo de guarda com a presença de seu Corpo sacramentado: Ecce ego vobiscum sum usque ad consumationem saeculi. E uma custódia, e assistência tão contínua a de Cristo no Sacramento, bem mereceu uma perpétua memória em sinal do nosso agradecimento: In mei memoriam facietis. A assistência, que o Anjo da Guarda deste Reino faz a Portugal, não é um de ano; é e há-de ser perpétua até ao fim do mundo: Usque ad consummationem saeculi. E ao benefício de uma assistência tão contínua, de uma custódia tão prolongada, justo agradecimento corresponda à perpetuidade da memória, que neste dia lhe consagramos, instituído já desde o tempo de El-Rey D. Manuel, e confirmada por especial Breve da Sé Apostólica.

2. Mas que tem de combinação a memória, que hoje consagramos ao Anjo Custódio deste Reino, com matéria do Evangelho, que a Igreja nos oferece nesta solenidade? Eu o direi, depois de fazer uma pergunta sobre o mesmo Evangelho. Escreve S. Mateus que na ocasião em que Herodes tratava de opor-se ao Reino de Cristo aparecido de poucos dias no mundo, aparecera em sonhos a S. José o Anjo do Senhor: Angelus Domini apparuit in somnis Joseph. Pergunto agora: Este Anjo do Senhor era porventura Anjo da Guarda do Menino Deus? Claro está que não, pois é certo que Cristo não tinha, nem necessitava de ter Anjo Custódio, por quanto além da Divindade ter à sua conta resguardar a Humanidade unida em um suposto; Cristo ainda em quanto homem não era puramente vidente, como nós somos; era singularmente compreensor, como o são os bem-aventurados. Logo de quem era guarda esse Anjo? Sem dúvida que era Guarda-Mor do Reino de Cristo. Ao Reino de Cristo se opunha Herodes, pois ao Reino de Cristo vem resguardar este Anjo; se todos os Reinos têm Anjo Custódio, não lhe havia de faltar o seu Anjo Custódio.

O Reino de Cristo na Terra somos nós os fiéis, e isso fez dizer S. João no seu Apocalipse: Fecisti nos Deus nostro regnum.

E como nesta ocasião as principais pessoas deste Reino Espiritual eram os que se contêm no nosso Evangelho, trata o Anjo de as resguardar da tirania de Herodes na forma que encomenda a S. José: Surge, et accipe puerum, et matrem ejus, et fuge in Aegyptum. E bem sabem, os que me ouvem, que o Reino de Portugal se chama com especialidade Reino de Cristo: não só por que nele tem os mais fidelíssimos vassalos, que militam debaixo da bandeira e estandarte da sua Fé, se não também porque o mesmo Senhor o escolheu já desde os seus princípios para Reino e Império seu, conforme a palavra que deu ao seu primeiro Rei [D. Afonso Henriques]: Volo inte, et in semine tuo imperium mihi stabilire. Pois para que se entenda o desvelo com que o Anjo Custódio deste Reino de Portugal se empenha em o resguardar; saiba-se o desvelo com que o Anjo do Senhor, de quem fala o Evangelho, se empenha em defender ao Reino Espiritual de Cristo. Pelo desvelo de um Anjo quer a Igreja que se conheça hoje o desvelo de outro, quando assim um como outro ambos são Custódios do mesmo Reino de Cristo, um do seu Reino Espiritual, outro do seu Reino de Portugal. E suposta esta consideração, segue-se que saibamos de que meio se vale hoje o Anjo do Evangelho para resguardar de todo o perigo ao Reino Espiritual de Cristo; que deste mesmo eu quero mostrar do que se vale o Anjo de Portugal para seu resguardo, e conservação. O meio consiste numa palavra, e é a última do nosso tema: Surge, de que eu faço escolha para matéria do Sermão; e não poderá haver queixa de ser comprido, não passando o discurso de mais que a ponderação de uma só palavra.

3. Surge, diz o Anjo do Evangelho a S. José; e considero eu que diz também o Anjo Custódio deste Reino a Portugal: Despertai, acordai do sono em que vos achais. Vigilância encomenda o Anjo, e com razão; pois não há melhor meio para o resguardo e conservação dos Reinos e estados do Mundo que o desvelo. Se há sono, se há descuido, por mais florescentes que se achem as Monarquias correm grande perigo de se perder. O primeiro, e mais florescente estado que no Mundo houve, foi o estado da inocência no Paraíso Terrenal. E quanto durou esse estado? Não chegou a sua duração a número de anos, nem sequer de dias na melhor opinião, que não são de muita dura na Terra as felicidades do Céu, de que participava aquele estado; em breves horas acabou e se perdeu para sempre, vindo Deus em pessoa a lançar fora do Paraíso aos que o dominavam: Emisit eos Dominus de Paradiso (Gen. 3.13). E não saberemos a origem de tal desgraça? Já se sabe, que contra o estado da inocência só podia prevalecer a culpa. Mas esta culpa donde teve a sua origem? De uma Eva. E esta Eva donde teve o seu princípio? De um sono, de um descuido. Pôs-se a dormir Adão no mesmo ponto em que tomou posse daquele estado; o sono, não há dúvida, que foi misterioso, pois foi infundido por Deus: Immist Dominus soporem in Adam (Gen. 2.21); com tudo, é certo que naquele sono se tirou a Adão do lado uma costela; daquela costa se formou uma Eva; e daquela Eva se originou a perdição de tão solene estado. E eis aí o estado da inocência perdido. Por quem? Por uma Eva originada de um sono.

4. Passemos do estado da inocência aos estados e Impérios do Mundo representados em sonho a Nabuco naquela sua grande e portentosa estátua; e acharemos que quando mais se prometiam na dureza dos metais de que se compunham, eterna duração contra a violência dos tempos e contínuos assaltos dos anos, ao golpe de uma pequena pedra que descida do monte e lhe fez tiro aos pés, se arruinaram, e converteram em cinzas todas essas Monarquias desde os pés até à cabeça; sem lhe valer nem a cabeça ser de ouro, nem aos braços e peito o serem de prata, nem ao bojo o ser de bronze, nem às mais partes o serem de ferro: Lapis abscissus de monte percussit statum in pedibus: tunc contrita sunt pariter ferrum, testa, es, argentum, et aurum (Dan. 2. 34.35). Agora, noto eu, que esta fatal ruína e assolação de tão florescentes estados e Monarquias não a representou Deus a Nabuco estando acordado, senão estando dormindo, e sonhando: Vidi sonium (Dan. 5.1). E porque lha não representou estando acordado? Estando acordado tinha os olhos abertos, estando dormindo tinha os olhos fechados. Logo, quando tinha os olhos abertos na vigia e não quando tinha os olhos fechados no sono, parece que dizia melhor o representar-lhe Deus a ruína destes Impérios. Não, a ruína dos Impérios não o diz com os olhos abertos, não o diz com o acordo da vigilância, porque se há vigilância, se há acordado, não pode haver ruína: diz com os olhos fechados, diz com o desacordo do sono; se há sono, se há descuido, num abrir e fechar de olhos se arruínam os mais florescentes Impérios e estados, as mais dilatadas Monarquias, por mais rios de prata e ouro em que nadem, por mais peitos de aço, ou de bronze, com que se armem, por mais armas de ferro com que se fortifiquem: Vidi somnium: Contrita sunt pariter terrum, tosta sed argentum et aurum. Daqui tiro eu que para que o Reino de Deus floresça e permaneça, para que o Reino de Portugal se conserve e perpetue na duração sem perigo de ruína, quer o Anjo do Evangelho falando com José, quer o Anjo Custódio deste Reino falando com cada um de nós, que não haja sono, que não haja descuido algum, mas vigilância, e desvelo: Surge.

Anjo de POrtugal[1]

5. Dir-me-ão que sendo Reino de Deus o que o Anjo do Evangelho vem a defender, sendo Reino especialmente de Cristo o Reino de Portugal, parece que seguramente pode o Anjo Custódio o deixar dormir e descansar; pois está sabido que um tal Reino como o de Cristo não há-de perigar, não há jamais de arruinar-se ou acabar, quando o mesmo Anjo nos está dizendo que não há-de ter fim: Regni ejus non erit finis (Luc. 1.33). Contudo, nem por isso se há-de dar à confiança, nem por isso se há-de deitar a dormir, porque acode o Anjo; antes por isso mesmo, porque é Reino seu que há-de vigiar, e estar de acordo com mil olhos sobre si: Surge. Haverá alguém, pergunta Job, que possa fazer com que o Céu durma e descanse, sequer por um pouco, dando um breve parêntesis de sono ao suave descante de harmonia com que regularmente se governa? Concentrum caeli queis dormire faciet? (Job 38.37). Isso não se fará possível, diz o Eclesiástico, porque as Estrelas, que são os seus olhos, jamais cessam de estar de vigia em perpétua sentinela: Stella in vigiliis Suis non descient (Ecles. 43.11). Se o Céu é Reino, que chamamos especificamente de Deus, Adveniat Regnum Tuum, se é centro de todo o alívio, lugar de todo o descanso, e remanço de todas as fadigas, porque o Céu não há-de estar com tantos olhos abertos sobre si, quantas são as suas Estrelas? Ainda quando a noite convida a todos a fechar os olhos, não há-de pregar olhos o Céu? Não: Stella in vigiliis suis non descient, isso mesmo porque é Reino de Deus, que há-de durar para sempre: Caeli regnum in aeternum non dissipabitur (Dan. 1.44). E Reino que há-de durar para sempre nunca há-de pôr os olhos, mas sempre a vigiar sem haver quem o possa fazer dormir, ou descuidar de si: Concentum caeli quis dormire faciet? Sim, mas o Céu não necessita destas vigias para se segurar; que pela segurança que tem, costumamos nós dizer, seguro está o Céu de ladrões; Seguro está, é verdade, mas por isso mesmo está seguro porque não dorme, porque não cessam seus olhos de vigiar: Stellae in vigiliis suis non deficient. E como se poderá dar por seguro o Reino de Portugal, ainda que seja Reino especialmente de Cristo, se nele faltar aquele desvelo que o Anjo Custódio quer que haja: Surge? Sem dúvida que por falta desta vigilância temos visto nestes nossos tempos tão repetidas ousadias de ladrões por mar, com descrédito do nome Português, e dizem que também por terra. Mas já agora pela mercê de Deus a poder dos brados do seu Anjo Custódio, parece que vai Portugal despertando da modorra do seu descuido; pois o vemos tão desvelado por sair da terra ao mar. Ora desperta Reino de Deus, abre os olhos, que ele é o meio da tua conservação, que hoje se recomenda a brados o teu Anjo Custódio: Surge.

6. O que eu acho ser muito digno de advertência, é que julgando o Anjo do Senhor no Evangelho ser necessária para a conservação do Reino de Cristo a vigilância, o Anjo não desperta ao Menino Deus, que é o Príncipe deste Reino, senão a José, que é o vassalo: Apparuit in somnis Joseph, dicens: Surge. Ao Príncipe, cuidava eu, que havia de despertar, que do sono e descuido dos Príncipes, das modorras e letargo dos Monarcas é que se originam as maiores inquietações e predições das Repúblicas [entenda-se “República” como a ordem do que é público e comum]. No meio daquela tormenta, em que dormindo Cristo, se davam seus Discípulos por perdidos na sua Naveta, foi advertir o Evangelista S. Mateus que todos acudiam a despertar ao Senhor: Suscitaverunt eum, dicentes: Domine, salva nos, perimus (Mat. 8.25). Senhor, se vós não acordais e não nos acudis, a braveza da tormenta é tal, a fúria das ondas tanta, o impacto dos ventos tão contrário, que não podemos deixar de nos afundar: Perimus.

Eu cuidava, que como os Discípulos eram tão peritos e exercitados naquela navegação por razão das suas pescas, que fizessem o que costumam fazer os navegantes em ocasião de tempestades: que acudissem uns a tomar as velas, outros a pegar os remos, outros a governar o leme, outros finalmente a alijar ao mar e aliviar a embarcação, que isso pedia o aperto em que se achavam. Mas acudiam todos a despertar o Senhor: Suscitaverunt eum, e pedir-lhe que os salvasse: Salva nos; sem porém haver da sua parte algum culto de trabalho para se salvar? Assim é que todos queremos a salvação e a pedimos a Deus: Domine, salva nos, mas sem culto nosso, esperando que Deus ponha todo o culto para nos salvar. Bem é o valer de Deus nos apertos, mas também é necessário que nos valhamos das nossas mãos; que a mão de Deus e a do Homem é que fazem boa liga para conseguirem a salvação, que isso dizia Deus a Moisés: Extende manum tuam, extendam manum meam (Exod. 34.20). Estendei a vossa mão, que eu também estenderei a minha: mas sabei que a minha sem a vossa não vos há-de valer para vos salvar. Contudo, os Apóstolos nessa ocasião da tormenta de que falamos, persuadiram-se, e com razão, que assim como a braveza do mar tomou confiança para os inquietar, por ver ao seu Príncipe adormecido, Motus magnusfactus est in mari, ipse vero dormiebat, assim despertando o Príncipe num abrir de olhos, se veria logo evitado o perigo e serenada a tempestade, como na verdade aconteceu: Surgens imperavit mari, et facta est tranquillitas magna. Notem o Surgens. Despertando o Príncipe, todos ficaram salvos; em quanto dormia, todos se davam por perdidos: Perimus.

7. Sendo pois isto assim: porque não desperta hoje o Anjo Custódio a Cristo, que é Príncipe, senão ainda a José que era vassalo, era muito do lado deste Divino Príncipe; e os Príncipes pelos lados é que se costumam despertar. Temos exemplo muito semelhante com o documento de outro Anjo. Preso, e carregado de algumas cadeias se achava S. Pedro no cárcere de Herodes, sem que a moléstia dos grilhões lhe tirasse o repouso, em que pastava dormindo descansadamente entre dois soldados que o tinham de guarda: Erat Petrus dormiens inter duos milites (Act. 11.6). Que aos servos de Deus os trabalhos e perseguições não lhes tiram o sono. E diz o Texto Sagrado que vindo um Anjo do Céu a despertá-lo, o despertara pelo lado: Percusso latere Petri, exeitavit illum: dando-lhe um golpe no lado o fez acordar. E porque mais pelo lado que por outra qualquer parte do seu corpo, o desperta o Anjo? Tudo na Escritura Sagrada tem o seu mistério, e o deste lugar está claro: era Pedro Príncipe da Igreja, Princeps Apostolorum; e os Príncipes pelos lados é que se devem despertar, como despertou Pedro dando-lhe um golpe no seu lado: Percusso latere Petri, excitavit illam. Se os golpes que se dão nos lados são meio que os Anjos Custódios tomam para despertar os Príncipes, e por meio dos Príncipes os Reinos, muito desvelado mostra-se o Anjo Custódio a Portugal, pois temos visto nestes nossos tempos tantos golpes mortaças pelos lados do maior valimento. Sendo logo José tanto do lado do Divino Príncipe, parece pudermos dizer que por este seu lado o quis hoje o Anjo despertar: nem foi necessário dar golpe no lado, bastou o brado de uma vez: Surge; que não devia o sono de José ser tão profundo como o de Pedro, que necessitasse de golpes para despertar. Eu porém direi que a José, que era o vassalo, e não ao Menino Deus, que era o Príncipe, desperta hoje o Anjo do nosso Evangelho, porque de tão Divino Príncipe não se pode supor que dorme, ou se descuida no tocante ao nosso bem; pois sabemos que David o descreve tão desvelado por nossa Custódia, que não só mais o viu nem verá dormindo em forma que se descuide de nos falar, e resguardar: Non dormitabit, neque dormiet, qui custodit Israel (Psal. 120.4). O que importa é que não durmamos nós, os vassalos, que nos não descuidemos no serviço de tão Divino Príncipe, e no resguardo de nossas almas, que são Reino de Deus que temos dentro de nós mesmos: Regnum Dei intra vos est (Luc. 17.21); por cujo respeito nos está o Anjo despertando a brados: Surge. Praza a Deus, que ao som destes brados acabamos nós todos de despertar da modorra de nossas culpas, do descuido de nossa salvação; que isso é o que o Anjo Custódio pretende com as vozes tão repetidas, que a cada um de nós está dando ao coração: Surge.

8. Tenho porém contra o Anjo Custódio deste Reino um grande queixume, e não o posso dissimular. Se o Anjo Custódio deste Reino tem à sua conta o desvelar-se por nos defender, e resguardar, para que é despertar-nos com os seus brados: Surge? Não basta que o Anjo vigie, não basta que o Anjo se desvele? Vele o Anjo, que esta é a sua obrigação; e deixemo-nos a nós dormir, deixe-nos descansar. Não sabemos o que dizemos, porque a vigilância do Anjo sem a nossa não basta para nos salvar: é necessário que velemos nós também por nossa salvação. Eu tenho feito um notável reparo, e é que nas mais das ocasiões em que na Escritura Sagrada se faz menção dos Anjos se desvelarem pela Salvação e resguardo dos homens, se faz justamente menção do muito que se empenharam em fazer que os homens se desvelassem, e despertassem do sono e modorra do seu descuido. Ide comigo, e deixai-me fazer esta breve indução. Desvela-se o Anjo, de que há pouco falámos, por libertar a Pedro do cárcere e prisões de Herodes; mas quer que Pedro também se desvele por sua liberdade, despertando do sono em que se achava: Surge velociter, et sequere me (Act. 12.7-8). Desvelam-se os Anjos que foram castigar a Sodoma, por salvar de seus incêndios a Lot para que também desperte e se desvele por sua salvação: Surge: in monte salvum te fac (Gen. 19.15-18). Desvela-se o Anjo do Senhor por remediar e socorrer a Agar no desamparo do deserto, em que se achava com o seu filho a perigo de morte; mas quer que Agar também desperte e se desvele por seu remédio: Surge: tolle puerum (Gen. 21.18).

Desvela-se o Anjo Custódio de Jacob pelo resguardar de todos os encontros, e perigos que se lhe oferecerão na Mesopotâmia; mas quer que Jacob também desperte, e se desvele por seu resguardo saindo-se da terra em que se acha: Surge, et agredere de terra hac (Gen. 31.13). Desvela-se o Anjo Custódio de Israel por defender e libertar a Gedeão, e aos do seu povo da operação de um poderoso exército dos Madianitas; mas quer que Gedeão também desperte, e se desvele por sua liberdade e defesa saindo a campo: Surge, et descende in costra (Jud. 79). Desvela-se o Anjo de Elias pelo salvar e livrar com vida das mãos e tirania de Jezabel, que lhe ameaçava a morte; mas quer que Elias também desperte, e se desvele por se pôr a salvo: Surge: grandis enim tibi restat via (III Re. 19). Desvela-se hoje finalmente o Anjo do Evangelho por salvar a José e a sua família da crueldade de Herodes, que se opunha ao Reino e ao Reinado de Cristo: Aparuit in somnis Josphe; mas quer José também desperte, e se desvele em pôr a salvo na fuga para o Egipto: Surge, et fugem Aegiptum. É certo que todos e cada um destes Anjos podem realizar o que pretendem sem necessitarem do desvelo dos homens; contudo, não quer Deus que, fiados nós os homens no desvelo e custódia dos Anjos, nos deitemos a dormir, e dormindo esperamos de nos salvar. Quer, sim, que ao desvelo dos Anjos se ajunte o nosso, que isto está hoje dizendo o Anjo do Senhor a S. José, e isto está também dizendo a cada um de nós o Anjo Custódio deste Reino: Surge.

9. Donde venho eu pôr como remate deste Sermão a tirar a consequência de um documento, ou moralidade, a que se foi dirigindo aqui este todo o meu discurso. Se para o resguardo e salvação de um Reino Temporal não basta o desvelo e custódia do seu Anjo da Guarda, é necessário que o Reino também se desvele com o seu Anjo: Surge. Como poderemos nós esperar que baste para o resguardo e salvação de nossas almas, que é o Reino Espiritual do Senhor, como ao princípio dizia, Fesisti nos Deo nostro regnum, a custódia dos Anjos, se não acabamos de despertar do sono e letargo de nossas culpas aos brados dos mesmos Anjos, que tão continuamente nos estão dando vozes internas ao coração para que despertemos, e tratemos de nossa salvação: Surge, surge, qui dormis? Que durma um José Varão Santo, e Justo, Cum esset justus, fiando em que tem à sua cabeceira ao Menino Deus, passe; que seguro está quem por si tem e consigo a Deus. Mas que durma um pecador estando em ódio, e inimizado com Deus, tão carregado de culpas e encargos da consciência? Isto é para fazer pasmar até aos bárbaros gentios, que não têm conhecimento de Deus, nem da vida ou da morte eternas que os espera: Quid tu soport deprimeris? Fuge (Jon. 1.6): diziam a Jonas os seus companheiros; quando naquela brava tormenta se estava deitado a dormir lá pelo baixo dos convezes da embarcação, que fazes homem? É possível que durmas? Que repouses? Agora sono? Agora descuido? Agora que os ventos se cruzam e conjuram para a nossa perdição? Agora que o mar se embravece, as velas se rompem, os mastros se estalam, o leme se quebra, a Nau se está indo a pique, e nós com a Nau, agora colocas-te tu a dormir? Quid tu sopore deprimeris? Desperta homem: Surge. De que se admiram ou escandalizam estes bárbaros? De quê? E pois não lhes sobeja razão para se admirar, e assombrar? Jonas não é um homem, como ele mesmo confessou aos companheiros, que vai fugindo de Deus, A facie Domini ego fugio, desobediente aos seus mandados? Não está actualmente fora da graça de Deus, e em ofensa sua? A tempestade que se levanta, não é por desrespeito seu? Ele mesmo o confessa: Propter me tempestas haec. E que com tal perigo de perdição a olhos vistos, não acabe Jonas por os abrir? Que não desperte? Ou que isto é matéria para fazer pasmar até aos bárbaros gentios:

 Quid tu sopore deprimeris? Surge. Notem a força e ênfase daquele pronome, “Tuo, quid tuo?”. Tu, que estás em desgraça de Deus, digo eu agora, tu, que te vês ameaçado dos castigos de sua Divina Justiça, estás a dormir? Quid tu sopore de primeris? Que durmam os Santos, que durmam os Justos, como José que tem a consciência pura e sossegada, passe; mas tu, que tens a consciência tão carregada e embaraçada, tu a dormir? Tuo sopore deprimeris? Que durma um Elias à sombra de uma árvore fugindo de Jezabel: Obdormivit in umbra juniperi (III Re. 19); que enfim é um Elias zeloso da observância da Lei e honra de Deus, que tem a seu cuidado defendê-lo e resguardá-lo de todo o perigo; mas que durma um pecador, que durma um Jonas e com tão pesado sono, Dormiebat sopore gravi, um rebelde e desobediente aos preceitos Divinos, sem temor da vinda sobre ele da Ira de Deus, como veio, com a sua negação perca o rumo da sua salvação e vá a dar no ventre de uma baleia, ou no bojo e profundeza do Inferno, como ele lhe chama: De ventre inferi clamavi? Essa é a admiração, esse é o assombro: quid tuo sopore deprimeris? Surge.

10. Que durma um Pedro (deixai-me ir declarando mais as razões do meu assombro), que durma um Pedro aprisionado da injustiça de Herodes, lançado em um cárcere carregado de grilhões, Erat Petrus dormiens, passe; que enfim está em graça com Deus, por cujo respeito padece estes grilhões; mas que durma um Sansão no regaço de Dalila, aprisionado e algemado dos grilhões de seus depravados afectos, Dormire eum facit super genua sua (Jud. 19.19), sem temor de que venha a perder, como perdeu, na grenha de seu cabelo a valentia do espírito com que Deus o dotou? Sem receio de perder, como perdeu, a liberdade que lhe tiraram os seus inimigos, e os olhos que lhe arrancaram os Filisteus, sem já mais os abrir para despertar e ver os perigos da sua salvação? Isso é o que me assombra: Quid tu sopore deprimeris? Surge. Que durma uma Alma Santa lá nos Cantares, fiada em que cerrando os olhos do corpo velam os olhos e cuidados do seu coração, Ego dormito, et cor meum vigilat (Cant. 5.2), passe; mas que durma um Sifara, inimigo de Deus e do seu povo, fiando no amparo de Jael, e adormecido na postagem do leite que lhe deu a beber para lhe tirar a vida, como tirou, fazendo com que fosse acordar entre os desacordos da sua eterna condenação? Isso é o que me pasma: Quid tu sopore deprimeris? Surge. Que durma um Samuel no Templo de Deus, tendo à sua guarda a Arca do Senhor a cujo lado dormia, Samuel dormiebat in templo, ubi erat Arca Dei (I Re. 3.3), passe; mas que durma um Saúl com todos os soldados da sua guarda adormentados, Dormiebat omnes (I Re. 16), estando em campanha, e tendo bem perto de si a David a quem tinha por inimigo, sem se lembrar que quem tem inimigos não dorme, sem recear de perder, como perdeu, as armas em que tinha a sua defesa, e a taça em que tinha as delícias do seu refresco? Isso é o que me assombra: Quid tu sopore deprimeris? Surge.

11. E quantos (voltemos agora sobre nós) e quantos dormem, como Saúl na tenda, e campanha deste mundo com as guardas dos seus sentidos todos adormecidos, descuidando-se da guerra oculta que continuamente lhes estão fazendo os seus inimigos invisíveis, com que vêm a perder as armas da vigilância, que são as mais provadas para a nossa defesa no sentir de S. Pedro, Vigilate, quia adversarius vester diabolus sicut quaeres, quaem devoret, e se põem em perigo de perder as delícias da Bem-Aventurança que haviam de lograr para sempre? Quantos dormem, como Sifara, deitando-se à noite muito confiados do prazo da sua vida, e muito carregados, quando dá sobre eles aquela crudelíssima Jael da morte que não dorme, e dando-lhes um golpe, ou acidente mortal, vão acordar ao outro dia entre os desacordos da sua condenação? Quantos dormem, como Sansão, entre os afagos da sensualidade e carícias de Dalilas infiéis, com que vêm a perder as forças da alma e a valentia do espírito, com que haviam de rebater os assaltos das tentações, e as investidas dos Filisteus infernais, que privando-os da liberdade da graça em que algum tempo viveram, a vista dos olhos, com que se deviam resguardar dos perigos ou laços de suas danadas afeições, os privam finalmente da vista e glória de Deus? Quantos dormem, como Jonas, nesta brava costa do mundo entre as alteradas ondas que se levantam do mar empelado dos seus pecados, com que vem a perder a viagem que deviam fazer para o porto da salvação pelo rumo de Ninive, ou da penitência das suas culpas, com que vêm a fazer um triste e lamentável naufrágio nessa fatal tormenta, ou tormentos do Inferno em cujo bojo, ou ventre, se acham sepultados, dando brados mais funestos que os que dava Jonas lá no ventre da baleia: De ventre inferi clamavi? E não quereis que me admire? Não quereis que me assombre de ver tanto sono, de ver tanto descuido, de ver tanta negligência nas matérias da salvação, sem que bastem para nos despertar os brados que nos estão dando os Anjos Custódios deste Reino de Deus, que são nossas almas? Oh, que este sono, este descuido, esta negligência nos desvelos do que mais nos importa que é a salvação, não pode de deixar de fazer pasmar e assombrar até aos que forem tão bárbaros como eram os companheiros de Jonas, na sua navegação para Tarsis: Quid tu sopore deprimeris? Surge.

anjo portugal[1]

12. Anjo Santo, Espírito Soberano, Guarda Mor de Portugal, que por comissão de Deus e disposição de sua Divina Providência, tendes à vossa conta resguardar a este Reino não só no tocante ao Temporal defendendo-o de todas as hostilidades dos seus contrários, promovendo-o no aumento das suas felicidades, e adiantando-o nas empresas de suas conquistas, senão também tocante ao Espiritual, que é o mais relevante: peço-vos, encarecidamente, que levanteis a voz animada com os alentos do vosso espírito, e reforçada com os penetrantes golpes de vossas santas inspirações, e deis a cada uma das nossas almas adormecidas em suas culpas aquele saudável brado, que deu hoje o Anjo do Evangelho a S. José, e que a mim me deu matéria para este Sermão: Surge, para que despertemos todos de tão prolongado sono e tão pernicioso descuido nas matérias da nossa salvação, e abrindo os olhos da nossa vigilância possamos, mediante a protecção da vossa custódia, evitar os perigos, que se nos oferecem assim na carreira da vida temporal, como no caminho da vida eterna: Ad quam nos, etc.

NOTAS

[1] José João Riguad de Sousa, Mosteiros do Concelho de Amares – Mosteiro de Santa Maria de Bouro. Minia, 2.ª Série, 2-3, pp. 44-56, Braga, 1979.

[2] José Luís de Pina, Castelo de São Mamede e igreja de São Miguel do Castelo. In “Ilustração Portuguesa”, n.os 25-26, Julho-Agosto, Porto, 1928.

[3] Jorge Rodrigues, O mundo românico (séculos XI-XIII). In História da Arte Portuguesa, vol. 1, pp.180-331, edição Círculo de Leitores, Lisboa, 1995.

[4] René Guénon, O Rei do Mundo. Editorial Minerva, Lisboa, 1978.

[5] Na iconografia cristã, o Anjo Mikael aparece com esses dois atributos nas representações do “Juízo Final”.

[6] Kshatriya, em sânscrito, equivale ao cavaleiro ou guerreiro, isto é, a casta militar de quem o rei era chefe supremo.

[7] Função de Melki-Tsedek ou “Rei do Mundo” desempenhada por São Jorge ou Akdorge, em tibetano, que é uma espécie de “miniatura” terreal do São Miguel ou Mikael celestial por seus atributos e funções idênticas às deste, um como Guardião do Paraíso Terrestre e outro na função psicopompa de conduzir as almas eleitas dos puros aos Paraíso Celeste de que também é Guardião. Ambas as divindades tendo o Fogo como o seu elemento natural, tanto o do Céu como o da Terra.

[8] Shekinah é a Manifestação de Deus sob forma feminina, o que a dispõe na Revelação da Luz do Divino Espírito Santo. Donde, na primazia do padroado de Portugal, a Virgem Maria aparecer junta com o Arcanjo Mikael.

[9] Essa última observação recorda naturalmente as seguintes palavras: Benedictus qui venit in nomine Domini (“Bendito Aquele que vem em nome do Senhor”). São aplicadas ao Cristo que o Pasteur d´Hermas assemelha precisamente a Mikael de uma maneira que pode parecer bastante estranha, mas que não deve espantar aqueles que compreendem a relação entre o Messias e a Shekinah. O Cristo é também designado por “Príncipe da Pax” e é, ao mesmo tempo, o “Juiz dos vivos e dos mortos”.

[10] Henrique José de Souza, O Despertar de Mahimã, 1948-1950. Obra não editada.

[11] Segundo a lenda de fundação, D. Afonso Henriques vira aparecer ao lado do seu braço direito um outro braço armado de espada em riste que terminava junto ao ombro com uma asa de cor púrpura. O rei concluiu que esse braço pertencia ao seu Anjo da Guarda São Miguel, tendo muitos dos mouros cativos na batalha jurado também tê-lo visto.

[12] Crónica Geral de Espanha de 1344, compilada por Pedro Afonso, conde de Barcelos e filho natural do rei D. Dinis. Edição crítica por Luís Filipe Lindley Cintra, Academia Portuguesa da História, Lisboa, 1951-1961.

[13] Frei Bernardo de Brito, Crónica de Cister, primeira parte. Lisboa, 1602.

[14] D. Ascanio Tamburini de Marradio, De Jure Abbatum, et Alliorum Praelatorum, tàm Regularium, quàm Secularum, III Tomo. Colónia Agripina, 1691.

[15] Jorge Cardoso, Agiológio Lusitano dos Santos e Varões ilustres em virtude do Reino de Portugal, e suas conquistas, Tomo III, p. 126. Lisboa, 1666.

[16] Padre António de Vasconcelos, Tratado do Anjo da Guarda, parte I, p. 2. Évora, 1621.

[17] Vitor Manuel Adrião, Portugal Templário – Vida e Obra da Ordem do Templo, pp. 354-356. Madras Editora Ltda., São Paulo, 2011.

[18] Pinharanda Gomes, Povo e Religião no Termo de Loures. Paróquia de Santo António dos Cavaleiros, Loures, 1982.

[19] Na época quinhentista aparece um nome marrano para o Arcanjo: Bérrio. A aravela Bérrio que fez parte da frota de Vasco da Gama que descobriu o caminho marítimo para Índia, capitaneada por Nicolau Coelho e pilotada por Pêro Escobar, não deve o seu nome a tão-somente ter sido cedida por Manuel de Bérrio, armador natural de Lagos, porque se assim fosse escusava-se o indistinto de apodá-la Bérrio e baptizá-la São Miguel, dispondo os nomes como sinónimos um do outro. Cf. Fernão Lopez de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos Portugueses, Livro I. Lisboa, 1883.

[20] Manuel J. Gandra, O Anjo Custódio de Portugal. Edição do autor, Mafra, 2007.

[21] José Fernandes Pereira, A Escultura de Mafra. Lisboa, 2003.

[22] Joaquim da Conceição Gomes, O Monumento de Mafra. Lisboa, 1866.

[23] Ayres de Carvalho, A escultura em Mafra. Mafra, 1950.

[24] Alain Jacobs, L´Archange Raphael et l´Ange Tutélaire du Royaume du Portugal Sculptés à Rome vers 1730 – 1732 par Laurent Delvaux. Contribution à l´Étude des Sculpteurs de la Basilique de Mafra. In “Gazette des Beaux-Arts”, Tomo CXXVIII, Ano 138, pp. 71-90, Setembro 1996.

[25] Teresa Leonor M. Vale, Obras do escultor Filippo della Valle (Florença, 1698 – Roma, 1768) realizadas para Portugal ou para portugueses. Revista da Faculdade de Letras, “Ciências e Técnicas do Património”, I Série, Vol. V-VI, pp. 601-614, Porto, 2006-2007.

[26] Max Heindel, Conceito Rosacruz do Cosmos. Editora Alfaômega Portugal, Lisboa, 1981.




[Novo artigo] O Anjo Custódio de Portugal (memória cultual)



– Por Vitor Manuel Adrião
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A DERROTA DO CONQUISTADOR DAS QUATRO DIREÇÕES



Krisna Das - Ma Durga completo 17min

A Derrota do Conquistador das Quatro Direções



Vrindavana Dasa Thakura
(Da obra Chaitanya-Bhagavata)

Como devoto de Sarasvati, a deusa da eloquência e da sabedoria, ele parecia capaz de conquistar a todos, mas a derrota lhe visita inesperadamente na pessoa de um jovem notável.

Uma grande comunidade de eruditos, formada por centenas de milhões de professores a regerem diversos gêneros de livros e escrituras, residia em Navadvipa à época do advento do Senhor Chaitanya Mahaprabhu à Terra. Títulos como bhattacharya, chakravarti, mishra e acharya eram comuns, e a única ocupação desses letrados era ensinar. A diversão deles era fazerem debates entre si, e, a seu modo intolerante e impaciente, faziam tudo o que fosse necessário para vencer a discussão. Mesmo que o oponente fosse excelente como Brahma e apresentasse pontos válidos, esses seriam recusados.

Diante de grandes plateias, o Senhor Chaitanya sempre repreendia, um a um, todos os grandes eruditos e invalidava seus argumentos. Não havia ninguém capaz de derrotar o Senhor e de estabelecer uma opinião diferente da Sua. Quando os professores de Navadvipa viam o Senhor, o medo nascia em seus corações. Abaixando suas cabeças, eles fugiam de Chaitanya tão rápido quanto podiam. Tornava-se Seu servo submisso qualquer um que acaso conversasse com o Senhor.

A erudição e a inteligência exibidas por Chaitanya desde tenra idade eram conhecidas por todos. Também era conhecido pelo coração de todos que o Senhor não podia ser derrotado por pessoa alguma. No instante em que avistavam Chaitanya, um sentimento de respeito e temor se fazia presente entre os estudiosos, tornando-os espontaneamente submissos. Sob o encanto de yogamaya, todos eram impedidos de conhecer a verdadeira identidade de Chaitanya. O Senhor não Se revelando voluntariamente, não há nenhuma possibilidade de alguém O conhecer. O Senhor Supremo é a personalidade mais munificente, e, por Seu desejo pessoal, todos foram confundidos por Sua yogamaya. Assim, com Sua identidade a todos desconhecida, o transcendental Senhor Chaitanya seguia desfrutando em Navadvipa do humor estudantil.

Ansiedade em Navadvipa
Certa vez, um desdenhoso e arrogante erudito – que ostentava o título de digvijayi, “aquele que conquistou todas as direções” – chegou a Navadvipa. Ele era um dedicado devoto da deusa da sabedoria, Sarasvati. Cativando-a pelo cantar de seu mantra, o erudito obteve o favor dela. A deusa Sarasvati é uma forma de Lakshmidevi, que reside eternamente no peito de Seu esposo, Vishnu. Ela é a mãe do universo e a personificação do serviço devocional a Deus. Muito afortunado, o brahmana teve atendido seu desejo de ver Sarasvati diante de seus olhos. Ela concedeu-lhe a graça: “Serás vitorioso em todos os três mundos”. Se, com seu mero olhar, ela pode outorgar o raro benefício do serviço devocional ao Supremo Senhor Vishnu, ela ter o poder para tal bênção não é em nada surpreendente. Tendo recebido esse favor diretamente de Sarasvati, o brahmana colocou-se a viajar por todo o país derrotando todos por onde passava. Todas as escrituras residiam em sua língua. Ninguém deste mundo seria capaz de vencê-lo. Muitos não eram nem mesmo capazes de acompanhar a introdução de suas explicações. Sem conhecer o significado da palavra “derrota”, ele viajava por toda parte.


A fama de Navadvipa ter uma comunidade de intermináveis eruditos chegou a seu conhecimento. Após ter conquistado todas as demais direções, o erudito digvijayi, acompanhado por cavalos, elefantes e homens opulentamente vestidos, apeou-se em Navadvipa. A notícia se espalhou como um incêndio. Em toda casa e assembleia de eruditos, um grande tumulto se fez. “Tendo conquistado os estudiosos de todas as terras, o digvijayi está agora em nossa cidade”, diziam todos. Ao saberem que ele havia recebido uma bênção direta de Sarasvati e que a deusa o tratava como se fosse sua própria mãe, os professores de Navadvipa ficaram ainda mais ansiosos. Eles diziam:

 “Navadvipa conquistou todos os outros centros de estudo de Jambudvipa, e isso nos faz famosos em todo o mundo”.

 “Se esse digvijayi derrotar nossos eruditos, as pessoas por todo o mundo diminuirão nossa cidade e conversarão sobre como Navadvipa perdeu sua glória”.

 “Contudo, tendo Mãe Sarasvati o agraciado pessoalmente, quem será destemido e poderoso o bastante para duelar com ele? Se Sarasvati pessoalmente seleciona as palavras a se manifestarem de sua língua, então como poderá um ser humano comum derrotá-lo?”.

Dessa maneira, milhares e milhares de versados bhattacharyas tiveram seus corações invadidos pela ansiedade. Tamanha era essa ansiedade que nenhuma atividade conseguiam realizar. Com a proximidade do iminente duelo intelectual, um grande alvoroço se instalou em Navadvipa. “Precisamos encontrar um grande erudito para nos representar!”.

Tudo isso foi descrito em detalhes ao Senhor Chaitanya por Seus alunos. Eles disseram:

 “Após ter conquistado todas as direções com as bênçãos de Sarasvati, esse erudito invicto veio desafiar nossos eruditos a um debate. Acompanhado por uma hoste de cavalos, elefantes, palanquins e homens, ele chegou a Navadvipa. Com ninguém se apresentando para debater com ele, está exigindo que se faça uma carta oficial declarando sua vitória sobre nós”.

Ouvindo as palavras de Seus alunos, o Senhor Chaitanya, esplêndido como um topázio, sorriu e os lembrou acerca da natureza do Absoluto.

 “Por favor, Meus irmãos, escutem-Me e lhes direi a verdade. A Suprema Personalidade de Deus é intolerante a contínuo falso orgulho. Sempre que vê alguém sobrecarregado pela presunção das próprias qualidades, Ele invariavelmente remove a causa desse orgulho. Assim como uma árvore com muitos frutos se curva, o natural é que uma pessoa com boas qualidades também assuma a postura humilde de se curvar. Vocês devem ter ouvido falar de outros grandes conquistadores, como Haihaya, Nahusa, Vena, Banasura, Narakasura e Ravana. Analisem o que aconteceu a eles e Me respondam: o falso prestígio deles não foi reduzido a pó? O Senhor Supremo nunca tolera esse tipo de insolência infame. Aqui em Navadvipa, vocês testemunharão o fim do orgulho desse erudito”.

O Digvijayi Encontra-se com o Senhor Chaitanya
Após assim Se divertir conversando com Seus alunos; ao entardecer, o Senhor foi com eles para a beira do Ganges. Depois de respingar água do Ganges sobre Sua cabeça e oferecer reverências a Ganga, o Senhor Chaitanya, não outro senão o próprio Senhor Hari, sentou-Se em meio a Seus alunos. Era imenso o círculo de estudantes ao redor do Senhor. Ali, às margens do rio sagrado, o Senhor alegremente palestrou sobre vários temas, como escrituras e princípios religiosos. Ninguém, entretanto, pôde notar que o Senhor estava simultaneamente pensando em uma maneira pela qual Ele poderia derrotar o erudito digvijayi.

“Tornou-se tão orgulhoso esse brahmana que ele pensa não haver ninguém no mundo capaz de derrotá-lo”, pensava o Senhor enquanto dava aula.

“Se Eu o derrotasse na frente de todos, isso seria uma humilhante morte para ele. Todos iriam desonrá-lo, suas opulências se perderiam e a humilhação acabaria por tirar-lhe a vida. Como não quero destruir o brahmana, mas sim seu orgulho, irei, portanto, confrontá-lo secretamente em um local solitário”.

Enquanto o Senhor Supremo pensava dessa maneira, o digvijayi chegou ao local onde o Senhor palestrava.

No que o entardecer tornou-se noite, o Ganges parecia radiante sob a Lua cheia do céu sem nuvens. À beira do Ganges, acompanhado por Seus estudantes, estava a Suprema Personalidade de Deus, cuja belíssima forma cativa toda a criação. Um sorriso doce decorava Seu rosto refulgente, e Seus dois olhos de lótus distribuíam olhares reluzentes. Seus dentes impecáveis ridicularizavam pérolas, e Seus lábios eram facilmente confundidos com o nascer do Sol. Com Seu corpo macio e delicado, Chaitanya personificava a compaixão e a misericórdia. Cabelos encaracolados, negros como corvos, embelezam Sua cabeça. Seu pescoço, belo como o de um leão, repousava harmoniosamente sobre Seus ombros similares aos de um elefante. Sua aparência era extraordinária. Seu corpo de proporções perfeitas era alto e com peito largo, e Seu coração era reinado por Sua natureza munificente. Suas roupas eram elegantes, e o cordão bramânico repousado sobre Seu ombro era o próprio Senhor Ananta Shesha. Seus longos braços se estendiam até Seus joelhos, e a tilaka vaishnava a decorar Sua testa larga enlevava o coração de todos. Com Seu dhoti elegantemente preso à Sua cintura, Chaitanya estava sentado com as pernas cruzadas como as de um yogi. O Senhor palestrava à Sua maneira usual – estabelecia um ponto, refutava-o e então refutava Sua refutação. Assim estava o glorioso e belo Mahaprabhu cercado de estudantes por todos os lados.

A visão do Senhor e de Seus associados abismou o erudito digvijayi. Ele se perguntou: “Será Ele o famoso Nimai Pandita?”. Sem ser notado, o digvijayi ficou de pé ali, incapaz de desviar o olhar da beleza do Senhor. Ele então perguntou a um dos estudantes quem era aquele professor. “Ele é o famoso Nimai Pandita”, obteve por resposta. Após oferecer suas reverências ao Ganges, o brahmana aproximou-se um pouco mais do Senhor. Ao vê-lo, Chaitanya lhe sorriu e afetuosamente o convidou a se sentar na assembleia. Por todas as suas conquistas já realizadas, o digvijayi era naturalmente destemido. Na presença do Senhor, todavia, ele estava temeroso. Pelo arranjo do onipotente Senhor Supremo, experimenta tanto deslumbre quanto temor todo aquele que se aproxima dEle em postura de desafio.

Versos ao Ganges
O Senhor, após trocar algumas poucas palavras com o brahmana, fez-lhe um pedido.
“Você é um poeta extremamente habilidoso”, disse o Senhor. “Não há nenhum tema que você não possa descrever com perfeição. Por favor, descreva, então, um pouco das glórias do Ganges de sorte que qualquer um que ouça esses versos possa se livrar de todo pecado”.

Quando Chaitanya finalizou Seu pedido, o digvijayi imediatamente começou a compor e recitar versos em glorificação ao rio sagrado. Seus versos improvisados eram recitados velozmente. Quem na assembleia era capaz de entender a grande sofisticação daquelas palavras? Os poemas eram recitados com uma voz grave e profunda. As palavras em sequência pareciam um constante ribombar de trovões. Uma pessoa cuja língua é a morada de Sarasvati certamente profere apenas palavras precisamente apropriadas. Seria humanamente possível encontrar algum erro em sua eloquente composição? Parecia, na verdade, não haver ninguém que pudesse ao menos entender suas palavras.

Ficaram boquiabertos os muitos estudantes de Chaitanya que se reuniam ali. “Rama! Rama! Que maravilhoso!”, eles pensaram. “É possível a um ser humano ordinário compor versos com essa impressionante fluidez?”. Sua composição era precisa e ricamente decorada com as mais requintadas figuras de linguagem. Mesmo os grandes estudiosos versados em todos os livros e escrituras consideraram o seu uso das palavras de difícil compreensão. Por cerca de uma hora, o digvijayi seguiu compondo e recitando seus versos sem paralelo – parecia não haver fim para sua oratória brilhante.

Quando ele finalmente terminou, o Senhor sorriu gentilmente e disse: “Sua poética é tão extraordinária que, a não ser que você mesmo a explique, ninguém entenderá. Certamente são apropriados para a glorificação do Ganges os versos compostos por você, mas lhe solicitamos que, por favor, explique-os a nós”.

As doces palavras do Senhor afetaram-no como uma droga, e ele começou a explicar os seus versos, mas, assim que o brahmana começou sua explicação, Chaitanya o interrompeu e apontou três erros na composição do erudito – um no começo, um no meio e um próximo ao final.  O Senhor disse: “Essas figuras de linguagem usadas por você, segundo os livros autorizados, estão empregadas de forma imprecisa. Qual explicação você nos apresentará para que possamos entender que o emprego feito por você é possível?”, perguntou o Senhor Chaitanya. O grande erudito conquistador das quatro direções, o mais querido dos filhos de Mãe Sarasvati, não foi capaz de dizer uma única palavra em sua defesa.

Sua inteligência havia desaparecido. Por cinco ou sete vezes, ele tentou apresentar explicações para refutar os erros apontados pelo Senhor, mas, quanto mais tentava se defender, mais críticas Chaitanya lançava sobre seus versos e explicações. O talento inigualável do brahmana parecia ter-se desvanecido. Ele nem mesmo sabia ao certo quem ele era ou onde estava. O Senhor então disse: “Tudo bem. Esqueçamos este poema. Componha outro para nós”, mas o grande conquistador do mundo foi incapaz de compor um único verso sequer – ele apenas olhava para o Senhor completamente perplexo.

A Grandeza e a Misericórdia de Chaitanya Mahaprabhu
Se mesmo os Vedas personificados ficam confusos quando diante do Senhor, o que há de surpreendente na perplexidade desse brahmana na mesma situação? Poderosas personalidades como Ananta Shesha, Brahma e Shiva, poderosas a ponto de poderem criar um universo meramente pelo olhar, também perdem todo referencial quando na presença do Supremo. Não há, portanto, nada de espantoso no assombro do brahmana diante do Senhor. Mesmo Lakshmi, Sarasvati, Yogamaya e outras potências internas do Senhor, capazes de iludir toda a criação, também ficam desnorteadas na presença do Senhor – eis a razão para elas aceitarem uma posição humilde diante dEle. Se o Senhor Ananta Shesha, o recitador dos Vedas, e Sri Vedavyasa, o compilador dos Vedas, ficam confusos na presença do Senhor, o que se poderia esperar de um reles erudito digvijayi? É impossível a um homem igualar os feitos do Senhor. Portanto, eu digo: todas as atividades do Senhor são extraordinárias. E toda atividade do Senhor Supremo, em sua essência, tem por fim beneficiar e resgatar as sofredoras almas condicionadas.

Enquanto o erudito esforçava-se para aceitar sua derrota, todos os estudantes começaram a rir e gargalhar. O Senhor, no entanto, deu ordem para que parassem, e deu ao brahmana palavras em tom amigável. “Por hoje, volte, por favor, para o local onde você está hospedado. Amanhã conversarei com você. Deve estar cansado após ter composto um poema tão extenso. E já é um tanto tarde. Por favor, vá descansar agora”. Era tão gentil e compassivo o comportamento do Senhor que mesmo a pessoa derrotada por Ele não se sentia infeliz. Embora sempre os derrotasse, o Senhor dava grande prazer a todos os professores de Navadvipa. Novamente, Ele disse ao erudito digvijayi: “Por favor, vá para casa agora e releia seus livros. Amanhã, Eu lhe farei novas perguntas e você deverá tentar respondê-las”. O Senhor era tão compassivo que, apesar de sempre sair vitorioso, Ele não desonrava Seus oponentes, daí ser tão querido. No íntimo de seus corações, todos os estudantes e professores de Navadvipa amavam Chaitanya.

Sarasvati Revela a Identidade do Senhor

Acompanhado por Seus alunos, o Senhor retornou à Sua casa. O digvijayi, entretanto, sentindo-se humilhado e deprimido, permaneceu sentado onde estava. Melancólico, ele pensava: “Mãe Sarasvati me deu pessoalmente sua bênção e disse que eu jamais encontraria neste mundo alguém versado em nyaya, sankhya, patanjala, mimamsa, vaisheshika ou vedanta o suficiente para ousar desafiar minha autoridade. Como é possível que a providência tenha autorizado eu ser derrotado por um brahmana que ensina gramática a crianças? Ver o poder de Sarasvati diminuído dessa maneira me causa igual consternação. Para que todo o meu talento se depreciasse nessa derrota humilhante, teria eu ofendido a deusa? Buscarei pela resposta imediatamente”. Com isto, ele sentou-se para cantar seus mantras.
Enquanto cantava, o desalentado brahmana dormiu. Então, em seu sonho, Sarasvati veio até ele. Lançando-lhe um olhar misericordioso, a deusa revelou um grande segredo ao poeta erudito. “Escuta, ó excelente brahmana. Revelar-te-ei algo desconhecido mesmo aos Vedas. Se por qualquer razão revelares este segredo a outrem, perderás imediatamente o teu corpo.

O Senhor Supremo de toda a manifestação cósmica é a identidade verdadeira de quem hoje derrotou tua pessoa. Embora eu seja a criada responsável por cuidar eternamente do conforto de Seus pés de lótus, eu, devido à timidez, hesito ficar diante dEle. Ó brahmana, eu havia prometido que ficaria em tua língua – na presença do Senhor, todavia, não me foi possível. Se mesmo o Senhor Ananta Shesha, que recita os Vedas com Suas inúmeras bocas, bem como Brahma, Shiva e os demais devas que adoram o Senhor Supremo ficam completamente perdidos em Sua presença, como se poderia esperar de mim algo diferente? Chaitanya é a Suprema Verdade Absoluta. Ele é eterno, completamente puro, indivisível, infalível, perfeito e completo, e reside no coração de todos como a Superalma. Eu sei ter dito que terias conhecimento pleno de karma, jnana e de todas as ciências auspiciosas e inauspiciosas. Permite-me explicar-te a causa de todo esse conhecimento ter sido destruído: esse jovem brahmana Chaitanya não é outro senão a Suprema Personalidade de Deus, a causa última da destruição de todo o cosmo manifesto.

 Ó brahmana, por favor, tem por certo que qualquer felicidade ou aflição que chegue a alguma criatura, de Brahma à mais baixa delas, chega sob a ordem do Senhor. Escuta, por favor. Matsya, Kurma e todas as encarnações vêm dEle. Ó brahmana, nada é separado dEle visto ser Ele o Senhor Supremo em pessoa. Esse Chaitanya apareceu anteriormente como Varaha e resgatou a Terra e novamente apareceu como Nrisimhadeva para a proteção de Seu devoto Prahlada. Ele também apareceu como o Senhor Vamana e enganou Bali Maharaja, e assim Seus pés se tornaram a fonte do Ganges. Aparecendo em Ayodhya como o Senhor Ramachandra, Ele desfrutou de muitos passatempos, como o de matar o demônio Ravana. O mesmo garoto que foi carregado por Vasudeva até Nanda apareceu agora como o filho de um brahmana e está desfrutando do néctar da vida estudantil”.

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Sarasvati revela em sonho a seu devoto a identidade do Senhor Chaitanya.

“Onde nos Vedas essa forma do Senhor Supremo é descrita?”, continuou Sarasvati. “Senão pela vontade do próprio Senhor, ninguém tem o poder de conhecê-lO. Tornar-se o maior erudito de todo o mundo não é o verdadeiro resultado de se cantar o mantra que dei a ti. O verdadeiro resultado acabaste de receber – tu pudeste ver pessoalmente a Suprema Personalidade de Deus, o Senhor de toda a manifestação cósmica. Ó brahmana, vai-te sem demora até os pés de lótus do Senhor e oferece incondicionalmente a Ele o teu próprio eu. Não penses ser o meu conselho alguma espécie de sonho ou alucinação. Em consequência dos mantras que cantaste, eu tive de vir aqui e te contar esse que é o conhecimento mais esotérico de todos os Vedas”.

Uma Oração Sincera
Tendo consolado o erudito com essas palavras, Mãe Sarasvati desapareceu. O brahmana, sentindo-se purificado e muito afortunado, despertou então. O alvorecer havia acabado de tocar o céu oriental quando o brahmana saiu em direção à casa do Senhor. Ele atirou-se aos pés de Chaitanya para oferecer seus respeitos, e o Senhor reciprocou levantando-o do chão e o abraçando. “Por que, ó brahmana, você age desta forma?”, perguntou o Senhor. “Para dessa forma talvez atrair Seu olhar misericordioso”, ele respondeu. “Mas você é um erudito famoso por ter conquistado as quatro direções. Por que você Me aborda dessa maneira?”.

“Ó rei dos brahmanas, por favor, escuta esta minha declaração”, disse o erudito digvijayi. “Adorar-Te é a perfeição de todas as atividades. És o próprio Senhor Narayana. Embora as pessoas comuns não possam conhecer Tua identidade verdadeira, és definitivamente a Suprema Personalidade de Deus atuando como um brahmana em Kali-yuga. Dúvidas nasceram em meu coração no instante em que me fizeste perguntas e então permaneceste em silêncio. Agora, por minha experiência, tenho a convicção de que és magnânimo e livre de qualquer orgulho – e minha experiência está acordante com o veredicto de todas as escrituras védicas. Por três vezes, Tu me derrotaste. Tu, no entanto, mantiveste intacta minha honra. Seria esta postura possível a outro além do Senhor Supremo? Estou convencido de que és, sem dúvida alguma, a Suprema Personalidade de Deus. Com meu vocabulário, derrotei os melhores eruditos de Gauda, Trihuta, Dilli, Kasi, Gujarat, Vijaya-nagara, Kanci-puri, Anga, Vanga, Tailanga, Orissa e de muitas outras localidades. Eles não eram capazes sequer de compreender minhas palavras, o que dizer de encontrar falha em alguma delas. Quando me aproximei de Ti, entretanto, não me restou nenhuma erudição ou eloquência. Aonde foi minha inteligência quando em Tua presença, não sei. Hoje sei que aquilo não foi nenhuma proeza para Ti, pois és o Senhor e amo de Sarasvati. Isto ela me revelou pessoalmente. Eu me revolvia no lamaçal da existência material, mas, em virtude de minha imensa boa fortuna, vim a Navadvipa e me encontrei conTigo face a face. Cativado e deludido pelo desejo por conhecimento material, vagueei por toda parte, negligenciando, assim, o verdadeiro conhecimento. O destino me favoreceu e permitiu que eu me encontrasse pessoalmente conTigo. Ó Senhor, por favor, sê gentil para comigo e, com Teu olhar benevolente, destrói minha ignorância e purifica o meu ser. É de Tua natureza magnânima ajudar os outros. Com exceção de Ti, não há ninguém a cujo abrigo eu aspire. Ó Senhor, por favor, instrui-me de sorte que eu nunca mais permita que entrem em meu coração desejos desvirtuados”.

As Glórias do Serviço Devocional
O Senhor Chaitanya sorriu às palavras do brahmana e lhe respondeu: “Ó brahmana erudito, por ter Mãe Sarasvati residindo sobre sua língua, considero-o muito afortunado, mas o desejo de conquistar as quatro direções do mundo não é produto do conhecimento verdadeiro. É dito pelos sábios que o conhecimento só é válido e verdadeiro quando fomenta a adoração ao Senhor Supremo. Tente entender isso cuidadosamente e adore a Mim. Quando a morte aborda a alma e a obriga a deixar o corpo, ela não pode levar consigo nem mesmo uma pequena porção de riqueza ou poder que tenha aqui obtido. Os sábios e almas autorrealizadas rejeitam completamente esta existência fenomenal transitória e se ocupam com fé indivisível no serviço devocional ao Senhor. Agora, ó brahmana, esqueça completamente toda ocupação material e tenha por foco apenas a adoração aos pés de lótus do Senhor Krishna. Até que venha a morte, sirva o Senhor Krishna. Não há dúvidas quanto a isso ser o que deve ser feito. Lembre-se de que o fruto do conhecimento verdadeiro é saboreado quando o coração e a mente estão firmemente apegados aos pés de lótus do Senhor Krishna. Escute o importante conhecimento que agora compartilharei com você: de todas as variadas atividades existentes em todos os inumeráveis universos materiais, o serviço devocional ao Supremo Senhor Vishnu é a única atividade com valor real”.

Depois de ditas essas palavras, o Senhor Chaitanya abraçou o brahmana com grande satisfação. Em consequência do abraço do rei de Vaikuntha, o brahmana se livrou definitivamente dos grilhões da existência material. Então, disse a ele o Senhor: “Ó brahmana, rejeite sua arrogância e insolência, adore o Senhor Krishna e seja gentil com todos os seres vivos. Vigie a si mesmo para que você não revele a ninguém o que lhe contou Sarasvati. A revelação do conhecimento confidencial dos Vedas a pessoas desautorizadas reduz a duração de vida e desvia o revelador do caminho da vida espiritual”.
Tendo recebido as instruções do Senhor, o brahmana ofereceu reverências estendendo-se no chão como uma vara. Repetidas vezes, ele reverenciou os pés de lótus do Senhor e ofereceu orações. Certo de que sua vida agora havia alcançado o sucesso, o brahmana partiu. Pelo desejo do Senhor, tanto a renúncia e o conhecimento verdadeiro quanto o serviço devocional tornaram-se companheiros do brahmana. A arrogância e a vaidade do grande erudito se extinguiram e ele se tornou tão humilde e manso como uma folha de grama. Ele renunciou seus elefantes, cavalos, palanquins, dinheiro e tudo o mais que um dia considerara seu. Tendo o Senhor Chaitanya como sua única fonte de felicidade, o erudito digvijayi agora viajava sozinho.

Tamanha é a misericórdia do Senhor Chaitanya que, com ela, um rei pode facilmente trocar seu palácio por uma cuia de esmolas. Um exemplo notório é o de Dabira Khasa, que posteriormente ficou conhecido como Srila Rupa Goswami. Abandonando sua posição dentro da realeza, ele passou a viver muito feliz na floresta de Vrindavana. O desfrute de riquezas e prestígio, que todos anseiam por obter, um servo de Krishna rejeita com facilidade.

 Qualquer pessoa que não tenha compreendido
 o quão valioso é o serviço devocional ao Senhor Supremo 
naturalmente considerará a posição de rei como muito desejável e digna de inveja. 

Os devotos de Krishna, no entanto, não só consideram 
as felicidades materiais como insignificantes,
 mas também rejeitam completamente a felicidade derivada da libertação. 

Os Vedas recomendam que todos adorem o Senhor Supremo, 
isso porque, somente em Seu olhar misericordioso, existe verdadeira felicidade.

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 Fontes:
 Volta ao Supremo 
- voltaaosupremo@gmail.com
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