sábado, 21 de maio de 2011

HARMONIA - O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA DE NIETZSCHE




Karinna Alves Gulias

Bolsista de Iniciação Científica da FAPERJ

Introdução

  A obra O nascimento da tragédia[1] expõe o constante conflito entre dois mundos artísticos figurados pelos deuses gregos: Apolo e Dionísio. 
As forças artísticas
apolíneas e dionisíacas irrompem 
diretamente da natureza sem a mediação
do homem artista

e se realizam imediatamente em dois mundos antagônicos, que, respectivamente, são: o mundo figural onírico da beleza, da perfeição, do mundo ilusório e imagístico dos sonhos; e o mundo da realidade inebriante oriunda do Uno-Primordial, a raiz metafísica de toda a realidade e a fonte de todos os sofrimentos, ou seja, o mundo infinito e velado (indefinido no tempo e espaço). São pulsões artísticas imediatas da natureza e que fazem do artista humano um "imitador".
O homem artista é um imitador 
(tanto) 
da pulsão apolínea 

 – vista, por exemplo, nas artes plásticas – como da pulsão dionisíaca – através da música – separadas; quanto das duas pulsões integradas, operando em conjunto – dando origem a arte trágica.
O mundo invisível do Uno-Primordial 
é o mundo das emoções, da intensidade,
inestético: figura o caos, o nada. 

É, pois, um movimento de produção, uma pulsão geradora da natureza, que se apresenta como a imagem, visível, das aparências do mundo, agora, estético e estetizado. 

O ânimo estético equivale 
ao estado puramente contemplativo, 
enquanto o inestético, ao que é primeiro,
anterior, ao Uno-primordial.

Para Nietzsche, apenas quando a arte plástica, estética, apolínea e a arte musical, inestética, dionisíaca se harmonizam, interpermeando-se, há a possibilidade, para os espectadores, de aproximação às forças originais da natureza; de imediação com a vida e suas pulsões configuradoras da natureza.

A arte do visível e do invisível, do estético e do inestético, juntos, opera o estranhamento e a fusão dos opostos. O homem perde a consciência de si mesmo e passa a ver e sentir o mundo de forma antitética, onde há o tormento delicioso[2] que liga os contrários; o mundo como harmonia e desarmonia, consonância e dissonância, prazer e dor, vida e morte.

A partir da arte, o homem interpreta a vida, tornando-a suportável e agradável de ser vivida. Isso ocorre através da mediação do homem com o já configurado para, assim, entrar em contato com o movimento de configuração, das pulsões artísticas da vida, ou seja, através da estética conhecer o inestético: o mundo das emoções; intenso.

O espectador conhece o inestético, porém, apenas por aproximação. O mundo velado nunca será inteiramente atingido, porque o ouvinte já parte de uma realidade estética. Por isso, a sensação de embriaguez que o atinge ao se sentir fora de si, fora de sua individualidade, é alcançada através de uma ilusão.

Mesmo ao dar a mais perfeita ilusão da natureza em algo artificial – a arte humana trágica – a descoberta de que se trata de uma imitação aniquilaria totalmente o sentimento de comoção do ser e, assim, o que antes parecia uma alegria embriagada, se transforma em uma insatisfação que faz o ouvinte voltar ao seu estado individual.

Kant, que eu saiba o primeiro a ter começado a refletir propriamente sobre esse fenômeno, lembra que, se ouvíssemos o canto do rouxinol imitado com a máxima ilusão por um homem e se nos entregássemos com inteira comoção à impressão por ele provocada, todo o nosso prazer desapareceria com a destruição dessa ilusão[3].

A todo momento na obra, estes dois mundos artísticos são explicados a partir de conceitos musicais como ritmo, melodia, som e harmonia, sendo que esta é composta por dois aspectos: dissonância e consonância. Em teoria musical, a dissonância, que, para Nietzsche, explicita o movimento infinito do caos dionisíaco, é o intervalo que dá idéia de continuidade ou movimento, enquanto que a consonância, a consolidação do ser como um indivíduo sólido e finito (principium individuationes) no mundo aparente apolíneo, é o intervalo que dá idéia de repouso.

Na teoria fundamental da música, a dissonância pede sempre para ser resolvida por uma consonância – o movimento necessita de uma resolução em repouso. O mesmo acontece em O nascimento da tragédia com as forças da natureza simbolizadas na arte grega pelos deuses Apolo e Dioniso, também representadas com as noções de querer ou vontade.

A vontade, 
que simboliza todo o essencial 
e inaudito na esfera da natureza, 
é a emoção desmesurada caracterizada 
pelo movimento constante da confusão 
entre o arqui-prazer* e a dor. 

O ser não pode permanecer por muito tempo indeterminado[4], precisando de uma resolução – daí resulta o movimento do querer, provindo desse ser – que o fragmenta, transformando o que antes era um ser único infinito e indeterminado em agora múltiplos seres finitos e individuais. A partir desse despedaçamento do ser uno-primordial, essas formas individuais, para se libertarem da dor carregada da experiência anterior como essência do uno-primordial, criam um novo mundo de sonhos e estético, solidificando essas novas individualidades.

De acordo com Nietzsche em O nascimento da tragédia, harmonia é a ingenuidade[5] – primeiramente apresentada por Schiller com a palavra naïf (ingênuo) –, o prazer do homem apolíneo na convivência com a natureza; o anseio pela continuação da vida, da existência empírica, sentindo-se unido a ela através da criação de um mundo agradável e belo.

Nietzsche também descreve a música dionisíaca como o mundo absolutamente incomparável da harmonia[6] e a comovedora violência do som[7]. A harmonia aqui, vista como dimensão dionisíaca, contrapõe-se à harmonia ingênua na medida em que está explicitada como algo violento e intenso, não agradável: Então crescem outras forças simbólicas, as da música, em súbita impetuosidade, na rítmica, na dinâmica e na harmonia[8].

A harmonia 
é associada à frenética movimentação,
pela dissonância, de ritmos e sons 
para representar o caos, 
a harmonia invisível do mundo primordial 
onde só existe lugar para a intensidade, 
para a emoção.

Já a música apolínea 
é caracterizada pela beleza dos sons insinuados 
e pela batida ondulante do ritmo[9], 

que suscita a suavidade, a ordem e, logo, a harmonia, anteriormente citada, do naïf, que se relaciona com o repouso e a individualidade da consonância de um mundo de sonho e ilusão, do mundo aparente, ou seja, a harmonia visível. A resolução própria de uma natureza aparente.
 
A desmedida na harmonia

Na música dionisíaca, a violência do som e o seu transbordamento em harmonia melódica, numa união mística das consonâncias e dissonâncias, levam o corpo dançante do ser ao êxtase do ritmo musical, o que o eleva aos ares, como se estivesse flutuando por entre todos os outros corpos ou entes da natureza; há o desprendimento do indivíduo de si mesmo e o desejo, deste, de se exprimir por vias simbólicas.

A harmonia como interação 
e interpenetração de forças
ou pulsões opostas da natureza,
poderia ser caracterizada por momentos 
ou ciclos de oscilação entre prazer e dor. 

Nessas oscilações tem-se um momento apenas de dor, isto é, gerando uma natureza desmedida e desarmônica, ou melhor, dissonante. Contrapondo a este, e seguinte a este momento, tem-se um outro momento apenas de prazer, gerando uma natureza ordenada, harmônica, no sentido estético da palavra, ou seja, consonante. Isto significa que a harmonia, em seu sentido mais trágico, seria sempre uma harmonia melódica, já que não seria possível fundir em uma unidade duas pulsões inteiramente opostas e que estão sempre em constante tensão entre elas. A união entre elas é num sentido místico de unidade.

Numa arte humana que tenta imitar completamente a harmonia trágica natural, é necessário que se integrem ambas dimensões dionisíaca e apolínea num nível de harmonia tão elevado, que, aos olhos e ouvidos de um espectador de visão apenas apolínea e ordenada, seria arte totalmente desarmônica e destrutiva, ou então, levado por uma visão enganadoramente ingênua e moralmente sublime, possa entendê-la como algo sereno, num sentido de acomodação e tranqüilo deleite, e por assim ser, algo com um sentido estético unicamente de fonte moral sobre os espectadores.

A música e a estética do fenômeno  
 
Temos a harmonia e a melodia 
como fontes do Uno-primordial, 
essência de toda e qualquer música: 

não têm forma, dimensão ou tempo; passam a ser reconhecidas como imagens quando aspectos e modos são introduzidos nelas, para que se possa construir a música como um fenômeno estético.

A cadência, a dinâmica e o ritmo, que transformam a melodia e a harmonia dionisíacas em um conjunto aparente de símiles e imagens, são aspectos plásticos no interior da música[10], são apolíneos, porque neles estão inseridos tempo e espaço. São estes aspectos plásticos que distribuem a sonoridade no tempo e espaço[11].

A música frente à linguagem verbal
Embora Nietzsche mencione a harmonia relacionada à música grega inúmeras vezes, essa harmonia não seria a mesma no sentido de hoje: como acordes harmônicos. Os acordes ainda não existiam, no entanto, a palavra “harmonia” fora inicialmente introduzida por Pitágoras e Heráclito já com o conceito de junção e fusão de todas as coisas, originalmente relacionado ao conceito de cosmos. Só depois teve seu sentido musical estabelecido, visto pela primeira vez com Píndaro. 
A música grega era melódica e modal,
e harmonia caracterizava a melodia,
a afinação (mais tarde classificada em tonalidades),
a escala ou a oitava.

Até as últimas décadas do século V A.C., a música não existia sem a poesia, a palavra, a acompanhando. Aquela não existia como estética única, como atividade independente. Enquanto, para Platão e, conseqüentemente, para a tradição grega, a melodia se subordinava à palavra (a hegemonia era atribuída à palavra), para Nietzsche, ao contrário, a palavra se subordina à música, porque a música é metafisicamente anterior à palavra – já que é a cópia do Uno-primordial – portanto, tendo sobre ela primazia.

Por esse motivo se dá tanta importância à Canção Popular em O nascimento da tragédia, pois em si constitui a união da palavra e da música, como a atividade que, por ser popular, se encarrega de remediar o homem através da renúncia da individualidade e da redenção à sensação de embriaguez a que a música nos leva.

Na canção popular, teríamos a poesia lírica: o poeta lírico é antes de tudo um compositor[12], que renuncia à sua subjetividade e entra em sintonia com o mundo primordial, e por ser o único que conhece a essência da arte, é o único capaz de exprimir toda dor originária na música, ao mesmo tempo que o sujeito real desse poeta se sente extasiado e alegre por sua redenção na aparência. Ele, então, passa a ser sujeito e objeto ao mesmo tempo.
Como dito anteriormente,
a melodia é primeira a qualquer coisa,
universal, podendo suportar
múltiplas objetivações.

Com isso, assinalamos o fato da palavra ser subordinada à melodia e, desse modo, esta é a mais importante e necessária na apreciação ingênua do povo[13]. É ela que está intimamente conectada à memória, ou seja, pela melodia é que se torna uma poesia fácil de ser decorada, principalmente pela sua forma estrófica e por seu estribilhos.
Incessantemente geradora, 
criadora, a melodia descarrega 
flashes de imagens, 

que, em contínuas mudanças, cria um mundo irregular e estranho a qualquer aparência épica, a qual flui serenamente. Por esse motivo, da visão do epos, a lírica deveria ser condenada.

Nietzsche fala desses flashes de imagens, gerados pela música, como um processo de “descarga”[14] da música, onde, na canção estrófica popular, a linguagem verbal é levada a um estado de exaltação a partir do movimento de mimetização da melodia. E, assim, o compositor é nomeado o poeta do som: criador de imagens ou representações similiformes a partir da melodia primogênia da música.

  A obra O nascimento da tragédia[1] expõe o constante conflito entre dois mundos artísticos figurados pelos deuses gregos: Apolo e Dionísio. 

As forças artísticas apolíneas 
e dionisíacas irrompem diretamente
da natureza sem a mediação do homem artista
e se realizam imediatamente 
em dois mundos antagônicos,

que, respectivamente, são: o mundo figural onírico da beleza, da perfeição, do mundo ilusório e imagístico dos sonhos; e o mundo da realidade inebriante oriunda do Uno-Primordial, a raiz metafísica de toda a realidade e a fonte de todos os sofrimentos, ou seja, o mundo infinito e velado (indefinido no tempo e espaço). São pulsões artísticas imediatas da natureza e que fazem do artista humano um "imitador". 

O homem artista é um imitador tanto da pulsão apolínea – vista, por exemplo, nas artes plásticas – como da pulsão dionisíaca – através da música – separadas; quanto das duas pulsões integradas, operando em conjunto – dando origem a arte trágica. 

O mundo invisível do Uno-Primordial 
é o mundo das emoções,
da intensidade, inestético:
figura o caos, o nada.

É, pois, um movimento de produção, uma pulsão geradora da natureza, que se apresenta como a imagem, visível, das aparências do mundo, agora, estético e estetizado. O ânimo estético equivale ao estado puramente contemplativo, enquanto o inestético, ao que é primeiro, anterior, ao Uno-primordial. 

Para Nietzsche, apenas quando a arte plástica, estética, apolínea e a arte musical, inestética, dionisíaca se harmonizam, interpermeando-se, há a possibilidade, para os espectadores, de aproximação às forças originais da natureza; de imediação com a vida e suas pulsões configuradoras da natureza. 

A arte do visível e do invisível, 
do estético e do inestético, juntos, 
opera o estranhamento
e a fusão dos opostos.

O homem perde a consciência de si mesmo e passa a ver e sentir o mundo de forma antitética, onde há o tormento delicioso[2] que liga os contrários; o mundo como harmonia e desarmonia, consonância e dissonância, prazer e dor, vida e morte. 
A partir da arte,
o homem interpreta a vida,
tornando-a suportável 
e agradável de ser vivida. 

Isso ocorre através da mediação do homem com o já configurado para, assim, entrar em contato com o movimento de configuração, das pulsões artísticas da vida, ou seja, através da estética conhecer o inestético: o mundo das emoções; intenso.
O espectador conhece o inestético, 
porém, apenas por aproximação. 

O mundo velado nunca será inteiramente atingido, porque o ouvinte já parte de uma realidade estética. Por isso, a sensação de embriaguez que o atinge ao se sentir fora de si, fora de sua individualidade, é alcançada através de uma ilusão.

Mesmo ao dar a mais perfeita ilusão da natureza em algo artificial – a arte humana trágica – a descoberta de que se trata de uma imitação aniquilaria totalmente o sentimento de comoção do ser e, assim, o que antes parecia uma alegria embriagada, se transforma em uma insatisfação que faz o ouvinte voltar ao seu estado individual.
Kant, que eu saiba o primeiro a ter começado
a refletir propriamente sobre esse fenômeno,
lembra que, se ouvíssemos o canto do rouxinol
imitado com a máxima ilusão por um homem 
e se nos entregássemos com inteira comoção 
à impressão por ele provocada, todo o nosso prazer
desapareceria com a destruição dessa ilusão
 [3].

A todo momento na obra, estes dois mundos artísticos são explicados a partir de conceitos musicais como ritmo, melodia, som e harmonia, sendo que esta é composta por dois aspectos: dissonância e consonância. 

Em teoria musical, a dissonância, que, para Nietzsche, explicita o movimento infinito do caos dionisíaco, é o intervalo que dá idéia de continuidade ou movimento, enquanto que a consonância, a consolidação do ser como um indivíduo sólido e finito (principium individuationes) no mundo aparente apolíneo, é o intervalo que dá idéia de repouso. 

Na teoria fundamental da música, a dissonância pede sempre para ser resolvida por uma consonância – o movimento necessita de uma resolução em repouso. O mesmo acontece em O nascimento da tragédia com as forças da natureza simbolizadas na arte grega pelos deuses Apolo e Dioniso, também representadas com as noções de querer ou vontade.

A vontade, 
que simboliza todo o essencial 
e inaudito na esfera da natureza, 
é a emoção desmesurada 
caracterizada pelo movimento 
constante da confusão entre o arqui-prazer*
  e a dor. 

O ser não pode permanecer por muito tempo indeterminado[4], precisando de uma resolução – daí resulta o movimento do querer, provindo desse ser – que o fragmenta, transformando o que antes era um ser único infinito e indeterminado em agora múltiplos seres finitos e individuais. A partir desse despedaçamento do ser uno-primordial, essas formas individuais, para se libertarem da dor carregada da experiência anterior como essência do uno-primordial, criam um novo mundo de sonhos e estético, solidificando essas novas individualidades. 

De acordo com Nietzsche em O nascimento da tragédia, harmonia é a ingenuidade[5] – primeiramente apresentada por Schiller com a palavra naïf (ingênuo) –, o prazer do homem apolíneo na convivência com a natureza; o anseio pela continuação da vida, da existência empírica, sentindo-se unido a ela através da criação de um mundo agradável e belo.

Nietzsche também descreve 
a música dionisíaca 
como o mundo absolutamente incomparável 
da harmonia[6] 
e a comovedora violência do som[7]

A harmonia aqui, vista como dimensão dionisíaca, contrapõe-se à harmonia ingênua na medida em que está explicitada como algo violento e intenso, não agradável: Então crescem outras forças simbólicas, as da música, em súbita impetuosidade, na rítmica, na dinâmica e na harmonia[8].

A harmonia é associada 
à frenética movimentação, pela dissonância, 
de ritmos e sons para representar o caos, 
a harmonia invisível do mundo primordial
onde só existe lugar para a intensidade
para a emoção. 

Já a música apolínea é caracterizada pela beleza dos sons insinuados e pela batida ondulante do ritmo[9], que suscita a suavidade, a ordem e, logo, a harmonia, anteriormente citada, do naïf, que se relaciona com o repouso e a individualidade da consonância de um mundo de sonho e ilusão, do mundo aparente, ou seja, a harmonia visível. A resolução própria de uma natureza aparente.

A desmedida na harmonia 

Na música dionisíaca, a violência do som e o seu transbordamento em harmonia melódica, numa união mística das consonâncias e dissonâncias, levam o corpo dançante do ser ao êxtase do ritmo musical, o que o eleva aos ares, como se estivesse flutuando por entre todos os outros corpos ou entes da natureza; há o desprendimento do indivíduo de si mesmo e o desejo, deste, de se exprimir por vias simbólicas. 

A harmonia como interação e interpenetração de forças ou pulsões opostas da natureza, poderia ser caracterizada por momentos ou ciclos de oscilação entre prazer e dor. Nessas oscilações tem-se um momento apenas de dor, isto é, gerando uma natureza desmedida e desarmônica, ou melhor, dissonante. Contrapondo a este, e seguinte a este momento, tem-se um outro momento apenas de prazer, gerando uma natureza ordenada, harmônica, no sentido estético da palavra, ou seja, consonante. Isto significa que a harmonia, em seu sentido mais trágico, seria sempre uma harmonia melódica, já que não seria possível fundir em uma unidade duas pulsões inteiramente opostas e que estão sempre em constante tensão entre elas.

A união entre elas 
é num sentido místico de unidade. 

Numa arte humana que tenta imitar completamente a harmonia trágica natural, é necessário que se integrem ambas dimensões dionisíaca e apolínea num nível de harmonia tão elevado, que, aos olhos e ouvidos de um espectador de visão apenas apolínea e ordenada, seria arte totalmente desarmônica e destrutiva, ou então, levado por uma visão enganadoramente ingênua e moralmente sublime, possa entendê-la como algo sereno, num sentido de acomodação e tranqüilo deleite, e por assim ser, algo com um sentido estético unicamente de fonte moral sobre os espectadores.
 
A música e a estética do fenômeno  
Temos a harmonia e a melodia como fontes do Uno-primordial, essência de toda e qualquer música: não têm forma, dimensão ou tempo; passam a ser reconhecidas como imagens quando aspectos e modos são introduzidos nelas, para que se possa construir a música como um fenômeno estético.

A cadência, a dinâmica e o ritmo, que transformam a melodia e a harmonia dionisíacas em um conjunto aparente de símiles e imagens, são aspectos plásticos no interior da música[10], são apolíneos, porque neles estão inseridos tempo e espaço. São estes aspectos plásticos que distribuem a sonoridade no tempo e espaço[11].

A música frente à linguagem verbal

Embora Nietzsche mencione a harmonia relacionada à música grega inúmeras vezes, essa harmonia não seria a mesma no sentido de hoje: como acordes harmônicos. Os acordes ainda não existiam, no entanto, a palavra “harmonia” fora inicialmente introduzida por Pitágoras e Heráclito já com o conceito de junção e fusão de todas as coisas, originalmente relacionado ao conceito de cosmos. Só depois teve seu sentido musical estabelecido, visto pela primeira vez com Píndaro.
A música grega era melódica e modal, 
e harmonia caracterizava a melodia, 
a afinação (mais tarde classificada em tonalidades), 
a escala ou a oitava. 

Até as últimas décadas do século V A.C., a música não existia sem a poesia, a palavra, a acompanhando. Aquela não existia como estética única, como atividade independente. Enquanto, para Platão e, conseqüentemente, para a tradição grega, a melodia se subordinava à palavra (a hegemonia era atribuída à palavra), para Nietzsche, ao contrário, a palavra se subordina à música, porque a música é metafisicamente anterior à palavra – já que é a cópia do Uno-primordial – portanto, tendo sobre ela primazia.

Por esse motivo se dá tanta importância à Canção Popular em O nascimento da tragédia, pois em si constitui a união da palavra e da música, como a atividade que, por ser popular, se encarrega de remediar o homem através da renúncia da individualidade e da redenção à sensação de embriaguez a que a música nos leva. 

Na canção popular, teríamos a poesia lírica: o poeta lírico é antes de tudo um compositor[12], que renuncia à sua subjetividade e entra em sintonia com o mundo primordial, e por ser o único que conhece a essência da arte, é o único capaz de exprimir toda dor originária na música, ao mesmo tempo que o sujeito real desse poeta se sente extasiado e alegre por sua redenção na aparência. Ele, então, passa a ser sujeito e objeto ao mesmo tempo. 

Como dito anteriormente, 
a melodia é primeira a qualquer coisa,
universal, podendo suportar
múltiplas objetivações. 

Com isso, assinalamos o fato da palavra ser subordinada à melodia e, desse modo, esta é a mais importante e necessária na apreciação ingênua do povo[13]. É ela que está intimamente conectada à memória, ou seja, pela melodia é que se torna uma poesia fácil de ser decorada, principalmente pela sua forma estrófica e por seu estribilhos. 

Incessantemente geradora, criadora, a melodia descarrega flashes de imagens, que, em contínuas mudanças, cria um mundo irregular e estranho a qualquer aparência épica, a qual flui serenamente. Por esse motivo, da visão do epos, a lírica deveria ser condenada. 

Nietzsche fala desses flashes de imagens, gerados pela música, como um processo de “descarga”[14] da música, onde, na canção estrófica popular, a linguagem verbal é levada a um estado de exaltação a partir do movimento de mimetização da melodia. E, assim, o compositor é nomeado o poeta do som: criador de imagens ou representações similiformes a partir da melodia primogênia da música. 
[1] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo; tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
[2] WISNIK, José Miguel. “A Paixão dionisíaca de Tristão e Isolda”. In: Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
[3] SCHILLER, F. Poesia Ingênua e Sentimental. Tradução, Apresentação e Notas: Márcio Suzuki. Biblioteca Pólen. Editora Iluminuras, 1991, p. 44. Nota do autor.
* A diferença entre o prazer e o arqui-prazer está no fato de que: este está intimamente ligado à vontade primordial, à alegria desmesurada e ilimitada que só é sentida pelo ser humano quando se experimenta o estado de embriaguez a que as forças dionisíacas podem levar; aquele, ao contrário, relaciona-se ao prazer que se sente nas formas belas do mundo estético, isto é, durante o estado de serenidade em que o ser humano louva à vida enquanto experiência aparente.
[4] DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e a Música/ Rosa Maria Dias. – Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994. pg 28
[5] NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo; tradução, notas e posfácio: J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Cap. 3.
Fonte:
Revista Garrafa -2005

http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa5/11.html


Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.

Sejam abençoados todos os seres.

RACIONALISMO, ARTE CLÁSSICA E RAZÃO TRÁGICA EM NIETZSCHE



 Nietzsche

Vitor Henriques 
– Mestre em Teoria Literária
 
Já é por demais reconhecida 
a imagem de um Nietzsche crítico e irônico 
em relação às tentativas de se conhecer
o mundo racional e cientificamente. 

Nosso trabalho se justifica pela revisão de tal imagem. Existe um Nietzsche bem menos visitado pela crítica, um Nietzsche visivelmente mais frio em relação aos arroubos estético-dionisíacos de parte da sua obra; é este Nietzsche que nos interessa aqui. 

Em o “Nascimento da Tragédia”, Sócrates aparece como o representante do espírito teórico-científico, espírito este que, visto de forma negativa por Nietzsche, enfraquece o mundo. No entanto, Rüdiger Safranski, autor de uma bela biografia intelectual do filósofo, aponta para uma espantosa frase encontrada nas anotações de Nietzsche, esta dizia que

Sócrates“aniquilou a ciência”.  
[1] 
Na verdade, 
o problema não é a ciência, 
é Sócrates. 

Tal anotação nos impele para uma reverificação do que Nietzsche entende por ciência, já que o filósofo costuma ser concebido pela crítica, baseada fundamentalmente em o “Nascimento da Tragédia”, como alguém que fala mais em nome da arte do que, ou em detrimento, da ciência. Safranski diz, comentando a crítica de Nietzsche a Sócrates, que “Sócrates é criticável não porque queria saber, mas porque não queria saber de modo suficientemente radical e ‘frio'” [2].

Quer dizer, segundo Nietzsche, um mundo terrível se abriria para aquele que realmente quisesse conhecê-lo, e uma postura forte e bela seria aquela a qual suportaria as vicissitudes, incertezas e angústias desse mundo sem o refúgio de uma religião, de uma metafísica ou de uma arte como remédio.

A idéia de Nietzsche é: 
que o conhecimento possa se estabelecer e triunfar,
ainda que desvende o mais terrível 
e indizível dos mundos; 
“o cognoscente declara orgulhoso: 
vou suportar meu conhecimento 
ainda que ele quase me mate.” 
('me enlouqueça', eu)
[3] 
Aqui salta um Nietzsche não dionisíaco, não esteta, mas um Nietzsche mais contido, analista e iluminista. 

Em “Humano, Demasiado Humano”, certamente o livro em que coloca, positivamente, a razão e a ciência como temas de primeira ordem, Nietzsche chega a falar em “levar adiante a bandeira do iluminismo”. Num aforismo chamado “A hostilidade alemã ao Iluminismo”, Nietzsche diz que, em detrimento da razão, filósofos, historiadores e cientistas alemãs instauraram o culto ao sentimento. Na filosofia, através da especulação metafísica no lugar da explicação, estabelecendo uma época pré-científica; na historiografia, através do romantismo, com a volta de temas medievais e dos sentimentos ascéticos; na ciência, através de uma natureza divinizada e simbólica, e não mais natural. Isso tudo, segundo Nietzsche, contra os ideais da razão iluminista, que teríamos então de levar adiante. [4]

Nietzsche segue, sim, uma tradição racionalista que vem desde a Grécia Antiga e que foi recuperada pelo Renascimento italiano (época histórica que Nietzsche sempre louvara) e pelo Iluminismo. Estes últimos momentos da história surgem sempre em oposição a um passado medieval supersticioso:
 
A Europa freqüentou a escola do pensar coerente e crítico, enquanto a Ásia ainda não sabe distinguir entre poesia e realidade e não está consciente de onde vêm suas convicções, se dá sua própria observação e pensamento correto ou de fantasias. – A razão na escola fez da Europa a Europa: na Idade Média ela estava a caminho de se tornar novamente um pedaço e apêndice da Ásia – isto é, de perder o senso científico que devia aos gregos. [5]
 
O que ressaltamos na citação acima é a crítica que Nietzsche promove aos asiáticos, já que os mesmos, segundo ele, ainda não sabiam diferenciar o que é realidade e o que é fantasia e poesia. Percebe-se aqui um Nietzsche em defesa da razão, mas de uma razão enquanto conquista histórica. No mesmo aforismo, o filósofo ainda diz o que é humanamente essencial e distintivo, citando Goethe: “Razão e Ciência, suprema força do homem”. 

Antes de prosseguirmos, convém ressaltar uma forte mudança de Nietzsche em relação à arte. Se em “O Nascimento da Tragédia” (1872), Nietzsche concebe a arte como uma potência reveladora e cognoscente do mundo, a partir de “Humano, Demasiado Humano” (1878) e “Aurora” (1880) há uma guinada em sua filosofia; o que antes cabia à arte é ocupado agora pela razão e pela ciência. Estas são valorizadas pela manutenção de uma verdade provisória, pela durabilidade da potência do conhecimento e pela conquista dos métodos. 

A arte,
por sua vez, 
é vista agora como portadora 
dos excessos da alma, 
pela ignorância do que é orgânico 
e pela superficialidade dos métodos. 

Há, nesse sentido, uma passagem exemplar:
 
É marca de uma cultura superior estimar as pequenas verdades despretensiosas achadas com método rigoroso, mais do que os erros que nos ofuscam e alegram, oriundos de tempos e homens metafísicos e artísticos. No inicio as primeiras são vistas com escárnio, com se não pudesse haver comparação: umas tão modestas, simples, sóbrias, aparentemente desanimadoras, os outros tão belos, esplêndidos, encantadores, talvez extasiantes. Mas o que foi arduamente conquistado, o certo, duradouro e por isso relevante para todo o conhecimento posterior, é afinal superior; apegar-se a ele é viril e demonstra coragem, simplicidade, moderação.

Aos poucos, não apenas o individuo, 
mas toda a humanidade se alçará a esta virilidade, 
quando enfim se habituar a uma maior estima 
dos conhecimentos sólidos e duráveis,
e perder toda crença na inspiração
e na comunicação milagrosa de verdades.
 
No entanto, Nietzsche sabe que uma essência do mundo a ser descoberta pela ciência ou pela razão não existe, que a essência do mundo é, sim, um ponto vazio, mas o que lhe interessa não é a existência de uma substância a ser desvelada, mas a crença depositada no desvelamento; é esta crença que tornou o mundo possível, habitável e minimamente inteligível. 

A aposta na existência de uma realidade passível de se conhecer é o postulado lógico de todo o conhecimento humano, que Nietzsche, por sua vez, está longe de desprezar; Nietzsche fala então da necessidade dessa ilusão. Assim sendo, ele entende, por exemplo, a própria convicção da linguagem como um instrumento capaz de apreender as coisas no mundo como uma crença necessária, pois é ela que deu sustentação para o desenvolvimento da ciência e da razão, por isso, “quem nos desvendasse a essência do mundo, nos causaria a todos a mais incômoda desilusão”. [7]
 
A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que se considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito tempo acreditou nos conceitos e nomes das coisas com em aeternae veritates [verdades eternas], o homem adquiriu esse orgulho com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo.

O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no esforço da ciência. 
Da crença na verdade encontrada
fluíram, aqui também, 
as mais poderosas fontes de energia.

Muito depois – somente agora – os homens começam a ver que, em sua crença na linguagem, propagaram um erro monstruoso. Felizmente é tarde demais para que isso faça recuar o desenvolvimento da razão, que repousa nessa crença. [8]
 
“Felizmente é tarde demais” quer dizer: viver da crença na linguagem é positivo e necessário. O filósofo sempre foi entendido, justamente pela idéia da ilusão da representação do mundo através da linguagem, como alguém que pretendia assim aniquilar com os discursos que tinham a realidade como matéria. Como podemos ver acima, é justamente essa ilusão que Nietzsche destaca, reconhecendo sua importância para o conhecimento humano em geral.

O assenhorear-se do mundo 
é uma tentativa fundamental para que o mesmo 
passe a fazer sentido ao homem.

Uma das grandes contribuições de Nietzsche, a nosso ver, é esse versar sobre a necessidade da ilusão para que a vida seja vivida e conhecida racionalmente. 

Para entendermos o papel que a razão ocupa na concepção de arte em Nietzsche, nos parece interessante fazer uma referência do papel ocupado pela mesma na teoria poética de Fernando Pessoa. Podemos, com segurança, dizer que a máxima da teoria da arte de Pessoa consiste na idéia de que aquilo que o faz sentir, poeticamente, não é a sensibilidade à flor da pele, mas uma razão que fabrica uma sensibilidade à flor da pele. 

O sentir é pensado 
e não necessariamente 
e diretamente sentido. 

Não por acaso, Pessoa se considera um herdeiro do artista clássico que, segundo ele, sentia pelo pensamento e não pela emoção; o temperamento do poeta é dissolvido pela inteligência: o poeta raciocina na arte e tem a arte de raciocinar. 
Pessoa sempre teceu críticas 
aos princípios românticos da subjetividade 
e dos sentimentalismos na poesia, 
pois estes dão fundamento à concepção 
de que o grande poeta é aquele que manifesta 
com maestria o seu fórum íntimo.

É contra esse personalismo que Pessoa fala em “intelectualização da sensibilidade”; seu intuito teórico e artístico é, segundo ele mesmo, inverter o princípio romântico da inteligência subordinada à emoção. Para Pessoa, a poesia, enquanto arte, deve ser racional, impessoal, objetiva e reflexiva, que para ele eram princípios “clássicos”. 

Esses elementos clássicos que alimentam a poética pessoa são os mesmos que animam alguns momentos da filosofia nietzschiana. Desta forma, o filósofo valoriza a contenção e a limitação clássicas, como, por exemplo, a disciplina, na forma artística, de alguns dramaturgos franceses frente à inquietude do romantismo alemão. 

Segundo Nietzsche, a irregularidade da forma na arte romântica/moderna nos deu “vantagens bárbaras”, como a poesia de todos os estilos e de todos os povos, porém, a mesma rejeitou a noção de medida, regularidade, simplicidade, ponderação e proporção clássicas. [9] Nós, Modernos, perdemos, assim, o “bom gosto”, perdemos “o que há de aristocrático nas obras e nos homens, o seu instante de mar calmo e de auto-suficiência alciônica, a condição dourada e fria que mostram todas as coisas perfeitas”. [10]

Nietzsche, assim como Pessoa,
visivelmente toma partido na velha querela teórica 
entre Clássico e Romântico, entre Antigo e Moderno. 

Criticando o sentimentalismo exagerado de seu tempo, Nietzsche fala da necessidade de uma sobriedade do sentimento: “reflexão severa, concisão, frieza, simplicidade deliberadamente levada ao extremo; em suma, restrição do sentimento e laconismo – só isso pode ajudar”. [11]

Ao pensar em arte, Nietsche, portanto, pensa em ponderação, equilíbrio, limite, objetividade, proporção, todos esses, atributos artísticos considerados clássicos. O filósofo parece encampar a noção clássica de que só a boa forma na arte é capaz de falar à razão. Nietzsche não só ressalta, no processo criativo, o pensamento diante da emoção, como valoriza a noção de trabalho frente à inspiração:

“[...] a improvisação artística 
se encontra muito abaixo do pensamento artístico 
selecionado com seriedade e empenho. 
Todos os grandes [artistas] foram grandes trabalhadores,
incansáveis não apenas no inventar,
mas também no rejeitar, eleger, 
remodelar e ordenar.” 

Desta forma, a boa arte está ligada mais à razão do que à emoção, a beleza da segunda dependeria da atuação da primeira; a arte, portanto, é mais trabalho racional do que extravasamento emotivo. Baseado nessas noções, 

Nietzsche “confirma” 
o “classicismo” de Fernando Pessoa 
e Fernando Pessoa “confirma”
o “classicismo” de Nietzsche. 

Todavia, é importante frisar que Nietzsche nunca perdeu a dimensão trágica do mundo, desta forma, ao conceber a relevância da razão, o filósofo, levando agora em consideração toda a sua obra, está longe de chapar a questão. O que ele disse uma vez sobre o que seria a nobreza de um homem, pode, sim, ser aplicado para entendermos o papel que a razão exerce neste mesmo homem. 

Para o filósofo, 
o sutil e mais delicado ato de nobreza 
é quando um espírito tem a capacidade 
de reconhecer a necessidade do não nobre,

como, por exemplo, o reconhecimento de que muitos juízos, ainda que errôneos e morais, são necessários para a manutenção da existência, da mesma forma, como apontamos anteriormente, como Nietzsche reconheceu a necessidade da ilusão para a descoberta do mundo e viabilidade da própria vida. É inserido nessa lógica que um delicado e sutil ato de um homem que preza a razão se dá segundo sua capacidade de reconhecer a necessidade também da não razão. À pergunta “o que confere nobreza?”, uma das respostas de Nietzsche é:
“[...] não será obedecer às paixões: 
há paixões desprezíveis.” 
Logo em seguida diz ele que 

“[...] a paixão que se apodera do ser nobre
é coisa que ele não se dá conta [...].”
[13] 

Há, portanto, uma razão que ao mesmo tempo molda e entende a vida e desaparece perante o assalto das paixões sem se dar conta disso; é nesse sentido que entendemos a razão em Nietzsche como uma razão trágica, já que se impõe e se esvai, como se ela afirmasse e fosse negada ao mesmo tempo. Trágica, porque essa dubiedade é tão fatal como a dor é para a vida. 

A obstrução da dor
é a obstrução da própria alegria, 
já que para Nietzsche quanto mais feliz é um homem,
mas infeliz ele pode ser, pois mais suscetível 
às afetações do mundo. 

Para o filósofo, quanto maior o desprazer, maior foi o prazer. Assim sendo, da mesma maneira que alegria e dor são um e o mesmo, razão e desrazão se entrelaçam num mundo tragicamente concebido.


Bibliografia
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora . Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_________. A Gaia Ciência. Trad. Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.
_________. Humano, Demasiado Humano . Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
_________. Para Além do Bem e do Mal . Trad. Alex Marins. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.
PESSOA, Fernando. Obras em Prosa . Rio de Janeiro, José Aguilar Editora, 1974.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: Biografia de uma tragédia . Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
Fonte:
Revista Garrafa



Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.

Sejam abençoados todos os seres.