sábado, 18 de dezembro de 2010

O DINAMISMO SENSÍVEL - Régis Jolivet

Curso de Filosofia – Régis Jolivet
Capítulo Segundo
O DINAMISMO  SENSÍVEL
ART. I.  
  NATUREZA E DIVISÃO

116      1. Natureza dos fenômenos afetivos. — Os fenômenos afetivos são manifestações de nossas tendências e de nossas inclinações. É evidente que, na falta dessas tendências, poderia existir, no ser vivo, em resposta a uma excitação externa, uma reação mecânica moldada nesta ação, mas não esta manifestação, tão variável nas suas expressões, de sentimentos e de emoções, que definem a vida afetiva do animal.
2. Divisão dos fenômenos afetivos. — Dividiremos, por isso, as manifestações do dinamismo sensível em dois grupos: as tendências e os estados afetivos. Entre as tendências distinguiremos as tendências naturais ou instintos, que derivam das necessidades fundamentais do ser vivo, — e as inclinações, que derivam das necessidades secundárias  do ser vivo.
Os estados afetivos podem ser igualmente divididos em dois grupos: os que têm por antecedente uma modificação orgânica (prazer e dor), — os que têm por antecedente um fato psíquico (emoções e sentimentos). — Ficarão por estudar as paixões, que são inclinações levadas a um alto grau de força.
ART. II.    O INSTINTO
A.    Noção.
117      1. Definição. — Chama-se instinto o conjunto das tendências naturais, que derivam das necessidades fundamentais ou primárias do ser vivo. É em virtude de necessidades deste gênero que o animal é impelido a exercer todos os atos necessários  a sua conservação  individual ou específica. Estas tendências naturais não constituem faculdades distintas: elas se identificam com a natureza do ser vivo sensível, e se definem por ela.
As tendências adquiridas ou inclinações se enxertam nas tendências naturais ou instintos, de que exprimem as 
manifestações acidentais, variáveis em número e em intensidade segundo os indivíduos. Daí se conclui que os instintos servem para definir a natureza específica, enquanto que o sistema das inclinações permite determinar o caráter dos indivíduos.
As tendências, quer sejam inatas  ou   adquiridas, são inconscientes, como a própria vida. Não podem ser tratadas diretamente e em si mesmas, mas apenas nos seus efeitos, que são os fenômenos afetivos.

2.   Instinto, tropismo e reflexos. — O instinto difere dos tropismos   ou  fenômenos   de   orientação   determinados,  nas   plantas, por agentes físicos (luz, umidade, peso etc), — dos reflexos, reações  desprendidas automaticamente, no animal pelos centros nervosos, sob a ação de certos excitantes  (como as secreções salivares j à vista de um prato apetitoso, o ato de fechar os olhos diante de uma luz muito forte,  os gestos de proteção de alguém que cai), — O instinto difere também do habito, que não tem o inatismo dos instintos.
B.    Caracteres.
118      Distinguem-se os caracteres primários e os secundários. Os primários são o inatismo e a estabilidade dos instintos; os secundários a universalidade específica e a ignorância do fim.
1.    O inatismo.
a)    Natureza.  No que há  de essencial,   o instinto não com porta nem aprendizagem nem discernimento individual, nem inte ligência que utilize uma experiência anterior. Donde sua infalibilidade e sua perfeição imediata. As operações mais complicadas pa recém ser  apenas  um certo jogo para certos insetos:  as abelha; e as aranhas resolvem problemas de geometria de uma complexidade desconcertante; a borboleta, mal saída do casulo, mergulha de um só jato sua trompa no cálice das flores.
b) Instinto e inteligência. O instinto, como tal, se opõe então à inteligência, definida como a capacidade de se adaptar às-novas situações, com a ajuda do saber anteriormente adquirido. O instinto, sem dúvida, é inteligente., mas o animal não o é, quer dizer que a inteligência, no animal, não é uma faculdade ou uma função: é apenas uma qualidade do instinto.
2.    A permanência.         O instinto é uma conduta permanente e estável do animal, apesar das modificações que possam afetar uma ou outra das funções que compreende. Esta estabilidade se verifica pelo fato de que, nem no espaço, nem no tempo, se produzem variações notáveis nem progressos importantes e duráveis-no exercício de um instinto. As abelhas trabalham hoje exatamente como no tempo de Virgílio e os gatos não parecem ter feito progressos na arte de apanhar ratos.
3.    A universalidade específica. — Cada espécie pode ser definida por um sistema de instintos (ou de técnicas instintivas), tão seguramente quanto por sua estrutura orgânica. É assim que cada espécie de aranha tem uma maneira especial de tecer sua teia, que cada espécie de pássaro constrói um ninho particular, cujos elementos (localização, materiais, sustento) são tão estritamente determinados que o naturalista sabe logo, à vista do ninho vazio do seu ocupante, por que espécie de pássaro foi construído.
Todavia, todo instinto, mesmo nos insetos, admite certas diferenças individuais, quanto às formas que reveste. Estas variações individuais são cada vez mais notáveis à medida que nos elevamos na escala animal, dos insetos aos vertebrados, sobretudo os animais mamíferos e, entre estes, os grandes macacos. Na realidade, a universalidade específica deveria caracterizar-se pela uniformidade dos resultados, mais do que pela uniformidade dos mecanismos.
4.    A igualdade do fim. — O animal faz com perfeição o que faz por instinto, mas não sabe nem o que faz nem como faz, quer dizer, não pode escolher nem o fim, nem os meios, pois estes lhe são impostos pela natureza. A estupidez do instinto resulta, então, de sua necessidade e o que explica sua perfeição explica ao mesmo tempo seus erros. Sabe-se que a galinha choca com perseverança um ovo de vidro substituído a um ovo fecundado, que a abelha solitária continua a prover uma célula furada, com um buraco por onde o mel vai-se escoando.

O psiquismo animal é pois,
não-refletido e automático.

A consciência do animal 
é uma consciência obscura.

C.    Classificação dos instintos.

119      1. Princípio da classificação. — Dissemos que os instintos não podem derivar senão das necessidades fundamentais do animal. Logo, haverá tantos instintos primários quantas necessidades primárias do ser vivo, — ou ainda de quantos objetos o animal deva apropriar-se para satisfazer suas necessidades. Ora, estes objetos são em número de três: o alimento, o companheiro sexual, o congênere. Existirão, assim, três espécies de instintos fundamentais, a saber: o instinto alimentar, o instinto sexual e o instinto gregário.

2.    Instinto e técnicas instintivas. — Este ponto-de-vista leva a eliminar da lista dos instintos todas as reações orgânicas reflexas,  que nela se introduzem geralmente, como os atos de caminhar, andar de rastos, coçar, bocejar, espirrar etc. — Da mesma forma, não se deve considerar como compreendendo instintos especiais as técnicas pelas quais os instintos se exercem: elas não diferem do próprio instinto. Que significaria o instinto alimentar, se não fosse provido, desde o início, no recém-nascido, da técnica que o torna apto a mamar, ou, no pinto, da técnica inata que lhe permite bicar?

D.    Origem do instinto.
120        Propuseram-se  diversas teorias para  explicar  o instinto.

1.    Teoria biológica. — Não se pode explicar o instinto com os caracteres que o distinguem, a não ser que se admita que exista no animal uma força vital dotada de finalidade interna, quer dizer que organiza o animal por dentro e o dota de todos os Instintos necessários à sua vida, a sua subsistência e à sua propagação. Esta força vital aparece como inteligente e cega ao mesmo tempo: a inteligência, que ela manifesta, é uma inteligência objetiva, a mesma que opera em toda a natureza, o que supõe um Organizador e um Legislador supremo.

2. Teorias inadequadas. — Vê-se pelo que precede que è impossível admitir as diferentes teorias que pretendem quer identificar o instinto e a razão, — quer reduzir o instinto ao puro mecanismo:

a)     Teoria dos animais-máquinas. É a teoria de Descartes. Os animais seriam puros mecanismos, cujos movimentos decorreriam da ação dos objetos exteriores (como esses autômatos, cujos movimentos são regulados por molas). — Esta teoria desconhece, evidentemente, a realidade da vida sensível e mesmo de uma certa inteligência   (conhecimento,  memória)  no animal.

b)     Teoria intelectualista. Segundo esta teoria, defendida por Montaigne, o instinto seria uma inteligência como a nossa, e mesmo superior em segurança e engenhosidade. — Esta tese deve igualmente ser repelida, pois o instinto, se é geralmente seguro, é rigorosamente limitado a certas técnicas invariáveis, enquanto a inteligência humana é suscetível de uma infinidade de adaptações diversas.

c)     Teoria evolucionista. 
 O instinto, segundo Lamarck e Darwin, seria um hábito adquirido pela espécie., no curso de uma longa evolução, e transmitido por hereditariedade. — Esta teoria não é mais do que uma hipótese, e encontra bastantes dificuldades. Estas dificuldades foram expostas na Cosmologia (84).

Art. III.    AS INCLINAÇÕES

121      Já observamos, mais acima, que as tendências adquiridas ou inclinações derivam das necessidades secundárias do ser vivo. Dependem, elas, nas suas manifestações, do estímulo de um fato de conhecimento, sensível ou intelectual. Donde a distinção das inclinações sensíveis, orientadas para os bens sensíveis, e as inclinações intelectuais, próprias do homem, que têm por objeto os bens não-sensíveis e se exercem pela vontade. Poderemos, então, definir as inclinações como as tendências apoiadas na natureza para produzir certos atos.

A.    Natureza das inclinações.
Devemos estudar aqui as inclinações humanas, em si mesmas, e nas suas relações com os instintos.

1.    Instinto e inteligência. — É raro que os instintos se manifestem em estado puro na espécie humana, após a idade da primeira infância. No adulto, eles não mais significam do que orientações gerais ou quadros da atividade: a experiência, os hábitos, as coações sociais, sobretudo o ato da inteligência, não cessam de exercer sua ação para refrear, desviar, canalizar ou modificar o ato dos instintos. O homem, por isso, ganha bastante em variedade e multiplicidade de inclinações, mas perde muito em segurança mecânica. Contudo, o lucro é certo, uma vez que às habilidades precisas e seguras, mas estritamente limitadas do instinto, a inteligência humana substitui uma habilidade universal.

2.    Instinto e vontade. — O homem possui o poder de suspender o efeito do impulso instintivo por um ato inibidor de sua vontade refletida, O ato instintivo, submetido a um juízo de valor, não tem, normalmente, o caráter explosivo que marca o exercício do instinto entregue a seu próprio capricho. Daí se segue que, no homem, a tendência se desprende, de alguma forma, do ato. Contrariamente ao que acontece no animal, ela pode permanecer potencial ou virtual.

B.    As tendências especificamente humanas.
122    
O homem tem inclinações específicas, ligadas à sua natureza intelectual e moral. Definem-se comumente como o amor da verdade, do bem e do belo.

 1.    O amor da verdade, do bem e do belo.
  — É impossível enumerar todas as inclinações complexas que derivam das tendências instintivas do homem, para descobrir a verdade, para realizar o bem por sua vida moral, e a beleza pelas obras de arte. Estas inclinações têm sua raiz comum na razão, de que são aspectos diversos, inatos e universais, como a própria razão.

2.    Existe um instinto religioso? — A universalidade do fato religioso no tempo e no espaço não autoriza a fazer dele produto de um instinto especial. A "religião natural" resulta do exercício de todas as nossas inclinações ou necessidades racionais: inclinação à verdade, que incita a procurar a explicação de todas as coisas num Deus criador, Pai e Providencia da humanidade, — inclinação ao bem e ao belo, que nos leva a descobrir em Deus a fonte primeira e o exemplar perfeito da Bondade e da Beleza, o princípio de toda a justiça, o juiz das consciências e o supremo desejável.

3. As inclinações sociais. — São a forma, no homem, do instinto gregário, e podem ser reduzidas a três tendências fundamentais: a simpatia, a imitação e o jogo.

a)     A simpatia. Distinguem-se uma simpatia passiva e uma simpatia ativa.
A simpatia passiva é a capacidade de sentir com os seus semelhantes, de participar de seus sentimentos e suas emoções. Nos animais, ela se manifesta por uma espécie de contágio emocional (por exemplo, quando o pânico se apodera do rebanho). No homem, a simpatia passiva exerce um papel importante, a um tempo sob a forma espontânea (a visão das lágrimas é por vezes suficiente para fazer que nos venham lágrimas nos olhos), e sob a forma deliberada, quando ela é um produto da atividade moral pela qual queremos participar das alegrias e tristezas do próximo.

A simpatia ativa designa um conjunto de atitudes de benevolência, que tem por fim proteger, ajudar, socorrer ou aliviar o próximo. Está, pois, muito próxima da amizade. Suas causas imediatas podem residir ou na simpatia passiva, ou nos motivos racionais   (caridade, filantropia, solidariedade etc).

b)     A imitação. A imitação é exclusivamente humana. Os animais são incapazes de imitar: os cavalos, tomados de pânico pelo relinchar apavorado de um congênere da tropa, não imitam a este, mas sofrem o contágio do pavor. A imitação é uma cópia e não uma reação automática. Mas não parece que se possa fazer dela um verdadeiro instinto: é mais uma inclinação extremamente complexa, cujas manifestações se prendem antes de mais nada ao instinto social  (simpatia, admiração, submissão ou prestígio etc).

c)     O jogo. Define-se o jogo como uma atividade gratuita, quer dizer, tema atividade que não visa a produzir uma obra, mas ao puro desdobramento da atividade. Joga-se por jogar: o jogo encontra seu fim em si mesmo. Pode-se fazer dele um instinto propriamente dito? Não o parece. O jogo parece ser, antes, uma atividade   pré-formadora   ou   supletiva   das   tendências   instintivas: a menina brinca de boneca ou de casa; o menino brinca de soldado. De fato, a atividade do jogo segue exatamente a evolução dos. instintos e parece ser uma inclinação que deriva do conjunto dos instintos, a um tempo nas suas manifestações e no seu desenvolvimento.

C.    A redução das inclinações.
123      Podem-se reduzir os instintos e as inclinações do homem à unidade? Muitos filósofos, especialmente La Rochefoucauld, Hobbes e Freud assim pensaram.

1.    Redução ao egoísmo.

a)     Exposição. Segundo La Rochefoucauld, "as virtudes se perdem no interesse, como os rios no mar". Tudo em nós procede do amor-próprio, quer dizer, do amor de si mesmo e de todas as, coisas para si. — Hobbes expõe o mesmo ponto-de-vista. Para ele, a sociedade nasceu de um contrato, destinado a pôr fim ao estado de guerra primitivo, no qual o homem era "um lobo para o homem". A sociedade não seria mais do que uma invenção- disfarçada do egoísmo. Se, pouco a pouco, as práticas do altruísmo adquiriram um valor autônomo, não é menos verdade que tudo deriva do egoísmo, que é, no fundo, o único instinto do homem.

b)     Discussão. Toda esta tese repousa em uma concepção equívoca do interesse. Existe um sentido em que é verdade que todas as nossas inclinações são expressões de nosso interesse: o bem é, de fato, o único fim possível de nossa atividade; nós nada podemos amar, desejar ou perseguir a não ser sob o aspecto do bem. Deste ponto-de-vista, tudo está "interessado", não somente nossas tendências sensíveis, mas o próprio desinteresse, o devotamento G o sacrifício de si. Mas este "interesse" é, decerto, completamento diferente do interesse egoísta, uma vez que é este que nos obriga quando o dever o exige, a sacrificar nossos gostos, nossos bens e mesmo nossa vida.

2.    Redução à sexualidade.
a) Exposição. 
 FREUD julga que todos os instintos do homem derivam de um instinto fundamental, que nāo pode ser outro que o instinto sexual, como o prova a força imensa e a influência que o caracterizam. Tudo no homem, diz Freud, provém da libido (sexualidade), seja diretamente, seja indiretamente, enquanto que as potências sexuais, que perderam no todo ou em parte seu uso próprio, aplicam-se a outros fins, pelo processo da sublimação, quer dizer, pelo fato de que a força não empregada e recalcada no instinto sexual é utilizada para fins sem relação direta com este instinto. Sob este aspecto, o heroísmo, o gênio e a santidade resultariam dos. impulsos recalcados da sexualidade.

b) Discussão. 
 A tese de Freud manifesta uma filosofia das mais discutíveis, quando postula, sem nenhuma prova, que todas as manifestações da atividade humana não podem derivar a não-ser da atividade sensível e, por conseguinte, que nada de natural existe no homem além do que ele tenha de comum com os outros animais. Freud nega pura e simplesmente a realidade das inclinações especificamente humanas. Mas mesmo reduzindo as inclinações do homem aos instintos animais, permaneceria ainda o fato de que estes não podem reduzir-se à sexualidade, de vez que o instinto alimentar e o instinto gregário parecem especificamente distintos desta.

3. Conclusão.  
— Devemos, portanto, concluir que é impossível reduzir à unidade os instintos e as inclinações. Os instintos derivam das necessidades, e estas são múltiplas e irredutíveis. Sua unidade não pode ser senão funcional, por serem feitos para o ser vivo, e devem harmonizar-se entre si para assegurar o bem individual e específico do ser vivo. No homem, a redução à unidade teria menos sentido ainda, em virtude da dualidade sensível e intelectual da natureza humana. Esta dualidade implica a realidade de instintos e inclinações essencialmente diferentes.

ART. IV.    PRAZER E  DOR
§ 1.    Natureza

124      1.    Causas do prazer e da dor.

a) É impossível definir o prazer e a dor em si mesmos. São eles estados simples e primitivos, que não se podem explicar, portanto, por outros mais simples. Mas, aqui, importa muito pouco deixar de definir, porque não existe ninguém que não saiba, de experiência própria, o que é o prazer e a dor.

b)     Pode-se caracterizá-los, todavia, por suas causas. Deste ponto-de-vista, o prazer aparece como um estado afetivo agradável, resultante do bom exercício de uma atividade ou de uma tendência satisfeita, enquanto que a dor é um estado afetivo desagradável, resultante do mau exercício de uma atividade ou de um pendor contrariado. — Estas definições se aplicam ao mesmo tempo à atividade sensível e à atividade intelectual.

c)     É necessário apelar ao mesmo tempo para a atividade e a tendência. A explicação causai do prazer e da dor, que acabamos de dar, associa ao mesmo tempo a teoria aristotélica, ou teoria da atividade, e a teoria biológica e finalista. Os dois pontos-de-vista, o da atividade e o da tendência, devem aqui intervir, porque, de uma parte, a atividade que se exerce de conformidade com as leis que lhe regulam o bom funcionamento gera normalmente o prazer (passear, nas condições de saúde requeridas, é um prazer; ultrapassar, em distância e duração de marcha, o que o estado físico tolera, torna-se dor), — e, de outro lado, a raiz mais profunda destes fatos e estados afetivos se encontra no exercício dos instintos e das tendências, ao passo que o funcionamento e os limites da atividade são por sua vez regulados pelas necessidades nascidas das tendências e dos instintos.

d)     As teorias intelectualistas são insuficientes. É necessário, pois, afastar as teorias ditas intelectualistas (Estóicos, — Descartes, — Herbart) , que reduzem o prazer e a dor a juízos ou a idéias mais ou menos confusos. Resultaria destas teorias que nós dirigiríamos o prazer e a dor na medida mesma em que dirigíssemos nossas idéias e nossos juízos: sofrer dor de dentes seria essencialmente pensar nesta dor de dentes, e, para não sofrer, seria suficiente não pensar nisto! — Se estas doutrinas podem valer parcialmente, em certos casos de dor moral, que a atenção vivifica ou aviva, falham necessariamente para os prazeres e as dores físicas, que de forma alguma se reduzem  a simples representações.

2. Condição do prazer e da dor. — Não pode existir prazer nem dor sem consciência, pois estes estados são essencialmente subjetivos  e, se não são sentidos, são como se não existissem, ou mesmo, mais exatamente, não existem. É assim que um anestésico (ópio, morfina, éter) suprime a dor, pelo próprio fato de que suprime a consciência da dor, ou, mais exatamente, a percepção do estado físico de onde nasce a impressão dolorosa.

3. Existem estados neutros? — Entre o prazer e a dor, estados contrários, não existe uma zona neutra ou um ponto de indiferença total, de zero afetivo? Parece que não. Um estado de indiferença absoluta carece ir realizável: toda atividade, por mais relaxada que seja, comporta ao menos uma certa nuance afetiva. Se. por vezes, os estados tomam uma espécie de caráter neutro, isto provém geralmente de um efeito de contraste em relação a outros estados afetivos mais intensos aos quais sucederam. É necessário ainda notar que existem estados físicos (por exemplo o estado de boa saúde) que não parecem neutros, a não ser porque sua tonalidade afetiva muito real permanece subconsciente, e continuamente recoberta, de qualquer modo, por outros fatos afetivos mais intensos.

§ 2.    Papel do prazer e da dor

125      1.    Papel biológico. — O prazer e a dor são úteis às diversas funções vitais.
a)     São guias da atividade vital, uma vez que, como se viu, traduzem respectivamente o exercício de uma atividade conforme ou contrária às tendências. Estes guias não devem, contudo, ser seguidos cegamente. Seu papel é somente o de nos dizer o que é bom ou mau, mas de forma alguma o que é moralmente bem ou mal: o que é agradável à sensibilidade não é sempre o bem, o que lhe é desagradável não é sempre o mal.

b)     São auxiliares. O prazer tende a aumentar a atividade que o produz; a dor tem o efeito contrário. O prazer dilata, a dor contrai.

2. Papel moral. O prazer é por si mesmo a recompensa do mérito? A dor é sinal de demérito. Não se poderá afirmá-lo sem ir contra a experiência e o senso moral da humanidade, sobretudo pelo fato de que prazer e dor pertencem à ordem corporal, na qual o homem não saberia encontrar seu fim. A dor pode, freqüentemente, ser indício de grandeza e fonte de mérito unicamente se for encarada ou aceita em função do bem moral, superior aos bens sensíveis.

Todavia, parece certo que prazer e dor deveriam representar sanções do mérito e do demérito, e que, em muitos casos, o poderiam realmente ser. Que eles não o sejam sempre, é sinal de uma desordem na nossa natureza. Eis tudo o que a filosofia pode dizer. A fé cristã traz aqui suas luzes, fazendo conhecer a causa e a natureza desta desordem.

ART. V.    EMOÇÕES E SENTIMENTOS
§   1.      A  EMOÇÃO

126      1.   Noção.

a)     Definição. A palavra emoção se toma, num sentido muito geral, para significar toda espécie de estado afetivo de uma certa intensidade. Aqui nós a entenderemos, de uma maneira muito estrita, como designando um fenômeno afetivo complexo, provocado por um choque brusco, e compreendendo um abalo mais ou menos profundo da consciência. (Enquanto escrevo, uma detonação ecoa atrás de mim e me põe em sobressalto; estou longe de me refazer da surpresa. — Percorrendo ao acaso um jornal, tomo conhecimento da morte acidental de um amigo querido: com isto,. "recebo um choque", que me mergulha na tristeza).

b)     Existem duas espécies de emoções’! 
Costuma-se distinguir a emoção-choque (coarse emotion), categoria na qual entram os exemplos precedentes, — e a emoção sutil, ou estado emotivo tranqüilo e durável, rico em elementos representativos. A emoção sutil parece muito difícil de distinguir dos sentimentos e é preferível reservar o nome de emoção ao fenômeno afetivo descrito sob o nome de emoção-choque.

2. Análise. 
— Podem-se descobrir na emoção duas espécies de elementos:

a) Elementos psíquicos. Desde que o choque se produz surge toda sorte de representações mais ou menos ligadas, que vêm bruscamente inibir e substituir o curso das representações normais. No mesmo momento, desencadeia-se um fenômeno afetivo de uma extrema intensidade, agradável ou desagradável, e geralmente penoso e difícil de suportar, por causa de sua violência, e de sua brusca aparição. Pouco a pouco, após o primeiro choque, faz-se uma adaptação, mais ou menos laboriosa, que tende seja a prolongar sob forma de estado durável (sentimento) a emoção primitiva, seja a eliminar a lembrança da emoção, quando ela apenas resultou de um fato sem conseqüências.

b) Elementos fisiológicos. Conhecem-se bem estes fenômenos produzidos no corpo pela emoção: aceleração do ritmo do coração e do ritmo respiratório; sensação de não ter passagem na garganta, boca seca; perturbações intestinais, palidez, reflexos incoerentes de. adaptação ou de proteção etc.

3.    Natureza da emoção.
a)     Qual é a natureza da emoção: psíquica ou fisiológica?  
No" primeiro caso, os elementos fisiológicos não são mais do que efeitos do estado mental: choro porque estou triste. No segundo caso, é o inverso: o estado mental é uma simples conseqüência dos fenômenos fisiológicos:  estou triste porque choro.

b)     A teoria periférica. 
 A segunda hipótese, ou teoria periférica, sustentada por Descartes, Lange e William James, foi aplicada sobretudo às emoções-choques. Ela afirma que a emoção não é nada mais do que a consciência das perturbações fisiológicas, e invoca em seu favor os fatos das fobias (temores sem causa externa), os casos numerosos em que se assume a atitude exterior da emoção a fim de fazê-la aparecer (caso das comédias, — assobia-se para criar ânimo, — Napoleão quebra um vaso de porcelana para ficar encolerizado etc), os casos igualmente freqüentes em que se suprime uma emoção inibindo os fenômenos fisiológicos que lhe estão ligados (a paralisação das lágrimas diminui a emoção). Resultaria daí que o ato da emoção seria o seguinte: uma representação — reações periféricas — consciência destas reações — emoção. Donde o nome de "teoria periférica" dado a esta explicação do fenômeno emotivo.

c) Apreciação da teoria periférica. 
 A teoria periférica encontra bastantes dificuldades. De início, ela não se aplicaria senão imperfeitamente às emoções finas. Depois, mesmo limitada às emoções-choques, os fatos que invoca se chocam com dois fatos contrários (o ator que representa sem nenhuma emoção; as lágrimas que acalmam a emoção — diz-se que "chorar faz bem" etc).

Contudo, esta teoria contém um elemento importante de verdade. Ela se opõe justamente à teoria psicológica, que erra em considerar os fatos fisiológicos como acidentais na emoção. Na realidade, estes fatos são essenciais, por sua vez, da mesma maneira que o corpo faz parte da essência da natureza humana. A emoção é ao mesmo tempo um fenômeno psíquico e um fenômeno orgânico: segundo sua intensidade, é ora o fenômeno psicológico ora o fenômeno orgânico que parece ter a preponderância. Mas as duas espécies de fenômenos concorrem juntas para produzir a emoção.

§  2.     OS SENTIMENTOS

127      1. Noção.
Os sentimentos são estados afetivos duráveis de ordem geral. Eles se distinguem por isto dos estados afetivos de ordem física (prazer e dor corporais), — das emoções, que são brutais e temporárias, — enfim, das sensações, que são produzidas por um excitante físico, enquanto que os sentimentos nascem de uma representação   (imagem ou idéia)   mais ou menos clara.

2.    Natureza.  
— É errado pensar que os sentimentos pertencem unicamente à alma e não têm nenhum caráter orgânico. Todos os estados afetivos põem em jogo a um tempo a alma e o corpo. Apenas, nos sentimentos (sentimentos de veneração, de tristeza, de ódio, de simpatia, satisfação estética etc), as representações exercem um papel preponderante e a repercussão orgânico, é fraca, ainda que possua regularmente uma tonalidade agradável ou desagradável, que a aproxima da sensação.

3.    Função. — A atividade humana é prodigiosamente complexa. Todo um jogo de ações e de reações se produz em conseqüência dos elementos múltiplos e diversos que vêm constantemente integrar-se na vida psíquica: percepções, imagens, idéias, lembranças, crenças, sentimentos, inclinações, prazeres, sofrimentos etc. Neste conjunto, são os estados afetivos que representam o papel principal. Uma situação não é jamais para nós simplesmente uma representação, mas uma coisa ligada a nossas tendências e inclinações. Daí se seguem as reações diversas com as quais a consideramos. Se um ato a realizar nos aparece como fácil e agradável, será executado com satisfação ou alegria; se se apresenta como difícil, acima de nossas forças, oposto a nossos gostos, logo uma influência inibidora se manifestará. É o sentimento que ora favorece, ora refreia e paralisa a ação. O sentimento aparece, assim, cor>o regulador da atividade.
 
ART. VI.    AS PAIXÕES
128      1.    Natureza da paixão. — A paixão pode definir-se por comparação com a inclinação.

a)     Definição. Pode-se definir a paixão como um movimento impetuoso da alma conduzindo-nos ou afastando-nos de um objeto, conforme encontraremos nele uma fonte de prazer ou de dor. Vê-se, assim, que as paixões não são mais do que as inclinações levadas a um alto grau de intensidade.

b)     Inclinação e paixão. Não devemos, contudo, reduzir absolutamente a paixão à inclinação. Esta resulta imediatamente da natureza, e é inata, como o instinto que ela manifesta, enquanto que a paixão é adquirida, na proporção em que acrescenta à inclinação de que procede uma intensidade e uma veemência que são mais ou menos obra nossa. — Além disso, a inclinação é permanente como a própria natureza, enquanto que a paixão tem o caráter de uma crise. — Enfim, as inclinações se equilibram mutuamente, enquanto que a paixão é exclusiva, e rompe o equilíbrio em seu proveito.

2. Causas das paixões.  
— As causas das paixões podem ser fisiológicas ou psicológicas.

a) Causas fisiológicas. A paixão, já o dissemos, é uma inclinação levada a um alto grau de intensidade. Ora, as inclinações se apóiam imediatamente na natureza. Segue-se daí que as paixões resultam, por ama parte, do próprio temperamento. As inclinações, sem dúvida, se equilibram mutuamente, mas não de maneira perfeita: são, na realidade, desigualmente desenvolvidas, segundo a hereditariedade e o temperamento físico. Desde que demos mais exercício às inclinações predominantes, estamos no caminho das paixões, e pode-se dizer que estas existem em germe nas nossas inclinações, isto é, no nosso temperamento físico e morai.

Este germe pode crescer, sob a influência das circunstâncias exteriores, tais como a educação, os exemplos, as freqüências. Em geral, a paixão nasce lentamente, e as causas psicológicas intervém em todo o seu desenvolvimento.

b) Causas psicológicas. Estas são as mais importantes, porque a paixão não pode assumir extensão e força a não ser pela cumplicidade, ao menos tácita, de nossa vontade, que se torna assim a causa principal da paixão.

129.      3.   Efeitos  das   paixões. 
                      — Estes efeitos interessam à inteligência e à vontade.

a)     Efeitos sobre a inteligência. A paixão, ao mesmo tempo, enfraquece e superexcita a inteligência. Com efeito, a paixão centraliza as atividades da alma sobre o objeto da paixão, e ao mesmo tempo suspende qualquer forma de atividade que não seja exigida pelos fins da paixão. Produz-se, assim, uma espécie de unificação da alma, por empobrecimento.

Por outro lado, a inteligência fica exaltada e superexcitada quando a serviço dos fins da paixão. O apaixonado (Harpagão Grandet) realiza muitas vezes prodígios de engenhosidade; o monoideísmo, que constitui a paixão, permite-lhe concentrar sua atenção num mesmo ponto, com uma perseverança que não recua diante de nenhum obstáculo, e não conhece outro interesse que o da paixão.

b)     Efeitos sobre a vontade. O que se verifica com a inteligência se aplica também à vontade. A paixão pode exaltar a energia da alma: é o caso das paixões nobres. Ela pode também roubar à vontade toda espécie de autonomia, e dela fazer uma verdadeira escrava, pronta a todas as fraquezas e por vezes até mesmo ao crime.

4.    A paixão, do ponto-de-vista moral. — A palavra paixão é empregada geralmente num sentido pejorativo, e designa, na linguagem corrente, um apetite desregrado. Na realidade, a paixão não é má por si mesma. Ela não se torna má a não ser em função de seu objeto. Existem paixões nobres: a paixão da verdade, a paixão da caridade, a paixão do amor de Deus, que produz os santos. Estes, em certo sentido, são todos apaixonados. A paixão não se torna culpável a não ser que se dirija para um objeto moralmente mau. Podem-se, por isso, dividir as paixões em si mesmas, independentemente do valor moral de seu objeto.

5.    Classificação das paixões. — As paixões podem dividir-se como as inclinações de tal sorte que a cada inclinação corresponda uma paixão (122). Contudo, todas as paixões podem ser reduzidas ao amor e ao ódio, e o próprio ódio pode reduzir-se ao amor, pois o ódio de um objeto não aparece senão pelo amor que se tem por outro, que lhe é contrário.

ART. VII.  
  PEDAGOGIA DAS INCLINAÇÕES E DAS PAIXÕES

130      Toda formação moral deve ter por objeto desenvolver as inclinações mais nobres, inspirar as paixões generosas, ajudar a submeter os pendores desregrados e a sufocar o germe das paixões más.

§1. A ARTE DE GOVERNAR DAS INCLINAÇÕES

Dividimos as inclinações em inclinações superiores e inclinações sociais. Estas duas categorias de inclinações devem ser desenvolvidas e dirigidas com o maior cuidado.

1. Inclinações superiores.— Amor da verdade, do bem e do belo, amor de Deus, princípio exemplar de toda verdade, de toda bondade e de toda beleza: aí está o fim mais alto da formação pessoal e o resto não é mais do que um meio dirigido para este fim. Aqui deve, então, intervir o próprio conjunto dos métodos, intelectuais e morais, que dirigem a formação do espírito e do coração,  da vontade e do caráter.

Pode-se, contudo, mesmo neste domínio, orientar mal a formação pessoal das inclinações, ou a cultura da personalidade moral, e abdicar deste instrumento impulsionador de progresso  que se chama emulação. Estes dois pontos exigem algumas observações.

a)     O amor-próprio. O termo amor-próprio pode ser tomai: em dois sentidos contrários. Define-se muitas vezes pelo egoísmo: Neste sentido, é claro que deve ser combatido. Um método de formação que tivesse como resultado, voluntariamente ou não, habituar-nos, sob a capa do amor próprio, a tomar-nos como fim de todas as coisas, e a considerar-nos como o centro do mundo, seria radicalmente mau. — Mas o amor-próprio pode também definir esta preocupação da dignidade pessoal, que é o oposto mesmo de egoísmo, já que nos obriga, como vimos mais acima (123), a colocar a virtude, a justiça e a caridade acima de todos os interesse; materiais e sensíveis. Assim compreendido, o amor-próprio é a mais fundamental de nossas inclinações morais e o motor mais poderoso de nossa formação pessoal.

Sem dúvida, é por vezes difícil discernir se certas fórmulas do amor-próprio não nos levam muito mais a parecer do que a ser, ou, de qualquer forma, a colocar o ser a serviço do parecer. Mas este desvio não nos deve levar a desconhecer o que há de bom e de excelente no sentimento de honra, e na preocupação da dignidade pessoal. São, estes, preciosos auxiliares da formação moral, sob a condição de que se saiba bem colocar a honra e a dignidade humana onde convenha, a saber, muito menos na reclamação: inquieta e obstinada do que alguém nos deve em respeito e consideração, do que na necessidade sentida fortemente de nada fazer que nos obrigue a corar diante de nossa conduta, no íntimo de nossa consciência.

b)     A emulação. Daí se depreende o que é necessário pensar da emulação. Ela pode ter sua utilidade. Mas é necessário guardar-se de certos excessos muito freqüentes. É necessário evitar deixar a emulação transformar-se em rivalidade irritante, em orgulho. em desejo de dominar. A melhor emulação não consiste tanto em colocar-se alguém em paralelo com os outros, mas em colocar-se em paralelo consigo mesmo: convém, antes de tudo, comparar o qi>t fomos antes com o que somos hoje, a fim de compreender que se trata menos de ultrapassar os outros, do que ultrapassar a si mesmo.

2. Inclinações sociais. — Estas inclinações se manifestam, sobretudo, sob a forma da imitação e das afeições simpáticas.

a)     A imitação. O homem é naturalmente imitador, e pode-se conceber imediatamente qual será o poder do exemplo sobre nós, mormente na juventude, quando não se conseguiu adquirir um juízo pessoal sobre as coisas da vida. Cumpre, por isso, escolher os lugares onde freqüentar, evitar quanto possível qualquer convivência em que se corra o risco de sofrer o contágio dos maus exemplos. É conhecido o provérbio, tantas vezes verificado: "Dize-me com quem andas, que te direi quem és."

b)     As afeições simpáticas.  
Quanto às afeições simpáticas, elas não são em si más, tanto quanto possam parecer, mas devem ser atentamente vigiadas. As amizades da juventude podem ser simplesmente uma ajuda e um auxílio. Mas acontece muitas vezes, também, que se oferece uma amizade sem reflexão, ou que nos entreguemos ou nos isolemos com uma incrível leviandade. Devemos, por isso, aprender a governar os sentimentos do coração. — Enfim, acontece, por vezes, que certas amizades precoces tenham alguma coisa de inquieto e apaixonado, e se tornem facilmente absorventes. Este é o sinal de uma sensibilidade afetiva desordenada, que é necessário trabalhar    para dominar e moderar.

§ 2.    Remédios para as paixões más

131      Não basta trabalhar para desenvolver em nós as boas inclinações, mas é necessário ainda esforçar-se por vencer as inclinações más e evitar ou domar as paixões malsãs. Quer dizer que existe lugar para empregar remédios preventivos e remédios curativos.

1. Remédios preventivos. — Sabemos que a paixão pode nascer, quer das disposições fisiológicas ou morais, quer das circunstâncias exteriores. Cumpre, então, chamar a atenção para estes dois pontos:

a) A imaginação é a grande fonte das paixões. Por isso, neste domínio, tudo se resume em aplicar as regras que demos a propósito da imaginação. — Quanto ao temperamento físico, é conveniente esclarecer se ele é ou não perfeitamente são, e, em caso negativo, fazer intervir os remédios físicos apropriados.

b) As circunstâncias exteriores têm uma grande influência sobre a formação das paixões. Estas circunstâncias, na maior parte do tempo, não dependem de nós. Pelo menos, convém não criar voluntária ou imprudentemente circunstâncias que sejam perigosas: deste ponto-de-vista as leituras e os espetáculos devem tornar-se objeto de uma escolha escrupulosa. Que nós nos lembremos destas palavras: "Quem ama o perigo, nele morrerá."
Acima de tudo, é necessário esforçar-se para adquirir uma vontade forte, como o mostraremos mais adiante.

2. Remédios curativos. — Quando uma paixão má se manifesta, como  poderemos combatê-la?

a)     A luta direta nem sempre é indicada, e é mesmo muito paro que tenha bons resultados. Em regra geral, não se combate eficazmente uma paixão a não ser por uma paixão contrária.

b)     Em certos casos, contudo, a luta direta pode mostrar-se eficaz. Seu processo consiste em associar às paixões alguma emoção desagradável. É assim que se luta contra a covardia, contra a sensualidade etc, expondo as detestáveis conseqüências destas paixões: vergonha, desprezo, perturbações físicas. Acima de tudo, a idéia do pecado e a ofensa feita a Deus devem ser eficazes nas almas cristãs.


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Última Modificação: 9 jul, 2009.

Fonte:
CONSCIENCIA.ORG

A VIDA SENSÍVEL - Régis Jolibet


Curso de Filosofia – Régis Jolivet
PRIMEIRA PARTE

A  VIDA  SENSÍVEL

97        Por vida sensível designa-se o conjunto dos fenômenos cognitivos e dinâmicos determinados no sujeito psicológico por excitações vindas dos objetos materiais externos ou que têm por fim os objetos sensíveis externos. Esta dupla série de fenômenos, especificamente distintos, mas em relação mútua constante, define toda a vida psíquica dos animais. No homem, a vida sensível é por sua vez informada, penetrada, e parcialmente governada pela vida intelectual.

 Mas os fenômenos sensíveis, cognitivos e dinâmicos, não lhes conservam menos sua especificidade própria, que autoriza a estudá-los em si mesmos e por si mesmos.

Capítulo  Primeiro

O   CONHECIMENTO   SENSÍVEL

Os fenômenos grupados sob o nome de conhecimento sensível são os que resultam imediatamente da ação dos objetos externos sobre os sentidos. São as sensações, que são as condições sensoriais da percepção, — a imaginação, ou faculdade de conservar ou fazer reviver os dados sensíveis como tais, sem referência ao passado, — enfim, a memória, ou faculdade de conservar o passado como passado.

Art. I.    A SENSAÇÃO

A.    Noção.

98        É normal começar o estudo do conhecimento sensível pela sensação. Mas cumpre notar que as sensações não podem ser consideradas como os elementos ou partes de que se comporiam as percepções (ou apreensões de objetos). Na realidade, todo conhecimento sensível é percepção do objeto e apenas por abstração é que se isola a sensação, para estudá-la à parte.

1.    Definição da sensação. — A sensação, considerada como condição sensorial da percepção, pode ser definida como o fenômeno psíquico determinado pela modificação de um órgão corporal.

2.    Os dois aspectos da sensação. — O fenômeno comporta dois aspectos distintos: de uma parte, o conhecimento de um objeto, apreendido com suas qualidades sensíveis (calor, cor, sabor, resistência etc.) — e um estado afetivo mais ou menos acentuado (prazer ou dor), ligado a esta apreensão e determinando por sua vez uma reação motora  (atenção, atração, desejo, repulsão  etc).   Os dois elementos, cognitivo e afetivo, estão em relação inversa um do outro; quanto mais forte for o estado afetivo, menos clara será a representação.

B.    Processo.

Esse processo compreende a excitação, a impressão orgânica, a apreensão das qualidades sensíveis.

1. A excitação. — É a ação de uni corpo, ou excitante, sobre o organismo sensorial. A cada sentido corresponde um excitante especial.
Tem-se procurado determinar as leis segundo as quais age a excitação:

a)     Lei do míniimo e do máximo. O excitante não determina a sensação a não ser que atinja ou não ultrapasse uma certa intensidade. O ouvido tem, assim, um mínimo e um máximo audíveis, o tato um mínimo tangível etc. (Uma luz muito viva cega; não percebemos o infravermelho nem o ultravioleta.)
Esse mínimo e esse máximo variam numa certa medida, segundo os indivíduos: o cego tem um tato de uma extrema sutileza; o violinista tem o ouvido mais sensível que alguém que não seja músico.

b)     Lei do limiar diferencial. Distingue-se a sensibilidade fundamental, que é a capacidade de se impressionar por um excitante e a sensibilidade diferencial ou capacidade de sentir as diferenças de intensidade das diversas sensações.
Tem-se perguntado, para cada sentido, em que medida devia aumentar a intensidade da excitação para que o acréscimo possa ser sentido. Certos psicólogos, como Weber e Fechner, propuseram cifras; mas estas cifras não são encontradas com exatidão, e não a podem ter, uma vez que os fatos psíquicos não são quantitativos. Mas é certo que a sensação aumenta menos rapidamente que a excitação e que o aumento que experimente a excitação, para que seja perceptível, é tanto maior quanto mais forte a excitação inicial tenha sido.

c)     Lei de relatividade. O conteúdo de uma sensação varia segundo as sensações que a precedem ou a acompanham   (o branco parece mais branco ao lado do prelo. Com uni frio de -15 graus experimenta-se uma sensação de calor entrando-se num aparta-mento que está com   – 5 graus).

2.    A impressão orgânica.

a)     Ação sobre o órgão periférico.O excitante age sobre o órgão periférico e nele produz uma impressão, que, nervo condutor, étransmitida ao cérebro.

b)     Velocidade da condução nervosa. Pode-se medir a velocidade da passagem da impressão ao cérebro a partir do órgão externo: essa velocidade é, sensivelmente, de 30 m por segundo.

c)     Reações motoras.Quando chega ao cérebro o influxo nervoso, diversas reações logo se produzem, que consistirão na adaptação motora do órgão dos sentidos (fixação do olhar etc.) e numa série de movimentos  (ao menos esboçados) para aproximar-se ou afastar-se do objeto. Essas reações receberam o nome de reflexas.

99      3.   A  apreensão   das   qualidades  sensíveis. -    As   qualidades sensíveis, que a sensação apreende, compõem o domínio dos sensíveis próprios e o domínio dos sensíveis comuns.

a) Os sensíveis próprios.Chamam-se assim os objetos especiais e próprios de cada um dos órgãos dos sentidos. Estes são externos e internos.
Os sentidos externos, ou sentidos dos órgãos externos, são ou cinco sentidos, vista, audição, gosto, olfato e o tato, que têm respectivamente,  por sensíveis próprios, a cor e a luz, — o som, o sabor, — o odor, — a resistência (com as diversas sensações sinestésicas: contato, pressão, esforço, peso, atitude). — A estes cinco sentidos se acrescenta o sentido térmico, que tem um órgão próprio (os corpúsculos de Meissner e Ruffini) e que fornece as sensações de calor e de frio.

Os sentidos internos (ou tato interno)  se reduzem ao que se chama a sinestesia. Chama-se senso interno porque está difuso do organismo e não localizado na periferia externa, e também  por que toma forma nas impressões orgânicas internas e, sob este aspeto,    é  de  natureza  principalmente  afetiva.  Reúne  o   conjunto das sensações orgânicas que nos são dadas como associadas e fundadas numa espécie de sensação global confusa. (É a esta sensação global que nós nos referimos quando dizemos, por exemplo: "eu me sinto bem ou mal" ou "eu tenho uma impressão de mal-estar ou bem-estar geral".)

b) Os sensíveis comuns. Enfim, há certas realidades sensíveis que são o objeto de vários sentidos. São estes os sensíveis comuns: extensão, dimensões, formas, figuras e movimentos. Estes  sensíveis comuns, objetos complexos, resultam de uma longa elaboração dos dados sensíveis.

C.    A objetividade das qualidades sensíveis.

Os filósofos colocaram a questão de saber se a sensação, como tal, é realmente um ato de conhecimento objetivo, quer dizer, um ato que faz apreender alguma coisa de distinto do sujeito que sente. Todos concordam que a sensação nos faz apreender as qualidades. Mas estas qualidades serão realidades objetivas ou simplesmente modificações ou estados do sujeito provocados por um objeto exterior,  sem nos informar sobre este objeto?

1.    Elementos do problema.

a)     Qualidades primeiras e qualidades segundas. 
A distinção das qualidades primeiras e das qualidades segundas é um elemento essencial do problema. Chamam-se qualidades primeiras a extensão dos corpos e as propriedades que se relacionam com a extensão, quer dizer, a figura e o movimento (71, 73), — e qualidades segunda:    os sensíveis próprios: cor, som, odor, sabor, qualidades áteis.

b)     Teoria mecanicista. A  objetividade  das  qualidades primárias, a  saber, a  extensão dos corpos,   é negada pelos idealistas.
Não vamos aqui examinar esta opinião senão do ponto-de-vista da Psicologia. Mas convém considerar antes a questão das qualidades segundas, que numerosos filósofos antigos (DEMÓCRITO, EPICURO, LUCRÉCIO) e modernos, ( DeScartEs, LOCKE etc.) tem considerado como puramente subjetivas, (quer dizer, sem realidade fora, do sujeito que sente.
O   argumento apresentado como   prova  desta  concepção consiste em dizer que as ciências da  natureza  demonstram que toda diversidade no corpo é de natureza mecânica, isto é, que consistem no movimento local: modificação das estruturas atômicas dos corpos por vibrações etéreas, moleculares etc. Dever-se-ia concluir daí que o movimento é a única realidade objetiva e que as qualidades sensíveis são apenas afecções subjetivas.

c)     A especificação dos nervos condutores.O biologista JOHANNES MÜller, no início do século XIX, quis demonstrar diretamente a tese mecanicista pondo em evidência o que chama a especificidade dos nervos sensoriais, em virtude da qual os nervos condutores, de qualquer maneira que sejam tocados, dão sempre a mesma sensação (ou a mesma qualidade sensível). A eletrizaçãod o nervo óptico, a seção ou pressão deste mesmo nervo, produzem Identicamente uma sensação de ofuscação. Nota-se, também, no nu mo sentido, que a eletrização do nervo acústico produz um som, o do nervo olfativo, uma sensação de odor etc. Seguir-se-ia daí que as qualidades sensíveis não são produzidas pelo objeto percebido, pulou próprios órgãos sensoriais.
]
d)      A  objetividade física da sensação. Os argumentos a que acabamos   de nos referir não provam, de forma alguma, a subjetividade das qualidades sensíveis.

Com efeito, o argumento mecanicista não tem valor, enquanto   identifica as vibrações e as qualidades sensíveis. A Física mostra apenas que há uma relação necessária entre vibrações e qualidade: mas uma relação não é uma identidade. E que a própria Física não vá além do movimento,  isto se compreende, certamente,  urna   vez que visa ao aspecto quantitativo dos fenômenos. Seu aspecto qualitativo não pode, evidentemente,  ser apreendido a não ser por uma atividade vital.

Quanto à especificidade dos  nervos condutores, ela  não seria suficiente para provar   a subjetividade   das  qualidades   sensíveis. Faz-se necessário, ainda, que se demonstre a  indiferença do órgão periférico à excitação, de tal sorte que a retina, por exemplo, reagisse de maneira constantemente idêntica a quaisquer excitantes.

Ora, é exatamente o contrário que se observa. Os órgãos periféricos são perfeitamente especializados: a retina é sensível às vibrações  etéreas, o sentido térmico reage apenas às vibrações moleculares etc. e daí devemos inferir a eficácia do próprio excitante, quer dizer, do próprio sensível e, portanto,  a objetividade física da sensação.
Isto, por outro lado, não obriga de forma alguma a contestar a realidade dos fatos invocados por MÜller. Mas explicá-lo-emos melhor observando que a excitação direta dos nervos sensoriais tem como resultado fazer reviver o gênero de sensações de que são normalmente condutores.


100      2. A atividade sensível é realmente cognitiva. — Toda essa discussão nos leva a afirmar que os sentidos nos fazem realmente conhecer as qualidades sensíveis, tais quais existem nas coisas.
Esse conhecimento resulta do fato de que o objeto externo se torna presente ao órgão sensorial por uma espécie sensível ou imagem, que é a semelhança do objeto, presente no próprio sentido, é que constitui como tal o princípio determinante do conhecimento sensível. Segue-se daí que a sensação não é ato unicamente da alma, mas da alma e do corpo que ela informa, — que ela é o ato comum do sujeito que sente e do objeto sentido, — enfim, que o objeto sentido está no sujeito que sente segundo o modo deste, quer dizer, sob forma imaterial. Esta última propriedade caracteriza, por outro lado, o conhecimento, em toda a sua extensão, — quer seja sensível ou intelectual, e se exprime na fórmula seguinte: o conhecido esta presente no que conhece segundo o modo do que conhece. 

 A diferença entre os dois graus de conhecimento está presente no sentido, na sua realidade singular (imagem), enquanto que no conhecimento intelectual (como veremos melhor mais adiante) o objeto conhecido está presente na inteligência unicamente sob a forma abstrata (idéia). Daí se segue que o conhecimento pelos sentidos (\ por vezes, chamado intuição sensível, enquanto for uma apreensão imediata da qualidade sensível na sua realidade concreta.

101       3. Primitividade da sensação de extensão.   —  Uma  vez   que as qualidades segundas aparecem como dados objetivos, poder-se-ia logo concluir daí a objetividade das qualidades primárias, a saber, da, extensão e do que com ela, se relaciona, pois as qualidades segundas se apresentam sempre como dados na extensão e no espaço. Contudo, certos filósofos sustentaram que a própria sensação de extensão não era primitiva e objetiva, mas construída, o por conseguinte subjetiva. é o que se chama a teoria, genética da extensão.

a) Teoria geneticista.Esta teoria (proposta por Hume, Spencer, Wundt, Lotze, Taine e Ribot) afirma que, como as sensações são inextensas, a noção ou imagem de extensão é uma pura construção do espírito. Para explicar esta construção imaginaram-se várias hipóteses, cujo principal (Spencer) consiste em dizer que construímos a extensão considerando como simultâneas e coexistentes sensações que primitivamente são dadas apenas como sucessivas.

b) Teoria nativista. O argumento geneticista não pode ser admitido, pois é certo que não tomamos o coexistente como sucessivo, pois, do contrário, toda sucessão rápida e constante deveria transformar-se em extensão. Portanto, convém dizer que a extensão é um dado primitivo, imediatamente percebido com as qualidades secundárias de cor e de resistência: toda cor nos aparece como extensão, toda sensação tátil é sensação de superfície (longitude e largura).

Estas observações devem aplicar-se à sensação de profundidade (ou terceira dimensão do espaço), pois o tato é por sua vez sensível ao relevo, que constitui uma forma da profundidade. Os cegos de nascença, logo após a operação que lhes restitui a vista, assim como as   crianças,  percebem imediatamente as  coisas   como exteriores. Mas é verdade que eles apreciam mal as distâncias: o cego operado imagina as coisas como tangentes a seus olhos e as crianças estendem as mãos para apanhar os objetos distantes e fora de seu alcance.

Isto significa que a percepção dos sensíveis comuns é submetida a uma elaboração progressiva, em que intervém a colaboração dos diversos sentidos interessados. É assim que a criança aperfeiçoa pouco a pouco a sua percepção da profundidade  (ou da distância) pelo fato dos deveres que experimenta no seu esforço para apreender os objetos afastados, pelo exercício cada vez mais preciso dos movimentos de convergência binocular e de acomodação (sensações sinestésicas)   etc.
D.

A questão dos erros dos sentidos.

102      Esta questão se impõe naturalmente, depois do que dissemos da intuição sensível. Pareceria que os sentidos não pudessem estar sujeitos a erro, uma vez que atingem diretamente seu objeto e reagem espontaneamente à excitação. Ora, diz-se que a experiência prova que os sentidos se enganam muitas vezes, e os cépticos, como veremos na Crítica do conhecimento, apóiam nestes erros seu principal argumento. Existe, então, um problema. A solução deste problema, do ponto-de-vista psicológico, resultará das seguintes observações:

a)     A bem dizer, não existe erro senão no juízo. Todo erro, com efeito, consiste em afirmar de um ser alguma coisa que não lhe convém (30). Não existe, a rigor, erro dos sentidos, já que o juízo é obra exclusiva da inteligência. Contudo, os sentidos podem induzir a erro a inteligência, que emite o juízo.

b)     Os sentidos podem ser causas acidentais dos erros. É o que se produz cada vez que eles não exercem sua atividade em condições normais, quer dizer, quando o órgão sensorial é defeituoso (como no caso do daltonismo), — quando o meio sensível modifica a ação proveniente do objeto (os gregos imaginavam o sol como sendo grande como o Peloponeso, — o sol parece girar em torno da terra), — enfim, quando o objeto muda no momento exato da sensação, de tal sorte que esta apreende, não a realidade sensível presente, mas uma realidade sensível já desaparecida.
Estas causas de erros, como se vê, são puramente acidentais, pois que, por si mesmo, os sentidos apreendem realmente o que é.. O erro provém sempre de emitir a inteligência um juízo sem criticar e interpretar os dados sensíveis, confrontando-os uns com os. outros.

Art. II.    A PERCEPÇÃO

A.    Noção.

103      1. Definição da percepção. — Define-se comumente a percepção como sendo o conhecimento de um objeto. Esta definição é exata. — Acrescente-se que, por isto, a percepção se distingue da sensação, que é a apreensão de uma qualidade sensível. Pode-se, ainda, admitir esta observação, sob a condição do não considerar que o objeto fosse construído a partir das sensações, como com elementos ou partes. Na  realidade, como já o fizemos notar mais acima (110), toda sensação já é percepção de um objeto, e não é senão por abstração que se fala de sensação pura. Todavia, no processo cognitivo total, pode-se legitimamente distinguir em parte as condições sensoriais da percepção, que são as sensações ou apreensões das qualidades sensíveis, e a apreensão do objeto éa percepção.

2. Dado sensorial e significação. —- Partindo dos fatos concretos de percepção, verifica-se que perceber é sempre apreender intuitivamente um todo organizado, de tal sorte que a organização seja dada à intuição simultaneamente com seus materiais sensoriais. Se há, pois, como distinguir dois aspectos em toda percepção, a saber, o aspecto material e o aspecto formal {dado sensorial acrescido de uma significação), é capital observar que a significação não é adicionada arbitrariamente ao dado sensorial, mas que se contém nele como qualidade essencial, e, por conseguinte, que a "tomada de significação" (ou ato de apreender ativamente o sentido de um dado sensorial)  é, realmente, constitutivo do ato perceptivo.

B.    O juízo da exterioridade.

1.    As  teorias  genetistas. — As   observações   que   precedem permitirão compreender as doutrinas genetistas, quer dizer, doutrinas que afirmam que as sensações, únicos dados primitivos, são de natureza puramente subjetiva e, por conseguinte, não revelam ao sujeito senão suas próprias modificações, e, de forma alguma, os objetos reais e independentes dele. Estas doutrinas, forçam-nos a que nos perguntemos como chegamos a perceber objetos no espaço a partir das puras sensações. As teorias propostas para resolver esse problema (que não é, de fato, mais do que um falso problema) podem reduzir-se às da "alucinação verdadeira" e da ência.

a) Teoria da alucinação verdadeira. Em virtude desta teoria, defendida por TAine, as imagens têm uma natural tendência a tornar-se objetos, quer dizer, a se exteriorizar, como o demonstra o fenômeno da alucinação. Apenas, na alucinação, chegamos a reduzir as imagens-objetos (o tato, por exemplo, me permite verifica que a vista é o objeto de uma alucinação ao me fazer ver tal pessoa, morta após muito tempo, como presente diante de mim), enquanto que, na percepção, esta redução não ocorre.  A percepção constitui, então, uma alucinação verdadeira.

Esta teoria é falaciosa. Consiste em aceitar previamente o que está em questão, afirmando que as imagens tendem a mudar-se em objetos. Essa transformação não é, com efeito, possível (em certos casos) a não ser que as imagens resultem de percepções anteriores de objetos. Não sendo assim, seria absolutamente inconcebível. — Por outro lado, não se compreende, na teoria de Taine, como certas imagens se mudem em objetos, enquanto outras permaneçam imagens ou fenômenos subjetivos.

b) Teoria da inferência.O objeto, nesta concepção, proposta por Reid, resultaria de um raciocínio efetuado a partir da sensação. O sujeito que sente, não encontrando em si a causa adequada da sensação, atribuí-la-ia a uma causa exterior a ele, e, ao mesmo tempo, nele se formaria desta causa uma representação conforme à sensação experimentada.

Além disso, já que não temos nenhuma consciência de um tal raciocínio, essa teoria não pode explicar por que nós não objetivamos também os estados afetivos, cuja causa não descobrimos em nós.

2.    A intuição sensível.

a)     O problema da ponte é um pseudoproblema. Na realidade o problema do juízo de exterior idade é colocado em termos que fazem dele um pseudoproblema, um problema ilusório. Não temos absolutamente que procurar como passamos de estados subjetivos a um objeto externo, porque não existe nenhuma passagem do interior para o exterior. O objeto ê dado imediatamente ao conhecimento como uma realidade exterior. É igualmente certo que a noção de estados subjetivos estudados por si mesmos, por reflexão sobre a consciência, é uma noção retardada, que escapa à criança e ao coisas.

b)     O realismo imediato. O erro que vicia as teorias genetistas como todas as teorias idealistas (que examinaremos na Crítica do conhecimento) consiste em crer que o objeto primeiro da percepção é a modificação do sujeito que sente ou que pensa. Neste caso, não conheceríamos realmente senão a nós mesmos, e o mundo exterior se tornaria um problema a resolver. Com efeito, conhecemos imediatamente as coisas, mas em nós e por sua representação, que é seu modo sensível (imagem) ou imaterial (idéia) de serem apresentadas a nós   (100).

C.    A educação dos sentidos.

104      A educação dos sentidos tem uma importância que se desconhece muitas vezes, como se a natureza não tivesse necessidade, aqui como ali, de ser ajudada e por vezes retificada.

1. A educação da percepção. — Esta educação consiste, antes de tudo, em aperfeiçoar as percepções naturais, quer dizer, aquelas que não dependem de nenhuma elaboração, no seu exercício fundamental: percepção das cores, dos sons, dos odores etc. Os sentidos podem adquirir, por um trabalho metòdicamente conduzido, uma extrema sutileza. Nós o verificamos no cego, que, obrigado a recorrer constantemente ao tato, atinge, no uso deste sentido, um grau maravilhoso de precisão. O violinista apreende nos sons variações que escapam ao profano. O pintor tem uma percepção extraordinariamente clara das cores, até nas suas tonalidades mais ínfimas.

Vê-se, sem dificuldade, o interesse que existe em ter sentidos tão penetrantes e precisos quanto possível. Nossa ação sobre o mundo exterior em grande parte depende disso. Nossa própria vida intelectual deve beneficiar-se: ela se alimenta no mundo sensível e podemos dizer que se está apto a conhecer tanto melhor as coisas, pelo espírito, quanto melhor as apreendemos pelos sentidos.

2. A cultura artística. — Trata-se, antes de tudo, de ter atenção, quer dizer, de fazer um uso ativo dos sentidos. Por isso, o cultivo das belas-artes pode ser de real utilidade: se é impossível cultivá-las todas, ao menos convém interessar-se particularmente por algumas dentre elas, e não ficar indiferente a nenhuma. As artes fixam-se numa matéria sensível e exigem uma grande sutileza na percepção dessa matéria; ao mesmo tempo, obrigam a dissociar as sínteses objetivas, a fim de verificar um a um os seus elementos. Muito freqüentemente, os grandes artistas são aqueles que souberam retornar, por cima das sínteses convencionais, à pureza das sensações originais.

Art. III.    A IMAGINAÇÃO


1.    Noções Gerais

105                 1.    Definição.   — Chama-se imaginação   a  faculdade   de  conservar, de reproduzir e de combinar as imagens das coisas sensíveis.
O objeto da imaginação é, então, tudo que foi recebido pelos sentidos: cores, formas, odores,  sons, resistência, calor, peso etc.

2. Divisão. — A imaginação se manifesta em nós sob duas formas: como imaginação reprodutora e como imaginação criador:

a)     A imaginação reprodutora. Ela se limita, como a palavra indica, a reproduzir, quer dizer, a evocar imagens. Dizemos que aí está todo o seu papel, de direito ao menos, porque, na realidade, é muito raro que a imaginação, ao evocar as imagens antigas, não as modifique mais ou menos profundamente. É o que explica que os diferentes relatos do mesmo acontecimento, feitos em datas afastadas, pela mesma pessoa, possam apresentar muitas vêzas consideráveis variantes.

Esta espécie de imaginação parece, à primeira vista, confundir-se com a memória. Mas difere essencialmente da memória. Esta tem por objeto os estados de consciência, mais precisamente meus estados de consciência antigos, enquanto que a imaginação tem por objeto as imagens sensíveis, não enquanto elas foram, a tal época de meu passado, minhas imagens (isto seria o objeto da memória), mas em si mesmas e por si mesmas.

b)     A imaginação criadora. Consiste em combinar imagens antigas para com elas formar novos conjuntos. É a faculdade que nos permite fazer o novo com o velho.
Ela pode exercer-se de alguma forma espontaneamente; é o que se produz no sonho, em que as imagens estão associadas pelo que sonha de maneira que produzem combinações mais ou menos fantásticas.

A forma mais original da imaginação criadora é a forma e refletida; o espírito ai  intervém para utilizar o material de imagens, que lhe fornece a imaginação, e ordenar estas imagens em novos conjuntos. É esta forma da imaginação que se chama propriamente criadora; não que ela crie uma matéria qualquer; esta vem totalmente dos sentidos, porém produz, por sua fantasia, essas formas novas, que são outras tantas criações da imaginação.

§ 2.    Processos da imaginação criadora

106       A criação imaginativa põe em jogo numerosos processos, que se podem reduzir a três principais.

1.    A associação. — Este processo consiste em utilizar as relações e as analogias que existem entre as coisas. O que caracteriza o grande artista e o grande escritor é sua aptidão toda especial a descobrir entre os seres da natureza semelhanças imperceptíveis ao comum dos homens. A obra dos verdadeiros poetas está cheia destas descobertas imaginativas que provocam a nossa admiração. Pode-se citar como exemplo os versos que Victor Hugo escreve, a propósito do crescente da Lua:
. . .E a si mesmo Ruth,  imóvel,  perguntava,
Entreabrindo o olhar sob os seus véus,
Qual Deus, qual segador que do verão eterno,
Ao partir, por negligência deixaria,
Esta foicinha de ouro no campo dos céus.   (*)
2.    A dissociação. — Para formar combinações com as imagens antigas, cumpre inicialmente ter dissociado ou distinguido, em seus elementos, os conjuntos em que estas imagens se encontravam ligadas. Ainda aí é exclusivo do gênio saber dissociar os fenômenos que, para nós, formam apenas um todo indistinto — como Newton, dissociando o movimento da queda de uma maçã, e associando-se em seguida ao movimento da

3.    A combinação. — Encontrar as semelhanças, dissociar os conjuntos em seus elementos: tais são os meios que a imaginação emprega para realizar novas combinações.
(*)       …Et  Ruth se  demandait.
Immobile, ouvrant Foeil  à moitié sous  ses voiles,
Quel Dieu,  quel moisonneur de 1′éternel  été.
Avait, en s’en allant, négligemment jeté
Cette faucille d’or dans  le champ  des étoiles.
É desse processo essencial da imaginação criadora que vivem as artes liberais (Música, Pintura, Escultura, Arquitetura) e as artes mecânicas. Todas as invenções procedem da imaginação combinadora.
Nem mesmo a ciência pura deixa de se beneficiar da criação imaginativa, uma vez que as grandes hipóteses científicas são antes de tudo o fruto de uma imaginação, que resconstrói de alguma forma a natureza, segundo um plano antecipado, que a experiência deverá posteriormente confirmar.

Enfim, a própria vida prática utiliza sem cessar a imaginação criadora, enquanto está obrigada a imaginar de antemão o curso dos acontecimentos que quer produzir. Ora é "Pierrette e o pote de leite" ou os "castelos de Espanha", mas muitas vezes também a poderosa e justa previsão do homem de negócios, do financista, do homem de Estado ou do general, a de um César ou a de um Napoleão.

§   3.     A ASSOCIAÇÃO DAS IDÉIAS

A.    Noção.

107      1. Definição. — Define-se geralmente a associação das idéias como o fenômeno psicológico pelo qual se estabelecem ligações espontâneas entre estados de consciências, de tal forma que a presença de um, chamado indutor, arrasta, de maneira mais ou menos automática, um outro estado de consciência, chamado induzido. — Na realidade, esta definição é mais a fórmula de um problema que o enunciado de um processo psicológico. Trata-se, com efeito, de saber se os fatos de ligação, que são certos, podem realmente explicar-se pela associação mecânica dos estados de consciência ou das imagens. Esta é a tese associacionista, mas esta tese é por demais discutível. 

Para nada prejulgar, bastaria dizer que a associação das idéias (a palavra "idéias" é tomada aqui num sentido muito amplo, englobando percepções, imagens representativas, impressões afetivas, e idéias propriamente ditas) é o fenômeno pelo qual os estados psíquicos se manifestam espontaneamente à consciência como ligados entre si.

2.   Associação e espontaneidade,       Verifica-se, pois, que espontaneidade é o caráter da associação e a que distingue das relações refletidas, que estabelecemos ativamente, pelo raciocínio,, entre idéias ou imagens. Isto não impede, evidentemente, que os estados associados tenham entre si relações lógicas, mas unicamente que a associação atual resulte da consideração refletida e voluntária destas relações.

B.    Teoria associacionista.

108       A teoria associacionista consiste em explicar a associação pelo. jogo das três leis de semelhança, contraste e contigüidade.

1.    Lei de semelhança. — "Os objetos que se assemelham estão sujeitos a evocar-se mutuamente." Por semelhança, é necessário entender aqui as relações de semelhança quer objetivas (o fato, por exemplo, de que duas pessoas têm caracteres físicos semelhantes: um "faz lembrar" o outro), — quer subjetivos, quer dizer, estabelecidos por um sujeito entre objetos diferentes, em virtude das impressões semelhantes que produzem (casos de "sinestesias": audição colorida, ou inversamente: cores sonoras).

2.    Lei de contraste. — "Duas representações contrastantes têm tendência a evocar-se mutuamente". Pensamos naturalmente por antítese (grande e pequeno, branco e preto, forte e fraco, claro e escuro etc). A razão deste processo parece ser a de que, praticamente, conhecemos menos as coisas em si mesmas do que por oposição a seus contrários.

De fato, o contraste se reduz à semelhança, uma vez que só-pode existir contraste (ou contrariedade) entre objetos da mesma espécie: perceber um contraste é, então, perceber uma semelhança. Existe contraste entre branco e preto, redondo e quadrado, mas não entre branco e quadrado, nem entre preto e avarento.

3.    Lei de contigüidade. — "Duas ou mais representações têm tendência a se evocar mutuamente, desde que sejam contíguas, quer dizer, simultâneas, ou em sucessão imediata." Tais são as inumeráveis associações entre sinais naturais ou convencionais e coisas significadas (choro-dor, fumaça-fogo, flecha-direção, anzol-pesca-peixe, palavra-sentido das palavras etc.) — A mesma lei de contigüidade explica que sejam evocadas por uma imagem as circunstâncias da experiência original: o encontro de um companheiro de férias faz surgir as imagens relativas aos passeios em comum etc.

Eis por que Hamilton chama esta lei de lei de reintegração, quer dizer, que tem a propriedade de reconstituir o todo a partir de um dos elementos. A recitação de memória está em grande parte baseada nisto.
Pode-se estabelecer que a lei de semelhança, entendida no sentido associacionista, se reduz à lei de contigüidade. Com efeito, a semelhança é uma relação que não é acessível senão ao espírito, que compara e que julga. 

Se, portanto, forem eliminados os fatores intelectuais e voluntários, como o quer a hipótese associacionista, a semelhança se reduz necessariamente à contigüidade, porque os elementos, como as imagens-átomos dos associacionistas, são absolutamente incapazes de dominar o conjunto que compõem para separar-lhe as semelhanças. Donde se conclui que apenas existe a contigüidade mecânica e, para as imagens, assemelhar-se não é mais do que entrar de alguma forma em contato. Finalmente, o associacionismo reduz todo o jogo psicológico à única lei da inércia e chega a materializar a consciência, que a partir daí não é outra senão o mundo das coisas.

C.    A organização e a sistematização.

109      O que precede mostra claramente que o que está em questão não é tal ou tal forma de associacionismo, mas o próprio associacionismo. Como esta concepção supõe "elementos" psíquicos,, imagens-átomos, quer dizer, coisas na consciência, é necessariamente mecanicista e materialista. Se, então, o mecanismo não tem lugar na consciência, é necessário renunciar ao associacionismo.  

— É necessário, contudo, explicar os fatos tão numerosos da associação, quer dizer, de apresentação global e sintética à consciência, ao chamado de uma parte do complexo. Veremos que tudo isto se explica, com exclusão de todo o encadeamento mecânico de imagens, pelas leis de organização e de sistematização.

1. A organização. — A organização é a própria forma de percepção que vai espontaneamente aos objetos e subordina a estes a apreensão dos elementos. Este processo é tão evidente que toda percepção distinta de elementos implica referência destes elementos aos objetos ou às coisas nas quais são suscetíveis de se inserir, o que equivale a dizer que é o todo que é apreendido na parte.

Segue-se daí, por um lado, que toda imagem, já é síntese (103). Por isso mesmo, toda apresentação imaginária de um elemento ou de uma parte de um todo qualquer (simultâneo ou sucessivo) implicará na representação imaginária do objeto com que a imagem , faz corpo. — Por outro lado, os objetos ou coisas precedem os elementos como tais. É exatamente o inverso do que supõe o associacionismo. Explica-se por isso que uma figura (ou objeto) não seja mais reconhecida, desde que os elementos, permanecendo rigorosamente os mesmos, tenham alterada a sua disposição relativa, e, inversamente, que uma figura (ou objeto) seja reconhecida sem qualquer dificuldade, desde que a estrutura não mude, apesar das modificações profundas introduzidas nos elementos. .

2.    A sistematização. — A sistematização é a fonte do maior número das novas associações, que são fruto de uma invenção. A organização, com efeito, refere-se aos objetos como um todo, enquanto que a sistematização é relativa às relações entre objetos e à unidade funcional dos conjuntos. A espontaneidade do espírito se exerce ao máximo nestas aproximações, invenções de símbolos, arrumações de formas, que constituem o domínio específico das artes e caracterizam a imaginação criadora (106). Os associacionistas não se enganaram ao estender até este ponto o campo da associação, uma vez que as partes e as ciências lhe são tributárias (55). Seu erro foi querer explicar mecanicamente esta exploração espontânea de semelhanças e de contrastes. O que opera aqui é o poder de sistematização do espírito.

3.    As associações de fato. — Faltaria explicar ainda como o por que tais sistematizações ou tais grupos são, de fato, representados na consciência. A explicação está ao mesmo tempo nas circunstâncias concretas da atividade individual e no fator do interesse. De uma parte, com efeito, os tipos de imaginação dirigem outros tantos tipos diferentes de sistematização.

De outra parte, as tendências instintivas ou habituais, as necessidades, a direção atual do interesse, as impressões afetivas, tudo isto nos conduz muitas vezes, sem que disto tomemos consciência claramente, a urdir, na massa de nossos objetos familiares, redes de ligações mais ou menos complexas e extensas e, quando estes grupos se formam, a recorrer ora a uns ora a outros, com uma espontaneidade que imita o automatismo, mas que exprime realmente a liberdade de uma imaginação que, longe de lhe estar submetida,  domina a, ação das imagens.

D.    Associação e associacionismo.

1.    A teoria mecânica da associação. — Reconhecer a realidade dos fatos de associação espontânea não equivale, de forma alguma, a admitir o associacionismo, teoria sustentada no século XVIII por DAVID Hume e no século XIX pelos filósofos empiristas e materialistas (James e StuArt Mill, Bain, Taine, Spencer) e que consiste em explicar toda a vida psicológica pelo jogo das associações, quer dizer, segundo esta teoria, pela ação das imagens-átomos, aglutinando-se entre si mecanicamente. Nesta concepção, toda a vida psíquica seria dominada pela lei de inércia. Ora, como acabamos de ver, é o contrário que impõe a experiência. Tudo depende. no fim de contas, da atividade do espírito e de sua

2.    O primado do todo. — A conclusão que precede se impõe, tanto mais que a psicologia contemporânea mostrou da maneira mais segura que, propriamente, não existe "evocação" das imagens umas pelas outras, mas sim apreensão do todo no elemento, e do conjunto na parte. Não são, portanto, as imagens que se determinam mutuamente por um jogo mecânico, mas apenas a percepção ou a imaginação que se exercem segundo suas próprias exigências,. conformes por sua vez às exigências do real, que é feito de sistemas,. de estruturas e de formas, e não de coisas independentes e de elementos distintos e livres.           

§ 4.    O devaneio, o sono e o sonho

110      Existe um número de estados em que a consciência parece estar como que submergida numa onda de imagens. Estes estados são os do devaneio, do sono e do sonho.

1. O devaneio. — Por devaneio se designa o fato de deixar caminhar a vida interior em seu concurso espontâneo, numa semi-inconsciência do mundo exterior circundante, e no relaxamento das funções de controle e de inibição.
Tem-se querido distinguir, por vezes, um devaneio passivo, que deixaria caminhar a vida interior à deriva, e produziria uma espécie de desagregação da consciência, — e um devaneio ativo, cuja característica seria a de construir um mundo imaginário, seja por gosto da ficção (crianças e primitivos), seja por necessidade de escapar ao real (casos de sonhadores despertos). — Com efeito, esta distinção define mais as direções que os estados. Não existe devaneio completamente passivo, pois do contrário se confundiria com o sono. 

Quanto ao "devaneio ativo", reduz-se ao ato da imaginação criadora, — ou atinge certamente os confins da demência, em que a função do real é abolida. O devaneio é, pois, um estado intermediário difícil de classificar. Ao mesmo tempo ativo e passivo, assemelha-se a um sonho dirigido e vigiado.

2.    O sono.

a)     Psicologicamente, o estado de sono pode ser caracterizado como um estado de desorganização das funções psíquicas (especialmente das faculdades da atenção, da vontade e de crítica), no qual a consciência de si é extremamente ensurdecida e fraca e parece mesmo que se perde inteiramente, no sono profundo. Dorme-se na exata medida em que nos desinteressamos do real.

b)     Fisiològicamente, o sono se caracteriza pela reversão das funções vegetativas, quer dizer, por um abaixamento da excitabilidade, pela supressão da inervação voluntária e o relaxamento da respiração e da circulação.

c)     Biològicamente, o sono se apresenta como o repouso do cérebro, não no sentido de que djurmamos pelo efeito de uma intoxicação dos centros cerebrais/mas antes para não sermos intoxicados.

111      3.    O sonho.

a) Insuficiência das teorias somatogênica e associativa. Pretendeu-se explicar o sonho, quer pelas impressões’ que sobrevêm ao que dorme, sob forma de excitações sensoriais ou de sensações internas (teoria somatogênica) ; quer pela combinação das excitações sensoriais do sono com os materiais da vigília, combinação que resultaria da ação das leis clássicas da associação (teoria associacionista). Mas estas duas teorias são insuficientes: de uma parte, com efeito, se as excitações sensoriais fossem a causa específica do sonho, haveria uma relação constante entre a excitação física e seu efeito, o que não é o caso (a campainha do despertador, por exemplo, provoca ora o sonho com um sino de igreja, ora o de uma pilha de pratos quebrando-se no chão, ora o de um chamado telefônico etc.) ; — de outra parte, ão consegue levar em conta que o sonho tem um sentido.

b)     O simbolismo onírico. Diremos, então, que a consciência onírica parece caracterizar-se pelo que chamamos a função simbólica. Os materiais do sonho são todos tomados da experiência da vigília e das impressões internas e externas que influem em quem dorme. Mas não entram no sonho a não ser como símbolos ou ficções. Pela dupla eliminação do sujeito (quer dizer, na consciência refletida) e do objeto (quer dizer, do mundo da percepção) tudo o que se passa de real (impressões, mal-estares, inquietações, lembranças, desejos) no sonho, não pode ter seguimento a não ser sob as espécies da imagem e da ficção.

c)     O sonho como ficção. Partamos, para compreender o sonho, do estado de fascinação que provoca a leitura de um apaixonante romance de aventuras; creio no que leio, entro na ação, sou envolvido pela história, apesar da inverossimilhança que possa existir para a consciência refletida e crítica. Assim é no sonho: a consciência onírica é uma consciência que se deixa envolver por seu próprio jogo; é ela que faz a história fascinante e que a vê ao mesmo tempo desenvolver-se.

Assim, o sonho tem um sentido, mesmo que pareça incoerente. É uma história irrealmente vivida, que obedece à lógica da ficção. na qual o ilógico entra como elemento e, como tal, tem sua coerência própria, irredutível à coerência da vigília.

d)     Finalidade do sonho. O sonho parece ter por fim proteger o sono, fazendo passar ao regime da ficção, com o que ele tem de encantatório, a massa das impressões e lembranças que, se ocorressem no estado de vigília com sua realidade própria, seriam um obstáculo ao sono e ao repouso que lhe cumpre assegurar,

§ 5.   Pedagogia e a imaginação

112         Ocorre com a imaginação o mesmo que com as outras faculdades: ela é útil e necessária, produz obras-primas da arte e da ciência. Mas também pode ser desregrada e ter efeitos funestos. Não é esta uma razão suficiente para condená-la, como se faz freqüentemente. Uma vez que se tenham reconhecido os males que pode acarretar, é necessário esforçar-se para corrigi-la e não lançar-lhe os anátemas. Bem dirigida, só pode dar resultados de capital importância.

1.    Perigos da imaginação.

Malebranche a chama "a louca da casa" e Pascal escreve que é uma "mestra de erro e falsidade". Não devemos negá-lo: a imaginação pode ser uma e outra coisa.

a)     A imaginação pode, de fato, acarretar muitos males. Gera o pessimismo, esse estado de morna tristeza, que faz ver todas as coisas sob cores sombrias, descolora todas as alegrias, e torna a vida um peso. — A imaginação alimenta as paixões, apresentando o prazer sob cores enganadoras e de maneira por vezes tão viva que a razão fica paralisada e a vontade aniquilada. É a isto que se chama a vertigem moral, de onde provêm muitas quedas.

b)     A imaginação produz os devaneios românticos, desvia o espírito da realidade e de suas exigências e prepara assim os despertares desencantados, que gastam energia e geram o desencorajamento.
Todos estes perigos podem surgir. Mas não é necessário, contudo, atribuí-los à imaginação, pura e simplesmente, mas antes a uma imaginação malsã ou desregrada. Uma viva imaginação é sempre uma riqueza, sob a condição de ser bem governada. Por isso, aquele que, após verificar quaisquer desvios da imaginação, se aplicasse a arruinar o impulso dessa faculdade, se assemelharia ao cirurgião que quisesse cortar as pernas de um doente, sob o pretexto de que ele sofre de reumatismo. Não se trata de amputar, mas de curar.                                                            1

2.    Benefícios da imaginação.            

Esses benefícios existem e são numerosos. O que dissemos acima quanto à arte, à ciência e à vida prática, é suficiente para mostrá-lo. Insistamos aqui apenas no papel da imaginação na formação do espírito e do coração.

a)     Do ponto-de-vista intelectual. As idéias são abstratas e experimentamos dificuldades, enquanto nos falta uma cultura bastante sólida, para assimilá-las diretamente. Por isso é que a criança não as compreende bem, a não ser que sejam ilustradas pela imagem. Sabe-se, a este propósito, que importância adquiriram as imagens nos livros clássicos, e é daí, ainda, que derivam as lições de coisas, que, rigorosamente, nada mais são do que lições de imagens. Guardadas as devidas proporções, a criança, bem dotada, quanto à imaginação, fará progressos mais rápidos que a criança que dela seja desprovida, porque terá à sua disposição mais material em que apoiar seu pensamento e aplicar seu espírito.

b)     Do ponto-de-vista moral, a imaginação é também de grande auxílio. Desenvolve na criança o gosto de aprender e o desejo de sucesso, nela representando em cores vivas as alegrias de seu êxito, a satisfação de seus pais e de seus mestres e as promessas de seu futuro. — Ela alimenta a esperança, porque, infatigável, não cessa de abrir novas perspectivas. Ε até, em certo grau, cria o futuro, orientando-lhe o espírito e fixando-o numa direção sonhado-Ta, de início, e depois, se a vontade for forte, seguida com perseverança. Quando se trata — coisa importante — de descobrir uma vocação, é à imaginação que se torna necessário dirigir-se, o mais das vezes: podem-se obter, assim, preciosas indicações.

Benefício maior ainda: a imaginação ajuda a amar o bem e o belo, apresentando-os sob uma forma viva que acalenta o coração e facilita o esforço cotidiano. — É a imaginação que nos torna sensíveis às misérias do outro, apresentando-as a nós com vivacidade: ela sustenta assim o espírito de devotamento e da caridade. Cria a simpatia e desenvolve a sociabilidade, ajudando a compreender e partilhar os sentimentos alheios. Freqüentemente, os "corações áridos" nada mais são do que imaginações pobres.

Poderemos concluir, então, desta rápida exposição, que a imaginação é um bem muito precioso. Não se deve, jamais, tentar sufocá-la. Mas é necessário restringi-la ou dirigi-la quando tende a consumir-se em quimeras ou devaneios malsãos, excitá-la, acalorá-la, quando naturalmente lenta e fria. Posta a serviço da razão, regulada e vigiada por ela, a imaginação só pode contribuir para tornar a vida mais fecunda, mais virtuosa e mais bela.

ART.    IV.    A MEMÓRIA

A.    Natureza da memória.

113      1. O que ela não é. — Define-se muitas vezes a memória como a faculdade de reviver o passado. Mas esta definição, tomada ao pé da letra, não é exata, ão existe, e não poderá reviver.

A memória tampouco é a facilidade de conservar e evocar os conhecimentos adquiridos, pois seu objeto é muito mais extenso. A memória pode conservar e evocar os sentimentos e as emoções experimentadas, e, de fato, todo estado de consciência pode ser fixado, conservado e evocado pela memória.

2. O que ela é. — Definiremos, então, a memória: a faculdade de conservar e de evocar os estados de consciência anteriormente experimentados. Esta definição se aplica propriamente ao que se chama memória sensível, ou memória propriamente dita. Quanto à memória intelectual-, ou memória das idéias como tais, é apenas uma função particular da inteligência.

B.    Análise do ato da memória.

Um ato de memória parece, de início, ser simples. De fato, é um ato complexo em que se podem distinguir quatro momentos: a fixação e a conservação — a evocação — o reconhecimento — a localização dos estados de consciência anteriores.

1.    A fixação e a conservação das lembranças.

a) O fato da conservação. É um fato que as lembranças subsistem em nós. Elas não estão sempre presentes, mas, uma vez que possamos evocá-las, é necessário admitir que os nossos estados de consciência, depois de experimentados, são conservados pela memória. O mesmo se aplica àqueles que as circunstâncias não nos dão jamais ocasião de fazer reviver, e citam-se os casos dos asfixiados que, no momento de desfalecer, vêem desdobrar-se sob seus olhos, com uma precisão impressionante, os acontecimentos
Ora, essa conservação das lembranças pela memória está submetida a condição que devemos conhecer, se quisermos tirar proveito da memória.

b) Condições da ficção e da conservação.
Essas condições são a um tempo fisiológicas e psicológicas,

Condições fisiológicas.A capacidade de fixar e de conservar as lembranças depende de certas condições orgânicas, que variam consideravelmente de indivíduo para indivíduo: uns são dotados naturalmente de uma "boa memória", outros têm a memória rebelde por natureza. Em geral, as crianças, dotadas de uma grande plasticidade orgânica, fixam mais facilmente as lembranças do que os velhos. Se não conservam uma tenacidade igual, isto advém sobretudo da falta de certas condições psicológicas (atenção e organização lógica, principalmente), que compensam no adulto a inferioridade dos meios orgânicos. 


Todavia, quando as impressões sensíveis têm uma intensidade especial, as lembranças são fixadas e conservadas pelas crianças com uma notável tenacidade: é o que explica o fato de que o velho possa evocar com uma exata fidelidade as lembranças relativas a sua infância, enquanto que não é quase capaz de fixar e de conservar as lembranças dos acontecimentos recentes. — Notar-se-á aqui, ainda, a influência do estado físico geral: a fadiga, a debilidade nervosa prejudicam mais ou menos a aptidão de fixar e conservar as lembranças.

Em certos casos (psicastenias), as impressões que vêm de fora já chegam tão atenuadas que não deixam, por assim dizer, traços de sua passagem.


Condições psicológicas.Existem, contudo, poucas faculdades a que se possa melhorar o funcionamento, tão facilmente, e de uma maneira tão extensa, como se faz com a memória, de modo que as condições psicológicas são bastante mais importantes.

Estas condições podem ser reduzidas a duas principais: a intensidade : uma lembrança se fixa e se conserva tanto mais facilmente, quanto seja mais viva a impressão. É esta condição que se procura satisfazer pela atenção e repetição, — a organização das idéias: as idéias (e os sentimentos) se fixam e se conservam tanto melhor quanto estejam ligados uns aos outros de maneira mais lógica. É por isso que a intervenção da inteligência na organização das lembranças é um fator importante de sua conservação.

2. A evolução das lembranças.

— A evocação pode ser espontânea ou voluntária.

a) A evocação espontânea é aquela em que uma lembrança se apresenta à consciência como que por si mesma, sem que nada pareça evocá-la. Contudo, se houver cuidado em bem analisar o conteúdo da consciência, no momento dessa evocação espontânea, verificaremos que a lembrança evocada áligada a algum dos elementos deste conteúdo.

b) A evocação voluntária supõe um esforço mais ou menos longo e mais ou menos difícil. Põem em jogo as associações de idéias ou de imagens, até que, de aproximação em aproximação, por eliminação sucessiva de respostas falsas da memória, a lembrança procurada surja finalmente.

3.    O reconhecimento das lembranças. — Não existe lembrança verdadeira, a não ser quando a lembrança é reconhecida como evocadora de um estado anteriormente experimentado, e experimentado por mim, quer dizer, como um dos elementos de meu passado.
A lembrança, assim evocada e reconhecida, distingue-se da percepção, como um estado débil se distingue de um estado forte, — e da imaginação, pelo fato de que a imagem pode ser modificada por nós; ao contrário da lembrança, que podemos sem dúvida afastar, mas não modificar à vontade.

4.    Localização das lembranças. — É necessário, enfim, situar a lembrança em seu lugar no passado. A memória, para chegar até lá, percorre a extensão dos acontecimentos antigos para então encontrar o lugar preciso da lembrança evocada. Ela se serve, para isto, destes marcos que são, na linha do passado, as lembranças de acontecimentos importantes em torno dos quais se classificam e se ordenam as lembranças de menor intensidade.

C.    Importância da memória.

114      Falamos, mais acima, da importância do hábito. Ora, tudo o que dissemos do hábito pode aplicar-se à memória, que não é mais do que uma espécie de hábito, da mesma forma que o hábito não é mais do que uma espécie de memória. Veremos que papel exerce a memória, sobretudo intelectual, na formação do espírito e na educação moral.

1. Papel da memória na educação intelectual. — Este papel é muito grande; é o que vamos mostrar. Mas notemos inicialmente que a potência da memória não é um fim, mas apenas um meio. Trata-se menos de armazenar numerosos conhecimentos do que formar o juízo e dar-lhe segurança e retidão, e a palavra tantas vezes citada de Montaigne permanece sempre verdadeira: "Cabeça bem feita vale mais do que cabeça bem cheia." Com tais reservas, é perfeitamente verdadeiro que para aprender a pensar o exercício da memória é indispensável. Com efeito:

a)     A memória intervém em todos os atos do espírito. — No raciocínio, devemos utilizar idéias e juízos já formados, e, além disso, à medida que avançamos no raciocínio, devemos recordar o que precede.
A própria linguagem, que nos parece tão natural, não é mais do que uma vasta memória de palavras e idéias, que elas exprimem. Como poderíamos ainda pensar, se a memória não nos fornecesse, de algum modo a propósito, as idéias e as palavras que nos são necessárias?

b)     A memória é a condição do progresso intelectual. — Seria, para nós, inteiramente impossível realizar qualquer progresso, se os conhecimentos que adquirimos se fossem consumindo. Tudo estaria perpetuamente por recomeçar.
Por outro lado, esta observação de simples bom-senso se aplica do mesmo modo à própria sociedade. As gerações que se sucedem não podem pretender retomar, desde o princípio, todas as ciências e todas as artes que lhes são necessárias. Em uma parte imensa, elas são tributárias do passado, e não o são nem podem ser senão pela memória. É por ela que se conserva e se transmite de idade a idade o capital intelectual e moral dos séculos passados e, portanto, é por ela que se torna possível o progresso da civilização. Por isto, Pascal observa muito justamente que "a humanidade é como um só homem que aprende continuamente".

2.    Papel da memória na educação moral. — A memória exerce aqui um papel análogo ao que exerce na educação intelectual. Povoa o espírito de máximas e de exemplos que formam uma espécie de atmosfera moral. É utilíssimo que se nos recomende com insistência, que nos informemos, de uma maneira que possa ser atraente, sobre a vida dos homens ilustres e a vida dos santos. Estes altos exemplos de heroísmo ou de santidade, de devotamento à ciência e à humanidade, são retidos com surpreendente fidelidade e não é raro que, nas lutas da vida, sua lembrança sirva de ponto de apoio, de luz e encorajamento às almas inquietas ou tentadas.

D.    Meios de exercitar a memória.

115      Pode-se e deve-se exercitar a memória metòdicamente, e os meios de exercitá-la decorrem das condições psicológicas de que falamos.

1.    A atenção. — Se a condição capital para fixar e conservar a lembrança é a intensidade da primeira impressão, não caberia exagerar o papel da atenção. Quer isto dizer quanto é medíocre o processo de ensino, tão comum na criança, da repetição maquinai. A experiência, por outro lado, a faz logo admitir que o número de repetições está na razão inversa da atenção que ela presta ao sentido da lição que deve reter.

2.    Á memória das idéias. — Acima de tudo, é essencial, não tentar aprender nada de cor que não tenha sido, de início, perfeitamente compreendido, a fim de ajudar a memória verbal pela memória das idéias, que é evidentemente a mais importante. O melhor meio de reter as coisas é ligá-las segundo sua ordem natural. Deste ponto-de-vista, o exercício da memória se confunde com o exercício do juízo e se torna diretamente uma formação do espírito.

3.    O método dos conjuntos. — Pela mesma razão, quer dizer, para penetrar de inteligência a memória, devemos preferir o método dos conjuntos ao método dos fragmentos. Alguma coisa que se aprende constitui normalmente um todo cujas partes estão ligadas logicamente e, portanto, evocam-se mutuamente. É claro que se aprenderá tanto mais facilmente quanto se haja de início apreendido o encadeamento das idéias, dos sentimentos, das imagens, coisa que se não pode fazer quando se recorre aos pequenos fragmentos.

4.    O concurso das diversas memórias. — Cumpre também, para fazer a memória dar todo o seu rendimento, apelar para a colaboração das diversas memórias: memória visual das palavras lidas, memória auditiva das palavras ouvidas, memória das imagens evocadas, memória dos gestos realizados.   O   ponto   capital, neste domínio, consistirá em descobrir qual é a memória preponderante e utilizá-la no exercício e desenvolvimento da memória total.
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5.  O esquecimento, auxiliar da memória. — Enfim, devemos aprender a esquecer. Esta regra, que parece tão paradoxal, é, contudo, importante. Porque a memória não deve ser embaraçada, e, para que permaneça alerta e fresca, é necessário que as lembranças venham agregar-se a algumas idéias fundamentais e muito gerais, e que tudo que for inútil seja rejeitado e esquecido.

A educação da memória não se faz facilmente, por falta de experiência. Queremos tudo reter, porque não sabemos classificar as idéias. Aprendei a esquecer é, então, aprender a por ordem nas lembranças, esforçando-se por distinguir no seu todo o essencial do acessório. E ainda assim e de maneira eficaz, formar seu juízo e sua razão.

Fonte:
CONSCIENCIA.ORG
http://www.consciencia.org/cursofilosofiajolivet15.shtml