Dr.ª Flavia Luiza Bruno*
Resumo: Jorge Luís Borges pensa um objeto denominado “aleph” onde estão
reunidos todos os tempos, passado, presente e futuro. O infinito aleph nos leva ao
que Henri Bergson chama de intuição do absoluto. Com ele, saímos de uma memória
psicológica para uma memória cósmica, uma memória que retorna no futuro em
novos afetos. Bergson e Borges se encontram unidos pela mesma idéia de tempo.
Key words: Bergson, Borges, Memory, Time.
Abstract: Jorge Luis Borges thinks a object called “aleph” where the times,
past, present and future are congregated all. The infinite aleph in takes them to the
one that Henri Bergson calls of intuition of the absolute. With it, we leave a
psychological memory for a cosmic memory, a memory that returns in the future in
new affection. Bergson and Borges if find joined by the same idea of time.
Quando Jorge Luis Borges escreveu “O Aleph”, ele não o fez por um exercício
meramente intelectual. Ele o escreveu para presentear Estela Canto juntamente com
um caleidoscópio, enquanto esperava por seu amor. Escreveu-o como “prova da
engrenagem do amor e da modificação da morte”. Seu objetivo é então muito
próximo a todo o ensinamento de Henri Bergson quando este nos diz que devemos
mudar a direção habitual do pensamento, ou seja, devemos nos habituar a pensar a
duração a aí ...imediatamente o que estava entorpecido se distende, o adormecido
acorda. O morto ressuscita em nossa percepção galvanizada.1 Dessa forma,
reviveremos, nos encheremos de vida.
Logo na primeira linha Borges nos diz: Na ardente manhã de fevereiro em que
Beatriz Viterbo morreu, depois de uma imperiosa agonia que não cedeu um só
instante nemo sentimentalismo nem ao medo, observei que os painéis da praça
constitucíon tinham renovado não sei que anúncio de cigarros vermelhos; o fato me
desgostou, pois compreendi que o incessante e vasto universo já se afastava dela e
que essa mudança era a primeira de uma série infinita.2 Era como se a partir do
instante de sua morte todo o futuro lhe fosso negado e mais: sua imagem ficaria
distante de todas as outras imagens do mundo, não mais agiria nem reagiria sobre
elas.
Mas se Borges escreve “O aleph” como prova da engrenagem do amor e da
modificação da morte, ele sabe de que lado do pensamento e da vida ele tem que
estar. Deve estar do lado daqueles que compreendem o caráter criativo, imanente e
positivo do pensamento, vale dizer, da vida. Borges mais do que ninguém entendeu
que a vida é criação e a ele restaria somente duas opções: criar ou morrer. Ou ele
criava (ou recriava) Beatriz ou morria (com ela). É assim que Borges recria Beatriz
em novos afetos e recupera a vida.
Tratava-se então de recuperar a imagem de Beatriz. E Borges poderia se servir
de dois caminhos: ele poderia acrescentar aos retratos da casa da rua Garay e a todos
os outros objetos e coisas que aludissem a Beatriz, uma longa e exaustiva lista de
suas características, comportamentos, sentimentos, etc. Esse caminho - Bergson nos
ensina - se detém no relativo. Já o segundo caminho nos leva a atingir o absoluto.
Significa que não mais olharei Beatriz de fora, mas a apreenderei a partir dela
mesma, dispensando tanto os símbolos quanto os pontos de vista que eu poderia me
colocar. Aqui, suas ações e gestos seriam naturais para mim e não acréscimos, que
nunca completariam a idéia que tenho dela, onde qualquer contribuição à sua história
pareceria destacada dela. Uma representação tomada de um certo ponto de vista,
uma tradução feita com certos símbolos, permanecem sempre imperfeitas
comparadas com o objeto representado, ou que os símbolos tentam exprimir. Mas o
absoluto é perfeito, no sentido que é perfeitamente o que é.3 Em outras palavras: ou
Borges ficava contando e relembrando num trabalho literário sempre enriquecedor
porém infinito de descrições, histórias e análises o que foi Beatriz Viterbo e com isso
ele só forneceria pontos de vista sobre ela e a aprisionaria em símbolos, ou Beatriz
lhe seria dada de uma vez, integralmente.
É dessa idéia de absoluto, de como atingi-lo, que Bergson nos fala do conceito
de intuição em oposição ao conceito de análise. A intuição seria pois essa
coincidência no interior do objeto, coincidência essa inexprimível em palavras, em
oposição ao conceito de análise, onde toda a tentativa de tradução nos leva sempre à
falta, ao desenvolvimento infinito da busca da incompletude. Entrar na casa da rua
Garay todo dia 30 de abril e rever seus retratos, relembrar seus momentos, nada mais
seria do que um exercício de análise, mas o aleph é a forma que Borges imaginou
para atingir o infinito. Com ele, Borges chega também à intuição, porque sabe que
não pode separar o acontecimento dele mesmo.
Borges visitava a casa de Beatriz neste que seria o dia do seu aniversário e
além de saudar seu pai e seu primo, encontrava seus retratos, móveis, louças, ou seja,
objetos presentes, objetos percebidos, imagens atualmente dadas, ou ainda, se
deparava com a matéria. estudar as circunstâncias de seus muito retratos, ver revelarse
uma Beatriz para cada ocasião e data, o fazia lembrar o que foi Beatriz em cada
uma dessas épocas, e lembrar também de tantos outros momentos, relembrar seus
muitos gestos, falas e sorrisos.
E além disso, aproximar-se de Carlos Argentino
Daneri era uma maneira de encontrar tantas imagens dela. Mas Borges sabia que essa
memória que lhe daria somente o passado passado de Beatriz, que lhe daria imagens
com data, hora e local, de acontecimentos passados, essa memória relativa, era
apenas a memória do seu corpo, do “Borges pessoal”. Com ela, ao olhar o telefone,
Borges teria o saudoso pensamento de que aquele instrumento “noutros dia
reproduziu a irrecuperável voz de Beatriz”. Ou, ao se aproximar do retrato sobre o
piano num “desespero de ternura” confessar que Beatriz Elena Viterbo estava
perdida para sempre, porque no retrato ela deixa de ser uma imagem presente e passa
a ser uma imagem representação e como tal, ele se isola do restante do mundo
material.
Ou para dizer como Bergson, esse isolamento condensa períodos enormes
de uma vida mais intensa e resume assim uma história muito longa.4 Mas esse
contato do espírito com o objeto não é um ato simples. A percepção não é um
conjunto de sensações, mas é formada por imagens rememoradas a partir desses
objetos. Ocorre que uma imagem rememorada nunca é algo pronto. Essa percepção
atual é apenas um conteúdo de uma experiência mais vasta e mesmo indefinida que a
contém.5
Quando Borges vê, por exemplo, as fotografias de Beatriz que são estados
presentes, ele já é lançado no passado e quando esse passado se transforma em
imagens, quando ele se atualiza, ele se confunde com o meu presente, ou seja, a
percepção já está impregnada de imagens-lembranca que a completam e é por esse
motivo que essas últimas se assemelham à percepção atual. Assim, a lembranças não
chegam como coisas mortas, mas chegam límpidas, nítidas e flagrantes como um fato
presente. Quando vejo uma coisa não vejo apenas a atualidade dela, não fico com a
percepção pura e simples. Sempre acontece um reconhecimento, isto é, associo a essa
percepção todas as imagens relacionadas a ela, o que equivale dizer que toda
percepção ocupa já uma certa espessura da duração ao prolongar passado no presente
e por isso participa da memória. Trata-se de um encontro de afetos entre Borges, o
lembrador, e os velhos objetos sagrados que encantaram Beatriz.
As imagens-lembrança por sua vez, participam da lembrança pura. São
materializações ou atualizações dela. Essa atualização da lembrança é uma invocação
da imagem pelo presente. É ela que constitui a consciência psicológica. Mas a
invocação da lembrança é o salto pelo qual me instalo de súbito no virtual, no
passado puro, ou ainda, na memória pura.6
Deleuze nos diz que essa subjetividade-lembrança - a da atualização da lembrança - é o primeiro aspecto da memória. O segundo aspecto é a subjetividade-contração, onde nasce a qualidade. Aqui não falamos de uma memória relativa a um sujeito, porque a lembrança pura não possui uma natureza psicológica. Por isso também não é um ponto de vista, mas ao
contrário, possui uma natureza assubjetiva, inumana mesmo. O passado puro é o que
se liberou de qualquer antropomorfismo.
Na verdade, esse caminho não é feito do presente para o passado, não vamos
da percepção para a lembrança, mas ao contrário, vamos do passado para o presente,
da lembrança à percepção.7 Primeiro nos situamos no passado em geral e só depois a
lembrança ganha uma existência psicológica e de virtual passa a ser atual ao se ligar
a uma percepção. A lembrança pura quando se materializa deixa de ser lembrança e
passa a ser estado de coisa presente, atualmente vivida. Donde chegamos à paradoxal
conclusão, ou melhor à fantástica conclusão de que qualquer percepção nos
possibilita a abertura de todo o universo.
Desse modo, podemos dizer que todo o nosso passado coexiste com cada
presente, com esse momento em que a memória contração se inscreve na imagemlembrança.
Ou seja, o passado puro ou o tempo puro nunca passa. talvez por isso
Borges diga que o tempo é a imagem da eternidade e o próprio Bergson afirme que
essa duração que se contrai seria a eternidade. Há portanto um passado em geral que
não é um passado particular de tal ou qual presente, senão que como um elemento
ontológico, é um passado eterno e em todo tempo, condição para o “passo” de todo
o presente particular. O passado em geral torna possível todos os passado.8
Essa
memória contração, ou se se quiser, essa memória do universo, já dissemos, não é a
memória de um eu psicológico. Nessa “ memória cósmica” passado, presente e futuro
penetram um no outro formando uma continuidade indivisa. O passado não sucede
ao presente, ele coexiste com ele, mas não é a coexistência de uma passado
particular. É, ao contrário, a coexistência do passado puro, isto é, de todo o passado,
integralmente. O próprio Borges diz: esse momento tem atrás de si um passado
infinito, um ontem infinito. E esse passado passa também por esse presente.9 Essa
memória pura não trata de recordações de um passado sob a forma de imagenslembrança.
Não é a conservação de antigas imagens mas sim um prolongamento do
seu efeito útil até o presente.10 Por isso se torna cada vez mais estranha ao passado.
Não é algo realizado, mas a realizar. É portanto uma memória orientada no sentido
da natureza e que nos leva a agir e a viver: nos aponta para o porvir. Se para o
universo não importa a memória psicológica mas sim a memória pura, da mesma
forma, o que interessa não é a imortalidade de Beatriz Viterbo, imortalidade desse
corpo particular, imortalidade pessoal. O que é necessário não é uma eternidade de
uma imutabilidade, uma eternidade de morte, mas sim uma eternidade de vida.
A lembrança de algo não é um enfraquecimento se comparado à percepção
desse algo, não é uma diminuição de sua presença. Ao contrário, a lembrança desse
algo o faz renascer.
É assim que Borges usa esses mesmos objetos, os retratos, os
móveis, a casa, não como desencadeadores das lembranças de um passado remoto e
imóvel mas sim de um passado redivivo.
Se a percepção nos colocava na matéria, a memória nos faz penetrar no
espírito.11 Se com a matéria tínhamos apenas o atual, com a memória buscamos a
criação. Se, como dissemos, o passado é essencialmente virtual, não podemos
apreendê-lo como um passado passado, ou seja, um passado que passou. Esse
passado passado esgotou sua influência sobre nós, e, por isso mesmo, não nos
interessa mais. Mas o passado revitalizado passa a agir de novo sobre nós. É uma
influência no meu futuro. Assim, a memória ganha um novo sentido: não é uma
faculdade encarregada de repetir o passado no presente, mas passa a ser um ato de
criação onde o passado retorna no futuro em novos afetos. Essa é a doutrina da
vontade de viver de Bergson (do élan vital) que nos diz que se algo quer viver (ele)
abre seu caminho através da matéria ou apesar da matéria. Esse ímpeto vital se
manifesta em todas as coisas, cria o universo e está em cada um de nós.
Esse é o tempo de Bergson, também o de Borges. Esse último já havia o
descrito em “O jardim dos caminhos que se bifurcam”. Diz ele: ... T’sui Pen
diferentemente de Newton e de Schopenhauer ... não acreditava num tempo
uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries do tempo, numa rede crescente e
vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos
que se aproximam, se bifurcam se cortam ou que secularmente se ignoram, abrange
todas as possibilidades. Não existimos na maioria desses tempos; nalguns existe o
senhor e não eu; noutros, eu, não o senhor; noutros, os dois. Neste, que um acaso
favorável me surpreende, o senhor chegou à minha casa; noutro, o senhor ao
atravessar o jardim encontrou-me morto; noutro, digo essas mesmas palavras, mas
sou um erro, um fantasma. ...
O tempo se bifurca
perpetuamente para inumeráveis futuros.12
Em resumo, é o tempo das multiplicidades virtuais, contínuas e
qualitativas. Na verdade é o tempo que se desdobra infinitamente. Se o tempo é
infinito ele tem que abranger todos os presentes e em qualquer instante estamos no
centro do tempo. ... Ou ainda, todos os momentos são centros desse tempo infinito.13
E em realidade é a coexistência dos tempos que se interpenetram: o passado se
prolonga no presente para criar o novo e o imprevisível. 14
O tempo assim concebido, como impossível de ser escandido, o tempo que não
admite sucessão, o tempo indivisível, o tempo da revivescência simultânea, é a
duração real. Essa indivisibilidade é a própria conservação do passado no presente.
Bergson nos diz que temos o vício de abrir sempre diante de nós o espaço e fechar
atrás de nós a duração.15 É justamente em decorrência desse vício que Borges nos
adverte sobre a sua dificuldade de transmitir o infinito aleph. A duração pura exclui a
idéia de justaposição e extensão. Não há ua imagem para falar da duração, assim
como não há uma imagem para falar do aleph. A duração é mobilidade pura, se faz
continuamente. Ciente disso Bergson afirma: nenhuma imagem substituirá a intuição
da duração, mas muitas imagens diversificadas, emprestadas à ordem das coisas
muito diferentes, poderão pela convergência de sua ação dirigir a consciência para
o ponto preciso em que há uma certa intuição a ser apreendida.16
Talvez por isso
Borges nos fale de formigas, espelhos, neve, ladrilhos, cachos de uva, desertos,
sobreviventes de uma batalha, tabaco, cavalos, listras de metal, e tantas outras
imagens tão diversificadas. Em seu esforço de ser melhor compreendido, Borges
evoca outras imagens que também nos causa dificuldade: um anjo que voa
simultaneamente para os quatro pontos cardeais, um pássaro que é ao mesmo tempo
todos os pássaros, e outras imagens análogas ao aleph. talvez a mais próxima seja
aquela de Pascal: “uma esfera cujo centro está em todas as partes e a circunferência
em nenhuma”. Descrevê-lo, ele sabe, é tarefa imposs´iel pois requer a “enumeração
de um conjunto infinito” . Ele precisa registrar com palavras os milhões de atos que
ocuparam o mesmo ponto (sem contudo haver superposição ou transparência) vistos
num “ instante gigantesco”.17
Bergson já havia nos dito: a arte do escritor consiste
sobretudo em nos fazer esquecer que ele emprega palavras ...
a harmonia que ele busca é uma certa correspondência
entre as idas e vindas do seu espírito e as de seu discurso.18
E aí as palavras tomadas isoladamente não mais importarão. O que passa
a importar é o sentido que as atravessa. Desaparecem as palavras: restam então dois
espíritos que vibram juntos, sem mediação. É essa complicação do dizer que causa o
“desespero de escritor” de Borges. O que ele viu foi simultâneo, mas o que ele diz é
sucessivo, porque a linguagem assim o é. Ou seja, enquanto escritor Borges não pode
escapar da complicação do dizer, mas enquanto escritor que nos propõe imaginar o
aleph, ele nos coloca na simplicidade do ver.
Apesar de Borges fazer uma descrição
sucessiva por causa das imagens, a descrição que ele queria fazer coincidia com o
que ele viu, mas a linguagem não o permitiu fazê-lo. Era a descrição na duração real
dos acontecimentos. Os acontecimentos não estão nem no passado, nem no presente,
nem no futuro, porque o tempo puro está fora da sucessividade, ou nas próprias
palavras de Borges: Não haverá um quando no tempo porque passado e futuro são
infinitos. Tampouco haverá um onde porque todo o ser eqüidista do infinito.19
No conto de Borges o aleph é um objeto descoberto por Carlos Argentino,
guardado no porão da sala de jantar de sua casa. É preciso descer as escadas do porão
para vislumbrá-lo. Ao chegar lá Borges vê um mundo contraído numa esfera de dois
ou três centímetros de diâmetro. Mas apesar dessa dimensão, todo o espaço cósmico
estava ali reunido sem diminuição de tamanho. Lá estavam, sem se confundirem
todos os lugares do mundo, vistos de todos os ângulos.20 E mais: todos os tempos do
mundo contraídos sem sucessão ou justaposição. Uma espécie de eternidade estava
ali: todo o passado, esse passado que não se sabe quando começou. E todo o
presente.
Esse momento presente que engloba todas as cidades, todos os mundos, o
espaço entre os planetas. E é claro, o futuro. O futuro que ainda não foi criado, mas
que também existe.21 Ao descer ao porão, Borges afasta o véu da imprecisão,
reencontra o imediato e toca o absoluto.
Borges imagina o aleph para poder, mesmo que por um curto espaço de tempo,
criar a possibilidade de vislumbrar a memória pura, a memória cósmica. Imagina-o
para poder dialogar com todas as imagens de Beatriz. O aleph seria então essa
pequena esfera furta-cor “de brilho quase intolerável” onde todos os tempos estariam
contraídos. Tudo o que Borges quer é que o “incessante e vasto universo” não se
afaste dela porque enquanto atualização ela perde o contato com si mesma, mas
quando novamente jogada na virtualidade pura, ela volta a integrar o todo da
duração. Por isso não quer ficar com o passado passado, quer o passado no futuro.
No aleph a imagem de Beatriz jamais se isolará do restante do mundo material. Aí
também sua imagem jamais se perderá porque Beatriz não é uma imagem
representação de Borges mas sim uma imagem do universo.
O infinito aleph tinha que abranger todos os tempos. E o fato do tempo puro
“estar contido” nessa esfera furta-cor, nesse objeto esquecido no porão, nada mais
seria do que uma atualização no espaço do infinito das virtualidades. Mas Borges
sabe que o infinito não pode ser apreendido em uma imagem, pois qualquer
representação nos dá apenas uma imagem ilusória da duração. E esta, ainda que
possa ser sugerida por uma imagem, nunca será resumida numa representação.
Portanto, ele sabe que não pode espacializar o infinito, ou seja, atualizá-lo nessa
pequena esfera. Fazê-lo seria tão somente criar de um falso infinito. Entretanto,
imaginar esse objeto foi a forma que Borges encontrou para vislumbrar a memória
pura, mas ele sabe que sua pobre condição humana não permite esse
vislumbramento, e então tal esfera é destruída rapidamente, junto com a demolição
da casa. Talvez por isso tenha ele sentido infinita veneração e infinita lástima. E
então, Borges volta a falar novamente a partir de seu corpo, de si mesmo, e como tal
nos fala do atual. Enquanto “Borges pessoal” ele está fadado a esquecer. Como dizia
Ravaisson: A matéria põe em nós o esquecimento.22 E Borges confessa: Nossa mente
é porosa para o esquecimento. Eu mesmo, estou falseando e perdendo, sob a trágica
erosão dos anos, os traços de Beatriz.23
PÓS-ESCRITO ?
Sinto, às vezes, em virtude das misturas do passado, presente e futuro que
Borges não só criava o fantástico em sua literatura como também vivia a vida como
um conto fantástico. Expresso então as situações que me levam a procurar
explicações que acertem coerentemente o tempo, e que justamente por esse motivo,
me levam à interrogação de que se tais paradoxos não fazem parte de páginas do
próprio conto.
Em seu comentário à tradução inglesa de 1970 Borges diz: Beatriz Viterbo
existiu de verdade e eu estava profunda e desesperadamente apaixonado por ela.
Escrevi o relato depois de sua morte.24 Em seguida tem o pós-escrito datado de
março de 1943 onde ele dedica “O aleph” a Estela Canto. Nossa viagem pelo
fantástico começa quando Miguel de Torre Borges em seu livro “Borges fotografias
y manuscritos”, nos apresenta a primeira página do manuscrito de “ O aleph” e nos
diz também a data: 1944!!! Além disso, duas páginas depois nos mostra uma
fotografia de Borges com Estela em março de 1945, o que nos leva a crer que o relato
teria sido escrito antes de Estela morrer e mais: o pós-escrito teria sido escrito antes
do escrito!!!
Encontramos aqui um paradoxo não só com as datas mas também com
as próprias palavras de Borges no comentário à tradução inglesa; já a edição especial
de La Maga de fevereiro de 1996 nos diz que “O aleph” aparece em 1949. E ainda,
um amigo argentino certa vez me confidenciou que Estela Canto passava por difícil
situação financeira quando pediu o consentimento de Borges para vender o
manuscrito. Obteve-o e vendeu-o por US$ 25.000,00.
Não encontrando então as explicações que organizem as datas e as palavras
numa sucessão do tempo, só me resta crer que Borges quis fazer desse episódio de
“O aleph” um episódio de literatura fantástica. Quando chegamos no momento em
que a relação entre o real e o irreal não é mais discernível, chegamos no que Deleuze
chama de potência do falso. É onde não podemos mais nos decidir pelo verdadeiro:
Quando Estela Canto morreu? Realmente Borges escreveu o relato após sua morte ou
não? E em caso negativo, porque então teria ele escrito tal coisa no comentário à
tradução inglesa? Tais perguntas não possuem respostas pois estas supõem sempre o
verdadeiro ou o falso mas aqui o falso não é um erro ou uma confusão, mas uma
potência que torna o verdadeiro indecidível.25
E se o conto fantástico se confunde com a própria vida de Borges, passo a me
perguntar também se Beatriz Elena Viterbo seria realmente Estela Canto. Com isso,
ao invés dos paradoxos postos se dissiparem, temos, ao contrário, uma afirmação da
potência do falso, porque continuamos caminhando para o infinito das virtualidades.
A potência do falso é o que se vê no aleph, é o que se vê no cristal, nos diz Deleuze,
é o que se vê no cristal do espelho nos diz Borges, quando há uma troca entre uma
imagem virtual e uma imagem atual, o virtual tornando-se atual e vice-versa,26 pois
quando Borges seleciona uma das infinitas imagens que viu, como por exemplo “vium astrolábio persa”, ou “vi uma prateada teia de aranha no centro de uma negra
pirâmide”, e etc, etc, é esta troca entre atual e virtual que ele está realizando.
A potência do falso é o próprio tempo,
é o tempo puro não porque os conteúdos do tempo sejam variáveis,
mas porque a forma do tempo como devir
põe em questão todo o modelo formal da verdade.27
Seguindo Deleuze poderíamos dizer que a
literatura do tempo em Borges é a literatura da indecidibilidade. Indecidibilidade
essa que já vimos em “O jardim dos caminhos que se bifurcam”, onde ele nos ensina
que o tempo abrange todas as possibilidades, não havendo uma que se superponha a
qualquer outra, porque no tempo puro não há distinção entre a percepção de fatos
reais e a imaginação de fatos possíveis. Ou seja, no tempo puro o que existe são
virtualidades, o que nos leva a imaginar infinitas séries do tempo.
A beleza do conto fantástico está nessa indecidibilidade pelo verdadeiro.
Borges não faz uma literatura onde mundos possíveis estão separados do mundo real
ou são antipáticos a ele. Qualquer imagem que possamos ver à nossa volta, qualquer
coisa, qualquer mundo, são apenas possibilidades do infinito. Por isso não
perguntamos mais se é real ou possível. Esse é um pseudo-problema. É que Borges
compreende que a vida não é só o atual, mas antes de tudo virtualidade e faz com que
o possível se afirme não só no seu conto mas também na sua vida. Com isso ele
chega mesmo a despertar naquele que o lê o sentimento do indiscernível.
É o próprio
Borges que nos conta, no prefácio à mesma tradução inglesa, que certa vez um
jornalista lhe perguntou se era verdade que existia o aleph em Buenos Aires, ao que
ele teria respondido que sim caso um amigo seu não tivesse se antecipado e negado
tal existência concluindo que se fosse diferente tal objeto não só seria a coisa mais
famosa do mundo, como também mudaria toda a nossa idéia do tempo, da
astronomia, da matemática e do espaço.28 Com essa explicação o jornalista chega
mesmo a se surpreender: Então tudo era invenção sua. Pensei que era verdade
porque o senhor tinha dado o nome da rua. Borges mais uma vez, ao invés de
distinguir o real do possível, reafirma a potência do falso ao prosseguir: Não me
atrevi a dizer-lhe que nomear ruas não é coisa do outro mundo.
Ao buscar uma sucessão coerente do tempo, eu me detenho no regime que
Deleuze chama de orgânico, que opera por encadeamentos racionais e que tem como
modelo o verdadeiro. Mas ao crer que todo esse episódio faz parte do próprio conto e
portanto, não há como eu me decidir pelo verdadeiro, eu chego ao regime cristalino
que substitui o modelo da verdade pela potência do devir, pela potência do falso. E
assim Borges libera no fantástico uma outra possibilidade de vida.
Já não sei se estou escrevendo do passado ou do futuro...
Abstract: Jorge Luis Borges thinks a object called “aleph” where the times,
past, present and future are congregated all. The infinite aleph in takes them to the
one that Henri Bergson calls of intuition of the absolute. With it, we leave a
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8) BORGES, J-L. Otras inquisiciones. Buenos Aires. Emecé editora. 1960.
9) BORGES, J-L Ficções. São Paulo. Editora Globo. 1995.9 Borges, Jorge Luís. Cinco visões pessoais: 17.
10 Bergson, Henri. Matière et Mémoire: 228.Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza Bruno Copyright 2009 Philosophae.Org © Pág. 9; 10) BORGES, M de T. Borges, fotografias y manuscritos. Buenos Aires. Ediciones Renglon. 1987.
11) DELEUZE, G. Pourparles. Paris. Éditions de Minuit. 1990.11 Idem: 317. Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza Bruno
Copyright 2009 Philosophae.Org © Pág. 10;13) DELEUZE, G. Le bergsonisme. Paris. PUF. 1997.
14) HYPPOLITE, J. Figures de la pensée philosophique I - Écrits de Jean Hyppolite (1931 - 1968). Paris. PUF. 1971.
12 Borges, Jorge Luís. O jardim das veredas que se bifurcam: 103.;13 Borges, Jorge Luís. Cinco visões pessoais: 17.
14 Hyppolite, Jean. Figures de la pensée philosophique I – Écrits de Jean Hippolyte (1931-1968): 469.
15 Bergson, Henri. Matière et Mémoire: 290.;16 Bergson, Henri. Introduction a la métaphyísique: 1399. Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza Bruno Copyright 2009 Philosophae.Org © Pág. 11
17 Borges, Jorge Luís. O Aleph: 125. 18 Bergson, Henri. L’âme et le corps: 849. Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza Bruno
Copyright 2009 Philosophae.Org © Pág. 12; 19 Borges, Jorge Luís. A esfera de pascal: 16.20 Borges, Jorge Luís. O Aleph: 122.21 Borges, Jorge Luís. Cinco visões pessoais: 43.Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza Bruno Copyright 2009 Philosophae.Org © Pág. 13
22 Citado por Bergson, Henri em Matière et mémoire: 316. 23 Borges, Jorge Luís. O Aleph: 128.
Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza BrunoCopyright 2009 Philosophae.Org © Pág. 14
24 Borges, Jorge Luís. O Aleph: 8.Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza Bruno Copyright 2009 Philosophae.Org © Pág. 15
28 Borges, Jorge Luís. O Aleph: 7. Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza Bruno Copyright 2009 Philosophae.Org ©Pág. 18
Dr.ª Flavia Luiza Bruno
* Doutora em Filosofia pela UFRJ,
Professora Adjunto da Universidade Candido Mendes
Tempo e Memória - Bergson e Borges Flavia Luiza Bruno
Copyright 2009 Philosophae.Org © Pág. 3
Pablo Picasso
Li
Fonte:
http://www.philosophae.org/philosophaeorg-borgesbergson-artigo01.pdf