Programa gravado, sem pergunta dos telespectadores.
Matinas Suzuki: Boa noite. Além de ser um conhecido teólogo, ele agora está lançando também um livro de ficção. No centro do Roda Viva está Leonardo Leonardo Boff.
[Comentarista, Valéria Grillo]:
Leonardo Boff é franciscano no sentido estrito da palavra. Ele se
define como ‘herdeiro do espírito de São Francisco’, o que ajuda a
entender, um pouco melhor, a vida e a produção deste intelectual, que
tornou-se um dos teólogos mais vigiados pela Igreja Católica, no Brasil,
neste fim de século. Ele foi perseguido, punido e censurado por suas
idéias. Em 1992, terminava um capítulo importante da caminhada do frei, a
inquisição dos tempos modernos, aparentemente, marcava um ponto. Depois
de uma sucessão de censuras e castigos, Leonardo Boff se divorciava da
Igreja. Ele saiu dizendo que não estava mudando de batalha e sim de
trincheira. A batalha dele ganhou força, no final dos anos 60, com o
surgimento da Teologia da Libertação, durante a conferência geral do
episcopado latino-americano, na Colômbia. A teologia, altamente
questionadora das realidades sociais, lançou uma luz sobre a leitura do
evangelho. As mensagens contidas no evangelho seriam adaptadas aos
contextos sociais e não seriam impostas. Leonardo Boff desafiou a
Igreja. Embora soubesse que associar o discurso da fé com o da pobreza e
da injustiça traria riscos políticos e eclesiásticos, ele se dizia
convicto de que Deus tomou o partido dos pobres. Em Igreja, carisma e poder,
um dos mais de 50 livros escritos pelo frei, ele condenou as violações
aos direitos humanos dentro da Igreja e propôs um modelo eclesial
baseado na comunhão e na participação. Esta tese foi considerada
perigosa pelo Vaticano. O ano era 1985, e o castigo veio rápido, o
silêncio obsequioso. Os onze meses que se seguiram foram férteis. Nesse
período ele escreveu três livros. Mas, à medida que suas idéias eram
conhecidas e sua obra traduzida em vários idiomas, os setores
conservadores da Igreja e da sociedade se uniam para desarticular as
teorias libertadoras de Leonardo Boff. As comunidades eclesiais de base
começavam a ser combatidas. No vácuo delas, na interpretação do teólogo,
se multiplicavam as Igrejas pentecostais. Até que, em 92, o frei
catarinense foi vítima da última perseguição do seu principal censor, o
cardeal Ratzinger ,
prefeito da sagrada congregação para a doutrina da fé. Leonardo Boff
foi proibido de lecionar, dar entrevistas ou publicar artigos sem
autorização. Em junho do mesmo ano, ele pediu o desligamento da Igreja
de Roma, mas na prática reafirmava os votos franciscanos de defesa da
natureza e de respeito aos seres vivos. Hoje, casado com a teóloga e
colaboradora Márcia Miranda, Leonardo Franciscano Boff continua a
ensinar e a praticar a Teologia da Libertação.
Matinas Suzuki: Bem,
para entrevistar o professor Leonardo Boff, nós convidamos esta noite o
Fernando Mitre, diretor de jornalismo da Rede Bandeirantes de
Televisão. Dom Amaury Castanho, bispo da diocese de Jundiaí. Marcelo
Cavalari, que é jornalista da Folha de S. Paulo.
O frei Vitório Mazzuco, editor chefe da Editora Vozes. O jornalista e
escritor Fernando Morais. O Mário Simas, que é jornalista da revista Istoé. O Rinaldo Gama, editor do Caderno de Literatura Brasileira do Instituto Cultural Moreira Salles. Mateus Soares de Azevedo, que é jornalista e escritor. O Roda Viva é transmitido em rede nacional com 150 outras emissoras de 21 estados brasileiros.
Leonardo Boff: Boa noite, Matinas Suzuki.
Matinas Suzuki: Professor, como eu disse na nossa abertura, o senhor está lançando este livro Brasas sobre cinzas - história do anticotidiano. Parece que na sua longa estante de livros publicados é o primeiro que se ocupa de ficção. É verdade isso?
Leonardo Boff: É, toda a teologia tem certa ficção. E aqui eu explicitei, e o próprio título diz algo da intenção do livro, Brasas sobre cinzas.
Eu creio que o ser humano é dominado por um fogo interior. Aquilo que
os místicos chamam: “O nascimento de Deus na alma humana”. E a tese do
livro, se é que se pode falar em tese, é a descoberta de que este fogo
se dá nas dobras do cotidiano. Não só no arrebatamento místico, na
contemplação, mas a vida é generosa e toda a existência humana é animada
por este fogo e a tarefa, talvez, do pensador é remover as cinzas,
desentulhar as memórias sepultadas lá dentro, para que cada um descubra
esse fogo, que às vezes é um vulcão que explode dentro de cada pessoa
humana.
Matinas Suzuki: É engraçado, porque também há um livro famoso, de um outro religioso brasileiro, cujo título é O deserto é fértil
[de dom Hélder Câmara], que os dois lidam com essa idéia de algo que há
de vivo por trás de algo de uma aparência, de alguma coisa morta.
Leonardo Boff:
Certo, Matinas, eu suspeito que hoje, ao nível mundial, está havendo
uma volta desta chama interior. Todos os movimentos místicos,
espirituais, esotéricos, dão testemunho de que nós não temos só uma
cultura material, do trabalho, da transformação do mundo. Mas estão se
fazendo exigências do mundo interior do ser humano, da sua dimensão
espiritual, que possivelmente, essa dimensão aponte para um novo
paradigma civilizacional, isto é, uma civilização centrada não só na
materialidade, nós precisamos dela para atender as demandas humanas. Mas
também há outras demandas, talvez mais profundas, que é a sede de
infinito do ser humano, a sua dimensão espiritual, o outro lado da
existência. E é exatamente isso que se nota de uma forma, quase
exaltada, em todas as partes, e, particularmente, também no nosso país.
Rinaldo Gama:
O senhor está lançando um livro de ficção depois de ter abandonado a
Igreja. Eu queria saber se é por que a sua militância teológica, do
ponto de vista teórico, não era suficiente, não dava conta, foi preciso
recorrer agora à ficção para transmitir, digamos assim, a sua mensagem.
Leonardo Boff:
Veja, Rinaldo, a teologia tem muitas vertentes. E uma delas se chama
teologia narrativa. Eu, na verdade, sempre exerci, dentro da minha
produção, este tipo de teologia: inserindo contos, linguagem do povo,
histórias. E produzindo mesmo uma certa literatura. Ela tem um livro
inteiro sobre isso chamado Sacramentos da vida e a vida dos sacramentos,
que é um esforço, já nos anos 70, de, a partir da narrativa, das
experiências humanas, desentranhar a sua dimensão teológica, dimensão
divina. Este livro, na verdade, nasceu do meu diário, porque eu conduzo
um diário já há mais de 30 anos. E, durante as férias, lendo o meu
próprio diário, eu disse: “Puxa, tem uma série de contos aqui que eu
precisaria desentranhar, elaborar um pouco melhor, e fazer um texto
sobre isso”. Porque eu mesmo não havia me dado conta desse conteúdo mais
literário na minha própria produção. E foi uma descoberta, e por isso
eu já trabalhei um pouco melhor, e este livro é fruto desta diligência,
digamos assim. Mas eu não quero ensinar nada a ninguém, aliás, nunca
pretendi nos meus textos… Escrevo participando da busca cultural, da
ânsia do ser humano de descobrir a si mesmo, decifrar o seu mistério e
esse livro se inscreve dentro dessa preocupação mais ampla.
Fernando Mitre: Professor?
O senhor analisa… O senhor destaca uma tensão dentro da Igreja, entre
as forças comunitárias, digamos assim, e a hierarquia. E o senhor faz
uma previsão de que para a hierarquia o senhor não vê esperança. E o
senhor relaciona isso com as forças dominantes da sociedade. Eu vou
fazer aquela pergunta elementar, se prevalecer a hierarquia na Igreja, o
que acontece com ela?
Leonardo Boff:
Olhe, eu acho muito arriscado o cristianismo só hierárquico. Porque o
sonho de Jesus tem muitas expressões. Eu vejo que o leque das confissões
cristãs, desde a Igreja ortodoxa, todas as Igrejas da Reforma
[Protestante], e mesmo as pentecostais hoje, são expressões de
tentativas de redizer este sonho, essa promessa que é a mensagem de
Jesus, a sua vida, este mistério, finalmente. Agora, a expressão
dominante dentro do lado romano-católico, é a expressão hierárquica,
clerical, formada pelos bispos, o clero e, ao lado da dimensão dos
leigos. Então eu vejo que essa expressão da Igreja é a expressão mais
enraizada, mais ocidental. E, numa perspectiva global, há o risco de
que este ocidente se transforme em um acidente, que esse cristianismo
não consiga acertar o passo com o processo histórico maior, que vai na
direção de uma sociedade mundial do diálogo das culturas. Então, para
romper este cerco, creio que devemos voltar às origens, no sentido de
recuperar o arquétipo cristão. E deixar que as culturas o assimilem, o
digam, a partir das matrizes dela, reemerjam…
Fernando Mitre: Mas a tendência atual qual é, ultimamente?
Leonardo Boff: Eu
acho que a tendência atual não é hierárquico. Embora a hierarquia tenha
muito poder e mova uma guerra, em termos de sistematizar todo mundo no
seu quadro, eu penso que este papa colocou seu pontificado nesta volta à grande disciplina. Eu creio que é um projeto fracassado.
Rinaldo Gama: Por isso que você quer um mandato limitado para o papa?
Leonardo Boff: É mais por misericórdia e humanidade ao portador deste poder…
Rinaldo Gama: Caberia eleições diretas também, para papa?
Leonardo Boff: Eu
acho que é possível muitas expressões. Eu, uma vez, já expus isso em um
trabalho, que representantes do cristianismo católico, masculino e
feminino, porque na verdade o catolicismo é extremamente patriarcal. Eu
diria até quase machista, celibatário… E não colhe mais da metade do
outro cristianismo que é feito das mulheres, que são nossas mães, nossas
irmãs. Que representantes deste cristianismo pudessem escolher alguém,
por um certo tempo, uma forma inclusive colegial. Eu creio que não
militaria, de forma nenhuma, contra dogmas do cristianismo, mas tornaria
o cristianismo mais descentralizado, mais humanizado. E, talvez, vamos
chegar um dia a isso.
D. Amaury Castanho:
Professor Boff, posso lhe fazer uma pergunta? O senhor coloca em
oposição hierarquia e povo. Eu não vejo nenhuma oposição. Depois o
senhor falou em voltar às raízes. Eu conheço um pouco as raízes do
cristianismo, são os evangelhos. E o Cristo reuniu em torno de si - a
doze – [referência aos apóstolos], depois - a setenta e dois - o grupo
de mulheres. E o senhor afirma que a hierarquia é poder. Mas hierarquia
não é poder, a hierarquia é serviço. Pode ser que em certos momentos da
história tenha sido mais acentuado este poder, porque realmente o pastor
tem uma certa jurisdição sobre o rebanho das ovelhas. Mas,
honestamente, eu sou bispo há 20 anos, não me sinto o poder, eu me sinto
um servidor do povo de Deus. E não vejo porque seccionar os canais de
comunicação direta, e o serviço que o pastor, o bispo, o papa, o padre,
presta ao povo. Nós sem o povo não somos nada. Mas parece-me que as
ovelhas sem o pastor podem desgarrar-se por aí. E gostaria de saber…
Leonardo Boff: Eu
acho que este discurso é o discurso dos pastores também. Agora, este
não é o discurso das ovelhas, que sentem, muitas vezes, o obstáculo, não
contra o lobos, mas contra elas. Então, eu acho que devemos aceitar: é
um poder. É um poder centralizado, devemos discutir o uso deste poder.
Se é um poder que se participa, que se abre ou é um poder centralizado.
Eu acho que o poder na Igreja, como ele está organizado, é extremamente
centralizado. Primeiro, só na parte masculina da Igreja. Depois, só na
parte daqueles que recebem o sacramento da ordem…
D. Amaury Castanho: Não
é bem exato. Eu acabo de realizar uma reunião de três horas com o
conselho de presbíteros; e tem o conselho diocesano pastoral, 90% de
leigos. Hoje o processo que nós seguimos é o processo participativo.
Processo de diálogo, de ouvir razões e ouvir contra-razões e chegar-se a
um consenso. É claro que a palavra do pastor, do bispo é uma palavra
para pontualizar as coisas. Mas está superada na história da Igreja,
esta fase em que o bispo, o papa faziam todo o seu plano de trabalho e os leigos apenas executavam.
Neste momento eles participam, muito de perto, no encaminhamento dos
problemas, no planejamento pastoral, da realização, das metas a serem
atingidas, os caminhos a serem seguidos. Então, eu vejo uma certa
contradição entre a colocação que o senhor acaba de fazer agora e os
meus 20 anos de bispo e os meus 45 anos de padre.
Leonardo Boff:
Não, mas eu não estou convencido de forma nenhuma, dom Amaury. A
questão não é a participação, reunir as pessoas, conversam, participam,
dizem. Eu quero saber o ponto da decisão. Quem decide? Quem decide é o
clero, o bispo, ele tem a última palavra, destitui, às vezes, leigos
inteiros, competentes, professores da universidade e outros. A questão
da participação não é falar, é quem tem a palavra decisória…
D. Amaury Castanho: Não
é por vontade nossa que o pastor diga a última palavra, é por vontade
do Senhor Jesus. O senhor conhece os evangelhos. Embora o senhor coloque
o Cristo histórico contra o Cristo da fé, o Cristo da fé contra o
Cristo histórico, eu não vejo por que esta colocação. Basta ir às fontes
do cristianismo para saber que Cristo deu a Pedro e deu aos doze uma
autoridade, um serviço, um mistério…
Leonardo Boff: Eu
quero estar mostrando exatamente isso, que no ponto fundamental da
decisão o senhor diz: “Não, é nossa porque Cristo o decidiu”. São homens
que dizem que Cristo decidiu…
D. Amaury Castanho:
Eu posso lhe dizer que, em 20 anos de bispo, talvez eu tenha tomado
duas ou três decisões contra o conselho, contra o consenso, melhor, dos
meus conselheiros, dos conselhos de presbíteros e também dos conselhos
diocesanos de pastoral, que eu organizei em Sorocaba, que eu organizei
em Valência, e que organizei na diocese de Jundiaí há sete anos atrás.
Então, há uma contradição entre colocações que o senhor faz e a minha
experiência de vida.
Rinaldo Gama:
Talvez fosse interessante o professor Boff dar um exemplo ao colega no
sentido de onde há essa "des-sintonia" entre o que Jesus disse, pregava
e o que hoje se faz. Talvez fosse esclarecedora aqui esta colocação.
Por exemplo, a questão da mulher que o senhor insistiu muito, como Jesus
via a participação da mulher, por exemplo, e hoje nós sabemos que a
mulher tem um papel restrito na Igreja Católica.
Leonardo Boff: Eu
acho que a gente devia discutir até a questão do fato dos doze, que ele
apelou aqui. Aqui nós temos que ter um pouco de exegese, não podemos
ser fundamentalistas, tomar os textos como lá estão. Quando Jesus fala
dos doze, há todo um contexto da teologia judaica do tempo, que os doze
significam. As doze tribos de Israel que representam os doze signos do
zodíaco daquele tempo, significam a humanidade. Então quando Jesus chama
os doze, não é um mais um mais um até doze. Quer dizer, o povo que se
reúne, a comunidade que se reúne.
Fernando Mitre: Me desculpe, professor, mas tem o nome dos doze nos evangelhos. São doze mesmo…
Leonardo Boff: Tem, mas são nomes simbólicos…
Marcelo Cavalari:
Para a Bíblia dar nome significa convocar à vida. Para a Bíblia o que
não tem nome não tem vida. Quer dizer, é a vida no seu todo.
D. Amaury Castanho:
Há duas posições extremadas. O senhor está aí numa outra posição
extremada. Uma é a dos fundamentalistas que interpretam toda a palavra
de Deus escrita, a Bíblia, os 73 livros da Bíblia numa linha literal. E
outra, é a interpretação, que me parece que o senhor está dando, em uma
linha liberal. O que o senhor acabou de dizer sobre os doze…
Leonardo Boff: [interrompendo dom Castanho] Até na teologia do Ratzinger porque nas aulas dele, e nos livros dele, até em português estão, O Povo de Deus, tem um capítulo inteiro sobre os doze, como se entende os doze. Ele explica lá isso…
D. Amaury Castanho:
Eram pessoas, escolhidas em Cafarnaum, escolhidas ali na Galiléia, eram
os doze que conviveram com o Senhor, durante três anos, dia e noite.
Leonardo Boff: Sim,
mas doze como comunidade messiânica, não é o número dos doze. É a
comunidade que [?]. E quando um decai, eles elegem alguém no lugar do
Judas, para refazer o 12 – que é 3 vezes 4, o número da perfeita
totalidade. Você tem que entender esta perspectiva, se não caímos na
concepção subjetivista, que é cada um sozinho, cada um tem o seu poder,
cada um pequeno papa , não é esse o sentido. O sentido colegial, messiânico, que é sempre coletivo…
Matinas Suzuki: A respeito do papa parece que temos uma pergunta ali do Fernando.
Fernando Morais: Eu estou lendo o livro, que o senhor certamente terá lido, o livro do jornalista americano Carl Bernstein, que é a biografia do papa João Paulo II [Sua Santidade João Paulo II e a história oculta de nosso tempo].
E há um trecho dele, uma passagem que me chamou particularmente a
atenção, que me impressionou muito, que são exatamente as páginas que
são dedicadas ao senhor, seu depoimento ao antigo Santo Ofício, à
Congregação da Doutrina da Fé, em Roma, no Vaticano, em 1984. Eu fiquei
muito impressionado, primeiro pela riqueza de detalhes, com a qualidade
do trabalho jornalístico, mas principalmente com o que ele descreve,
porque a atmosfera deste seu depoimento não parece, para quem lê, vindo
de um jornalista sério, é ainda mais impressionante, não parece que você
está… Não é a atmosfera do Vaticano, mas uma espécie de delegacia de
polícia. Como se fosse um “DOI-CODI [Destacamento de Operações de
Informações - Centro de Operações de Defesa Interna. Agência de
repressão durante o mais recente período de ditadura militar] canônico”.
Eles não permitem que entrem no recinto onde o senhor está com o
cardeal Ratzinger ,
seus dois superiores aqui no Brasil, que eram o dom Paulo [Evaristo]
Arns [(1921-), frade franciscano, arcebispo emérito de São Paulo] e o
dom Aloísio Lorscheider [(1924-), frade franciscano e cardeal
brasileiro, arcebispo emérito de Aparecida].
D. Amaury Castanho: Não
eram superiores, o senhor me desculpe, não eram superiores dele, na
ordem era o bispo de Petrópolis, o superior dele, o provincial dele.
Foram dois cardeais que o acompanharam, porque são franciscanos,
quiseram dar a ele uma prova de solidariedade…
Fernando Morais: Eu,
quando falei “superiores”, eu falei na ordem dele. Isso também é
irrelevante, o que importa é que eram dois cardeais que tinham ido lá
acompanhá-lo e que não puderam entrar, não puderam assistir…
D. Amaury Castanho: Eu respeito a pessoa dele…
Fernando Morais: Não
é o que está no livro, eu só posso me ater ao que está no livro. Aqui
está dito que não entraram D. Paulo e D. Aluísio por ordem do Santo
Padre, por instrução do Papa.
D. Amaury Castanho: É possível.
Fernando Morais:
É impressionante, eu fiquei muito impressionado com a atmosfera
policial. E depois vim a saber que o senhor tinha sido amigo, anos
antes, do cardeal Ratzinger.
Em primeiro lugar, eu gostaria de saber o seguinte: se o senhor leu o
livro e se essa descrição é precisa? Queria saber também se o senhor deu
o depoimento para o jornalista, para o Bernstein, para ele ter esta
precisão a respeito do que aconteceu lá. E gostaria de ouvi-lo um pouco
sobre esse episódio, que eu fiquei muito impressionado.
Leonardo Boff: Olha, eu acho o livro extremamente inteligente, bem feito, porque mostra toda uma visão política do Papa, eu acho que o Papa
é mais político do que religioso nesta perspectiva do livro e também o
fracasso desta política. O último capítulo mostra isso, um Papa desiludido, irritado já, o que eu achei verdadeiro isso. E as sete ou
oito páginas que ele dedica ao meu caso são extremamente fidedignas. Eu
creio que no conjunto dos ‘vaticanólogos’, que são jornalistas
especializados em Vaticano, estava o Marco Politi [do jornal La Repubblica],
eu me recordo dele, que é um dos autores… Inclusive os detalhes da
atmosfera, eu considerei de grande violência simbólica. Porque do
momento que marcáramos nove horas, e eu estava lá esperando que viesse
alguém do Santo Ofício, veio um carro do Santo Ofício, com alta
velocidade, praticamente arrebataram a minha pasta lá, me empurraram
carro adentro, não pude nem me despedir dos confrades, superiores
religiosos, em alta velocidade…
Fernando Morais: O livro diz que um deles falou: “Por que não vieram com as correntes nos pulsos”, não é?
Leonardo Boff: Aí
eu disse a eles: “Por que não fazem corretamente isso?”. E foram até
num pedaço da rua na contramão, e eu disse: “Olha, eu quero viver, um
herege vivo vale mais do que um santo morto” [risos] e alertando o
chofer que não corresse naquela velocidade…
D. Amaury Castanho: Professor Boff, eu....
Leonardo Boff: Me deixa eu terminar isso, porque a pergunta foi dele....[alguns falam ao mesmo tempo]
Matinas Suzuki: Vamos respeitar a resposta, depois a gente... Por favor...A gente vai ter tempo para conversar sobre outras coisas.
Mateus Soares de Azevedo: O
senhor acabou de dizer, professor Boff, que o João Paulo II é mais
político do que religioso. Mas essa, curiosamente, é uma crítica que
fazem ao senhor também, que o senhor seria muito mais político do que
religioso e que, de alguma maneira, se vale da religião para fazer
avançar um determinado projeto político.
Leonardo Boff: Eu
acho que a fé tem uma dimensão familiar, tem uma dimensão mística, tem
uma dimensão artística, cultural e tem uma dimensão política, é
inegável, porque ela está na sociedade civil, está no Estado. O que fez a
Teologia da Libertação? Foi dar uma ênfase, que é inerente a essa fé,
libertadora à sua dimensão política. Porque normalmente a dimensão
política da fé era cooptada pelas forças dominantes. No velho pacto
colonial Igreja-Estado, classes dominantes, Igrejas institucionalizadas
que compunham a ordem. Então, revolucionar não é fazer política, não é
fazer política de esquerda, fazer a política com os pobres. Por isso se
diz: “Essa é a política”. Não. A Igreja sempre fez política. Só que era
uma política de centro, de direita. Era um dos fatores, eu diria até de
uma forma simbólica, ela era azeite na maquinaria social da ordem
estabelecida, que, quando analisada, era uma desordem.
D. Amaury Castanho: O
senhor deve conhecer... Permite um aparte? [dirigindo-se a Matinas] O
senhor deve conhecer, saber que lá pelo século III, IV e V, grandes
padres da Igreja do ocidente e do oriente já assumiam uma posição clara
em favor dos pobres, em favor da justiça, de visão mais justa e equânime
dos bens, assim por diante. Então, é evidente que há um dimensão social
na conduta de Jesus, se quiser uma dimensão política também. Mas o
problema da Teologia da Libertação é que ela sobrepõe a política à
dimensão sotereológica, a dimensão salvífica da fé. Agora, voltando um
pouquinho atrás, frei Boff, eu lamento se houve este ambiente
policialesco, que eu desconhecia. Diante do seu livro Igreja, carisma e poder,
não era fácil controlar-se e tratá-lo como São Francisco de Assis o
trataria. Era preciso interpelá-lo sobre teses muito sérias que o senhor
defende no seu livro. Entre elas, por exemplo, uma posição em favor de
Igreja popular e contra Igreja hierárquica, que é aquela que Jesus quis.
Poderia ter organizado a sua Igreja com outra estrutura, mas ele quis
que fosse assim. Lamentavelmente ele quis precisar de nós, que somos
pecadores, somos limitados. Ele não quis uma Igreja pastoreada por
anjos, mas por homens…
Matinas Suzuki: Pessoal,
por favor, vamos deixar o professor Boff responder essa e tem outras
pessoas querendo participar e eu tenho que passar a palavra a ele.
Marcelo Cavallari: Professor,
nesse seu livro, várias das histórias que o senhor narra são
relacionadas ao senhor dando sacramentos pras pessoas nas favelas,
enfim, em locais pobres, quer dizer, o senhor ali com uma presença
bastante viva. Tendo deixado a Igreja, o senhor tem no mercado uma
sobrevida, digamos assim, intelectual. E a sua prática, qual é hoje a
sua prática?
Leonardo Boff: Talvez eu escandalize o dom Amaury, mas vou dizer isso aqui.
D. Amaury Castanho: A essa altura da vida eu não me escandalizo mais com nada. [risos]
[?]: ...teorias absurdas sobre a Igreja...
Leonardo Boff:
Olhe, eu não deixei a Igreja, deixei uma função da Igreja hierárquica.
Agora a Igreja não é só hierarquia, como o Brasil não é só o exército.
Não são só generais. A Igreja não é um exército, é um povo de Deus, é
povo…
Marcelo Cavallari: Mas essas pessoas que o procuraram, procuraram para sacramentos e o senhor já não pode oferecer isso…
Leonardo Boff: Não,
eu vou chegar lá, vou chegar a isso. Existe talvez a parte mais
visível, mais dinâmica da Igreja brasileira, que são as comunidades
eclesiais de base. A última investigação que foi publicada até na Vozes,
no livro, dava conta de cerca de 100 mil comunidades eclesiais de base.
D. Amaury Castanho: Isso há uns 15 anos, agora são umas 40 mil.
Leonardo Boff: Não,
foi publicado no ano passado, e isso é uma investigação muito séria,
conduzida pelo Instituto de Investigação da CNBB [Conferência Nacional
de Bispos do Brasil] e do ISER [Instituto de Estudos da Religião]. Então
é uma coisa científica, não é um juízo qualquer. Há cerca de 2 a 3
milhões de círculos bíblicos, então o cristianismo é extremamente vivo
nas bases. Desse cristianismo eu não arredei pé. Eu batizo, celebro,
caso, rezo com o povo e continuo, porque há demanda religiosa e não me
frustro dessa demanda. Me sinto nesta caminhada e é uma grande
destituição da Igreja hierárquica, destas comunidades que não são
atendidas, pela arrogância institucional de manter a perspectiva
clerical, celibatária, que não estava na mente de Jesus, porque ele não
escolheu celibatários, escolheu pessoas casadas, desde que o primeiro Papa São Pedro, era casado. E ele curou a sogra dele…
D. Amaury Castanho: Só que o próprio Cristo não se casou…
Leonardo Boff: Ninguém sabe, se casou ou não ninguém sabe. [vários falam ao mesmo tempo]
Matinas Suzuki: Professor Leonardo, eu tenho uma curiosidade: qual é o estado real do senhor frente à Igreja?
Fernando Mitre:
[interrompendo Boff] Eu até complementaria, o que o senhor deixou de
fazer? Porque o senhor continua casando, o senhor continua dando
comunhão…
Leonardo Boff: Eu não deixei de fazer nada. Eu só não entro numa paróquia…
Fernando Mitre: Então o que significou este afastamento do senhor na prática? O que significou isso?
Leonardo Boff:
Significou, acho que é uma crítica que eu continuo fazendo, e eu acho
que é pertinente na teologia mais séria ecumênica hoje, a excessiva
inflação do caráter hierárquico, clerical da Igreja…
Fernando Mitre: Sim, mas o senhor, na prática, continua fazendo o que o senhor fazia antes?
Leonardo Boff:
Não, não. Eu estou falando de uma Igreja da base, que não é uma Igreja
de paróquia. Quando toda a comunidade participa, as celebrações não
demoram 40 minutos, demoram 2 horas. No batizado entra todo mundo,
participa, os padrinhos, os parentes, os avós… Quer dizer, a gente
celebra a vida, não celebra o rito, que é o que as comunidades ensaiaram
nestes últimos 30 anos…
Matinas Suzuki:
Eu gostaria de ter um… É um ponto importante porque o senhor se desliga
da Igreja, mas o senhor permanece ainda… O senhor não foi totalmente… O
seu processo, pelo que entendi, o seu processo de exclusão não foi
totalmente aceito pela Igreja ainda, é isso?
Leonardo Boff: Não,
Matinas, é o seguinte. Lembra que nós nos encontramos em Petrópolis em
71, 72, já era um jornalista lá, já interessado em teologia da
libertação em Petrópolis, você estava na Veja,
já discutimos isso. Quer dizer, não podemos reduzir o cristianismo à
sua dimensão hierárquica, o cristianismo é muito mais complexo. A
expressão comunitária é mais viva hoje. Então, eu não deixei a Igreja
como comunidade, eu deixei uma função da Igreja, aquela função
hierárquica do padre que é um conceito canônico, que celebra na Igreja
paroquial e aquela coisa toda. Mas eu não deixei de ser fiel, não deixei
de ser teólogo, e lá nas comunidades que me pedem para eu coordenar a
celebração, é a comunidade que celebra, eu coordeno esta celebração,
participo dela. E isso eu continuo fazendo, seja atendendo uma demanda,
seja também como uma missão, uma vocação, aquilo que eu gosto de fazer.
D. Amaury Castanho: Por
favor, professor Leonardo, está na linha das colocações que ele acaba
de fazer, o senhor enfatizou, valorizou uma Igreja “comunhão”. Mas o
senhor rompeu essa comunhão com a Igreja. Porque a Igreja não é só a
hierarquia, mas não é só o povo de Deus. A Igreja é hierarquia e povo de
Deus.
Leonardo Boff: É só discurso, dom Amaury.
D. Amaury Castanho: Então
fica um pouco difícil de entender em sua vida, e certamente São
Francisco de Assis não entenderia também, porque ele sempre viveu em
profunda comunhão com o Papa. Ele foi a pé de Assis, na Umbria, até Roma para pedir a benção do Papa para a sua nova ordem, para os estatutos, a regra da ordem, ele foi
muito respeitoso da hierarquia… Então eu não estou compreendendo bem
algumas contradições aí…
Leonardo Boff: Talvez,
D. Amaury, o senhor, que é um padre secular não entenda a tradição dos
mendicantes. Tem um artigo muito interessante do cardeal Ratzinger , está em português, eu aconselharia o senhor ler. Lhe faria muito bem porque é um livro que tem o título Igreja povo de Deus,
saiu pelas Paulinas. Lá ele mostra como São Francisco foi o maior
profeta contraditório da Igreja-instituição daquele tempo. A gente
disse: “Não! Não à Igreja dos monarcas, não à Igreja do Papa -
príncipe, como era no século III". Era a Igreja da rua, Igreja dos
caminhos, Igreja da pobreza. Não assumiu aquele projeto de Igreja,
reinventou um projeto de uma Igreja de base, popular, onde celebrava no
meio do povo, dos pobres… Se é uma ruptura, São Francisco a fez.
D. Amaury Castanho: Mas ele fez a ruptura não rompendo a comunhão da Igreja e continuou na Igreja transformando-a por dentro…
Leonardo Boff: Eu não rompi a comunhão... Quer dizer, o senhor define a Igreja como um exército e a Igreja não é isso.
Matinas Suzuki: O frei Vitório quer fazer uma pergunta. Vamos respeitar aqui um pouco a hierarquia do programa..[risos ]
Frei Vitório Mazzuco:
Não é assim uma pergunta, é apenas um complemento porque a partir das
palavras iniciais da pergunta do Rinaldo, eu vejo também que na
imprensa, e mesmo aqui, todos os telespectadores que acompanham este
debate, não está claro o conceito. Porque em geral se diz assim:
“Leonardo rompeu com a Igreja”. “Leonardo não está em comunhão com a
Igreja”. E este debate aqui leva a crer que a Igreja está no centro da
roda, sendo questionada. Existe uma diferença. A Igreja é inspiração, a
Igreja é uma inspiração divina. Ela é o espaço da graça, da fé e da
comunhão. Mas existe a eclesiologia. A eclesiologia é o modo como a
Igreja é conduzida. O conflito de Leonardo se dá mais com a eclesiologia
e Leonardo mesmo falava, logo na sua primeira resposta, de paradigma.
Hoje é um termo bastante usado no mundo, não só teológico, mas, no mundo
das ciências, isso tudo na análise de conjuntura dessa virada do
milênio. Então eu queria perguntar para o Leonardo: dentro desta
referência global, desta plenitude de sentidos que nós chamamos
“paradigma”, hoje, o trabalho, a luta, a militância, o serviço que
Leonardo presta à eclesiologia. Porque o teólogo dificilmente questiona a
Igreja; o conflito do teólogo é com a eclesiologia. Eu queria que o
Leonardo colocasse, porque me parece que esta confusão existe e até aqui
no nosso debate se confunde Igreja com eclesiologia…
Leonardo Boff:
Eu agradeço muito essa pergunta do Vitório, porque quero enfatizar: eu
não rompi com a comunhão. Comunhão é uma coisa sociológica, que a gente
mede e é uma coisa mais profunda… Quer dizer, a fidelidade ao sonho de
Jesus, eu acho que a consagração mais importante para o cristão não é a
consagração presbiterial, de padre e bispo. É a consagração batismal,
onde a pessoa se conhece filho ou filha de Deus, irmão de toda humana
criatura, de todos os seres do universo, nessa sinergia fantástica onde
está a grande casa de Deus. Eu estou profundamente ligado a essa
comunhão e, em nome disso, aceito convites, tenho aceito, no mundo
inteiro, eu tenho pregado retiros espirituais na qualidade de leigo, e
eu digo: “Caro, eu fui conduzido ao status que Jesus era”. Jesus nunca
foi sacerdote. Jesus foi leigo, quem o diz não sou eu, é São Paulo [dom
Amaury Castanho diz ao mesmo tempo: “É discutível, é discutível”...] nas
epístolas aos Hebreus, onde ele diz: “Que se Jesus fosse sacerdote ele
teria sido levita”. Mas ele não é, ele é da tribo de Davi, onde tem
cantores, tem guerreiros, tem políticos, dessa linhagem vem Jesus.
D. Amaury Castanho: E a epístola aos Hebreus, está tudo errado? É sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquisedeque…
Leonardo Boff:
É um título que dão a ele. E Melquisedeque quem que era? É um sacerdote
pagão, não era nem judeu… [D. Amaury fala ao mesmo tempo: “Ofereceu
sacrifícios...pão e vinho”] Melquisedeque é um sacerdote de Sion, então
Jesus vem de outra linhagem, não é um sacerdócio comum aqui. Ele diz:
“Ele era laós, leigo, pertencia ao mundo, do povo de Deus. Bom, eu estou
nesta comunhão, mas eu não gostaria de entrar nesta questão, porque eu
acho muito criticalista, não quero que o discurso se reduza a essa
questão que no fundo é interclesial. A minha preocupação é: como fazer
do sonho de Jesus, que vai além dos quatro evangelhos – pra mim o
evangelho não são os quatro evangelhos, os livros. O evangelho é Jesus,
sua vida, o seu desafio, o seu arquétipo, o sonho que ele lançou para a
humanidade, e que é um caminho espiritual fantástico, não só para o
ocidente, mas para a humanidade. Como vamos viabilizar como proposta de
sentido para a humanidade, que se mundializa hoje; para os pobres, para
os intelectuais, para os jornalistas… Se nós damos a versão clerical do
catecismo, eu acho que é paupérrima, é carregada de poder, de censura,
de ordem, sempre há uma instância última que diz a última palavra. Digo:
“Não, tem que ser uma coisa aberta”. O evangelho é da liberdade. São
Paulo diz: “irmãos e irmãs”, vocês foram chamados à liberdade e não se
deixam escravizar. E essa liberdade é que para mim é a grande herança
que Jesus trouxe, no sangue e não na palavra.
Fernando Morais: Frei Leonardo, há pouco tempo, três semanas, quatro semanas atrás [em 19 de novembro de 96], o Papa recebeu no Vaticano, parece que pela primeira vez, um líder marxista, o
presidente de Cuba, Fidel Castro. E não só recebeu como agendou uma
visita a Cuba para o começo do ano, se não me engano. Eu vou voltar de
novo ao livro de Bernstein… Logo no começo do livro ele faz algumas
revelações surpreendentes a respeito das ligações do Papa, quando ele inicia um trabalho mais político do que sacerdotal, em direção à Polônia, das estreitas ligações que o Papa
tinha com William Case, que era o então diretor da CIA [Central
Intelligence Agency, em português Agência Central de Inteligência,
serviço de investigação e informações secretas dos Estados Unidos], do
governo Reagan, se não me engano, Ronald Reagan [(1911-2004), presidente
dos Estados Unidos de 1981 a 1989]. Inclusive revela que a CIA
municiava o Papa
regularmente com documentação secreta sobre a Polônia e até com
fotografia de satélite feita por satélites espiões norte-americanos.
Aconteceu o que aconteceu. Eu pergunto ao senhor o seguinte: o senhor
escreveu um artigo, há poucas semanas, na Folha de S. Paulo, tratando exatamente deste tema, da visita do Fidel Castro a Roma, ao Vaticano, e da possível visita do Papa a Cuba. O senhor, portanto, esteve em Cuba conversando com o presidente
Fidel Castro, entre outras coisas, sobre religião, e eu queria saber:
qual é a interpretação que o senhor tem dessa aproximação, desse
estreitamento de relações de um chefe de Estado, declaradamente
marxista, marxista leninista, ateu, embora tenha tido educação cristã,
educação jesuíta, com o principal dirigente da Igreja. Qual é a
interpretação que o senhor faz e, sobretudo, eu pergunto o seguinte:
será que Cuba não está abrindo um pouco o flanco, se a gente não conhece
a história das relações do Papa com a Polônia, revelada agora pelo jornalista?
Leonardo Boff: Olha, Fernando, eu acho que essa visita revela modificações nos dois pólos, do Papa e do governo cubano. Fidel Castro tem uma mágoa muito grande porque ele foi o primeiro chefe de estado a convidar o Papa a visitar Cuba, entre todas as visitas que o Papa fez, ele foi o primeiro a convidar, e o Papa
não quis. [D. Amaury diz: “Novidade pra mim...”. Boff responde: “É, mas
é bom saber... Ele já disse [?] várias vezes”. D. Amaury retruca:
“Estou bem dentro da Igreja há 45 anos...”] E, logo em seguida, quando o Papa se pronunciou a isso, disse, uns dois anos após, o Papa:
“Eu vou, mas visitando os cubanos em Miami e os cubanos na ilha
[referência a Cuba]. E aí Fidel Castro disse: “Não, porque é impossível
combinar os dois…”.
D. Amaury Castanho: E por que não? Por que a exclusão de alguns?
Matinas Suzuki: Por favor, é uma questão interna de Cuba que não cabe a nós aqui responder…
Leonardo Boff: [comenta, aproveitando a fala de Matinas] O senhor não precisa sempre defender o Papa. Ele tem seus defensores no Vaticano, dom Amaury, deixa o Papa com seus consortes.
Leonardo Boff: Então, a mudança seria a seguinte. O próprio Papa
agora aceitou visitar só Cuba, não a de Miami, porque se dá conta de
que são políticas absolutamente diferentes. E a segunda também, Fidel
Castro se deu a todo um processo interno de abertura da Igreja em Cuba,
do próprio governo. E aqui eu quero ressaltar um trabalho inestimável,
isso um dia vai ser feita a história… Eu quero que você participe como
parte disso, que escreveu tão bem sobre Cuba [referindo-se a Fernando
Morais, autor de A ilha, livr-reportagem sobre Cuba],
o trabalho inestimável que o Frei Betto [Carlos Alberto Libânio Christo
(1944-), escritor e religioso dominicano brasileiro, adepto da Teologia
da Libertação e militante de movimentos pastorais e sociais], de mais
de quarenta viagens, trabalhando nos dois campos de governo e de Igreja.
Eu participei em várias etapas desse trabalho fantástico, junto aos
bispos e junto ao governo, até que, finalmente, Fidel Castro e a
política oficial se deu conta, que o cristianismo, especialmente este de
vertente libertária interessada na justiça, não é de forma alguma
inimigo do socialismo. E, por isso, o socialismo convoca essa
colaboração desse cristianismo e aí, de fato, abriu, e a Igreja hoje é
muito mais… E, nesse contexto novo, é que o Papa pode chegar para dizer.
Matinas Suzuki:
Seu Leonardo, o Bernstein esteve aqui neste programa e a impressão
nítida que ele deixou, e depois eu fui até reler partes do livro, depois
da entrevista dele, para ver se era isso, é que ele, primeiro, acha que
o Papa é mal avaliado no Brasil. Acha-se no Brasil, por exemplo, que o Papa é mais conservador do que realmente ele é. Segundo, que o Papatem um projeto místico e não político. E que esta ida dele a Cuba, ele
falou isso aqui no programa, que a gente mostrou há pouco tempo, está
dentro de um projeto… Que não há contradição neste projeto. Quer dizer,
não há uma mudança nem para a direita nem para a esquerda. É uma Igreja
que ele quer recuperar, restituir em alguns princípios, alguns
fundamentos e ele move a política internacional, hoje é uma política
dessa Igreja, conforme as necessidades desse próprio princípio que ele
está tentando devolver para o Brasil. Isto eu, evidentemente, estou
tentando reinterpretar ou passar para o senhor a impressão que ficou,
mas o Bernstein enfatizou muito esse ponto.
Leonardo Boff: Eu acho que é um lugar até, diria, quase comum dos vaticanólogos, que o Papa
é uma espécie de iluminado do século XVI. Inclusive dorme ao lado do
quarto de trabalho dele, ele dorme no chão como os iluminados, naquela
transfiguração mística. E fundamentalmente o que ele pensa, isto me
disse um dos grandes vaticanólogos, mais achegados aos cardeais, aquilo
que ele pensa, os seus sonhos, as suas fantasias, ele entende como
iluminação do Espírito Santo. O que ele dispensa de escutar os cardeais e
bispos e a política do dia-a-dia, que tem uma política iluminada, que é
levar a mediação do cristianismo a todos os povos, e levar com a cruz
como um cruzado levando isso, sem se preocupar muito das mediações.
Então a política mística sim, mas finalmente política. Isto é, que sobre
o império dos valores cristãos o mundo tem que ser globalizado. E a sua
frustração é ver que estes valores, pretendidamente ocidentais e
cristãos, são valores do capital, do mercado…
Matinas Suzuki:
O que eu queria dizer, acho que está um pouco embutido na pergunta do
Fernando é o seguinte: se aparentemente o que poderia ser um apoio ao
Fidel Castro, neste momento, que poderia tirá-lo do contexto do
isolamento internacional, não poderia estar se repetindo o mesmo
processo que ocorreu na Polônia. Ou seja, a chegada da Igreja
coincidindo com, coincidentemente ou não, mas aparecendo como ponta de
um processo de mudanças políticas dentro do regime cubano.
Leonardo Boff: O Papa,
aonde chega, sempre reforça a Igreja local institucional, isso é a
estratégia básica dele e é seu dever fazer isso. Eu creio que, em Cuba,
ele vê a Igreja como um dos fatores da transição importantes, para um
governo alternativo ao cubano. Apenas eu acho que é uma Igreja
extremamente fragilizada, que não ajudou a montar a revolução, se
beneficiou das dimensões sociais da revolução, mas não entrou na
trincheira para construí-la, então ela tem pouco a dar. Outras forças
cristãs e políticas dentro de Cuba, que estão presentes agora, novas,
nos últimos anos entraram, são muito mais presentes, muito mais abertas a
um diálogo sobre a Justiça, do que aquele tipo de Igreja. Mas, de toda a
maneira, eu acho que é uma ilusão pensar que a Igreja de Cuba tem um
protagonismo na fase de transição. Eu acho que ela não se preparou para
isso, não tem quadros e é uma ilusão.
Matinas Suzuki: Nós
vamos fazer um rápido intervalinho e a gente volta daqui a pouco com a
segunda parte da entrevista com o professor Leonardo Boff. Até já.
[intervalo]
Matinas Suzuki: Bem, nós voltamos com o Roda Viva
que essa noite entrevista o teólogo Leonardo Boff. Infelizmente você
não poderá participar deste programa porque ele foi gravado. Eu fiquei
devendo aqui a pergunta do Mário Simas, no primeiro bloco. Mário, a
palavra é sua.
Mário Simas:
Eu gostaria de retomar um pouco um tema que o senhor já falou, que foi o
seu desligamento da Igreja. Conta isso com mais detalhes, como que
isso se dá? Como que é essa ruptura na cabeça do cidadão Leonardo Boff?
Como ele sobrevive a isso? Quer dizer, ele deixa de ter toda uma
estrutura de Igreja, onde ele baseava a sua vida, partir para um outro
modo. E foi o senhor que deixou a Igreja ou foi a Igreja que o deixou?
Leonardo Boff: Veja, Mário. Talvez seja bom esclarecer o que é a Igreja. Normalmente, pela mídia, Igreja é os bispos e os padres, o Papa
e pronto. Agora, um conceito mais complexo de Igreja, a Igreja é a
comunidade dos que crêem, que se organizam, lá eles têm a sua
hierarquia, mas é povo, são os teólogos, é a vida religiosa, é o
movimento dos sem-terra, pastoral do índios, dos negros, das crianças de
rua, é a Teologia da Libertação, toda essa complexidade de vida, forma a
Igreja concreta. Então, qual foi a minha crise e o meu conflito? Foi na
discussão da Igreja, carisma e poder,
eu não digo que a Igreja é só carisma ou é só poder; a Igreja é carisma
e é poder. Mas, na forma como ela se organizou, o poder engoliu o
carisma. De tal forma que a grande parte dos cristãos está à margem
disso. Os negros, as mulheres, as religiosas, e há a densificação nesse
lado mais piramidal da Igreja. Então, a minha luta é dizer que é
possível a Igreja ser diferente, mais comunhonal, mais participativa;
não como discurso teórico da teologia, mas como experiência prática, nas
comunidades de bases, ao nível continental, na África, na Ásia, o
cristianismo de comunidade…
Fernando Mitre:
O senhor usa a expressão carisma, o conceito carisma no sentido de que
ele se dá através da comunidade, não através da liderança. É um carisma
na comunidade, é isso?
Leonardo Boff: O
carisma é o lado criativo, o lado inovador, na comunidade, na vida…
Dificilmente o carisma se dá ao nível dos portadores do poder. Existe,
por exemplo, o dom Hélder Câmara [(1909-1999), bispo católico, arcebispo
emérito de Olinda e Recife] é uma pessoa altamente carismática. Dom
Pedro Casaldáliga [(1928-), é um bispo católico catalão, adepto da
Teologia da Libertação], eu gostaria que ele viesse um dia aqui, tem uma
radiação fantástica e é um bispo, mas carismático. Agora, o carisma se
dá por muitos campos. Então, a Igreja é a combinação, eu acho, do
princípio da disciplina, da ordem, da hierarquia, com este lado mais
flexível, mais criador. Então, o meu conflito foi esse. Eu abandonei uma
função de padre na Igreja, deixei de ser padre. Agora, não deixei de
ser teólogo, continuo fazendo teologia. Eu suspeito que a perplexidade
de muitos bispos e padres é dizer: “O Boff continua fazendo teologia.
Ele devia ir embora, não devia fazer isso. Devia ser diretor da
Coca-Cola do Rio de Janeiro ou gerente de banco ou jornalista, mas não
teólogo”.
Mario Simas: Uma
questão é a seguinte. A gente conhece histórias aí, casos de muitos
padres, que por uma razão ou por outra, gostariam de tomar a mesma
decisão que o senhor tomou. Uns até por questão de ter encontrado um
amor terrestre, mais forte, por terem se apaixonado. Gostariam de estar
casados, mas que não deixam, não têm a coragem de deixar a Igreja,
porque teriam que mudar todo o seu sistema de vida. Quer dizer, não
iriam mais morar em uma casa paroquial, não teriam mais o carro da
diocese à sua disposição, para o que ele precisasse… Teriam que se
virar, de outra maneira. Como que isso funciona na cabeça das pessoas
que estão na Igreja? Isso é muito forte? O senhor conhece casos?
Leonardo Boff: É
muito forte. A grande maioria dos padres que deixa o ministério, e que
são quadros formados pela Igreja, excelentes quadros, para, por força
ter que sobreviver, tem que ser professor, jornalista, sei lá, o que
quer que seja. Mas, geralmente, não dentro da Igreja. A Igreja,
inclusive, nem aceita o trabalho deles. Ora, a minha situação de
teólogo, de escritor, e também professor na universidade - que eu tenho
dois doutorados, filosofia e teologia. Eu logo fui convidado, nos meses
após, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, para ser professor
lá, entrei por concurso, na cadeira de Ética. Então o meu ganha pão é a
universidade e aquilo que eu ganho dando entrevistas, viajando, etc.
Fernando Morais: Mas,
frei Leonardo, deixe eu perguntar uma coisa ao senhor. O senhor não
acredita que, em defesa da eficiência das suas idéias e da sua pregação,
teria sido mais importante o senhor permanecer na Igreja, o senhor
fazer, não sei se a expressão é a correta, mas fazer uma carreira dentro
da Igreja, ser bispo, ser cardeal, quem sabe um dia, quem sabe o papa, o Papa Leonardo Boff. O senhor não estaria dando uma contribuição maior para
as causas que o senhor defende, para as coisas em que o senhor acredita,
do que ter se divorciado, ter se desligado da estrutura da Igreja que,
sabe-se, como o Mário lembrou, que é uma estrutura poderosa, muito
poderosa…
Leonardo Boff: Olhe,
eu conheço até padres, teólogos e bispos, que fazem esta política sim.
Mas fazem política de direita, fazem carreira eclesiástica e chegam até o
cardinalato, lá em cima. Têm uma vontade de poder pelo caminho
religioso. Mas não é o meu caminho. Eu não quero nenhum poder neste
mundo, quero a transparência…
Fernando Morais: Não
é o poder pelo poder. É o poder para transformar a sociedade para o que
o senhor defende. Esta pergunta me ocorreu na hora que o senhor falou
do dom Pedro Casaldáliga. É evidente que o dom Pedro tem muito mais
condições de defender as idéias dele, sendo bispo, do que se ele tivesse
se desligado da Igreja, há vinte anos atrás.
Leonardo Boff:
Eu acho que não. A experiência que eu tenho, Fernando, é que o meu
auditório, seja no Brasil, seja no exterior, seja em Harvard, Roma, ou
Munique, ele duplicou, triplicou, depois que eu tomei a minha decisão.
Enche as salas, não tem como, tem que colocar os aparelhos de televisão
em qualquer lugar onde eu vou. No Rio de Janeiro, que eu era sempre
proibido de falar, durante vinte anos, professor em Petrópolis, jamais
dei uma palestra no Rio de Janeiro. Porque aquele cardeal que se
comporta como um sultão, impedindo qualquer teólogo da linha da
libertação pudesse falar. Nem fazer adoração do Santíssimo Sacramento,
que existe lá uma capela de adoração permanente, dia e noite, nem isso
eu podia fazer. Bom, de toda maneira…
Fernando Morais: O
senhor está se referindo ao cardeal Eugênio Sales [(1920), cardeal e
arcebispo emérito do Rio de Janeiro], o dom Eugênio Sales…
Leonardo Boff: Dom Eugênio Sales… Eu quero denunciar o estilo de governo de Igreja. Então, o meu caminho não é esse…
Fernando Mitre:
Professor, mesmo que o senhor quisesse, com a sua pregação e com o seu
comportamento, seria muito difícil continuar na Igreja, é isso? Eu até
aproveitaria para perguntar ao senhor como é que o senhor começou a
incomodar o Vaticano, como é que isso chegou até lá? Consta que foi
instalada uma sessão nacional, na Corte do Santo Ofício, no Rio de
Janeiro, para levantar a questão Leonardo Boff, e levar até o Vaticano, é
verdade isso?
Rinaldo Gama: Eu
queria perguntar o contrário. Quer dizer, que importância tem pertencer
à Igreja para defender essas idéias. Ninguém, em sã consciência,
defenderá o massacre dos pobres… Quer dizer, por que é preciso da
Igreja… O senhor ficou lá 20 anos se submetendo à censura, a essa
hierarquia que o senhor condena… Qual a importância de pertencer à
Igreja se o senhor pode pregar essas idéias fora dela, concorda? Que
importância tem a Igreja neste caso de um teórico que pretenda fazer
algo pelos pobres, etc., embora eu acredite que a Igreja, como já se
disse aqui, e ninguém, em sã consciência, defenderá o massacre… Imagino,
não sei, até posso estar enganado, que ninguém defenderia algo que
fosse contra a pobreza, a indigência…
Fernando Morais: É, tem gente que pratica, mas defender, ninguém defende, né...
Fernando Mitre:
Eu gostaria de saber se foi instalada uma sessão nacional do Santo
Ofício no Rio de Janeiro para julgar o caso Leonardo Boff e levar ao
Vaticano…
Leonardo Boff:
Olhe, eu devo dizer o seguinte: que as minhas pendências lá com Roma,
na seção de doutrina, começaram já em 1972. Praticamente cada livro que
eu escrevia tinha interrogações, cartas da Sagrada Congregação para a
Doutrina da Fé. E aquilo foi sucessivamente… E eu descobri, analisando o
meu caso, com colegas meus europeus e sul-americanos que estão nesses
processos, que são os processos típicos dos órgãos de segurança. Se você
uma vez caiu nas malhas do Dops, do Doi-codi***** daquele tempo, você
está perdido, será sempre acompanhado. Eu caí nas malhas do Santo Ofício
e fui acompanhado livro a livro, artigo a artigo, até que em 1984, Ratzinger
disse, lá em Roma: “Não, esse livro tem que ser chamado a Roma”. E o
processo não foi montado em Roma, foi montado no Rio de Janeiro, o
cardeal criou a Comissão Arquidiocesana para a Doutrina da Fé. Convidou
um teólogo para fazer a crítica do livro, foi condenado o livro. Eu fiz a
defesa, eles retrucaram e eu fiz a tréplica…
D. Amaury Castanho: Não foi só no seu caso…
Fernando Morais: Quem era o cardeal, você se lembra?
Leonardo Boff: O teólogo foi o Urbano Zilles e depois colocaram o Yosef Romer, que é bispo…
D. Amaury Castanho: Mas não em função do seu caso [“Não, foi em função do meu livro”, interrompe Boff] foi para analisar todos os problemas de…
Leonardo Boff:
O primeiro ato da comissão foi analisar o livro. E a comissão foi
criada em função do livro. Então ela foi montada aí e depois levada à
Roma. E em Roma se deu a formalização… E eu mesmo interroguei o cardeal Ratzinger:
“Como chegou esse livro aqui?”. Ele disse: “Não, ele veio do Rio de
Janeiro, e como você é um teólogo já mundial, que seus livros estão
sendo traduzidos, então nós entendemos que a Igreja tem que tomar uma
posição face a isso”…
Fernando Mitre: O senhor já tinha algum tipo de relação com o cardeal Ratzinger antes?
Leonardo Boff: Eu sempre tive uma relação de grande amizade com ele… [outras pessoas falam ao mesmo tempo]
Fernando Mitre: E ele comungava com as suas idéias então?
Leonardo Boff: Eu
não fui aluno, eu fui amigo; ele publicou a minha tese, que era uma
tese muito complicada, muito grossa. [Dom Amaury tenta falar com Boff,
chamando: “Leonardo...”] Nós trocávamos os artigos, tudo o que ele
escrevia, mandava a mim e eu mandava a ele. Ele, uma vez que eu estava
na linha de cumprimento do Papa, me viu na fila e me chamou à parte, me apresentou ao Papa,
dizendo até com um certo humor: “Um jovem teólogo latino americano, um
pouco selvagem”. E eu logo disse, em alemão, porque ele estava falando
em alemão: “Eu venho do Urval, venho da Floresta Amazônica, sou um
selvagem por causa disso”.
D. Amaury Castanho:
Leonardo, uma observação: não era necessário que houvesse nenhuma
comissão arquidiocesana no Rio de Janeiro, para apreciar o seu problema…
Leonardo Boff: Não importa, é que houve. E eu não vou discutir essa....
D. Amaury Castanho:
Os seus livros são traduzidos em várias línguas e corre a Europa,
então, independente da comissão do Rio, certamente chegariam ao
conhecimento de suas idéias. Todo livro que o senhor escreve, há páginas
geniais, mas não há um livro que o senhor escreva em que não há
heresias.
Leonardo Boff: Uma glória isso, o Brasil produz hereges…
D. Amaury Castanho: Então
é evidente que os pastores da Igreja tem que defender a ortodoxia. O
senhor coloca a ortopraxis sobre a ortodoxia da fé, é evidente que o
senhor seria chamado. Aliás, o seu processo foi longo…
Leonardo Boff: D. Castanho, o senhor vai muito mais longe que o Ratzinger,
porque eu nunca fui condenado por heresia. A única condenação que deram
a esse livro foi que as posições deste livro colocam em risco a fé
cristã. Eu digo: “Gente, Jesus está perdido, porque ler o evangelho põe
em risco a fé cristã”. Então eu sou condenado pela minha virtude, não
pelos meus defeitos.
Mateus Soares de Azevedo: Professor,
daqui para a frente, nestes últimos livros do senhor sobre ecologia,
nos quais o senhor tenta integrar a ecologia à Teologia da Libertação, o
senhor fala de uma nova religião mundial. Eu estou quase vendo o senhor
como o profeta, o revelador desta nova religião [“Da nova era”,
interpõe-se dom Castanho] pós-cristã. Posso ver assim o senhor como um
...?
Leonardo Boff: Não,
livra-me Deus. Eu jamais fundaria qualquer movimento religioso, não
colocaria o chapéu para começar a reunir as esmolas e fazer os templos…
Mateus Soares de Azevedo: Mas aonde o senhor quer chegar? O que o senhor está propondo?
Leonardo Boff: Eu não proponho nada. Eu quero começar…
Fernando Mitre: Mas o senhor prevê, professor, o senhor prevê. Eu vou tomar a liberdade de ler aqui, no Igreja, carisma e poder,
o senhor prevê aqui, naquele texto que o senhor debate com o Vaticano o
seguinte: “Em face de tais desafios…” – são os dois desafios da Igreja,
o eclesial e o social – “a Igreja precisa mostrar coragem e
criatividade. Caso contrário, deixará, nos próximos 50 anos, de ser a
religião prevalente da alma brasileira”. Já faz 17 anos que o senhor
escreveu isso. O senhor acha que a Igreja está deixando de ser…
Leonardo Boff:
Eu acho. Eu acho que o futuro religioso do Brasil não será católico,
será ecumênico. Terá matriz cristã, será feito um grande sincretismo,
que está em curso, eu acho extraordinário o sincretismo, porque mostra a
vitalidade do arquétipo cristão, não está fossilizado no seu lado
hierárquico, no seu lado ocidental romano. Ele está ligado às raízes
espirituais do povo brasileiro, que são místicas, que são
pluriculturais. Eu acho que vai surgir uma outra religiosidade…
Matinas Suzuki: O que o senhor acha do bispo Edir Macedo?
Fernando Morais: É
isso o que eu queria perguntar. O senhor acha que algum distanciamento
da Igreja Católica Apostólica Romana, das camadas mais pobres, poderia
estar propiciando o crescimento de seitas religiosas, ou o crescimento
muito grande dos evangélicos no Brasil, por exemplo? O senhor vê relação
entre uma coisa e outra – montando garupa aí na pergunta do Matinas a
respeito do bispo Macedo.
Leonardo Boff:
Olha, eu vejo. Eu vejo que o cristianismo oficial, seja de vertente
presbiteriana, metodista, romano-católica, ele se fossiliza lentamente.
Ela não renova o discurso, não renova os ritos. Eu não encontro a
linguagem para os destituídos; encontro para os pobres, mas não para os
excluídos, para as massas abandonadas. Não tem a linguagem do corpo, uma
nova simbologia, que fala sobre subjetividade…
Matinas Suzuki: O cristianismo está muito ligado à palavra, é por isso?
Leonardo Boff: Não só à palavra…
Matinas Suzuki: Com
a palavra, pode-se dizer que, “se não há nome não há vida”. Portanto, o
cristianismo, de uma maneira geral, está muito preso à palavra. E esse é
um mundo que conspira contra a palavra. Não tem uma questão por aí
também?
Leonardo Boff:
Exatamente. Eu acho que nós perdemos a matriz básica do cristianismo,
que é uma religião do corpo, da matéria, que “Se fez carne, matéria”.
Não se fez espírito, não se fez palavra. Palavra se fez carne. Aqui a
carne se fez palavra. [“Sem deixar de ser palavra”, interpõe-se dom
Castanho] Quer dizer, uma inversão da realidade [“Sem deixar de ser o
verbo”, interpõe-se dom Castanho]. Então eu acho que as religiões
pentecostais descobriram o corpo como a última instância. O corpo não é
um cadáver, o corpo é vivo. [“Eles descobriram a prosperidade”,
interpõe-se dom Castanho] E essa é a realidade que nós temos. Ela é
habitada pelo sopro, e o sopro é o espírito, que é o espírito do
universo, o espírito cósmico, o espírito da pessoa humana. Eles agilizam
isso, lhe dão uma aura religiosa. Eu acredito que o futuro do
cristianismo passa pela vertente carismática, pela vertente do Espírito
Santo, que ganha formas patológicas, no meu modo de ver. A Igreja
Universal do Reino de Deus é uma forma patológica desta dimensão, porque
fala mais ao bolso das pessoas…
Fernando Morais: Deixa
eu dizer uma coisa ao senhor, professor. O bispo Macedo, 20 anos atrás,
era vendedor de loteria esportiva. A Igreja Católica está fazendo 2000
anos. Há poucos meses, na cidade do Cabo, na África do Sul, no mesmo
dia, estavam o Papa João Paulo II e o bispo Macedo. O Papa João Paulo II reuniu 40 mil pessoas e o bispo Macedo reuniu 110 mil pessoas.
D. Amaury Castanho: Não corresponde à verdade.
Fernando Morais: Isso eu li nos jornais, senhor.
D. Amaury Castanho: Sim, os jornais nem sempre dizem a verdade. Eu sou jornalista também.
Fernando Morais: Eu sei que nem sempre dizem, mas até que seja desmentido… É o primeiro desmentido que eu estou ouvindo.
D. Amaury Castanho: As fotos mostravam exatamente o contrário…
Fernando Morais: Enfim,
não houve desmentido oficial, [outros falam ao mesmo tempo] ainda que
fosse o mesmo número, ainda que fosse até o inverso… Se o bispo Macedo
tivesse reunido 40 mil e o Papa
João Paulo II, 110 mil, me pareceu um número extremamente espantoso e
surpreendente. Então, eu pergunto, se este certo desdém com o que o
senhor se refere à Igreja do bispo Macedo, não seja um pouco exagerado,
os fatos não estão desmentindo isso?
Leonardo Boff: Não.
Uma coisa é a Igreja, e todo o discurso que se faz montado e bem
estratégico, outra é a comunidade que freqüenta, aquele povo que vai lá
carregado de fé, de mística. O que eu tenho é um grande respeito e eles,
nos dão duras lições que nós, católicos, devemos aprender. Que é
redescobrir o caminho da subjetividade, do profundo do ser humano...
Então, pouco importa, eu gostaria de alargar esse debate, que é a minha
posição atual, tanto faz se é Edir Macedo, se é o Papa,
são outros... Quem está alimentando hoje o fogo interior? Quem permite
ao ser humano fazer uma viagem de uma águia e não ficar como uma galinha
ciscando no chão? Digo quem por muitas fontes está sendo o conduto para
permitir ao ser humano descobrir sua transcendência. Quem não está
condenado a produzir e a consumir, como a ideologia do mercado diz, mas
que ele é mais do que tudo isso.
Fernando Morais: O senhor acha que a Igreja pentecostal está sendo mais do que ... [outros falam ao mesmo tempo]
Leonardo Boff: Eu
acho que ela faz. Eu acho que é uma das criadoras de sentido para
aqueles que são excluídos. Não existe para o governo porque eles são os
zeros econômicos; não existe para os padres porque eles moram nas
favelas e não contam para nada, mas eles têm um nome. No momento em que
eles se encontram, realizam o sentido, resgatam a humanidade mínima, que
é negado socialmente. E diz: “Eu falo diretamente com Deus”. Não é com o
prefeito, nem com o governador, nem com o presidente. “Deus”, eu falo. E
Deus me sente como filho, aqui somos como irmãos. Miseráveis, punidos
pela sociedade. Mas é um resgate de auto-estima, de humanidade, que
ninguém funda na sociedade. Então, se por um lado fazemos a crítica a
essa religião pentecostal que manipula as consciências, por outro lado,
devemos perceber a sua grande função antropológica de salvar aqueles que
não têm nome, que são destituídos, considerados mão-de-obra, nem mais
ingressando no mercado no exército de reserva, mas os descartáveis da
sociedade. Mas eles não são, são pessoas humanas. E politicamente são
importantes porque eles decidem eleições, decidem que um Collor ganhe e
não um Lula. Porque eles votam. Então, a religião encontrou um conduto
de falar a eles. Para mim é um desafio para as Igrejas históricas
redescobrir uma linguagem de chegar a eles…
Fernando Mitre: Professor, parece que a palavra mágica nessa Igreja do bispo Macedo é a prosperidade.
D. Amaury Castanho: A Teologia da Prosperidade…
Fernando Mitre:
Exatamente. Ele descobriu a prosperidade e incute a idéia de
prosperidade nos seus fiéis. E eles estão lá buscando prosperidade.
Fernando Morais: Até
porque ele bica 10% lá do óbulo [doações em dinheiro dos fiéis à
Igreja] então a prosperidade é importante para a Igreja. Prosperidade da
ovelha [“Até por isso”, interpõe-se Fernando Mitre] é importante também
para o pastor…
D. Amaury Castanho: Exatamente, a linha materialista que não corresponde ao seu livro, eu não tive ainda o prazer de ler - Brasa sob as cinzas
- mas o senhor fala em outros valores. Agora o senhor está exaltando
uma comunidade, digamos assim, evangélica, que nem mesmo os evangélicos
históricos aceitam, não é, neopentecostalis sectaris,
o senhor está valorizando exatamente aquilo que o senhor diz que existe
sob as cinzas… Essas brasas, essas aspirações, há valores superiores
maiores etc. Então há sempre uma contradição entre o que o professor
Boff diz, sempre há.
Leonardo Boff: Não,
eu acho que… Lógico, Edir Macedo e todo o grupo dele faz o discurso da
prosperidade. Se a gente analisa melhor, não é bem assim. Ele faz o
discurso que você tem direito a ter prosperidade. É um direito seu ter
casa, ter saúde, ter comida, ter o mínimo para ser humano, porque é um
direito que Deus quer a seus filhos e filhas. A sociedade nega. E aí vem
a estratégia dele. A estratégia de conseguir isso mediante um milagre.
Quer dizer, Deus vai intervir. Inclusive tem um programa chamado
Primeiro Mundo, que eu digo: “É uma receita ao Presidente da República”.
Não precisa fazer as políticas mundiais, via Mercosul, para chegar ao
Primeiro Mundo, basta confiar em Deus. Ele te introduz no Primeiro
Mundo… Lógico. Aqui não é mística, é mistificação. Quer dizer, queima as
etapas, tira fora as mediações, que é a crítica que nós fazemos a esse
tipo de "carismatismo" que faz Deus um “tapa-buraco”. Deus está ali, mas
não como um tapa-buraco.
Matinas Suzuki: Qual é a opinião do senhor sobre casamento de pessoas das mesmo sexo?
Leonardo Boff: Eu
não falaria casamento, inclusive, aqui foi votado no Brasil e não fala
de casamento. Acho que eles têm direito. E eu queria colocar antes de
falar disso...
Matinas Suzuki: [interrompe Boff] Eu falei casamento propositadamente porque estamos num programa que está falando de religião também.
Leonardo Boff: Eu
acho que primeiro tem que ser discutido o fenômeno que ocorre entre
duas pessoas do mesmo sexo, ou mesmo nos heterossexuais, que é a
experiência do amor humano. Em toda essa discussão ninguém fala do amor.
Todo mundo fala do homossexualismo - abominável, não é abominável,
acolhemos ou não acolhemos - ninguém fala da experiência do amor, que é a
coisa mais misteriosa do ser humano, à qual devemos ter o máximo
respeito, e acolher as pessoas, e que essas pessoas queiram ter
continuidade nessa experiência. Que ela pode ser defendida, para que
eles tenham uma infra-estrutura de legalidade, sobre os eventuais bens, e
aquilo que eles constroem juntos, eu acho que é do direito deles. Então
eu não quero julgar sobre o juízo, fazer um juízo moral sobre os
homossexuais. Apenas quero dizer que são pessoas humanas, que dão
testemunho que é possível um amor entre eles e que a sociedade deve se
confrontar sobre isso. Quais as formas legais de garantir a
produtividade disso…
Matinas Suzuki: E se o senhor fosse convidado a celebrar um casamento deste, o senhor celebraria?
Leonardo Boff:
Eu fui convidado várias vezes e não aceitei. E não aceitei por razões
culturais. Eu disse: “Olha, a sociedade não discutiu profundamente isso,
eu acho que não é uma questão de alguém do PT em Brasília formular uma
lei, que vem de cima a baixo. Não. Eu acho que tem que ser discutido na
sociedade, na mídia… Criar uma cultura da alteridade, da reflexão ética
sobre isso, e de tal maneira que ela culmine numa lei. Então digo, não
há isso. Fazer um casamento, uma celebração seria escandalizar as
pessoas, a religião não é feita para isso. Apenas quero dizer a vocês:
“Vocês procurem ser fiéis entre vocês, transparentes na vossa relação,
porque Deus não está ausente disso. Que essa presença pode ser
simbolizada num rito, vocês podem criar isso, mas não sou eu que vou
fazer isso”.
D. Amaury Castanho: Leonardo, parece-me que nas suas colocações há uma ligeira confusão entre amor e sexo…
Leonardo Boff: Você me parece um bom discípulo do Ratzinger, decide o que é certo e o que é errado…
D. Amaury Castanho: E
entre paixão e amor. Eu li uma definição de diferença entre amor e
paixão e chegaram a 32 diferenças. Eu não acredito que haja muito amor
na união de dois homossexuais...
Leonardo Boff: Por que discutir isso, dom Amaury?
D. Amaury Castanho: Eu
acho que é uma busca de sexo. Eu acho que é um direito, que eles podem
fazer esta opção. Mas há mais busca de sexo… Para mim o amor é um
conceito muito mais elevado…
Leonardo Boff:
Não vamos ofender os homossexuais, inclusive aqueles que estão dentro
da Igreja, que são até padres, não vamos ofendê-los. Vamos acolher com
confiança, com respeito…
D. Amaury Castanho: Não, não é ofender, é só uma... É uma situação real.
Leonardo Boff: “É
só busca de sexo”. Não é só busca de sexo, primeiro porque sexo nunca é
sexo só. O sexo é o investimento da libido, da totalidade da pessoa
humana, é uma visão muito pequena, menor, imaginar que sexo é troca de
órgãos. Não é.
Mário Simas: Professor,
o senhor me parece sempre muito otimista com relação ao ser humano,
vendo sempre só o lado bom. Qual o seu pensamento acerca do pecado? Não
como estrutura de pecado, que é um conceito caro a qualquer projeto de
interpretação, mas o pecado pessoal. Existe o pecado pessoal? Não
existe? O que ele é?
Leonardo Boff: Olha, eu sempre assinava todos meus documentos do Ratzinger, que é quase uma biblioteca de cartas, idas e vindas, e eu irritava muito a eles. Eu sempre escrevia: “Leonardo Boff, Frater teologus minus et pecato
e pecador”. “Irmão, Frater, irmão, teólogo menor, então frade menor,
teólogo menor, e pecador”. O cardeal dizia: “Como pecador?”. Eu digo:
“Eu sou pecador, cardeal, o senhor não é? Me admira que o senhor não
reconheça isso”. “Mas você escreve?”. Digo: “Lógico que escrevo, mil
vezes, sou pecador mesmo”. Então eu acho que há uma dimensão de pecado,
sim, que é a obstinação, e não querer crescer, não querer ouvir o outro,
não escutar os apelos profundos da sua interioridade. Não ouvir a
palavra o suficiente que ecoe mil ecos, que é a palavra do mistério do
divino. Eu acho que toda… Para mim, eu diria: “Pecar é o quê”? É não
querer crescer. É querer se fossilizar, se assentar em uma posição. E
nós somos chamados a nos transformar continuamente, a crescer, a
interagir, dia a dia fazendo isso como um processo constante de nossa
personalidade. E temos a outra tendência, de sentar-nos, de fechar-nos,
celebrar nossos louros… Eu acho que esta atitude para mim é pecado.
Fernando Mitre: Quer dizer, que a idéia dos sete pecados capitais, pecado mortal, pecado venal, o senhor superou isso tudo? Isso não...
Leonardo Boff:
Não. Eu acho que tem graduações de empenho da personalidade nessas
atitudes. Algumas mais aferradas, outras mais leves, outras mais ligados
à materialidade do ser humano, só comida; alguém pode ser um grande
pecador espiritualmente: devorando aquele mundo intelectual, mas não
cuidando da sua mulher e de seus filhos, ou de sua própria saúde. Quer
dizer, é mil formas de a pessoa perder o seu centro, perder o seu
caminho do meio. Pecado é sempre a queda deste caminho do meio.
Mateus Soares de Azevedo:
E o seu pecado principal… Fazendo uma avaliação fria, objetiva, de sua
própria personalidade, qual que o senhor acha que é o principal pecado
em que o senhor incorre?
Leonardo Boff: Eu faria isso diante de um padre, diante de Deus, não faria isso…[risos; vários comentários simultâneos]
Mateus Soares de Azevedo: Mas é interessante. Aí o senhor se reporta novamente à autoridade da Igreja?
Leonardo Boff:
Não, eu não me reporto à autoridade nenhuma, eu me reporto a Deus, eu
quero me recusar a me confessar diante de um jornalista, apenas isso…
[risos] Me admiro da ousadia sua… Me admiro que um jornalista tenha a
ousadia de fazer tal pergunta…
[?]: Não, mas, o senhor falou que é um pecador, e a gente ficou curioso... [vários falam ao mesmo tempo]
D. Amaury Castanho:
Professor Boff, uma pergunta. O conceito que o senhor deu de pecado é
um conceito muito discutível, é não crescer. Eu sempre ouvi dizer que o
conceito principal é a ruptura da comunhão do homem com Deus, com o seu
irmão e até com a natureza…
Leonardo Boff: Mas como é que se faz isso, dom Castanho, concretize isso…
D. Amaury Castanho:
Ruptura, ruptura. É a minha comunhão a Deus que me pede para dizer um
sim. Eu excluo, eu excluo o meu irmão, e é claro, isso tudo redunda em
um crescimento pessoal. Mas o senhor valorizou o crescimento pessoal
como o essencial no pecado. E, para mim, o pecado é, acima de tudo,
ruptura da comunhão do homem com Deus, com seus irmãos e com a natureza.
Leonardo Boff:
[interpõe-se à fala de dom Castanho] Isto é muito abstrato. Em todos os
manuais está escrito isso. Isso não é uma experiência pessoal.
D. Amaury Castanho: Com essa natureza que era tão encantadora para São Francisco e para a sua pessoa.
Matinas Suzuki: O Rinaldo Gama e depois o frei, os dois estão pedindo faz tempo...
Rinaldo Gama: Por
falar em pecado, e pecado contra a natureza, o senhor… Falou-se aqui na
sua militância mais incisiva, nos últimos anos, em relação à ecologia. O
senhor tem trabalhado muito, em uma tentativa de unir, o que o senhor
chama até de Ecologia da Libertação. Eu queria saber qual é a sua
opinião diante de denúncias que vêm sendo feitas, por exemplo, de um
jornalista da Islândia, chamado Magnus Gudmundsson, contra o Greenpeace. Ele acusa o Greenpeace de ter dezenas de contas secretas, milhões de dólares escondidos, de
subornar deputados, subornar lideranças e pessoas assim. Como é que o
militante ecológico brasileiro, enfim, de qualquer parte do mundo,
interessado em defender a natureza deve agir diante de uma denúncia como
esta. O principal órgão de divulgação, de defesa do meio- ambiente é
acusado de corrupção e de práticas pouco elogiáveis.
Leonardo Boff: Eu fico surpreso com este tipo de acusação e eu exigiria as provas primeiramente. Porque não é por esse título que o Greenpeace
é conhecido no mundo. Pelo contrário, o risco de vida das pessoas que
vão e enfrentam os lugares onde vai ser lançada a bomba, entram nas
florestas, quer dizer, o empenho deles de salvaguarda da vida e da
integração da criação é fantástica. Agora, não é sobre isso que eu
queria discutir, eu acho que é a questão da ecologia. E, aliás, quero
dizer um pouco antes... Lógico, todo mundo aqui criou aquela imagem,
talvez o meio não seja auto-culpado disso, de que a minha dimensão é
mais de libertação e mais de política… Eu diria não, a parte mais
profunda minha não é nada disso. A parte da mística mesmo, que é onde eu
tenho mais trabalhado, e quem conhece minha obra sabe disso. O autor
que mais escreveu sobre espiritualidade, neste país, fui eu. Livros
diretos de espiritualidade, de experiência de Deus, de comentários do
Padre Nosso, da Ave Maria, [dom Castanho comenta: “Não foi o João [?],
não?] e como experimentar Deus hoje. Uma infinidade… Eu diria que, dos
meus 50 livros, mais da metade é estritamente espiritualidade. Durante
anos, e continuo me dedicando ao estudo dos místicos. Mantive agora um
seminário na pós-graduação da universidade sobre mística e filosofia,
traduzi a obra do mestre Eckhart, que é o maior místico do ocidente, que
tem várias edições já nesse país. Continuo preparando estes textos e de
outros místicos. Há uma dimensão profunda, donde nasceu a Teologia da
Libertação, e aqui é bom que a gente diga o escândalo que esta ideologia
faz. É o meu conflito de base com o Vaticano, porque o Vaticano também é
a favor dos pobres, mas de uma forma caritativa. Nós o somos por causa
da Santíssima Trindade [“Não é exato”, interpõe-se dom Castanho], por
causa da teologia. Porque nós mostramos um elo fundamental entre o Deus
da vida, os pobres e a libertação. O elo comum é: Deus todo poderoso, os
ricos e os poderosos do mundo, e aí a caridade e a beneficência…
Fernando Mitre: Professor, desculpe. Mas há algumas encíclicas fundamentais, históricas que vão muito além da caridade…
D. Amaury Castanho: Bem anteriores ao nascimento dele, bem anteriores.
Fernando Mitre: Desde a Rerum Novarum [significa "Das Coisas Novas", é uma encíclica escrita pelo Papa Leão XIII, em 15 de Maio de 1891, a todos os bispos, debatendo sobre as condições das classes trabalhadoras], a Mater et Magistra [encíclica escrita pelo PapaJoão XXIII em 15 de maio de 1961, cujo tema é: Questão social à luz da Doutrina Cristã]
Leonardo Boff: Mitre,
analisa essas encíclicas. O fundo delas termina sempre num discurso
moral. Nunca é um discurso que pudesse, analiticamente, analisar o
capitalismo, o socialismo, [Mitre e dom Castanho falam ao mesmo tempo] e
aí as medidas políticas. Então, na parte moral ninguém é contra, é
fácil. Por isso que tem pouca aplicabilidade às questões sociais, por
quê? Porque é o discurso moral. Nós queremos o discurso da mediação, que
ajude aos caminhos políticos de superar a pobreza. Porque é fácil
condenar a pobreza. Nós queremos superar historicamente a pobreza…
D. Amaury Castanho: Leonardo, posso lhe fazer uma pergunta?
Leonardo Boff: Não. Eu gostaria que o Matinas Suzuki, que dirige…
Matinas Suzuki: Ele está dizendo que é a última…[vários falam ao mesmo tempo]
D. Amaury Castanho: Primeiro.
Nunca foi condenada a Teologia da Libertação, mas a Teologia da
Libertação que o senhor, e outros teólogos da libertação da América
Latina e do Brasil, especialmente, sempre proclamaram, pregaram,
trabalharam em função dela. Isto é, uma Teologia da Libertação de corte
marxista, de corte marxista.
Leonardo Boff: Eu recebi uma carta pessoal do Papa,
quando eu rompi o silêncio dizendo: “Com essa atitude podemos fazer uma
boa Teologia da Libertação”. Então não venha me dizer que nós fomos
condenados. Pela sua palavra, mas não pelo Papa.
D. Amaury Castanho: Não, há muitas teologias da libertação…
Leonardo Boff: Mas, o senhor disse que a minha foi condenada, não foi até hoje, dom Amaury, não foi.
D. Amaury Castanho: A
Teologia da Libertação que foi condenada é Teologia da Libertação que
faz uma análise marxista a partir de categorias marxistas da realidade,
não evangélicas. Em segundo lugar, aponta a luta de classe, a guerrilha,
o terrorismo…
Leonardo Boff: E aonde que encontra essa? Na cabeça de vocês… Se condenou ao imaginário, à fantasia, e não os teólogos concretos.
D. Amaury Castanho: Como? Como em nossa cabeça? Camilo Torres não subiu com um fuzil… Não deixou o seu sacerdócio para fugir…
Leonardo Boff: Camilo Torres morreu antes da Teologia da Libertação, não tinha nem nascido ainda…
Matinas Suzuki: Dom Amaury, o senhor tinha uma pergunta a fazer...
D. Amaury Castanho: Bom, a pergunta é esta: se já não se esgotou a mensagem da Teologia da Libertação?
***** Leonardo Boff: Oxalá
se tivesse esgotado… [“Há 10 anos, acho que já se esgotou”, interpõe-se
dom Castanho] Se não houvesse mais pobres no mundo… Dom Amaury diz:
“Todos estão salvos, felizes, com casa, comida e medicina”. [Mas isso
Cristo que disse que “pobres sempre tereis entre vós”, interpõe-se dom
Castanho] Então seríamos felizes… O que eu quero é que se acabe a
Teologia da Libertação, na medida em que se acabe com a pobreza no
mundo.
D. Amaury Castanho: Eu não quero a miséria, mas “pobres sempre tereis entre vós”, é a palavra de Cristo. Há uma diferença entre miseráveis e pobres.
Leonardo Boff: Mas
pensa logo adiante, dom Amaury, seja coerente. “Tereis sempre”...
Portanto, estendam sempre a mão, sejam generosos… Não é para dizer:
“Pobres que sejam vocês, que se danem os pobres”. Pelo contrário, sejam
sempre generosos, para que não haja pobres no mundo.
Fernando Morais: Frei
Leonardo, numa das entrevistas que o senhor deu, o senhor conta que é
devoto de Santa Xênia, uma santa canonizada há pouco tempo [“Eu assisti à
canonização dela em [?], confirma Boff] da Igreja ortodoxa. E o senhor
conta inclusive um episódio curioso que o senhor perdeu seu passaporte
em Moscou, e rezou para Santo Antônio, o passaporte não apareceu, rezou
para a Santa Xênia, e apareceu a tempo do senhor embarcar. Eu queria
saber o seguinte, na hora que o senhor estava lá na fogueira do Santo
Ofício se a Santa Xênia não estendeu a mão para o senhor não?
Leonardo Boff: É que ela não tinha sido canonizada ainda, ela foi canonizada em 89.
Fernando Mitre:
Eu queria aproveitar, e perguntar ao professor também, qual a idéia que
ele tem de milagre, como que ele encara esta questão do milagre?
Leonardo Boff: Olha,
Mitre, eu acho o maior milagre nós estarmos aqui e podermos conversar,
sabe? O maior milagre é a vida, é uma borboleta estar voando aqui,
milagre. Como vamos explicar isso? A conjunção, a sinergia de todos
estes fatores que permitem esta realidade. O problema é que nós
reservamos o milagre a algo extraordinário, que é feito de uma forma,
que é quase mágico. Eu digo não. Se nós olharmos como a física quântica
vê, dos campos energéticos, os milhares de fatores que entram para que
os fenômenos se realizem e nós podermos estar aqui. O universo é uma
feira de milagres. E eu não me canso de admirar. E seria trágico para
nós aqui se tivéssemos expulso essa borboleta ou matado a ela porque
iria estragar o nosso programa. Não, ela foi convidada. Ela é o espírito
que está aqui, que paira entre todos nós. Ela pertence ao nosso círculo
hermético, isso é o grande milagre.
Mateus Soares de Azevedo:
Eu gostaria de voltar a essa questão da pobreza, que tinha sido
levantada aqui… Quer dizer que Jesus fez uma série de milagres. Ele fez o
morto ressuscitar, ele fez o cego ver, ele fez o surdo escutar. Mas,
ele nunca fez um pobre deixar de ser pobre, nunca transformou um pobre
em um rico. Além disso, ele disse que também pobre sempre haverá. Então,
isso não é uma contradição entre o ensinamento original de Jesus e o
que o senhor prega, que a Teologia da Libertação prega?
Leonardo Boff: Não.
Nós pregamos a velha doutrina da Igreja, que diz: “Nem pobreza, nem
riqueza, mas justiça”. Justiça que é participação, dignidade nas pessoas
humanas. Por isso, nos Atos dos Apóstolos, quando se diz que os
cristãos distribuíam tudo entre eles, e aí se diz pelo louvor da
comunidade, “E não havia pobres entre eles”. Porque todo mundo tinha o
suficiente. Então o projeto nosso não é riqueza, nem sacralizar a
pobreza. É a justiça onde todos possam participar dos bens criados pelo
trabalho e pela cultura, pela técnica humana, este é o projeto.
Frei Vitorio Mazzuco:
Eu gostaria de lembrar aqui um pensamento do Kierkgaard, um filósofo
dinamarquês, quando ele diz: “Quando eu realizo um ato de amor na Terra,
acontece um terremoto em Marte”. Quer dizer, um ato de amor envolve as
estruturas, envolve a vida, envolve o cosmo. Por ser editor e ex-aluno,
conheço bastante a obra de Leonardo. E, antes, nós falávamos aqui de
pecado. E eu percebi, pelo debate, que muitas vezes nós reduzimos a
questão do pecado à questão pessoal, a tal ponto que nós ajuntamos aqui a
questão da homossexualidade, a questão da afetividade, do amor entre
pessoas. O cristianismo, Leonardo defende isso, não é a religião do
sexto mandamento, é a religião do primeiro. Amar intensamente. Pecado é
não amar intensamente, apaixonadamente. Os apaixonados são criadores,
criativos. Agora, claro que as nossas omissões, nossa incapacidade de
amar é que não move o mundo. Ou talvez nós matássemos a borboleta voando
aqui. Existe um pecado que atinge as estruturas, e esse é um ponto
aonde a teologia que o Leonardo sempre defendeu, fez e vivenciou, é
realmente destacar o pecado das estruturas. Quer dizer, uma omissão pode
realmente abalar o mundo, que é a questão da pobreza, a pobreza
produzida, o desnível social…
Fernando Mitre: Aí é um pecado coletivo?
Frei Vitório Mazzuco: O
pecado estrutural. É isso que eu queria que o Leonardo falasse um pouco
sobre esta questão do pecado das estruturas, que ao meu ver, é muito
mais forte. Nós estamos perdendo muito tempo com a questão pessoal,
quando a estrutura é opressora e muito mais pecadora…
Leonardo Boff: É.
Eu considero, por exemplo, a política neoliberal como um grande pecado
social. Porque ela supõe uma humanidade menor do que a realmente
existente, um Brasil menor. E funciona para 80 milhões de brasileiros. E
para uma humanidade calculada em 2,5 bilhões, ele funciona. Agora, nós
somos 5,6 bilhões e 150 milhões de brasileiros, não são só
marginalizados, são excluídos, não contam. Na planificação de saúde, de
escola, de moradia, eles não entram, são zeros econômicos. Então esta
lógica que é férrea do sistema, que toma até o empresário de boa
vontade, ético, mas está coagido por esta lógica. E se ele não faz isso,
ele é expelido do mercado, ele vai à falência. Então, eu acho que é
essa mecânica que nos leva a questionar: qual é a centralidade que este
sistema tem com a vida humana? Com as carências humanas ou com as
carências do mercado? Qual é a lógica e a ética desta produção de bens
materiais? Eles se destinam a quê? Ao lucro ou atender a vida, não só a
vida humana, mas das plantas, das árvores e dos animais. Eu acho que
essa questão, ela tem que ser pensada em termos, não só éticos, ou
julgar isso, mas em termos políticos, como gestar políticas que geram
vida, mas para todo mundo, que preservem este planeta, que está
ameaçado. Porque nós criamos a máquina de morte que pode destruir tudo.
Então, não podemos mais ser ingênuos. Temos que assumir posições
políticas fundamentais se queremos garantir um futuro para o planeta e
as condições para o ser humano poder continuar a desenvolver-se.
Fernando Mitre: Professor,
quer dizer que o senhor não vê nenhuma virtude nesta política de
estabilidade monetária, privatizações, ataque aos problemas sociais…
Leonardo Boff: Eu estou falando de estruturas…
Fernando Mitre: Sim, mas em nível de política no Brasil? O senhor não vê nenhuma virtude nisso?
Leonardo Boff:
Não, lógico. Há coisas importantes. Eu estou falando do esqueleto, não
estou falando do olho e da cabeça. Esqueleto. Eu acho que o esqueleto
está mal montado. E por isso as políticas… Não basta ter só políticas de
estabilidade, porque você congela a miséria. O que está ocorrendo neste
país… Eu mexo com favela ainda, continuo trabalhando na favela na
Baixada Fluminense, criamos um grupo chamado TAO, Teologia Assessoria
Orgânica, que fez uma opção de atender os mais pobres dos pobres dos
cursinhos de toda teologia, de toda a ordem, nós fazemos. E o povo está
comendo tudo que se mexe. Não existem, em algumas regiões do Rio,
cachorro e gato, foi tudo comido. Nunca eu vi tanta fome neste país como
agora. E o discurso oficial é que há modernização, que tudo é
fantástico. E eu digo, não basta uma política com uma moeda. Tem que ter
uma política social. O Brasil não é só moeda. Atrelado à moeda externa,
que nem nossa é, e nós estamos dependendo das suas circunvoluções?
Então eu acho que é importante a estabilidade, nós podemos calcular. Mas
não basta, é o patamar mínimo para fazer políticas sociais
fundamentais.
Matinas Suzuki: Professor
Boff, nós tivemos no final do ano passado, uma reunião do PT, com as
principais correntes, que fez uma reavaliação dos caminhos do PT e de
mudanças que o partido teria que fazer face aos chamados novos tempos
aí. O senhor hoje, olhando o caminho passado, da Teologia da Libertação,
da sua luta e do seu trabalho, que pontos o senhor acha que foram ou
mal colocados ou que há alguma revisão a ser feita, alguma coisa que o
senhor acha que poderia ter sido feita de outra maneira?
Leonardo Boff:
Isso os nossos inimigos sabem melhor do que nós. Então eu daria a
palavra a eles para dizer sobre isso… Olha eu acho que nós estamos em um
processo, onde há aprendizado, há erros, e a gente aprende com os
erros. E há acertos. Eu acho que a linha fundamental nós acertamos, é
nessa direção. Pode ter pedras, a estrada sobe e desce, pode ter viés.
Mas da direção eu estou profundamente convencido. Não é só a direção
para o Brasil, eu acho que é uma direção para a humanidade, se nós
queremos coletivamente sobreviver, nós temos que socializar os nossos
bens, a nossa cultura, o nosso dinheiro, a natureza, se não nós vamos
destruindo isso. Um último livro, fantástico, que é uma denúncia
mundial, deste grande cosmólogo norte-americano Carl Sagan, O pálido ponto azul.
Chama a atenção – nós criamos o princípio de destruição. E o cenário é o
caminho dos dinossauros. Ou nós paramos agora ou no ano de 2034 a Terra
toda não será mais sustentável. Vamos de encontro a catástrofes
fantásticas. Então, onde os políticos têm esta consciência? Ele faz um
apelo às pessoas religiosas, que a religião incentiva a veneração, o
respeito, a sacralidade, o respeito à natureza, às alteridades. Essa
atitude nós devemos assumi-la, então, as religiões e eu assumo isso como
um profundo engajamento pessoal. Alimentar esse fogo. Porque só quando
temos essa veneração, essa sacralidade, nós respeitamos e não
manipulamos, não entramos na lógica destrutiva, mas na lógica da
sinergética de proteger, incluir e aí salvaguardar. E nesse sentido eu
acho que nós estamos do lado certo.
Mário Simas: Professor.
São Paulo, a Arquidiocese de São Paulo, uma ponta de lança aí dessa
Igreja mais progressista, mobilizou comunidades de base, a comunidade
organizada ali em torno da Igreja, de padres progressistas. A partir da
ofensiva do Vaticano, todo este trabalho reflui. A arquidiocese é
dividida, sua base deixa de existir, várias comunidades de base deixam
de existir e essa comunidade fica perdida. Lotam aí as Igrejas do Edir
Macedo e tudo mais. Voltam para a Igreja Católica na busca do rito. Quer
dizer, o sujeito que freqüenta a Igreja do Edir Macedo, mas que vai
casar na Igreja Católica, vai batizar seu filho na Igreja Católica. O
que houve nesses mais de vinte anos de Igreja progressista da periferia,
que a cabeça das pessoas não conseguiu caminhar sem a presença dela
ali?
Leonardo Boff:
Eu diria duas coisas, Mário. Eu acho que uma das coisas mais perplexas e
lamentáveis foi a política deste atual pontificado de enquadrar todas
as Igrejas, e o efeito final foi matar o horizonte da esperança. Nós
podemos perder a fé e viver, mas não podemos perder a esperança. O que
eu vejo em muitas comunidades é que não têm mais esperança. Eu digo:
“Não pode ser”. E elas perdoam o Papa e dizem: “Coitado do Papa,
talvez mal assessorado, mas ele constrói no canteiro de lá, nós
construímos aqui, ele não nos entende”. E, apesar disso, continuam
trabalhando, mas não contam com o apoio lá do Vaticano, nem de altas
instâncias da CNBB. Eu acho que essa política desestruturou a Igreja do
Brasil, era uma Igreja de jovialidade, de promessas, de alegria, e hoje é
uma Igreja que tem muita amargura, muito dividida. Isso é um lado. O
segundo lado, eu acho que as comunidades, e talvez foi um problema da
pedagogia, de nós termos criado mais autonomia a ela. De poderem ter
força de enfrentar crises ao nível da hierarquia da Igreja, da ruptura e
abandono de muitos bispos, que eles não apoiam muito as comunidades,
mas apóiam os movimentos carismáticos, de elas poderem andar com as suas
próprias pernas. Muitas delas andam, se sentem órfãos, mas é doloroso,
porque a Igreja não é só uma hierarquia, não é só um poder. É uma
dimensão simbólica. Eu queria ter dito isso antes ao dom Amaury. A
Igreja é uma categoria sacramental, simbólica, a minha grande decepção
lá com o Ratzinger,
eu disse isso a ele no Vaticano, que eles não são só poder, eles são o
símbolo de referência da unidade. Minha dor profunda é que eles sabem
mentir e mentem. Eu pude mostrar isso: “Cardeal, aqui o senhor está
mentindo”. “É o jornalista que também induz a gente a não dizer toda a
verdade”. E eu digo: ”Então o senhor disse uma coisa que é mentira”.
“Não, então vamos fazer um desmentido”. Como que é o desmentido? Pontualizacione sui caso boni.
Não diz desmentido. Diz pontualizações, clarificações… Tem que dizer:
“Nós comunicamos algo que não foi verdadeiro”. E ele disse isso: “Nós
não chamamos o padre Leonardo Boff aqui”. “Ele veio espontaneamente
querendo um diálogo comigo…”. Digo: “Não, senhor, o senhor me convocou, o
processo judicial, a carta está aqui. Ou o senhor desmente ou eu não
apareço para o julgamento”. Então ele diz: “Então está certo. Vamos
desmentir”. Quer dizer, a decepção é que essas instâncias não só
simbólicas, são também diabólicas. Elas manejam com aquilo que não é a
verdade. Então na Igreja tem tudo isso. Mas, nem por isso, eu rejeito
essa realidade, que vem lá do tempo de Jesus, porque a Igreja é mais do
que essa Igreja de hoje. É São Francisco, é São Domingos, é Dom Bosco, é
João XXIII. Tudo isso é Igreja. E nós devemos conviver com suas
neuroses, as rugas que essa mãe tem. Mas vou dizer essas rugas podem ser
mudadas. E a luta de uma teologia crítica é ajudar a Igreja a se auto
superar, a ser mais aberta à experiência religiosa da humanidade, não só
de quem vive no ocidente, que está enquadrado nessa forma paroquial de
viver a fé. Eu digo não. O sonho de Jesus é muito mais amplo. Ele foi
enviado à humanidade e não foi enviado à Igreja. Deus amou o mundo,
enviou Jesus, não amou à Igreja e enviou Jesus Cristo.
Matinas Suzuki:
Professor Boff, nós estamos chegando ao final de nosso programa, eu
gostaria de fazer uma última pergunta. O que mudou na sua vida no fato
de estar convivendo mais proximamente com uma parceira, com uma
companheira?
Leonardo Boff: Olha,
em termos substanciais, Matinas, e digamos, na minha… Deixa eu não usar
o dialeto nosso… No ministério teológico, da palavra, da escritura, do
encontro, não mudou nada. Continuo fazendo o que sempre fiz, e é aquilo
que eu disse. Eu mudo para continuar o mesmo. E acho que pretendo
continuar o mesmo. Agora, tem uma experiência mais concreta, de você
viver em uma família, de arrumar a tua cama, de fazer a tua feira, de
saber quanto dinheiro você tem quando chega o final do mês. E todos
aqueles que você apóia nas comunidades, que você ajudava lá, para ter
quadros… Como vou manter os quadros com o dinheiro do bolso da gente,
das palestras, do trabalho suado da gente, e vamos manter porque a
solidariedade da Igreja da base… isso continua. Então é muito mais
concreto. Eu descobri uma coisa fantástica, que no convento eles não
sabem. Que há muito mais santidade no mundo. Em jornalistas como vocês,
em trabalhadores, em gente humilde lá embaixo, que segue dia a dia o seu
trabalho, transparente. Onde há uma presença de Deus que não se fala em
nome de Deus. Que são pessoas comprometidas, não porque o evangelho
manda, porque são humanitários, então não precisam usar o discurso
religioso para fundar uma estatura humana profunda. Então é uma
descoberta: que Deus está solto. Ele não está preso às malhas do
discurso religioso. E eu procuro incentivar isso com a minha prática,
com a minha própria vida, com a minha escritura, com a minha atividade
na sociedade civil. Então isso mudou. Eu acho que, se alguém me diz: “Eu
quero ser santo”. E eu digo: “Vá para uma família, case!”. Não vá para o
convento. É muito mais difícil ser fiel, crescer junto na diferença
homem-mulher, com os filhos - que, no caso, nem meus são - mas conviver
com eles, vê-los crescer. Levar avante uma família aberta, em diálogo
com outras. Crescer com a sociedade com espírito de… É um grande
exercício de virtudes. Eu acho que o cristianismo deveria ser mais
secular para ser mais verdadeiro, mais radical, mais seminal.
Matinas Suzuki:
Eu agradeço muito a sua presença aqui esta noite, agradeço bastante a
nossa bancada de entrevistadores. Eu acredito que este programa, espero,
tenha contribuído para que a gente continue no caminho democrático na
sociedade brasileira. Tivemos aqui posições conflitantes, mas esse é o
caminho do Roda Viva, e esse é o caminho de uma sociedade democrática e aberta. Eu gostaria muito de agradecer a sua atenção e lembrar que o Roda Viva volta na segunda-feira, sempre às 10:30 da noite. Até lá. Boa noite e uma boa semana para todos.