sábado, 6 de agosto de 2011

Debussy / Peter Frankl, 1963: Nocturne



Os Noturnos de Debussy são feitos para ninar as fugas nos sonhos - eu uso as Noites para libertar-me das amarras do dia e vagar, dançar ,ver e interferir na mente planetária . Doidice?Não, é minha hora de Liberdade e a desfruto brincando no invisível, deixando ali por onde passar a minha marca que o Sol depois revela ...sela e faz acontecer!

Enviado por em 06/08/2011

From the collection you see above, issued in 1963 on the Vox label, catalogue number VBX 433. The music you hear is from the 45 year old vinyl LP, not a CD, which is why you may hear some background noises.

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sexta-feira, 5 de agosto de 2011

A MORTE DE DEUS E A IDEALIZAÇÃO DO HOMEM SEGUNDO NIETZSCHE



A MORTE DE DEUS E A IDEALIZAÇÃO DO HOMEM SEGUNDO A ÓTICA MORAL DE FRIEDRICH NIETZSCHE*

EDUARDO RIZZATTI SALOMÃO** 
RESUMO
Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900) é um dos filósofos contemporâneos que mais suscita discussões na atualidade. Concentrando nosso tema na crítica de Nietzsche ao cristianismo, temos por objetivo principal apresentar o seu pensamento acerca da religião cristã – incluindo, primeiramente, a sua crítica à filosofia, à razão e à moral – e confrontá-lo com algumas produções filosóficas que questionem e discorram acerca de suas premissas e conclusões, propondo, num desafio à obra do filósofo, que a sua constatada “morte de Deus”, e o seu anúncio a um novo tipo de homem, o sobre-homem, não nos oferecem um questionamento eficaz ao teísmo e aos pressupostos filosóficos cristãos, sendo mais válidos como denúncia do que como suporte a uma nova filosofia.
Palavras-chave: razão, moral, verdade, morte de Deus.
LISTA DE ABREVIATURAS
ABM – Além do Bem e do Mal; GM – Genealogia da Moral; e GC – Gaia Ciência.

1. INTRODUÇÃO

Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900) é um dos filósofos contemporâneos que mais suscita discussões na atualidade. Suas obras discorrem sobre arte, educação, estética, moral, política, religião, sexualidade, entre outros temas, permitindo uma igualmente variada gama de debates em torno de sua produção intelectual, assuntos que não são de domínio exclusivo da Filosofia, mas ocorrendo em campos variados, como a Educação e a Psicanálise, para não estendermos a lista, o que revela senão a atualidade do seu pensamento, o seu alcance e diversidade.

A força de sua poesia e de sua prosa também foram, durante décadas, questionadas pela sua ênfase a máximas e conclusões pretensamente antidemocráticas e racistas, sendo inclusive apontadas como instigadoras do nacional-socialismo alemão.

Tal percepção fora fruto, segundo a nossa ótica, de erros de interpretação, mistificações e falsificações que envolveram o seu pensamento, e não tanto por culpa daqueles que se equivocaram em seus julgamentos com base em textos e publicações duvidosas, a exemplo do livro Vontade de Potência, surgido da reunião de anotações do filósofo, sob a coordenação de sua irmã, Elizabeth Foster Nietzsche (organizadora do Arquivo Nietzsche, em Weimar), a qual dera um tom anti-semita e nacionalista não existente no projeto original (cf. prefácio a Obras incompletas, 2000, pp. 13-15).

Não impedindo, indiferentemente da intenção dos intérpretes, obviamente, que esses equívocos contribuíssem para que Nietzsche recebesse a alcunha de racista, defensor do nacionalismo militarista e expansionista, entre outras colocações que deturparam suas idéias, a exemplo da apropriação do seu sobre-homem (Übermensch), e das suas críticas à moral, à razão e à religião, em prol do projeto da ultradireita alemã. Mas como ignorar a contestação a essas afirmações, se o próprio Nietzsche – já falecido quando dessa hedionda apropriação de sua filosofia – dá a resposta antecipada aos futuros deturpadores de seu pensamento:

[...] tampouco me agradam esses novos especuladores em idealismo, os anti-semitas, que hoje reviram os olhos de modo cristão-ariano-homem-de-bem, e, através do abuso exasperante do mais barato meio de agitação, a afetação moral, buscam incitar o gado de chifres que está no povo [...] (GM, terceira dissertação, § 26, p 145). 

Ou no aforismo: Máxima: não manter relações pessoais com nenhum homem que participe do enganoso delírio racista. (Quanto engodo e esgoto é preciso haver para, no atual entremesclamento europeu, fomentar e fermentar questões raciais!)
(Fragmentos Finais, § 5 (52), p 33). 

Obviamente que se reconhece em suas obras uma aguda crítica à democracia e ao socialismo -numa veemente recusa à valorização do “comum” em contraste com o nobre, o aristocrático – mas uma crítica correlatamente dirigida ao totalitarismo de direita, e sobretudo encontramos uma manifesta aversão e repúdio à crença da servidão do homem ao Estado:

[...] estamos sofrendo as conseqüências das doutrinas pregadas ultimamente por todos os lados, segundo as quais o Estado é o mais alto fim do homem, e, assim, não há mais elevado fim do que servi-lo. Considero tal fato não um retrocesso ao paganismo mas um retrocesso à estupidez. (Considerações Extemporâneas. Apud.: Prefácio a Obras Incompletas, 2000, p.14)

 Crítica também encontrada no seu poético Assim falou Zaratustra (1883), quando do encontro de Zaratustra com o “cão do fogo”, passagem na qual ele incluiu um ataque à Igreja, quase que num prenúncio a sua pregação contra as instituições religiosas e aos valores cristãos que inspiraram o seu O Anticristo (1888) e O Crepúsculo dos Ídolos (1889) : “Igreja – respondi – é uma espécie de Estado, e a espécie mais enganosa. [...] O Estado é um cão hipócrita como tu; como a ti, agrada-lhe falar fumegando e uivando, para fazer crer, como tu, que fala saindo das entranhas das coisas.” (Assim falou Zaratustra, segunda parte, p. 109).

Mas, querer incluir Nietzsche no debate dos prós e contras dos sistemas de governo, da política enquanto manifestação do posicionamento à esquerda ou à direita – como querem as correntes políticas que buscam em suas obras afirmações que lhe são simpáticas – é no mínimo nublar o propósito das obras do filósofo, para não dizer uma total incapacidade de compreensão do seu pensamento, que via acima de tudo o imperativo do homem buscar a sua superação na recusa de uma moral que, segundo Nietzsche, o asfixia, condenando-o à resignação que impede a sua ascensão a um homem “supra” ou “sobre-humano”, sendo um homem para o homem, um homem em si e para si, acima da submissão ao Estado.

Aqui Nietzsche faz, inclusive, uma menção crítica ao contratualismo de Rousseau e Hobbes, expressa na sua obra Genealogia da Moral (1887), quando de sua exaltação das “bestas louras”, raça de “conquistadores e senhores”, que deram ensejo ao nascimento do “Estado”: “Quem pode dar ordens, quem por natureza é “senhor”, quem é violento em atos e gestos – que tem a ver com contratos!” (GM, segunda dissertação, § 17, p. 75).

Na atualidade, superado os equívocos que o vinculavam ao projeto nacional-socialista alemão, sua produção intelectual tem reacendido debates acerca da crítica à modernidade e ao racionalismo conceitual, entre outras temáticas, gerando novas possibilidades interpretativas sobre suas obras. E nesse sentido, o de discutir sua produção intelectual e os problemas por ela abordados, respeitando-se as limitações inerentes ao conteúdo e ao objetivo acadêmico dessa monografia, abordaremos o tema A Morte de Deus e a Idealização do Homem segundo a ótica moral de Friedrich Nietzsche, título que por si só revela alguns dos assuntos a serem abordados.

Concentrando nossa proposta na crítica de Nietzsche ao cristianismo, temos por objetivo principal apresentar o pensamento nietzscheano acerca da religião cristã – incluindo, primeiramente, a sua crítica à filosofia, à razão e à moral – e confrontá-lo com algumas produções filosóficas que questionem e discorram acerca de suas premissas e conclusões.

Será o cristianismo negador da vontade de poder, e conseqüentemente entrave ao desenvolvimento do que Nietzsche chama de “homem superior”? Em O Anticristo (1888), obra que reúne os seus principais aforismos contra a religião cristã, o filósofo postula, entre outras colocações, que o cristianismo contribuiu tão somente para impedir o progresso do homem, sufocando seus instintos, e conseqüentemente a sua vontade de superação, de ir-além, reprimindo a sua vontade forte de poder direcionada para um “mais alto valor”:

O problema que aqui apresento não é qual o lugar que a humanidade deve ocupar na seqüência dos seres (o homem é um fim), mas que tipo de homem se deve criar, se deve pretender, como o de mais alto valor, mais digno de viver, mais seguro do futuro. 

Este tipo de elevado valor já existiu bastantes vezes; mas como um feliz acaso, como uma excepção, nunca como um tipo desejado. Pelo contrário, foi precisamente ele o mais temido até ao presente, quase a própria realidade temível em si – e a partir desse temor o tipo inverso foi desejado, criado, conseguido; o animal doméstico, a rês gregária, o doente animal humano – o cristão. (O Anticristo, § 3, pp. 16-17). 

Propomos, num desafio ao antropocentrismo nietzscheano, que anunciou um novo tipo de homem, que sua crítica ao cristianismo e ao fundamento de seus valores morais, com a afirmada morte de Deus, “[...] é mais válida naquilo que denuncia do que naquilo que oferece.” (ESTRADA, 2003, p. 186).

O tom “denuncista” de Nietzsche, e o seu novo-humanismo calcado na vontade de poder, não anulam, ao nosso ver, os fundamentos do cristianismo, revestindo-se mais com o “caráter” de uma crítica às filosofias morais do que ao fundamento da crença em Deus e aos valores do cristianismo que corroboram essa crença.

Mas daí também surge a questão: estaria Nietzsche, com toda sua ênfase em demolir a moral cristã, atacando necessariamente o fundamento da crença em Deus, ou direcionando sua crítica principalmente à nossa formulação conceitual de Deus e à Teologia que lhe sustenta?

Cremos, e procuraremos corroborar esse ponto de vista mais adiante, que ao decretar a “morte de Deus”, não se torna central a questão do ateísmo nietzscheano, pois o filósofo não dedicou muita atenção à discussão “Deus existe?”, pois já asseverara em Assim falou Zaratustra que “Deus já morreu” (p. 25).

A questão, para Nietzsche, acreditamos, era derrubar as premissas que davam sustento ao cristianismo e à filosofia moderna: o que chamava de dogmas da verdade, moral e razão, são seus alvos, e aí se encontra incluída a religião.
Nosso propósito principal ao atacar o que denominamos antropocentrismo nietzscheano é identificar e questionar o que Nietzsche nos oferece como suporte para suas afirmações contra os conceitos e o cristianismo.

Idealizando o homem, o qual, segundo o pensamento nietzscheano, deverá superar a sua condição histórica, alcançando o que deveria ter sido e jamais foi, o sobre-homem (Übermensch), não estará Nietzsche, mais do que oferecendo um questionamento eficaz contra o cristianismo enquanto crença em Deus, e na justificativa dessa crença (crença compartilhada), tecendo uma aguda crítica contra os postulados e práticas do cristianismo?

Cristianismo entendido enquanto sistema instituído e calcado em juízos que o filósofo aponta como falsos, pois estariam apoiados numa moral questionável, a qual limitaria o homem ao refrear seus instintos, sua vontade enquanto força que quer ter poder; e em troca estaria supervalorizando a busca do paraíso, o medo do inferno, a supremacia do Estado e das instituições perante o indivíduo, desconsiderando o homem como fim em si mesmo, no sentido da busca do homem pelo seu auto-aperfeiçoamento intelectual e espiritual, alijados de preconceitos morais e religiosos pretensamente universais.

Correlatamente discutiremos, também, a possibilidade de que a alternativa nietzscheana, da forma como nos é apresentada, nos oferece somente o caos, conclamando o homem à resignação perante o acaso, ao ceticismo e à submissão perante as necessidades que se apresentam aos nossos questionamentos sobre a existência, pois nada mais oferece ao homem do que o próprio homem.

Deus está morto, e devemos cultivar nossa vontade de potência, nossos instintos, restando-nos o quê? O vazio existencial? O “se Deus está morto, tudo é permitido”, de Dostoievski?

Ou Nietzsche estaria anunciando a superação da necessidade de se buscar conceitos absolutos, moral, razão, verdade, Deus, na busca da independência do homem em relação à metafísica?

Essas questões serão discutidas ao longo do texto. Por último, temos consciência que nosso trabalho possa parecer, aos olhos dos leitores mais íntimos da obra nietzscheana, demasiado pretensioso, tendo em vista a sua diminuta dimensão, mas afirmamos que dirigir um olhar questionador à obra de Nietzsche, mesmo que num desafio incipiente, é mais do que produzir e exercitar uma crítica, é reverenciar a produção de um filósofo que não se preocupou em buscar seguidores ou afirmar convicções como absolutas, redigindo a sua obra filosófica com um estilo próprio e arrojado, demonstrando, sobretudo, preocupação com o exercício da sua reflexão, e não com as convenções acadêmicas, formas e modelos vigentes, que muitas vezes se vêem, ao longo da produção acadêmica recente da Filosofia, mais valorizadas do que o pensamento e a sua discussão.

2. A CRÍTICA NIETZSCHEANA À FILOSOFIA


2.1 A CRÍTICA À MORAL E À RAZÃO

Nietzsche, como nenhum outro filósofo que lhe foi contemporâneo, dedicou sua reflexão a uma veemente e acirrada crítica à filosofia moderna, questionando seus postulados, e em especial os conceitos de moral, razão e verdade, por ela sustentados.

E mais precisamente exerceu essa crítica atacando as diversas manifestações na cultura e na política do século XIX; seu “gosto” nas artes, na música, a democracia liberal, enfim, direcionando um vigoroso questionamento aos valores da sociedade que lhe era contemporânea, e que segundo ele sofria, entre outros males, de um perigoso “apequenamento e nivelamento do homem europeu” (ABM. § 203, p. 103 e GM. § 12, p. 35).

Nietzsche questiona, com destaque para as suas obras Além do Bem e do Mal (1886) e Genealogia da Moral (1887), a crença na verdade como valor, de forma absoluta e dogmática, acusando os filósofos que o precederam, de terem chegado a ela sem questionar a validade dessa necessidade (ABM. § 16, p. 22).

Essa postura dogmática, da crença na verdade com um valor absoluto, segundo Nietzsche, é uma marca patente na filosofia ocidental, percorrendo um caminho que começou com Platão: “o pior, mais persistente e perigoso dos erros até hoje foi um erro de dogmático: a invenção platônica do puro espírito e do bem em si.” (Idem. Prólogo. p. 8). Osvaldo Giacóia Junior, em seu artigo O Platão de Nietzsche.

O Nietzsche de Platão, refere-se ao projeto nietzscheano de “reversão” do dogmatismo platônico como o desígnio fundamental da filosofia de Nietzsche: a transvaloração de todos os valores, ou sob outras palavras, reversão do platonismo (GIACÓIA, 1997, p.1).

Nietzsche afirma que a filosofia do “bem em si” e do “puro espírito”, pretende-se absoluta e inabalável, refugiando-se num dogmatismo dominado pela busca da verdade, submetendo e escravizando o homem: “O homem objetivo é de fato um espelho. Habituado a submeter-se ao que quer ser conhecido, sem outro prazer que o dado pelo conhecer, “espelhar” (ABM, § 207. p. 110).

O filósofo nada mais faz 
do que se submeter, na busca ao conhecimento, 
ao que se quer conhecer; e não há outro prazer 
para ele do que essa busca, 
dogmática, da verdade: 

[...] honraram-no em demasia e não viram nele o essencial – ele é um instrumento, algo como um escravo, certamente a mais sublime espécie de escravo, mas nada em si – presque rien! O homem objetivo é um instrumento, um precioso, facilmente vulnerável e embaçável instrumento de medição e jogo de espelhos, que devemos poupar e respeitar; mas ele não é uma meta, não é uma conclusão e elevação [...] (idem, § 207, p. 111). 

O filósofo, na sua busca incondicional do conhecimento, sob o dogmatismo da verdade como valor absoluto, nada mais é do que um escravo que “só compreende o que é tirânico” (ib. § 46, p. 53). E na sua ânsia de manter essa posição, é conduzido ao niilismo, num sinal de fraqueza, de uma “alma em desespero”, preferindo “um punhado de “certeza” a toda uma carroça de belas possibilidades” (ib. § 10, p. 16).

Essa postura condena o homem a viver numa “simplificação e falsificação”, apoiada graças à ilusão da certeza imediata, criando um mundo sustentado pela oposição entre a aparência e a verdade.

Nietzsche afirma que a busca da verdade, da forma dogmática como é apresentada, nada mais é do que um preconceito moral, apoiado na oposição de valores, e numa pretensa superioridade atribuída à verdade (ib. § 2, p. 10), dando aos nossos sentidos um “passe livre para tudo o que é superficial, e ao nosso pensamento um divino desejo de saltos caprichosos e pseudo conclusões!” (ib. § 24, p. 31).

Nietzsche relaciona o erro da busca da verdade 
com a ilusão da moral, que acusa de terem edificado 
um mundo apoiado na oposição 
entre a aparência e a verdade.

E essa oposição entre a aparência e a verdade é fruto do dogmatismo platônico, que começa, segundo Nietzsche, com Sócrates, responsável por semear a crença de que o conhecimento é capaz de penetrar conscientemente no “fundo das coisas”, desprezando-se as aparências, e assim encontrando a sua verdadeira essência. Sócrates, na busca do conhecimento, atribuía ao erro uma falsidade de juízo que conduzia ao mal, e assim postulava que o restabelecimento da verdade conduziria ao bem (ib. § 190, p. 90).

Esse propósito supremo – a busca da verdade – passou a possuir, desde então, um valor inegável e absoluto, acima da aparência, sendo afirmado como o próprio fundamento da metafísica. Mas, para Nietzsche nada mais revelava do que um preconceito moral da oposição de valores e da pretensa elevação da busca da verdade a uma condição superior:

Como poderia algo nascer do seu oposto? 
Por exemplo, a verdade do erro?

Ou a vontade de verdade da vontade de engano? Ou a ação desinteressada do egoísmo? [...] as coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja outra, própria [...] Devem vir do seio do ser, do intransitório, do deus oculto, da ‘coisa em si’ [...] 

Este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua “crença” que eles procuram alcançar seu “saber”, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de “verdade”. A crença fundamental dos metafísicos é a crenças nas oposições de valores (ib. § 2, p. 10). 

Essa crítica à busca da verdade – fundamentada na suposição de ser este conceito fruto do preconceito moral da oposição de valores, e da pretensa superioridade de sua busca, como busca do “bem em si” – conduziu Nietzsche a afirmar que toda a moral é uma tirania contra a natureza e contra a razão.

A moral, segundo Nietzsche, atua de forma arbitrária, sujeitando o pensamento a uma disciplina “a fim de pensar sob uma diretriz eclesiástica ou cortesã ou com pressupostos aristotélicos, a duradoura vontade espiritual de interpretar todo acontecimento segundo um esquema cristão, e redescobrir e justificar o Deus cristão em todo e qualquer acaso”; e ao sujeitar o homem, impondo a busca pelo “provar algo”, e ao “deves obedecer”, aonde se encontra
o fundamento do imperativo categórico de Kant, estreita suas perspectivas, e o ensina a odiar o “laisser aller” (deixar ir), (ib. § 188, p. 88).

Encontramos aqui uma passagem que expressa a continuação da crítica de Nietzsche à religião na forma de uma continuação de sua crítica à moral e à razão, revelando que, ao questionar a validade do dogmatismo socrático-platônico, o filósofo incluiu a sua condenação às bases conceituais da moral e da razão, que também se incluem na filosofia que sustenta os preceitos filosóficos cristãos: o bem como valor supremo, a crença num imperativo moral que nos conduz a diferenciar o “certo” do “errado”.

A coerção da moral, sua ação sobre o indivíduo com vistas a promover a sua “felicidade”, nada mais seriam do que uma proposta de conduta. Nietzsche identifica nessa generalização da verdade como valor à vontade dos mais fracos de dominar os mais fortes. Dominação que se daria através de valores antinaturais que estabeleceram um valor pretensamente universal à verdade e à moral, criando um mecanismo compensatório dos fracos, que nada mais é que um instrumento de sujeição cultural e disciplinar, o qual atua através da tirania das leis (Ib. § 188, pp. 87-89 e § 198, p. 96). Mas, não faz isso sem antes afirmar que a questão não é o juízo de valor constituir em si uma objeção, mas sim “em que medida ele promove ou conserva a vida” (ib. § 4, p.11) .

“O temor é o pai da moral”, e em nome “do amor ao próximo” se estabeleceram juízos de valor moral que representam verdadeiramente o “temor ao próximo”.

Os impulsos considerados fortes e perigosos, o espírito empreendedor, a sede de vingança, a astúcia, a rapacidade, a ânsia de domínio, que Nietzsche afirma que até então deveriam ser não apenas considerados socialmente úteis, mas cultivados e cultuados, foram sendo estigmatizados, pois sentidos cada vez mais na sua “periculosidade”, faltando-lhes “canais de escoamento”. O “instinto de rebanho” passou a identificar em tudo o que “ergue” o indivíduo acima do “rebanho” e infunde temor, o “mau”, o reprovável, enaltecendo a “mediocridade dos desejos” (ib. § 201, pp. 99-100):

“Moral é hoje, na Europa,
moral de animal de rebanho” 
(ib. §202, p. 101).

Nietzsche, enfim, acusa os valores da sociedade democrática como valores de “décadence”, que diminuem e mediocrizam o homem, apontando na transvaloração e reversão dos valores a sua esperança:

Ensinar o homem o futuro do homem como sua vontade, dependente de uma vontade humana, e preparar grandes empresas e tentativas globais de disciplinação e cultivo, para desse modo pôr um fim a esse pavoroso domínio do acaso e do absurdo que até o momento se chamou “história” [...] para isto será necessária, algum dia, uma nova espécie de filósofos e comandantes [...] uma tresvaloração dos valores, sob cuja nova pressão e novo martelo uma consciência se tornaria brônzea (ib. § 203, p. 103).

2.2 RAZÃO VERSUS INSTINTOS

Seguindo a proposta de Nietzsche, identificamos em sua filosofia a análise das motivações inconscientes e das forças que movem a vontade humana:
[...] o “instinto” é a mais inteligente das espécies de inteligência até agora descobertas.(ABM, § 218, p. 125)A maior parte de nossa atividade intelectual acontece inconscientemente, sem serpercebida por nós; [...] o pensamento consciente [...] é o mais fraco. [...] a consciênciapode ser considerada secundária, quase indiferente e supérflua, provavelmente destinadaa desaparecer e a ser sobrepujada pelo automatismo perfeito. (Apud. DURANT, 2000,pp. 388-89).

Ao longo de Além do Bem e do Mal, Nietzsche afirma a recusa à doutrina moderna do sujeito consciente, afirmando, a exemplo da citação acima, a predominância dos instintos sobre a razão.

Os instintos são impulsos inconscientes, 
inatos à natureza humana, 
e determinantes de nossa consciência. 

Não existe, portanto, oposição entre os instintos e a razão, pois os impulsos instintivos se encontram na raiz do pensamento consciente. Nietzsche expressa, através de sua interpretação fisiológica do sujeito consciente, a sua reversão do platonismo: não há autonomia na consciência, mas no impulso inconsciente!

Quanto à superstição dos lógicos, nunca me cansarei de sublinhar um pequeno fato que esses supersticiosos não admitem de bom grado – a saber, que um pensamento vem quando “ele” quer, e não quando “eu” quero; de modo que é um falseamento darealidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso” (ABM, § 17,23).

Por longo período o pensamento consciente
foi tido como pensamento em absoluto:

apenas agora começa a raiar para nós a verdade de que a atividade de nosso espíritoocorre, em sua maior parte, de maneira inconsciente e não sentida por nós (GC, § 333, p. 221). 

Portanto, o domínio de nossos impulsos se dá pelo instinto, e não pela razão. Nietzsche passa a distinguir na vontade de poder uma vontade forte, guiada pelos instintos, e uma vontade fraca, guiada tão somente pela razão, opondo-se à natureza impulsiva. Nesse predomínio da razão, da vontade fraca de poder, subordinando os instintos de forma antinatural, Nietzsche identifica o germe do que chama de décadence.

O “homem superior” se vê limitado, condenado ao arbítrio da razão; mecanismo que estabelece o domínio dos mais fracos, os quais “lutam pela “igualdade de todos perante Deus”, julgando e condenando moralmente os que lhe são superiores (ABM, § 219, p. 125).

A história da filosofia ocidental é para Nietzsche a história da debilitação dos instintos. Desde Sócrates, o racionalismo conceitual relegou a natureza do homem – as verdadeiras raízes de sua consciência – a uma condição vergonhosa, enfim, o que o homem tem de melhor foi pela filosofia condenada ao ostracismo.

A proposta de Nietzsche é resgatar ao homem a sua natureza instintiva (idem, § 230, p. 138), não no sentido de oposição e negação da razão simplesmente, mas de que o impulso instintivo é a raíz da consciência, e portanto anterior à razão.

O dogmatismo da busca 
da verdade absoluta perde-se no vazio. 

O pensamento, sendo resultante dos impulsos, sempre se encontra em constante mutação, sujeito ao fluxo instintivo/impulsivo sobre a razão. Como poderemos falar em “verdade absoluta”? em “certeza”?

Os conceitos são armadilhas; o instinto sempre atua influenciando-os; a vida é a manifestação da expressão de nossos impulsos mais íntimos; e crer em conceitos universais é desconhecer as bases que constituem a origem da nossa razão. Não há por que crer que o “pai da filosofia” foi um “impulso ao conhecimento”, mas sim um outro impulso, pois “toda a grande filosofia foi até o momento a confissão pessoal de seu autor (…) e também se tornou claro que as intenções morais (ou imorais) de toda filosofia constituíram sempre o germe a partir do qual cresceu a planta inteira” ( Ib. § 6, p. 13).

Como já abordado anteriormente, para Nietzsche, a verdade não é o critério superior, pois não podemos interpretar o juízo pela dualidade do certo e do errado, mas, sim, em que medida esse juízo de valor serve para promover e conservar a vida (Ib. § 4, p. 11 e § 9, p. 11).

Nietzsche expressa que ao longo do filosofar sobre a razão e os conceitos, o homem foi esquecido enquanto “animalidade”. Portanto, o pensamento não pode ser interpretado como absoluto, pois é resultado da soma de nossos impulsos. A vida é, conseqüentemente, regida por nossos instintos. Ela é o critério máximo do conhecimento, em alternativa ao dogmatismo da verdade absoluta.

A perspectiva nietzscheana afirma que o nosso conhecimento, fruto da nossa percepção, não pode ser um guia à certeza, pois, nossos sentidos são falhos (ib. §34, p. 40 e § 192, p. 92); e as ciências físicas se encontram aí inseridas, nos permitindo apenas uma interpretação possível, mas errônea, do mundo (ib. § 14, p. 20).

Não há por que aceitarmos que as chamadas leis naturais são realidades factíveis, pois são oriundas de nossas interpretações, sendo, portanto, possibilidades, e sobretudo resultantes da imposição humana, em nossa busca por uma visão mais inteligível do mundo (ib. § 21, p. 27). Enfim, o filósofo criticado por Nietzsche, guiado pela moral, supervaloriza o conceito de “verdade” e de “certeza”, que nada mais são do que a expressão dos seus preconceitos (ib. § 5, p. 12 e § 289, p. 193).


Para Nietzsche,
a busca da verdade deve ser vista em perspectiva:
como uma busca de possibilidades interpretativas
e não de certezas absolutas. 

Até onde vai o caráter perspectivista da existência, ou mesmo se ela tem algum outro caráter, se uma existência sem interpretação, sem “sentido” [Sinn], não vem a ser justamente “absurda” [Unsinn], se, por outro lado, toda a existência não é essencialmente interpretativa – isso não pode, como é razoável, ser decidido nem pela mais diligente e conscienciosa análise e auto-exame do intelecto: pois nessa análise o intelecto humano não pode deixar de ver a si mesmo sob suas formas perspectivas e apenas nelas. Não podemos enxergar além de nossa esquina: é uma curiosidade desesperada querer saber que outros tipos de intelecto e de perspectiva poderia haver [...] (GC, § 374, p. 278). 

A crítica de Nietzsche à verdade
vai se revelando como uma busca de uma condição 
de vida que ele reporta como superior, 
revelando-se como sua proposta alternativa.

Guiado pela vontade de poder, abandonando os falsos conceitos, o homem deverá alcançar uma moral superior, uma moral de senhores em oposição a uma moral de escravos (ABM, § 260, pp. 172-173). Nietzsche aponta que à religião judaico-cristã coube a inversão dos valores nobres, aristocráticos, sobrepondo-se a eles os valores dos fracos e falhados (GM, primeira dissertação, § 7, p. 25).

Em sua luta contra os valores superiores, deturparam o sentido originário de “bom”, pregando uma moral dos fracos e dos infelizes (idem. § 3, § 4 e § 5, pp. 18-21). Chegaram até, em seu esforço deturpador, a infundir na consciência dos mais fortes a vergonha pela sua condição superior (Ib. terceira dissertação, § 14, pp. 111-114).

Assim, com o passar do tempo, no esforço de inverterem os valores nobres, domaram e submeteram as raças aristocráticas (Ib. primeira dissertação, § 11, pp. 31-34).
Nietzsche afirma que para conduzir o homem a uma “moral superior” é imprescindível reverter, transvalorizar, essa falsa moral.

A justiça não reside em afirmar 
que o certo para a maioria 
é o certo para todos! 

É preciso forçar as morais a inclinar-se antes de tudo frente à hierarquia, é preciso lhes lançar na cara sua presunção, até que conjuntamente se dêem conta de que é imoral dizer: “o que é certo para um é certo para o outro” [...] (ABM, § 221, p. 127). [...] que o que é justo para um não pode absolutamente ser justo para outro, que a exigência de uma moral para todos é nociva precisamente para os homens elevados, em suma, que existe uma hierarquia entre homem e homem, e, em conseqüência, entre moral e moral [...] (idem. §228, p. 134). 

A moral vigente deve ser superada, revertida por uma moral além do bem e do mal, vencendo-se a vontade fraca de poder, que nada mais faz do que privilegiar os mais fracos, e a auto-conservação dos indivíduos, em detrimento da possibilidade do indivíduo mais forte expandir-se, superar-se, alcançando o que deveria ter sido e jamais foi: o sobre-homem. A vida, o mundo, são fruto do processo orgânico e instintivo da atuação da força “O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme os seu “caráter inteligível” – seria justamente “vontade de poder”, e nada mais” (ib. § 36,
p. 43).

A vontade de poder é o sentido da vida, ela é a alternativa à falsificação dos valores, e como tal deve nos guiar à superação dos conceitos de moralidade e imoralidade (ib. § 259, p. 171).

3. A CRÍTICA AO CRISTIANISMO: DEUS ESTÁ MORTO?

No curso de suas obras, Nietzsche afirmou a filosofia socrático-platônica como precursora dos valores de decadência do cristianismo, desenvolvendo um agudo questionamento ao idealismo por ela estabelecido, a que chama de ilusões da razão e origem da fraude das convicções da filosofia ocidental. Recusando a moral cristã, e negando seus postulados, Nietzsche condena o que assevera ser a negativização da existência humana, fruto da negação dos instintos e da resultante incapacidade de se aceitar a finitude da vida, crendo-se numa ilusória vida no além-túmulo – verdadeiro refúgio no nada, na fuga do mundo – , conduzindo somente ao declínio da vontade forte de poder.

Assim sendo, a humanidade não representou até o momento uma evolução para “algo de melhor”; o progresso é uma idéia moderna, e como esta é uma afirmação falsa (O Anticristo, § 4, p. 17).

De forma geral – e aqui abordado superficialmente – os pensadores da Igreja, a exemplo de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino – para não estendermos a lista – como intérpretes das obras de Platão e Aristóteles, e no desenvolvimento de uma filosofia e interpretação próprias, contribuíram para “aproximar” os filósofos gregos ao pensamento filosófico medieval, ou melhor, aproximando o pensamento desses filósofos ao pensamento cristão, incorporaram a filosofia grega à Igreja. Desta forma, a história da filosofia cristã, e o desenvolvimento de seu pensamento, estão intrinsecamente relacionados ao desenvolvimento da filosofia ocidental como um todo.

A crítica dirigida aos juízos de valor, a distinção do certo e do errado, ao “bem em si”, a noção Socrática de que a verdade conduz ao bem (ABM, § 190, p. 90), ao imperativo categórico moral de Kant (idem, § 5, p. 12 e § 11, p. 17), enfim, a crítica que Nietzsche dirige à filosofia engloba, igualmente, a sua crítica ao cristianismo. Portanto, não é a afirmação “Deus está morto” – sem contemplarmos as possibilidades interpretativas que essa afirmação encerra – ou o ateísmo de Nietzsche, a questão central, mas o que Nietzsche nos oferece em troca da crença em Deus.

Não podemos ignorar que a decretada “morte de Deus” é um dos mais debatidos enunciados de sua filosofia, merecendo atenção não somente da filosofia da religião – sob a qual ocorre o questionamento de vários postulados do pensamento nietzscheano – mas, incluindo-se no debate de várias especialidades da Filosofia, em especial por sua crítica acerca da moral e da razão subjacentes à pregação anticristã do filósofo, propiciando um fértil campo de discussão para a ética. Mas, retornando à “morte de Deus”, estaria Nietzsche constatando o ocaso da religião cristã? Ou, numa outra perspectiva, fazendo uma exposição visceral do que considera sua inevitável superação?

Ou, acima de tudo, criticando o racionalismo conceitual do pensamento ocidental (o valor do saber, a moral etc), ou atribuindo a “morte de Deus” à necessidade do Homem reelaborar o conceito de Deus e os valores vigentes da religião, em prol de um “Deus dos fortes” e da valorização dos instintos? Na obra A Gaia Ciência (1882), no aforismo 125 do Livro III encontramos:

O homem louco. – Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? perguntou um deles.

Ele se perdeu como uma criança? disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós o matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! [...] Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos! (GC, § 125, pp. 147-48).(Deus é vida e quem vai matar a vida? )

Esse anúncio ressurge na sua obra poética Assim Falou Zaratustra. Ao se encontrar com um “santo”, Zaratustra ouve-o reportar-se a Deus, e pergunta a si mesmo “Será possível que este santo ancião ainda não ouviu no seu bosque que Deus já morreu” (Assim falou Zaratustra, preâmbulo, p. 25) . Portando Deus já está morto, e Nietzsche denuncia a falta de percepção daqueles que desconhecem esse fato. Segue-se a esse anúncio uma acirrada crítica ao que Nietzsche acusava como a mutiladora do homem e negadora de seus instintos mais nobres: a fé cristã (ABM, § 46, p.52).

Podemos identificar que a questão central da crítica de Nietzsche ao cristianismo não é necessariamente a recusa a Deus como possibilidade, mas a crítica ao cristianismo e conseqüentemente à sua base teísta, inserido-o em sua crítica aos juízos de valor, aos conceitos de verdade e certeza, ao predomínio da razão sobre os instintos.

Através da negação do instinto, numa atitude de fuga à natureza humana, enaltecendo o ascetismo religioso e suas “três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual” (Idem. § 47, p.53.), afastando-se da “vida” e conclamando a vitória dos fracos contra o “homem superior”, Nietzsche afirma, calcando sua premissas numa abordagem fisiológica, que o cristianismo condena o homem à degenerescência física e conseqüentemente psicológica. Sufocando a vontade de poder, o cristianismo, e toda a filosofia e prática afim a ele (os conceitos morais, os juízos de valor) conduzem ao domínio dos valores de décadence:

Entendo a corrupção, como já se está a adivinhar, no sentido de décadence; a minha afirmação é que todos os valores em que agora a humanidade condensa os seus desejos supremos são valeurs de décadence. Considero corrupto um animal, uma espécie, um indivíduo, quando perde os seus instintos, quando escolhe e prefere o que lhes é prejudicial. [...]

Mas a própria vida é para mim o instinto de crescimento, de duração, de acumulação das forças, o instinto de poder; onde falta a vontade de poder, há degenerescência. A minha afirmação é que esta vontade falta em todos os valores supremos da humanidade que, sob os mais sagrados nomes, dominam os valores da decadência, os valores niilistas [...] (O Anticristo, § 6, pp. 18-19). 

Para Nietzsche, o cristianismo e a filosofia moderna ocupam-se de causas e efeitos imaginários, numa espécie de comércio entre seres imaginários. E a causa do que chama de moral e religião falsas é o predomínio dos sentimentos de desprazer sobre os sentidos de prazer, o antinatural ao natural, constituindo a fórmula para a décadence (idem. § 15, p. 28).

Nietzsche concluiu que justamente essa predominância de juízos de valor antinaturais, sustentadores de uma “moral de rebanho”, seriam a essência e a sustentação do cristianismo: sob o signo do medo (pecado) o cristão se condena, reprimindo-se, mutilando-se e julgando o mundo (e os homens que lhe são superiores), oportunizando o direcionamento de seu descontentamento, de seu ódio, e de seu “ressentimento” contra a vida, falsificando-a (ABM, § 62, pp. 64-66). E que a crença em Deus nada mais seria do que um artifício necessário:

Julgar e condenar moralmente é a forma favorita de os espiritualmente limitados se vingarem daqueles que o são menos, e também uma espécie de compensação por terem sido descurados pela natureza [...]

No fundo do coração lhes faz bem que haja um critério segundo o qual mesmo os homens acumulados de bens e privilégios do espírito se igualem a eles – lutam pela “igualdade de todos perante Deus”, e para isso precisam crer em Deus (Idem. § 219, p. 125). 

O filósofo afirma que somente ao homem superior, movido pela vontade de poder, cabe superar o sentido de décadence inerente à doutrina cristã, derrubando os ídolos que suportam o seu edifício. Assim, o homem decretará a morte do conceito de Deus, superando os falsos juízos de valor da tradição judaico-cristã e socrático platônica, assumindo o seu lugar na história.

O que ocorre exatamente, você está erguendo ou demolindo um ideal?”, talvez me perguntem… Mas nunca se perguntaram realmente a si mesmos quanto custou nesse mundo a construção de cada ideal?

Quanta realidade teve de ser denegrida e negada, quanta mentira teve de ser santificada, quanta consciência transtornada, quanto “Deus” sacrificado? Para se erigir um santuário, é preciso antes destruir um santuário: esta é a lei – mostrem-me um caso em que ela não foi cumprida!… [...] Já por tempo demais o homem considerou suas propensões naturais com “olhar ruim”, de tal modo que elas nele se irmanaram com a “má consciência”. Uma tentativa inversa é em si possível – mas quem é forte o bastante para isso? 

[...] Para aquele fim seria preciso uma outra espécie de espíritos fortalecidos por guerras e vitórias, para os quais a conquista, o perigo e a dor se tornaram até mesmo necessidade; [...]

Algum dia, porém, num tempo mais forte do que esse presente murcho, inseguro de si mesmo, ele virá, o homem redentor, o homem do grande amor e do grande desprezo [...]

Esse homem do futuro, que nos salvará não só do ideal vigente, como daquilo que dele forçosamente nasceria, do grande nojo, da vontade de nada, do niilismo [...] esse anticristão e antiniilista, esse vencedor de Deus e do nada – ele tem que vir um dia… (GM, § 24, pp. 83-85). 

No seu Assim falou Zaratustra Nietzsche igualmente anuncia a superação do homem pelo seu “sobre-homem”: “o homem é uma coisa que dever ser superada; o homem há de ser uma ponte, e não um fim.” (Assim falou Zaratustra, p. 154).

Qual a alternativa proposta? Resgatar ao homem a sua natureza instintiva é um primeiro passo, como vimos anteriormente. Deve-se fugir do ressentimento originário, da “má consciência”, da sufocação do instinto: “Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro – isto é o que chamo de interiorização do homem” (GM. § 16, p. 73); a negação da vontade forte de poder solapa o que de melhor há no homem; sufoca o seu instinto em prol de uma “moral de rebanho” .

O que é bom ou mau? O que alguns consideram más virtudes são tão essenciais aos homens fortes que sem elas nada de bom teria se alcançado: força, violência, ódio, egoísmo. O que é a ética? a moral?. “Todos os nossos motivos conscientes são fenômenos de superfície: por trás deles se trava a luta de nossos instintos e estados, a luta em torno do poder” (Fragmentos Finais, p.107).

O homem deve superar-se, ir além! E Deus? Não poderíamos prosseguir sem abordar o conceito de Deus para Nietzsche. Em Crepúsculo dos Ídolos o filósofo pergunta “Como? É o homem apenas um erro de Deus? Ou é Deus unicamente um erro do homem?” (§ 7, p. 14). Quem “criou” quem? ou seria como se “criou”?

Um povo que ainda acredita em si tem também ainda o seu Deus próprio. Nele venera as condições que o tornam vitorioso, as suas virtudes – projecta o prazer que tem em si, o seu sentimento de poder, num ser a quem por isso possa dar graças. Quem é rico quer dar; um povo orgulhoso precisa de um Deus a quem sacrificar… 

A religião é, nestascondições, uma forma de agradecimento. É um agradecimento a sim mesmo: eis para que se precisa de um Deus. Semelhante Deus deve poder ser útil e prejudicar, deve poder ser amigo e inimigo – é admirado tanto no bem com no mal. 

A castração antinatural de um Deus
para dele fazer um Deus unicamente 
do bem ficaria aqui fora 
de toda a esfera do desejo.

Tanto se precisa do Deus mau como do bom [...] quando um povo entra em colapso; quando sente esvair-se para sempre a fé no futuro, a sua esperança na liberdade [...] há também que mudar o seu Deus. Torna-se agora sonso, medroso, humilde, aconselha a ‘paz da alma’ [...] Moraliza constantemente [...] faz-se o Deus de toda a gente [..] Outrora, representava um povo, a força de um povo, tudo o que de agressivo e sedento de poder existe na alma de um povo: agora é simplesmente o Deus bom… De facto, não há para os deuses outra alternativa: ou são a vontade de poder – e enquanto o forem serão deuses de um povo – ou são a impotência do poder – e então tornam-se forçosamente bons… (O Anticristo, §16, pp. 29-30). 

Deus, mais que uma possibilidade, é visto com uma conseqüência. Povos fortes, altivos, comungam da crença em um Deus acima do bem e do mal. Povos decadentes, degenerados, crêem num conceito de um Deus bom, protetor dos fracos. Um conceito que revela uma perspectiva sociológica. Um conceito de Deus atrelado à cultura de cada povo, conforme sua expectativas e prerrogativas, fruto de seu “estado de espírito” perante os acontecimentos. Mas, estaria Nietzsche, propondo um novo conceito de Deus?

Ou, alertando para que abandonemos essa tentativa, a qual mais do que nos impulsionar nos limitará a uma busca infrutífera, fazendo-nos esquecer do objetivo superior, o seu sobre-homem? Na nota aos Fragmentos Finais, o professor Flávio R. Kothe, alertando-nos para erros de interpretação, oriundos da “má” filologia, que nada mais fazem do que nos presentear com erros grosseiros, contribuindo para a perpetuação de equívocos graves, faz uma consideração que consideramos pertinente:

[Nietzsche] falava de um “afeto moral”, de um “sentimento moral”, de uma “sensação moral”, em contrapartida a uma tabela moral como as “tábuas da lei”, os “Dez mandamentos”, calcada em uma instância metafísica. 

Ao contrário da proposição registrada por Dostoievski, de que “se Deus está morto, tudo é permitido”, era para ele com a “morte de Deus” que a questão ética realmente começava, pois até então ela havia sido delegada a uma inquestionável instância extra-humana. A sua obra mostra, todavia, que 

“Deus não está morto”,
pois ressurge sobe a forma de mil fantasmas.(sementes) (p. 8). 

“Deus não está morto!”, parece até um contra-senso à proposta de Nietzsche, mas decretá-la no sentido de que Deus não é o foco, e sim o nosso conceito de Deus, nos parece razoável até determinado ponto. Estaríamos nos sujeitando a uma instância sobrenatural, a qual determinaria os desígnios de nossa existência, esquivando-nos da responsabilidade por nosso “aperfeiçoamento”, e senão a ela, aos seus representantes terrenos, e às prerrogativas morais que se querem universais, sujeitando-nos a uma ditadura das convicções?

Essa possibilidade interpretativa, mesmo sendo compatível com muitos dos aforismos citados, não renuncia ao ponto de sua crítica que consideramos fundamental: Nietzsche, ao afirmar a falsidade dos postulados cristãos, decretando a morte de Deus, recusa a possibilidade do teísmo, de uma instância divina, denominado-a de imaginária e, ao fazê-lo, não nos oferecendo em troca senão o seu eterno retorno e o seu sobre-homem, o que julgamos insuficiente para abandonarmos muitos dos pressupostos cristãos, como veremos em nossa conclusão.

4. CONCLUSÃO

Nietzsche, ao criticar a filosofia e os conceitos, afirma a complexidade do ser, analisando o seu processo histórico, e concluindo que a razão e a verdade de modo absoluto não existem, pois, ambas sempre se constituíram sob diversas perspectivas culturais e lingüísticas. 

A razão, portanto, é um arbítrio. Os conceitos nada mais são do que construções da vontade de poder, projeções arbitrárias e subjetivas, impostas ao homem. A recusa de Nietzsche à perspectiva kantiana, que estabelece o primado da razão, afirma que o julgamento racional, posto como imperativo, nega e falsifica o papel de nossos impulsos instintivos.

Nietzsche decretou 
que não há verdade absoluta. 

A crença na verdade como meta, como busca, relegou a compreensão da sua subjetividade ao esquecimento, falseando nosso julgamento, levando-nos à percepção errônea da crença na validade de nossas projeções. Ao aceitarmos nossas projeções acerca do mundo como verdades e ao estabelecermos essas verdades como verdades universais, afirmando a sua validade objetiva, nada mais fazemos do que decretar o primado das ilusões da razão.

O filósofo afirma, como vimos na sua crítica ao racionalismo, que o ser social e a consciência interagem. Nossas convicções, como abordado acima, estão fundamentadas em nossa cultura e são veiculadas por nossa linguagem. Portanto, ao crermos em nossa razão esquecemos nossos instintos e estabelecemos que nossas projeções criadoras de valores são verdades absolutas e universais.

Mas, o que Nietzsche nos oferece como superação? Ao afirmar a “morte de Deus”, ele não deixa de buscar a necessidade de se eliminar o teísmo filosófico, eliminado o ser divino que “dá subjetividade e substancialidade ao homem” (ESTRADA, p. 178), eliminando, assim, o fundamento humanista da crença num Ser Supremo. Estrada, ao analisar a negação de Nietzsche a Deus, como princípio fundador e lógico de valores transcendentes que determinam a conduta humana, afirma ainda que:


Nietzsche é o grande defensor do finito,
do mundano e do presente. 

A alternativa do caos e do acaso, inerente à inocência do devir, se opõe aos intentos de sistematização e aos projetos finalistas que permitiriam traçar uma gênese de sentido. Deve-se viver o aqui e agora do indivíduo e do instante histórico. Pelo contrário, a filosofia busca o transcendente, supramundano ou imanente à história e acredita em uma evolução linear com progresso, metas e valores que , em última instância, fazem parte da herança judeu-cristã.

Deve-se assumir a fragmentariedade da vida, 
a inocência do devir, a convergência estóica 
de necessidade e liberdade, e o amor ao finito
contra as fuga mundi interioristas e 
as metas da história (religião secularizada). 
(idem. p. 179). 

Nietzsche prega a adoção de novos valores – o “homem em si” em troca do “bem em si”, entre outras propostas – que não deixam de ser um resgate de valores antigos da filosofia grega, em oposição ao rumo da filosofia a partir de Sócrates e Platão, negando o mundo da idéias, a tradição judaico-cristã, a concepção cartesiana da razão e o imperativo categórico de Kant. Mas, qual a alternativa em face da nossa finitude, da nossa necessidade de interrogar o universo na busca de respostas sobre a nossa inquietação perante a morte?

O seu eterno retorno, o devir, a permanência manifestada pela repetição, pela passagem cíclica do tempo, são a sua alternativa. Assim, Nietzsche nos oferece uma transcendência temporal, o que mais nos parece um paradoxo.

E ao seguir esse caminho, afirmando a transvaloração de todos os valores, e negando o dogmatismo metafísico, Nietzsche propõe, em troca, uma metafísica tão questionável quanto a primeira. Afinal, sua transvaloração e seu eterno retorno não se apóiam justamente no uso da razão? E isto não seria, segundo o próprio Nietzsche, incorrer na pretensão de que nossas projeções e percepções são universalmente válidas?

O filósofo chega a nos lembrar o paradoxo do positivismo que, ao negar a validade da filosofia como ciência, decretando a sua superação e conseqüente desaparecimento, esquece-se que também é uma filosofia!

Nietzsche, na construção de seu edifício filosófico, afirma que o homem deve buscar a sua auto-afirmação, abandonado falsos conceitos. A crença em Deus, a religião enquanto crença compartilhada, é um entrave à ascensão ao sobre-homem, obstruindo as possibilidades da vontade de poder em face das prerrogativas morais. Mas o seu platonismo invertido nos oferece um ceticismo completo perante o curso do mundo. A verdade como conceito é subjetiva, portanto não podemos nos ater à crença no absoluto, na verdade inquestionável.

Esse aspecto de sua crítica é, de acordo com a nossa reflexão, válido ao propor que nos despojemos da “escravidão” da razão no sentido de nos livrarmos de dogmatismos anacrônicos, a exemplo do que constatamos na história da filosofia ocidental, e da ciência, quando da superação de antigas convicções e preconceitos morais que nos impediam de expor a público idéias e conclusões, pois estaríamos sempre temerosos da tutela do Estado e da Igreja, sempre alertas a quem questionasse as “verdades” estabelecidas.

E, igualmente, a sua crítica ressalta a importância de estarmos atentos ao fato de que a filosofia e as ciências naturais não podem se outorgar detentoras de certezas absolutas que sirvam de edifício a pretensas filosofias morais. Mas o sentido que Nietzsche atribui a toda convicção, como prisão que nos impede de ver além, e principalmente, a sua afirmativa da verdade como falsa, nos deixam poucas alternativas.

Ao negar a metafísica, como analisado acima, Nietzsche se apóia, paradoxalmente, na metafísica do eterno retorno, e na vontade de potência como impulso primordial. Assim, apontamos a possibilidade de que ao estabelecer o homem num papel central, numa proposta antropocentrista, como “fim em si”, sujeito às ilusões da razão, e vendo a moral como falsa, sua busca e questionamento a nada conduzem, levando-nos a crer na falsidade dos ideais.

E substituindo a transcendência espiritual pela transcendência do eterno retorno, cremos que Nietzsche nos deixou o que ele mais abominou: uma atitude niilista, de expectativa diante do caos e do acaso, pois, sem a razão e sem a moral, a que o homem recorreria? Ao homem? Mas, esse sobre-homem, acima do bem e do mal, não correria o risco de nada mais comprovar do que justamente o que a religião contempla, a finitude do homem perante o universo?

Mas, por outro lado, se sua negação da religião, que julgamos não ser suficientemente desenvolvida quanto à crítica aos fundamentos da crença em Deus enquanto instância sobrenatural, não nos convence, a sua crítica à religião enquanto crítica às instituições e à civilização nos parece fundamental para questionar a validade de certos postulados. A religião, ao estabelecer a supremacia do mito edênico – Adão e o pecado original – decreta a perda da inocência do homem perante o mundo, desde o seu nascimento.

O homem é incriminado e condenado por sua culpa perante Deus, aguardando a consumação de seu castigo divino, sendo a vida uma seqüência de tormentos, e nada há a se fazer senão expiar os pecados ganhos como herança. Submissão total perante as instituições: a Igreja como uma espécie de Estado, e não como a reunião dos homens que crêem em Cristo.

O terror perante o juízo final, a expiação dos pecados sob diversas formas, as interpretações se tornam tão diversas quanto as penas: abrem-se as portas ao fanatismo, à intolerância, ao sadismo e ao masoquismo. A crueldade para consigo e para com os outros se sobrepõe à busca interior, ao amor ao próximo, à meditação dos textos religiosos.

Abordamos anteriormente que Nietzsche não se detém em discutir a questão da existência de Deus numa percepção atéia, mas conceitual, de sujeição do homem a conceitos e valores, e neles incluídos, Deus. Seus alvos são nossos instintos, a nossa fisiologia, e conseqüentemente, as raízes psicológicas da nossa necessidade de crer em Deus.

Portanto, mesmo rejeitando a morte do teísmo decretada por Nietzsche, afirmamos que a validade de sua crítica está em seu questionamento à Teologia e à prática religiosa como instrumentos institucionais, mundanos, como sustentáculos do que chama de ideologia do sofrimento, que aterroriza o homem, invocando o castigo divino perante o pecador, diminuindo-o, negando a possibilidade de um homem livre dessa mácula.

Da mesma forma o asceta e o sacerdote são vistos por Nietzsche como opressores por excelência, que em primeiro lugar negam a si, a sua condição natural, decretando uma conduta antinatural como o caminho a Deus, e em segundo lugar, são instrumentos de canalização do ressentimento, da intolerância e do fanatismo de seus fiéis (O Anticristo, § 26, pp. 42-44; § 43, pp. 64-66 e § 56, p. 88).

Mas, ao mesmo tempo, admite que de uma possível explosão de ódio surge a resignação, contendo-o, mas daí nasce a igualmente antinatural autoflagelação.

Concluindo nosso trabalho, acredito que alcançamos o objetivo de nossa crítica ao pensamento nietzscheano. Apontamos, até aqui, o que acreditamos ser válido quanto a sua crítica à religião e às instituições, mas, concluímos, num desafio ao seu pensamento, que a sua crítica aos fundamentos do teísmo filosófico não são suficientes para validar a máxima “Deus está morto”.

Cabe, ainda, a título de fecho, uma última colocação. O conjunto de sua obra filosófica escrutina de forma intrigante o pensamento humano, nossa moral, leis e instituições – não só as religiosas – possibilitando um questionamento rico e filosoficamente instigante.

Devemos a ele a fuga do velho estilo de se fazer filosofia, e a criação de um autêntico “filosofar a marteladas”. Sua prosa, seu uso dos aforismos, e principalmente a inexistência do uso do ponto em seus fragmentos finais, nos indicam que mais que um pensamento supostamente não concluído, é um convite a ver que Nietzsche não pretendia um “término”, um ponto final, “cancelando a evolução e a involução das coisas”, como no esclarece o Professor Flávio R. Khote em sua nota aos Fragmentos Póstumos (p.12).

Seus pensamentos nos oportunizam refletir acerca da origem de regras socialmente estabelecidas, e suas conseqüências no desenvolvimento ou entrave do homem. Nietzsche, com sua inegável capacidade intelectual e autenticidade, é preciso frisar, avançou em muitos “terrenos” do saber e, criticando seus antecessores, somou uma rica produção a esse rol de notáveis.

Por fim, graças a sua crítica arrojada, possibilitou às novas gerações o exercício de se fazer filosofia com os “olhos atentos” e uma “mente aberta”, libertos do temor de derrubar velhos ídolos, questionando para compreender, num exercício crítico que, acreditamos, presta um tributo à atualidade da obra do “imoralista” e do seu tão reverenciado Zaratustra.

6. NOTAS 

*Trabalho originalmente submetido ao corpo docente do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, em março de 2005, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Especialista em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Agnaldo Cuoco Portugal.

EDUARDO RIZZATTI SALOMÃO**
**Graduado em história pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União da Vitória-PR e Especialista em Filosofia pela Universidade de Brasília.

Fonte:
CONSCIÊNCIA:.ORG
eduardorizzatti (at) yahoo.com.br) 
http://www.consciencia.org/nietzscherizatti.shtml
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

NIETZSCHE, O IMORALISTA, E A FÉ CRISTÃ




 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Para começarmos a falar sobre Nietzsche, há que se fazer algumas considerações relevantes a seu respeito. Em momento algum, o filósofo quis que seu pensamento ou suas idéias fossem profanadas, ou que tivessem adeptos. Ainda assim, sua filosofia é para o porvir, para os ‘espíritos livres’. Como ele próprio definiu sua obra, ele não é atual – não para a sua época -, pois ‘alguns nascem póstumos’. E nada mais relevante, atual e premente do que o seu pensamento hoje, agora. Considerando isso, não devemos falar-lhe como adeptos, mas discuti-lo como pensadores, como homens que querem ser além disso.

DA MORAL E DAS VERDADES

Em Nietzsche, a moral não é superior, nem pertence a um limbo. O homem tem que transmudar os valores, transvalorá-los. E é esse o cerne de sua busca de si: superar-se, vir a ser, tornar-se além-homem pela vontade de potência. É admitir em si e no mundo o embate de forças contínuo, através das quais ele muda, ele pode mais, ele consegue mais, ele faz pulsar a vida, tornando-a bela.

E por que a moral? A moral até hoje difundida esteve sustentada sobre os pilares do medo, da renúncia de si mesmo e de negação da vida; a antinatureza. A propósito disso[1]: a moral é a idiossincrasia do decadente com a intenção oculta de vingar a vida, sempre com um bom resultado final. E o que ele queria dizer com isso? 
 
O que seria vingar a vida? A própria conceituação da moral e de seus princípios baseados no desapego à vida, ao próprio homem, seus ideais e sua vontade. E essa característica difundida e santificada pelo Cristianismo estendeu para os variados discursos a premissa básica do desprezo, da dor, da culpa, da angústia, do não crer em nada, do castigo, das penas eternas. 
 
O cristianismo criou a moral
conhecida hoje, e a revigorou em niilismo.

Do mesmo modo que incita e preconiza o super-homem, o espírito livre e define a vontade humana como vontade de potência, Nietzsche urde o ponto essencial de sua filosofia a partir da discussão da moral, ou melhor da transmudação dos valores, concebendo ele próprio como o primeiro imoralista da história, sendo assim, “uma fatalidade, um destino.”

Conforme sua própria idéia, declara[2]:

No fundo, são duas as negações que encerra em si mesma a minha imoralidade. De um lado, eu nego um tipo de homem que até agora tem sido considerado como superior: o dos bons, dos benévolos, dos caridosos; de outro, contradigo uma espécie de moral que chegou a adquirir a certa preponderância, chamada mais claramente a moral decadente, a moral cristã.

E as razões pelas quais o pensador alemão e primeiro imoralista da humanidade se baseou são inúmeras, e todas estão relacionadas em sua extensa produção bibliográfica, cuja pequena parte pudemos utilizar como fonte para a discussão que aqui se procede. Ainda assim, após realizarmos algumas considerações a esse respeito, parece cabível a reafirmação disso: o homem que quer vencer a si mesmo e tornar-se livre, tornar-se além-disso, há que transmudar valores, há que trespassá-los, há que reescrever um enredo baseado na vitória de si, na história de sua própria criação e de sua busca pela felicidade aqui na terra. 
 
Sem porvir, sem medo, sem castigo, sem culpa, sem pecado, sem diretriz, sem lamúria, sem pequenez perante a vida, sem destruir ou desprezar a vida, assim se pode conceber o super-homem, assim se pode almejar o espírito livre, assim se impõe e se acredita na vontade de potência, que move o mundo, que refaz a vida, que recria e sustenta o homem.

Para Nietzsche, não há uma verdade, nem uma certeza imediata, tudo está relacionado a uma questão de forças, de embates; é a própria vontade de potência querendo tornar-se. No entanto, com esse propósito quer-se sempre provar que tal ou outro modo de pensar e agir é o verdadeiro, e nessa defesa, perde-se o fio condutor de tudo, perde-se a incerteza perante a vida, que é a própria vida em seu processo, em sua concepção.
 
A vida é devir; (?) não se pode alcunhá-la de idéias acabadas, de idealismos metafísicos, nem ultrajar o seu próprio pulso, o seu ir além, a sua superação. 
 
A história da humanidade, de forma alguma, é uma história versada em fatos, mas em forças, em contradições, em lutas pela razão da vida, mesmo que se tenham utilizado de valores e crenças idealistas que se propuseram dominar o homem; torná-lo vão e ignominioso. 
 
A história do homem é, 
sobretudo, o desenrolar de vontades,
de descarte de verdades, mesmo 
que se tenha querido provar 
uma em detrimento de outras. 
 
O homem se concebe e se paralisa ante suas criações. Ele se encontra e se esconde em suas crenças em deuses e morais forjadas em códigos. Mas os códigos não vigoram por todo o sempre, pois o homem muda, o homem supera-se, mesmo sem ter noção disso; o homem se revela e se amedronta ante seus demônios e paraísos perdidos. 
 
Quem mais poderá reavivar o homem 
se não ele mesmo? 
 
Que mais poderá espantá-lo e fortalecê-lo, se não a crença em si, em seu reflexo, na sujeição de si mesmo, na obediência de si mesmo? Quem mais poderá salvá-lo, – se assim ele precise ser salvo- , se não ele e seus ideais? 
 
O homem e sua ciência; o homem e sua fé; o homem e seu pecado; o homem e ele mesmo, frente a frente. Isso é amedrontador? Sim, para os fracos, descrentes de si, presos a ficções, deveras, sim. E para os que não o são? O próprio impulso da vida revela-se nisto: na consideração do mundo como a criação humana, do homem para ele, por ele, com ele. 
 
O homem não pode temer a si. Por que temer a sua crença? Isso é uma negação de si mesmo; e isso é aterrador; é esquizofrênico, é paranóico.

Da construção das verdades e da reformulação delas, nasce o homem, nasce a vida, nasce a existência e sua negação. Ora, isso é dialética? Não, ou talvez sim. Mas a dialética não interpõe as faces, ela nega uma e acredita noutra; ela sintetiza para dizer que não negou; ela junta sem crer que considerou. 
 
A vida é a construção das verdades 
sem saber-se disso; é além-teoria. 
 
É a relatividade? Tampouco. A vida não relativiza, ela não escolhe, ela não procura os adaptáveis; a vida é, vai, vem, progride, ultrapassa a si mesma.
 
O homem faz-se e refaz-se. Isso é devir, isso é eterno retorno. As nossas histórias das espécies relacionadas às nossas histórias de interações: isso é a vida. E não há sentido? Porque demarcar assim as coisas é fatalismo. E a fatalidade tem o seu caráter niilista, tem a destruição da existência em seu fulcro. A vida despedaça as tábuas, os partidos, os valores para ser o que é, o que há de ser. E o homem prepara seu futuro a partir disso, no acreditar e devotar a isso. A construção de verdades e de devoções cria o mundo. Mas não se fazem necessários sentidos.
 
O sentido está no conjunto, na complexidade dos fenômenos, na recursividade. O homem formula seu curso, e vive sobre ele, modificando-o, mas nunca sozinho, com o outro. E as forças hão de sempre se opor. E o homem há de eternamente devir. Nele, cabe e justifica-se a eternidade.

A verdade, logo, só se consolida como tal a partir do momento em que se objetiva alcançá-la como o princípio em si, causa e efeito conjugados. E nesse processo, ela deixa de ser, pois a tentativa de se justificar pressupõe a incerteza, demonstrando-se o seu mediatismo, a sua volubilidade, seu grau de parcialidade perante o fenômeno. 
 
O CRISTIANISMO

O que o Cristianismo criou? O medo da vida, o homem amedrontado, a esperança no nada, o desacreditar no homem e em suas forças; negou a vontade e a vida. Para o homem ser feliz, ele tem que se abdicar de seus pensamentos, de sua vontade, de seu querer e poder. O homem não pode ser feliz na terra; ele há que ser feliz noutro plano, noutra dimensão futura. Ora, o homem, então, está e sempre esteve condenado, purgando seus ‘pecados’, atado a si em penitência; o homem tem que pagar, tem que honrar seus débitos. Mas que débitos? E que culpa? De ser homem, de querer superar-se, de pensar, de ser ele e não precisar de forças superiores ou de controles invisíveis que o governem ou rejam a sua existência. Quão teatral é a vida! E no palco, todos somos atores ruins, pois o interesse não está aqui, está no depois. Todos estamos em teste, somos projetos; estamos sendo avaliados, perscrutados. Que delírio persecutório mais doentio! Que certeza patogênica! Quanta ditadura! Se não somos nada, qual o porquê do depois? Tornamo-nos algo desinteressante, algo não verdadeiro. É essa a negação da vida, a negação do homem; assim se adoece, se enlouquece o homem, e se diminuem as suas forças. O niilismo aqui impera. ‘Crê que não és nada, pois o paraíso virá e salvar-te-á.’

Em O Anticristo, Nietzsche expõe sobremaneira o seu repúdio a moral cristã, reconhecida como a moral verdadeira, a Moral, que vem assolando o homem, tornando-o pequeno, mero fantoche de desejos de outrem. Quanto a isso, ele afirma[3]: Não se deve embelezar nem desculpar o cristianismo: ele travou guerra de morte contra este tipo de homem superior, renegou todos os instintos fundamentais deste tipo e desses instintos destilou o mal, o negativo – o homem forte como tipo censurável, como proscrito.

Nietzsche prega a virtude isenta de moralismos, de idéias pudicas, de desvios cristãos, uma vez que o que prega o Cristianismo é a única verdade, é a crença no homem fraco, doente, incapaz, sem vigor. E a virtude, aqui defendida, não diz respeito ao conceito romanceado e idealizado – assim como a bondade, o coração puro -, mas ressoa sobre a virtude do virtu da Antigüidade, das qualidades físicas e morais do homem, de sua coragem e energia.

A moral do cristão é a moral da culpa, do arrependimento, do desapego às coisas da vida. E a vida, que foi uma benesse criada por Deus, deve ser rejeitada. O paradoxo emerge aqui. Se Deus, em sua onipotência, criou o mundo para o bem do homem, por que lhe negar a vida? Por que lhe fazer desacreditar na vida? Por que fazê-lo crer no mundo oposto ao que ele conhece? Para que ele possa crer, crer que é fraco, que não vale nada, que é culpado de ter nascido, que não deve se revoltar contra o Pai, pois isso é motivo de castigo, de vingança. O homem, para o cristão, é um cárcere onde se expiam culpas eternas. Ora, se ele nasce, já nasce em débito com a vida, mas a vida não merece ser vivida; é um resguardo para o eterno, é uma passagem. Isso é crer no antinatural, é desmoronar o homem, é desvalorizá-lo, é dizê-lo mortal e impotente a todo instante. O que é o homem? Um servil, um súdito expiando pecados, um bode no deserto da vida, um erro de impressão, uma idéia presa a sua invenção, a sua própria criação, um devedor eterno de sua vida. Que grande credor é Deus! Que grande empresário é Deus! Que paradoxo mais irremediável! Que loucura não trouxe ao homem!

Não devemos ser felizes aqui; não devemos conservar nossa espécie; não devemos ter projetos; porquanto estaremos livre dessas correntes que nos prendem. Esses são alguns dos pressupostos dos cristãos. E para que a vida? O homem é um condenado já no nascimento; está atado a um complexo de culpa. ‘Mas o pai o salvará…’ Enquanto isso, ele deve sofrer, ele deve pagar pela vida. Sua carne não é sua carne, seu pensamento não lhe pertence, suas dúvidas estão erradas. O homem deve ser desprezado: essa é a idéia da moral cristã. O homem deve ser renunciado: essa é a premissa do cristianismo. O santo é a purificação da alma: essa é a meta do homem. Ser bom incondicionalmente. Cegar-se pela própria vida, e viver errante como o gado no pasto. O homem é além-disso. Que idéia essa de darmos a alguém o destino de nossas vidas?! Que falta de amor próprio, que baixíssima auto-estima, que desacreditar, que fraqueza! O homem é tão fraco, e se sente tão sem sentido e sem valor que criou Deus à sua imagem e semelhança. Consoante a essa premissa o filósofo considera que[4] A moral cristã foi até agora a Circe de todos os pensadores: estavam eles a seu serviço.

- A criação do cristão como a verdade da vida

Nietzsche argumenta que[5]:

…‘verdadeiro’ será, neste caso, aquilo que é mais prejudicial para a vida; ‘falso’ será tudo quanto a eleva, realça, afirma, justifica e a conduz ao triunfo… Quando sucede que os teólogos, através da ‘consciência’ dos príncipes (ou dos povos), estendem as mãos para o poder, não duvidemos do que realmente acontece: a vontade do fim, a vontade niilista, aspira ao poder…

E esse poder pertence ao eclesiástico, à Igreja, a santa representante de Deus, do Cristo na terra, seu procurador, seu porta-voz. Ela fala em seu nome, mas em benefício próprio. A Igreja, historicamente falando, não queria provar a existência divina, ela almejava sedenta o poder, o poder de controlar, de ser a detentora da verdade, da riqueza da terra. Óbvio, pois, o homem não necessita de capital, de dinheiro, de ouro. Isso é luxúria. Isso é pecado capital. Entretanto, e para que não se instalem dúvidas, a Igreja é a única que precisa vitalmente do poder e da moeda, para que assim possa instituir a sua moral. Não precisamos aqui reescrever ou descrever as atrocidades contra o homem, contra a humanidade que a Igreja fez. Apenas citamos para que também não nos seja lançado um mea-culpa: a Inquisição, a Companhia de Jesus e as conquistas ultramarinas, as Cruzadas, as guerras do Islã contra o Judaísmo, as guerras do Catolicismo contra o Protestantismo. O que foi tudo isso? Guerras em nome de deus, na defesa do filho, em prol da salvação do homem? Não, essas foram guerras em nome da religião, em nome do poder, em nome da riqueza, da nobreza, do clero, do sagrado. O que se defendia não era a fé, mas a utopia da religião; defendia-se o interesse de classes abastadas, da senhora feudal, do deus de Israel, do menino salvador. Mas, não os culpemos por isso, nem o deus e nem o filho; a culpa é de seus ilustres representantes. Contudo, eles são as mãos de Deus, os donos da palavra, os escribas, os correligionários da verdade. Mais uma vez outro paradoxo! Não os eximamos de culpa, não retiremos o seu jugo. A Igreja fez pelo poder o que jamais se fez pelo homem. A Igreja se postou contra o homem, contra a vida, contra a beleza, contra a arte, contra o pensamento, contra a ciência, contra a sua própria inspiração: Deus.

Dessa forma, o filósofo expõe[6]: O que é cristão é um certo instinto de crueldade para consigo e para com os outros; o ódio aos que pensam de maneira diferente; a vontade de perseguir. E mais adiante, revela: O que é cristão é o ódio contra o espírito, contra o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem do espírito; o que é cristão é o ódio contra os sentidos, contra a alegria dos sentidos, contra a alegria em geral…

Parece indubitável que a Igreja tenha forjado um verdadeiro inferno e purgatório na terra para depois criar o paraíso. Amedrontou o homem, pôs-lhe sob sua égide, e o tenta com suas palavras para que ele não caia em suas próprias tentações, para que ele não tente, não ouse, não veja, não sinta, não seja.

Para tanto, o cristianismo intenta dominar a ferocidade humana, tornando os homens fracos e doentes. Nietzsche já disse[7]: … o enfraquecimento é a receita cristã para a domesticação, para a ‘civilização’. Para se ter noção disso, basta um lançar de olhos sobre a história, utilizando-nos dos exemplos acima mencionados. O catecismo da Igreja é o mesmo chicote com o qual maltrataram Jesus.

- Da crença

A forte esperança é um estimulante muito maior para a vida do que qualquer felicidade isolada que se realize no plano da realidade. Para aqueles que sofrem é necessário uma esperança que a realidade não possa contradizer – e da qual satisfação alguma os consiga afastar uma esperança de além-túmulo. (É precisamente por causa desta sua capacidade de entreter o desgraçados, que a esperança era considerada entre os gregos como o mal entre os males, o mais astucioso de entre todos: deixavam-no no fundo da Caixa de Pandora. [8]

Pandora, a Eva dos gregos, teria sido a culpada por todo o desmantelar do paraíso, por todo o expiar de culpas eterno; mãe do pecado original. A guerra dos sexos estava instaurada. A culpa é da mulher. Cristianismo, Judaísmo, Islamismo, todos estão eivados dessa idéia. E o homem crê nisso, porquanto isso é a verdade acima de todas; são as palavras do divino.

No que concerne ao próprio fato da crença, da fé, como a coisa em si, o que Nietzsche afirma no trecho anterior, é que a vida só tem sentido se acreditarmos, se tivermos na esperança o nosso refúgio, o acalanto de nossos males. Sim, podemos crer, aliás devemos fazê-lo, mas em busca do homem, acreditando no seu poder de superação, em sua vontade de potência, em seus atributos e talentos, em suas pernas e braços mutilados, mas também criadores. A mente do homem é a criação, é a inspiração da vida.

Na verdade, o grande pecado, o pecado original, não está na mulher, nem no homem, está no pensamento humano, na ciência, na conjectura, na cognição. E, assim disparou Nietzsche[9]:

Os próprios deuses lutam contra o tédio. E que faz ele? Inventa o homem – o homem é divertido. O homem, no entanto, também se aborrece. A piedade de Deus (…) não conheceu limites: então criou ainda outros animais. Primeiro equívoco de Deus: o homem também não soube divertir-se com os animais, reinou sobre eles, nem mesmo quis ser ‘animal’. Deus, pois, criou a mulher. (…) A mulher fez o homem comer o fruto da árvore da ciência, e que sucedeu? O Deus antigo foi presa do pânico. O próprio homem veio a ser o seu maior equívoco; havia criado um rival; a ciência torna o homem igual a Deus(…) Moral: a ciência é a coisa proibida em si, só ela é proibida. A ciência é o primeiro pecado, o germe de todo o pecado, o pecado original.

E o que quer a religião, a Igreja, o cristianismo? Silenciar o homem, torná-lo mudo, cego e surdo, fazer dele um débil, uma asneira gotejante. E tudo isso é contra Deus, contra a fé, é contra a esperança. O poder de Deus deveria, então, ser retomado; seu espaço, reconquistado. E o que ocorreu a seguir? Os sacerdotes, os mensageiros-procuradores de Cristo, amaldiçoaram a ciência, inventando a guerra contra o Humano, contra o pensar humano. É ignominioso um filho ter que afrontar o pai! Assim ressoa e preconiza a moral cristã, a verdade de Deus, a concepção da Igreja. Que não pense o homem, que se dizime o homem, que morra o homem! Assim grita o cristianismo, assim reverberam os cânticos da Igreja. O homem é a doença, Deus é a cura. O homem é um erro de cálculo, Deus é o axioma. O homem é culpa, degredo; Deus, a eterna busca, a salvação. O homem é cárcere, Deus é a redenção. O homem é um projeto, Deus é a perfeição. O homem é o fantoche, Deus é o titereiro.

E não esqueçamos que, segundo Nietzsche[10]: … foi deus mesmo que, terminado o seu trabalho e revestida a forma de serpente, pôs-se ao pé da ciência: dessa forma repousou do cansaço de ser deus. Fizera muito bem… O diabo não é mais que a ociosidade de deus cada sete dias…

- Da salvação como paradoxo

Já se interrogava o filósofo[11]:

Não sei contra quem estava dirigida a insurreição da qual Jesus passou, erroneamente, talvez, por ser o promotor, se é que não se dirigia a Igreja judaica, ‘igreja’ tomada exatamente no sentido de hoje que tomamos a palavra. (…) Isto levou-o à cruz, prova-o a inscrição que sobre ela existia. Morreu pelos seus pecados – não há razão para se pretender, apesar de o ter sido feito tantas vezes, que morreu pelos pecados dos outros.

Cabe ainda estender a questão, ampliar o foco sobre ela, o que, certamente, incluirá o princípio da fé cristã. Nesse sentido: Se Jesus veio ao mundo para salvar, por que teve que morrer? Responder-se-ia, como fez Niezsche, pelos seus crimes políticos. Entretanto, se a sua chegada – ele era o Messias, o Ungido, era a esperança dos deserdados, a salvação do mundo -, por que se entregou, deixou-se julgar, fez-se morrer, calou-se, ressuscitou e disse que voltaria? Ele já era a salvação do mundo, não se fazia necessária a sua morte, nem seu retorno. Este talvez sim para a prova metafísica da ‘vitória do homem sobre a morte.’ E ele se foi; criou-se a Igreja; a religião cristã propagou-se, e do resto quase tudo sabemos. De qualquer modo, ainda nos restam as dúvidas e perguntas, a saber: Ele havia prometido o reino aqui na terra. E onde se encontra tal paraíso? Com o seu próprio nascimento estava destinado a salvar, mas teve que morrer, e para que? Para os desígnios do pai, para mostrar ao mundo que se deve sofrer, que se deve baixar a cabeça, que se deve resignar, oferecer ambas as faces para os socos e tapas, que se deve entregar sem reservas ao inimigo. Que espécie de masoquismo! Quanto sadismo! E chamaram Sade de louco, e puseram-lhe camisa-de-força!

Quem foi que o matou? Quem era seu inimigo natural? (…) o judaísmo reinante, a sua classe dirigente.” (…) Com sua morte, Jesus não poderia querer outra coisa senão dar publicamente a prova mais firme, a demonstração de sua doutrina… [12]

A prova de Jesus, então, está na morte, na fraqueza diante da vida, na torpe aceitação dos acontecimentos, na leitura de um destino, na sagrada interpretação de um oráculo, que nem era grego, mas judaico, hebreu, seu próprio pai, seu próprio povo. Eis que o povo lhe mostrou a justiça, crucificando-o. Essa era a sua sina. De perdedor ante a vida, para ultrajar a morte três dias depois, mas trazendo para sempre a crença de que morrera justo, bom, puro, mas sozinho. Até reclamar, em prantos, o abandono do pai, ele o fez. Mas o pai nada podia fazer. A missão era essa: provar para todos que se deve sofrer para viver, para se purificar, para ser cristão, para se dizer santo. A vida nada mais é que uma sucessão de fatalidades, as quais assomadas serão uma via de acesso ao paraíso. E onde ficou o reino que seria trazido pelo filho? Para o depois, para ser mistério. Que todos sofram, expiem seus pecados, pois depois serão recompensados. A vida como cárcere, como reduto de culpas e castigos. Santa parvoíce! Medonha diminuição da vida! Desdém ao homem, ao mundo, à própria criação divina. O deus dos paradoxos e do niilismo.

O filósofo justifica que a salvação sem provas é a condição precípua para a fé, quando admite que[13] a salvação que há de vir não está demonstrada, mas unicamente prometida: a salvação está ligada a condição de ‘fé’, deve-se ser salvo, pois se crê…

Essa seria a prova do cristianismo: a morte pelos outros, a cultura dos mártires, o primeiro suicídio em público. A salvação estava na cruz, e na cruz morreu o que poderia salvar. Contudo, a sua existência seria a própria salvação, não haveria necessidade de provas. O pragmatismo do milagre, o calar a boca de Tomé teriam que existir. E para que? Para se mostrar que o cristianismo é verdadeiro, salva e cala os que dele duvidam. Os céticos devem ser odiados, julgados, castigados. E esse foi o mote do Santo Ofício da Igreja de Cristo.

- Da natureza de Deus

E qual a qualidade de Deus? Quais as propriedades dele? Qual o seu perfil? É um deus meramente humano, absolutamente criado aos moldes das paixões humanas, um deus grego condensado. Onipresente, onisciente, onipotente. Tenhais medo de seu cajado! Um deus que atende por Javé, Jeová, Jesus, Alá, Jesus, Cristo, Messias, ou apenas Deus. E este último demonstra a sua onipotência, o único deus com nome de deus, mas grafado com letras maiúsculas.

Por meio de seu Zaratustra, Nietzsche o define assim[14]: Quando moço, esse Deus do Oriente era ríspido e estava sedento de vingança: criou um inferno para deleite dos seus prediletos. Por fim, fez-se velho e brando e terno e compassivo, assemelhando-se mais a um avô do que a um pai, e até mais a uma avó decrépita.

É um deus mutandis, que se transmuda do Velho para o Novo Testamento. De humor lábil, olhos enormes, poder imensurável, ele governa e rege a vida de seus pequenos artífices. No teatro da vida, ele escreve, dirige, atua, interfere nos desfechos, nos clímax, traz comédia, traz tragédia. O deus das sete pragas do Egito transformou-se num deus de milagres. De um deus sozinho tornou-se um deus que prega e arrasta multidões, à procura de adeptos e discípulos. De um deus que destruiu Sodoma e Gamorra, destruir templos não pareceria uma tarefa árdua. Um deus do dilúvio que transforma água em vinho. Um deus que cura e vive entre os pobres contra um deus que só assusta, que só fala ao ouvido de poucos, de seus diletos. Um deus de várias personalidades. Um deus dúbio, perscrutador.

E que vida é essa? A dos homens que são objetos manipulados pelas forças de um senhor, que tudo pode em prol de seu gozo? Elabora Nietzsche[15]: Para aqueles que procurassem indícios de que por detrás da grande comédia do mundo quem puxa pelos cordéis é uma divindade irônica, não encontrariam pequeno argumento neste gigantesco ponto de interrogação que se chama cristianismo.

Ademais, para os que acreditam que ‘o futuro a Deus pertence’, ou que fazem projetos similares a: ‘Se Deus quiser e permitir’, ou põem tudo em suas mãos, não há razão sólida para que possam queixar de sua má sorte, de seu sofrimento, de sua desventura, visto que nas mãos sapientes de Deus está o destino da humanidade, e ele ainda fornecerá, quando necessário, o lenço para as lágrimas.

- Da genealogia da fé cristã

A idéia de mundo inteligível e de mundo sensível, dicotomizando o mundo em físico e metafísico remonta aos antigos, à Grécia, mais precisamente, às palavras de Sócrates e de Platão. Em A República, deste último, com o mito da caverna, a primeira parábola filosófica sobre a idéia do mundo dividido, isso é notório. O homem vive em seu cárcere e apenas vê sombras, cogitações sobre o que está lá fora, distante, na penumbra, sobre os umbrais da prisão; a verdade, no entanto, estaria livre, soante, além do corpo, além da própria vida. Dessa forma, criavam-se, ou melhor, difundiam-se na filosofia, na cultura, na sociedade, na moral, na justiça, na política, na educação do Ocidente, os valores prenunciadores do cristianismo. Estava prefigurada a imagem ou a idéia de que o mundo é um cárcere, uma passagem, onde, aprisionados, pagamos culpas; todavia, existe um mundo além disso, o mundo das idéias, o mundo transcendente, o paraíso além-terra, a perfeição.

Como o próprio filósofo declara[16]:

Platão, mais inocente nessas coisas, e despido da astúcia plebéia, quis, com toda a energia – a maior energia que um filósofo já empregara! -, provar a si mesmo que razão e instinto se dirigem naturalmente a uma meta única, ao bem, a Deus; e desde Platão todos os teólogos e filósofos seguem a mesma trilha…

E os macedônios, com a conquista de Alexandre, o Grande, conquistaram a Grécia, e aproveitaram-se de tudo, inclusive das idéias ali preconizadas pelos filósofos. Eis que tais idéias se propagaram pelos desertos da Babilônia, pelo Egito, pelo Oriente Médio. Todavia, irrompeu o Império Romano, e tudo foi recriado e misturado às suas crenças. O politeísmo grego, o paraíso e o inferno, os deuses interventores e demasiadamente humanos, tudo é romano, tudo advém dos Antigos. Mas Roma, como se sabe, não durou ad infinitum, e foi multipartida, conquistada, ultrajada e afrontada pelo monoteísmo, pelos hebreus. Não antes de se ver obrigada a castigar, a destruir povos, a matar primogênitos, a perseguir minorias, a espalhar o terror em nome de seu poder e de seus deuses humanos. Não resistiu, porém. O cristianismo provou-se a salvação dos judeus, do povo sofrido; era o cumprimento de uma promessa; era um pagamento de uma dívida com o homem. E como isso acontece? Pela vinda do que salva, o deus-homem, o deus-filho. E esse deus revolucionou, sublevou Roma, arregimentou um exército com palavras, com a idéia da salvação divina, com a promessa – mais uma! -, do paraíso, da remissão dos pecados, da vida após a morte. E morreu pela Roma, que depois o acolheu e tornou-se seu cetro até hoje, tornou-se o reduto de toda a sua ideologia, filosofia, sacrifício. E muito se deturpou, pois a fé tornou-se poder, tornou-se Igreja Católica Apostólica Romana, tornou-se uma religião baseada no Cristo, mas que não mais sabia o que estava fazendo. E Saulo, funcionário romano, antigo perseguidor, agora convertido em cristão, tornou-se Paulo e incumbiu-se de revelar ao mundo a luz, a verdade, a vida, a salvação pela morte e pela culpa. Nascia o cristianismo, mas morria o cristão, o único, como diz Nietzsche, que morreu na cruz.

Acusando Paulo, o filósofo afirma[17]:

Paulo compreendeu que a mentira – que a fé – era necessária; e a Igreja mais tarde compreendeu Paulo. Esse Deus que Paulo inventou, um Deus que ‘reduz a nada’ a ‘sabedoria do mundo’ (…) não é uma realidade, senão uma decisão atrevida de Paulo em chamar de ‘Deus’ à sua própria vontade, thora, isto é o que é essencialmente judaico.

E o cristianismo seria refutado? Não, a Igreja fora contestada, fora questionada. Filósofos, cientistas, até santos da própria igreja, que denunciavam o poder religioso, que queriam o conhecimento humano acima de tudo, tiveram que ser calados, perseguidos, queimados. E deu-se início à Caça às Bruxas, a perseguição ao herege, à ciência, ao livre pensamento, à liberdade, ao homem. A ideologia da vingança da Igreja Cristã mostrava todos os seus dentes e dotes. A fé transmudou-se em sangue, espada, dor, sem necessidade de provas.

E os ultrajes disparavam em toda a Europa. Lutero, da própria Igreja, resolve sublevar, mas em seu próprio benefício, o que nada instituiu de novo, pois a lógica do pecado, da culpa, do medo continuaria a mesma, com exceção de que o Verbo não teria mais como porta-vozes o clero, a santíssima igreja de Paulo, mas o leigo, o povo, as interpretações, em cada região européia, das escrituras sagradas. Lutero não negou o cristianismo, ele também queria o poder; não lhe satisfazia a versão única da Bíblia, ele queria adeptos para as suas palavras, embora essas fossem nada mais que reverberações similares ao que já estava sendo pregado. A punição, a expiação, o terror ainda viviam. O cristão parecia vencido; pelo menos, estava chamuscado com o próprio fogo.

Com relação ao protestantismo, o autor argumenta[18]:

Que sucedeu? Um frade alemão, Lutero, chegou a Roma. Este frade, sobrecarregado com todos os instintos de vingança de um sacerdote desgraçado, rebelou-se em Roma contra a Renascença… Em vez de compreender, cheio de reconhecimento, o prodígio que se efetuara, o cristianismo vencido na sua mesma sede, o seu ódio não soube tirar desse espetáculo senão o seu próprio alimento. O homem religioso não pensa senão em si mesmo. (…) E Lutero restabeleceu a Igreja: atacou-a …

– Da moral cristã

O princípio da moral cristã, frente ao exposto, não se torna difícil de deduzir. A crença no vazio, no nada, na antinatureza, no desprezo à vida, ao saber, ao homem e suas possibilidades. A moral independente do homem, a moral seca, de cima, moral da perfeição, moral severa, vingativa, moral eivada de desejos mundanos, a despeito de desdenhá-los. A moral do rancor, do sofrimento, do pessimismo, da eterna espera, da eterna dor, da culpa, do pecado, da angústia, da cruz para a salvação.

Ora, o que quis Deus provar ao enviar seu filho, ou fazer-se ele mesmo um homem, morrendo na cruz, entregando-se aos inimigos, após promover uma campanha de rebeldia e crítica contra eles? O que pensava Jesus, o que pensava ele como humano? O que realmente desejava? Entregar-se? Morrer? Ele teve dúvidas disso, mas foi crucificado. Deus, certamente, comprovou que para sermos salvos, precisamos morrer; para chegarmos até ele temos que sofrer, ainda que nossas paixões teimem em demovermos dessa idéia, ainda que nossa humanidade prove que somos fortes o bastante para dizer não, para sermos livres. Quis ratificar, em símbolos inclusive, que a vida deve ser vivida, mas que não vale a pena tanto empenho, ou tanta ciência, pois a verdade está lá, ensangüentada, humilhada, odiada, cuspida, suada, sedenta, abandonada, pregada em uma cruz pelos outros que ela quis salvar. E isso se repete. Nos rituais, nas celebrações, nas orações, nas leituras tergiversadas da Bíblia.

Mais uma vez o paradoxo da criação e da salvação merece ser mencionado. Deus cria o homem – ou homem cria Deus -, ele se considera o seu senhor, que tudo pode, vê e sabe. Então, Deus cria o mundo, os seres, chama tudo de vida. Cria a própria mulher para povoar a terra, mas esta lhe lança um destino malévolo; ela lhe mostra o pecado, após influência do diabo, também criatura de Deus. Deus já sabia de tudo! Vejam o eterno retorno! Não satisfeito com isso, expulsa-os do paraíso, mas ainda lhes concede a vida. E os anjos, e os homens, e os santos, e as eras, tudo passa sob seu controle. Fantoches! A vida, uma portentosa e inigualável peça teatral! E Deus ainda aclimatiza tudo. Irrita-se, condena, tenta, faz duvidar, gera a intriga, gera o amor, gera o ódio, e destrói cidades, e dizima povos, e banha o mundo em dilúvio, ou assola com sete ou milhares de pragas e doenças. E o homem tenta conhecer, abstrai o conteúdo de sua inspiração, o homem lança-se contra o criador, entendendo-lhe um padrasto, um doidivanas que não sabe o que quer ou que destino dar às suas próprias criações. E promete de novo o paraíso, e mandam os profetas anunciar a boa-nova. ‘Ele virá como homem e tudo isso cessará.’ A peça terá um fim. E os homens não acreditam, já descontentes, já fazedores de si mesmos, mas os profetas persistem, admoestam, pregam, batizam. E o filho, que já nasceria salvando, precisa ainda morrer para salvar. E isso é pouco, ele precisa anunciar que há um novo final. No reino dos céus, no paraíso novamente, com direito a eternidade, anjos e a ver o pai-criador. E os homens não entendem, atados em seus pensamentos, preconceitos, considerações, dúvidas e outros deuses – por eles também inventados -, relutam, não acreditam, sentem-se acuados, sem sentido, não entendem a lógica de Deus. E o condenam, e o sacrificam, e o matam. E Deus preparara tudo isso na surdina, apenas o filho sabia, até que em uma ceia, que parecia trivial, ele conta a mais recente boa-nova. Ele iria morrer, iria ser entregue aos inimigos que ele mesmo afrontou, e provaria ao mundo que o filho de Deus era sábio e forte o bastante para vencer a morte. E ressuscitou três dias depois da crucificação, após uma série de torturas e perguntas sem respostas feitas ao criador. Mas o pai sabia o que fazia. Eis que aparece aos discípulos, e pede-lhes que preguem a sua palavra. E eles, já amplamente acostumados, obedecem: criam a Igreja. E a Igreja tornou-se o pó da fé, a renúncia da fé, que já era a renúncia da vida, tendo em vista a morte de seu idealista para provar a existência da salvação, a evidência de sua divindade. E disse, ainda, que voltaria. E disse que o Juízo Final chegaria. E todos, ou melhor, os cristãos, esperam com medo, com medo da rebeldia, da vingança, com medo. Esperam na culpa, no pecado, inventando leis canônicas, procurando subterfúgios para provar a mão de Deus na terra. Reescrevem a história, reinterpretam a Bíblia, erguem novos templos, transformam os contextos do que se dizia, procuram e perseguem, mandam e matam, chamam e expulsam. O poder fora-lhes concedido, bastaria fruir dele em nome da verdade, não obstante o uso de espadas, de armas mais sofisticadas, de cruzes douradas, de retórica. E Deus conseguiu estabelecer um mundo sem igual, à mercê da vida, com medo da vida, de negação à vida, inventou – ou soletrou sabiamente -, o niilismo nas muradas do desespero humano. Deus criou a sua própria sabotagem.

E a moral que se tem na atualidade, indubitavelmente, é a moral de outrora, apenas retocada com os preceitos pérfidos e ressentidos dos eclesiásticos da Igreja. A castidade, a impureza sobre o corpo, a negligência ao corpo, a culpa do sexo, o não ao aborto, o celibato clerical, o não à eutanásia, tudo isso exala cristianismo; um eflúvio de pia batismal, de sacristia concupiscente, de púlpitos bem adornados em ouro.

Quanto a castidade, o filósofo expõe que essa seria outra manobra da moral cristã, em busca da santificação e perfeição humanas, através da negação do corpo, destituindo-lhe a vontade, o brilho, a energia. O corpo seria senão um templo divino. E com qual razão deus o haveria criado? Para a abjeta e insípida contemplação? Para isso temos a arte: a reinvenção da vida, o ultrapassar da vida, mas ainda sendo vida, humana, imperfeita, impura, profanada, insalubre, é, sobretudo, bela.

Nesse sentido, ele observa[19]:

Trocar a saúde pela ‘salvação da alma’ significa folie circulaire, situada entre as convulsões da penitência e o histerismo da redenção! O conceito de ‘culpa’ foi inventado conjuntamente com o instrumento torturante que o completa; o conceito de ‘livre-arbítrio’ para confundir os instintos, para fazer da prevenção dos instintos uma segunda natureza!

Portanto, não é de espantar a atitude da igreja, ao longo dos séculos, guerreando em defesa de seus princípios, de seus mandamentos forjados em tábuas do poder e da coerção. E tudo que afrontar a Deus é impuro, e deve ser castigado, pois o demônio apossou-se de sua vida; deve ser expulso. Mas lembremos quem é o demônio: o ócio de deus a cada sete dias, e mais: É a ciência, é o homem. Ou como considerou o sábio persa[20]: Assim me disse um dia o diabo: ‘Deus também tem o seu inferno: é o seu amor pelos homens’. E ultimamente ouvi-lhe dizer estas palavras: ‘Deus morreu; foi a sua piedade pelos homens que o matou’.

Ainda que tenha vivido no mesmo período da publicação de O livro dos espíritos, de Allan Kardec, Nietzsche parece não ter feito nenhuma conjectura a respeito. No entanto, em sua filosofia, é marcante a crítica a qualquer tipo de crença no porvir, no espírito, na parte ‘depurada’ e ‘essencial’ do homem, reportando-nos, assim, à divisória platônica entre mundo sensível e inteligível. O que fez o espiritismo? Buscou, através de sua leitura religiosa, sedimentar a concepção de pagamento de culpas eternas, isto é, o homem apenas estaria na terra a cumprir dívidas, tributos de outras vidas, visando assim ascender sua existência, ou sua alma, a um plano superior. Pura metafísica! Puro niilismo! Ora, se estamos pagando dívidas, sempre estaremos culpados por alguma coisa. O espiritismo somente veio culpar o homem ainda mais, torná-lo mais fraco, doentio, incipiente, simplório. Diz-se ainda, nessa seita religiosa, que os espíritos superiores ensinam os espíritos desviados e obscuros a progredir. Vê-se, em outro turno, a eterna busca da perfeição, do mundo projetado, da não-aceitação dessa vida, da antinatureza, da negação do homem e de seus sentidos. E o homem revive, ressurge, defeituoso, para ser punido, para crescer com o sofrimento. O que nos prende, porém, conforme preconizam os espíritas cristãos, é a impureza que carregamos, porquanto se estamos na terra, pressupõe-se de imediato e sem dúvidas, como pecado, como dívida, como imperfeição. Observemos a lógica da culpabilidade, do cárcere eterno, do martírio em vida, enquanto que a vida fica relegada ao plano transcendental, que é pura cogitação, que é pura elaboração divina. E mais uma vez forte e veementemente, prova-se que o homem não é livre, sempre atado a si mesmo, sempre em busca de encontrar-se mais puro e perfeito em outra vida, em outro mundo. O homem adora o nada, o desconhecido; idolatra os outros, mas não se concebe capaz, permanecendo na fraqueza, na redução de sua existência, na indiferença à sua grandeza. Isso é ser e pensar como niilista.

– Do niilismo

Atentando-nos para o princípio da moral cristã, não nos restam dúvidas acerca de seu conteúdo essencialmente niilista. O nada pela crença no nada, para viver para o nada, negando a todo instante o que existe de humano, de passional, de racional, de sensível, de vida. O cristianismo nega a vida. Dá o corpo como prova e princípio de vida, mas o despreza, condenando-o, criando os pecados, as flagelações, o masoquismo, o sadismo, antes mesmo dos povos modernos. Tem-se que acreditar que esse corpo é um cárcere, onde os flagelos da alma estão acorrentados, porém, serão libertos no dia do juízo, na salvação. E para que a vida? Para mero deleite do sacrifício, para o jejum mórbido, para a sede e fome em vida, para expurgar o pecado da própria criação. Não se percebe isto: o paradoxo da criação? Se fomos criados para a vida, devemos negá-la, pois isso é um projeto inacabado, é uma etapa, uma missão iniciada, um esboço, um rascunho. A perfeição será atingida. Que o homem seja um eterno perdedor, um culpado, um resignado em seu não poder, amedrontado pelo esgotamento e finitude de suas forças: tudo isso brada a Igreja, propala o cristianismo. E quem o afronta? Deus castigará no final. Entre a justiça de Deus e dos homens em nada há de diferente. Porque sempre esperamos pela sentença final, sempre. E essa é a psicose nossa coletiva de cada dia, ou melhor do mais simples ao mais culto cristão. É essa a crença revestida de martírio, de recriação de mais e mais mártires, à procura do toque de Deus na terra. O homem não admite alguém mais perfeito que ele, não admite a sua própria natureza, não admite o seu pensamento, o seu bem, o seu mal, as suas criações, o seu reflexo melhor acabado na face cintilante e poderosa de Deus. O homem não se conhece, não se admite, tem medo de si, afasta-se de si, nega-se, envolve-se em outras coisas para achar que forte, sábio e ciente é outro, outro maior, para o qual se deve ajoelhar, agradecer, esmolar, tecer orações, imolar a própria existência vazia. O homem com medo de seu vazio, interrogando-se do seu próprio papel, o seu criar, cria Deus e o aplaude por tudo. E quem ele espera? Encontrar a si mesmo governando o mundo, num paraíso perfeitamente mundano, natural, humano. O erro do homem não está em sua crença, mas em admitir que ele é fraco o bastante para não acreditar em si mesmo.

Observou com grandeza Nietzsche que[21]:

O conceito de ‘Deus’ foi arquitetado como antítese ao de ‘vida’, tendo sido reunido nele, em terrível unidade, tudo o que havia de abjeto, de venenoso, de calunioso: todo o ódio mortal contra a vida. O conceito de ‘além’, do ‘mundo verdadeiro’, foi criado para desprezo do único mundo que existe, para não conservar mais em relação à nossa realidade terrena qualquer objetivo, determinada razão ou alguma finalidade! Os conceitos de ‘alma’, ‘espírito’ e, enfim, também aquele de ‘alma imortal’ foram inventados para ensinar o desprezo do corpo, tornando-o doentio …

Se a vida que conhecemos é essa, se o mundo que nos foi criado é esse, se o corpo que temos é esse, se o que pensamos é isso, por que devemos negar o objeto da própria criação? Isso, sim, é destruir e negar a criação, é negar a sabedoria divina, é apenas admitir um desejo mordaz de ver os objetos e seres criados em desespero, morrerem, adoecerem, lançarem impropérios contra quem pode tê-los criado, inventado, inspirado. O que Deus quis provar com isso? Que não sabia o que fazia? Ou se sabia, sua diversão é uma das melhores e irônicas! Ri de si mesmo, ri de suas criações, diverte-se com seu talento, e ri, ri ruidosa e sarcasticamente pela eternidade. Um grande artista. Aí reside a grande arte humana, a seiva que nos permite ri de nós mesmos, recriar um mundo paralelo, uma cópia da cópia, um plágio do plágio. Não percebem a grande ironia? Não vêem o eterno retorno? Não vêem que a vida é bela, miserável, odienta, mas vida humana, sobremodo? A vida é o espelho do homem, e o homem se espelha em Deus, ele mesmo, e nada além. Isso seria destruir a si, um suicídio, um Narcisismo sem tamanho. Mas o homem-deus ou deus-homem é Narciso.

Nesse sentido, reflete[22]:

Quando se coloca o centro da gravidade da vida não na vida, mas no ‘além’ – no nada -, tira-se à vida o seu centro de gravidade. (…) o cristianismo fez uma guerra de morte a partir dos mais ocultos recantos dos maus instintos contra todo o sentimento de respeito e de distância entre um homem e outro homem, contra o pressuposto de toda a evolução, de todo o crescimento da cultura – do ressentimento das multidões forjou a sua arma principal contra nós, contra tudo o que há de nobre, de alegre, de magnânimo sobre a terra, contra a nossa felicidade sobre a Terra…

– Do paraíso, do purgatório e do inferno

Não é difícil de entender as razões sobre as quais a Igreja se apoiou para difundir o medo entre a humanidade, tornando-a uma mera criatura sobre a égide do desespero. Havia necessidade, antes de tudo, além de criar um deus-juiz, um deus-vingativo, um deus-misericordioso, um deus-político, um deus-partidário, um deus-poderoso, de se criar uma carta magna, um livro de deontologia cristã. E criou-se, além das leis judaicas, o decálogo cristão, os sacramentos, as imposições e interferências da mão de Deus – ou melhor do sacerdote -, nas vidas ‘erradas’ das pessoas. Urgia que se corrigissem os erros, que se não levantassem dúvidas, ou perguntas ‘malditas.’

E como a Igreja se protegeu disso? Já mencionamos algumas de suas criações, e dentre elas, enfatizamos a idéia, que ela criou e difundiu, sobre inferno, purgatório e paraíso. O paraíso sempre foi a negação desse mundo, nele reside e se justifica a própria fé cristã, e se dedica toda a lamúria do homem sobre a terra. Mas, como se fazer justiça? Como se culpar os realmente culpados, os maus, os não-eleitos? Segregando, dando-lhe penas eternas, abrasando-lhe a alma – ou o corpo -, nas chamas sulfúricas do inferno, ao lado do inimigo do cristianismo, do filho bastardo, o Diabo. E ninguém queria sofrer tão grande pena, eterna por sinal; logo, rezar era preciso, assim como afastar-se do mal e da influência daqueles que pregavam o mal. E o purgatório? Um outro subterfúgio do clero para impor medo e a sua verdade soberana. Para lá, iriam aqueles que ainda deveriam pagar por suas culpas, expiar seus pecados por mais algum tempo, até que fosse julgados novamente. Uma mesmice do inferno na terra, apenas com moldes mais torturadores, impressionantes, fantasmagóricos.

A Igreja não se cansa de pregar a culpa, antes de pregar o amor. De ofertar a libertação, não antes de pregar o pagamento da dívida com Deus e com a Igreja, seus intermediários fiscais. A Santa Igreja, a Digníssima Porta-voz de Deus, Sua procuradora. Que pena, não há cartório capaz de vencê-la! Sim, pois ela é a dona da verdade, a detentora de todos os direitos, de toda a justiça, de tudo que salva e permite a libertação.

A respeito dessa lógica, sustenta que[23]:

Uma fé tal não se irrita, não acusa, não se defende; não usa ‘espada; não imagina sequer o conflito que poderia provocar algum dia. Não se manifesta nem por milagres, nem por recompensas, nem por promessas, muito menos ‘pelas Escrituras’; é ela própria, e a cada instante, o seu próprio milagre, a sua recompensa, a sua prova, o seu ‘reino de Deus’

E o que dizer da crucificação? Da Igreja como modelo? Do sacerdote? Do santo? Das imagens e idolatrias? Da abnegação de si – e o que é pior -, da vida?

De onde viemos e para onde vamos? Perguntar-se-iam os filósofos primeiros. E os existencialistas sobre incertezas e esmiuçadas conjecturas tergiversariam. Os teólogos e niilistas negariam esse tipo de pergunta, pois, para eles, o sentido do mundo não pertence a esse mundo, mas ao nada, ao depois, ao além, à desaparição do homem, à finitude, ao idealismo da perfeição em outro espaço. A verdade salva, diriam os cristãos, pois a verdade é Cristo, e quem nele se apoia e acredita, estará salvo. Mas de que? Da vida, do sofrimento, da própria criação, da idéia de mundo e de homem? Mais uma vez, e de modo incansável, isso é negar a natureza. Entretanto, grita Zaratustra do alto da montanha[24]: O homem é superável (…) Eu vos apresento o super-homem. O super-homem é o sentido da terra. Mas isso tudo sem idealismo, o homem como ideal de si mesmo, admitindo-se imperfeito, entretanto desejando ser além aqui na terra, por meio de suas forças, de sua vontade de poder e transmudando os valores, destruindo ídolos fictícios e morais niilistas. O homem além de si, da moral, da verdade talhada em negação do homem e da vida; o homem a tornar-se, a devir no seio da terra, objeto e sujeito de sua própria criação e inspiração.
 






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Fonte:
Jornal Despertar
http://jornaldespertar.blogspot.com/2010/01/nietzsche-o-imoralista-e-fe-crista.html
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