domingo, 4 de abril de 2010

JESUS: Tentação e Filosofia

Jesus: tentação e filosofia

1.
Judas apareceu no local em meio a um grupo de soldados e autoridades. Chegou e beijou Jesus. Era o sinal combinado para que os que vieram com ele soubessem quem ali, em meio à multidão, era Jesus. Identificado, Jesus foi preso pelas autoridades. Mas não sem resistência e confusão. Um dos discípulos arrancou a espada e cortou a orelha de um guarda. Jesus o repreendeu. A partir daí a briga se instaurou em geral e os soldados botaram todos para correr. Houve até um dos que seguiam Jesus, costumeiramente vestido apenas de um lençol, que se desvencilhou das vestes ao ser agarrado e fugiu correndo pelado. Há quem diga que o jovem que correu pelado para não ser preso era Lucas, um dos quatro que, depois, foram os autores do ocorrido, os que escreveram o Novo Testamento.

Creio que os que apostaram que Lucas era o jovem que abandonou os lençóis e fugiu pelado, quando da prisão de Jesus, tinham boas razões para assim conjecturar. A situação é engraçada e, quando assim acontece, principalmente em um lance em que não deveria caber o humor, o autor só pode estar dando uma pista de um fato particular, que ele quer que fique registrado. Em uma situação trágica, um bom autor só se permite ridicularizar a si mesmo. Lucas ousou colocar o fato destoante não só para, talvez, amenizar a tensão do leitor naquela parte da narrativa, mas para informar que se houve alguém mais covarde ali no momento isso não ficou registrado e, então, o (de)mérito teria de caber só a ele próprio, o autor.

Alias, fico imaginando que foi esse episódio que decidiu a sorte de Lucas. Ao chegar à sua casa esbaforido, com medo e pelado, ele viu que havia se metido realmente em uma confusão grande. Seguir Jesus não era para qualquer um! Mas, caso Jesus não fosse nada além de um simples falastrão, ainda assim escrever sobre ele valeria a pena, uma vez que as coisas tomaram aquele rumo, o da sua prisão. No mínimo daria um bom relato jornalístico – uma boa história. É assim que imagino Lucas em sua casa, escondido, morrendo de medo dos soldados o terem seguido, mas ao mesmo tempo ciente de que tinha nas mãos tudo para começar sua carreira de escritor moral e imortal. Acertou em cheio: é até hoje, junto com Mateus, João e Marcos, um dos autores do livro mais vendido no mundo todo em todas as épocas. Nos tempos modernos, Gutemberg começou a imprensa com a Bíblia, e daí em diante qualquer editor sabe que, quando está passando dificuldades, se imprimir a Bíblia os Céus ajudam-no rapidamente a sair do buraco.

Os textos bíblicos do Novo Testamento precisam ser lidos levando em consideração o conjunto dos quatro autores. Um autor complementa o outro. Há passagens de Jesus contadas por um dos autores e que não são mencionadas pelos outros. São historietas que podem ser lidas segundo o gosto de cada um. Interpreto-as de um modo bem pessoal, mas seguindo um determinado rigor de abordagem que nunca deve ser desconsiderado: a Bíblia é um livro moral, nós o lemos para tirar um ensinamento para a conduta da vida, não para qualquer outra coisa. É um livro de sabedoria, não de conhecimento. Trata-se de um manual popular de ética, não um compêndio de história científica ou ciência. Um manual apropriado para nós, os do Ocidente, com passagens curiosas que nenhum jovem deveria deixar de ouvir e que nenhum adulto não pode não ter escutado.
2.
Em termos gerais, o Novo Testamento é bem simples. Trata-se da história de Jesus. O que fez Jesus?
Jesus nasceu em Belém, nas terras de Israel, ou seja, era judeu. Filho de uma jovem chamada Maria e de um homem um pouco mais velho, um carpinteiro de boa índole chamado José. Ele propôs novos ensinamentos religiosos. Segundo ele próprio, os seus ensinamentos não iriam contrariar a lei religiosa já existente. Todavia, quando olhamos de perto o que ele falou e o que era a religião oficial dos judeus, não há como não dizer que ele realmente pregou algo distinto do que até então era a moral religiosa comum.

No decorrer da sua pregação, irritou bem os homens do poder e do dinheiro, principalmente as autoridades eclesiásticas tradicionais, que viram nele uma ameaça ao status quo que possuíam. Conseguiu atingir tais autoridades muito mais do que aos romanos, que mantinham o controle político-militar da região. Suas palavras foram tomadas como blasfêmias pelos sacerdotes locais e, enfim, Jesus foi preso, julgado e condenado a morrer amarrado em uma cruz, como era o costume romano da época. Assim ocorreu. Sua morte colocou em marcha, por meio de discípulos que o conheceram diretamente ou não, a divulgação de suas idéias, o “cristianismo”. Basicamente, sua doutrina poderia ser colocada sob uma rubrica do seguinte tipo: “o amor é a única lei” – Era realmente allgo bem diferente da lei ético-religiosa popular, mais ou menos vigente até então em quase todo o mundo antigo, a do “olho por olho, dente por dente”.
3.
Jesus não deixou nada escrito. O que se sabe dele veio por relatos de todo tipo, principalmente os textos dos apóstolos Mateus, Marcos, Lucas e João. São textos nem sempre com informações precisas e, em alguns pontos, errados quanto a determinados detalhes da época. Mas, como disse nos parágrafos anteriores, isso pouco importa. Durante seu tempo de pregação, Jesus viveu na Palestina, uma faixa de terra de não mais de 85 km de largura e 240 de comprimento, delineada entre o Mediterrâneo e o rio Jordão. Era uma terra de agricultores, criadores de rebanhos, pescadores, comerciantes, artesãos e muitos, mas muito mesmo, religiosos e profetas de todo tipo.

A palestina do tempo de Jesus entrava na geografia do Império Romano por meio de duas colônias, a Judéia e a Samaria. Roma indicava um procurador para governar o local e este concedia certa autonomia para a colônia, uma vez que, por sua vez, nomeava o sumo sacerdote, retirado de um grupo social local. O sumo sacerdote detinha o conhecimento das tradições religiosas e, assim, possuía não só poder religioso, mas poder político e criminal que, enfim, se tornava concreto e eficaz a partir de sua atuação em conjunto com as práticas do Sinédrio.
O sumo sacerdote governava a partir do Templo de Jerusalém e era ajudado pelo Sinédrio de 71 membros. Essas pessoas eram sacerdotes, escribas ou simplesmente anciãos. Reportando-se ao Templo, existiam nas pequenas cidades os conselhos locais, em geral compostos por anciãos.

Os grupos da sociedade da Judéia e Samaria se formaram a partir de recortes étnicos, profissionais, econômicos e, é claro, religiosos. Os saduceus eram os grandes proprietários de terras. De suas famílias vinham os sacerdotes mais influentes. Eles tinham o controle do estado, da administração pública e, certamente, do próprio Sinédrio. Trabalhavam em estreita colaboração com os conquistadores romanos. Rejeitavam uma série de elementos que faziam parte da religião renovada, que aparecia pela boca dos intelectuais, como a crença nos anjos e demônios, o messianismo e a ressurreição.
Os intelectuais da época formavam um grupo à parte, eram os escribas ou “doutores da Lei”. Tinham penetração no Sinédrio, mas predominavam mesmo nos pequenos templos locais chamados de sinagogas. Tinham amplo controle da educação popular uma vez que, na maioria dos casos, eles eram os mestre-escolas. Aliás, não raro as escolas se organizavam a partir das sinagoras. Os “doutores da Lei” eram principalmente administradores, juristas, pedagogos – todos ligados ao saber que, no caso, era o saber de interpretar as Escrituras, pouco revelado ao povo ou mesmo aos mais abastados, os saduceus. De certo modo, tinham o monopólio da interpretação das Escrituras.

Os fariseus formavam o clero pobre, que militava nas sinagogas, criando certa resistência ao que se fazia no Templo. O Templo cultivava uma religião mais sacrificial enquanto que as sinagogas eram os lugares da reintepretação das Escrituras, um espaço em que qualquer judeu poderia ler o Evangelho e expor sua visão sobre o assunto. O grupo dos fariseus não era distante do grupo dos “doutores da Lei”, mas diferiam em status. Todavia, ambos tentavam se manter distintos do povo. A doutrina dos fariseus acreditava na vinda do Messias, cuja função seria a de libertar Israel. Esse Messias viria da descendência de Davi. Sua aparição dependeria da força da oração e do jejum dos fiéis. Só assim ele cumpriria sua predestinação.
Os zelotes vieram do grupo dos fariseus. Eram pequenos comerciantes, artesãos, agricultores humildes ou pastores. Eram os que pagavam a maior parte dos impostos. O estado judeu se punha como um excelente cobrador de impostos. Ou melhor: era um cobrador abusivo. E isso tornava os zelotes cada vez mais nacionalistas. Esse nacionalismo se casava bem com uma religião rigorosa e com o desejo de expulsar dali os romanos, vistos como exploradores ligados a uma religião pagã. Os zelotes acreditavam no que os fariseus acreditavam, mas a resistência ao invasor era mais radical. Em geral, por defenderem a luta armada contra as autoridades, eram tomados como terroristas – uma prática de revolta que tradicional do local.

Além desses, existiam os essênios, que eram adeptos do ideal monástico. Por isso mesmo se opunham às atividades urbanas, principalmente o comércio. Defendiam rituais de purificação e também esperavam o Messias, que deveria vir para exterminar os ímpios e estabelecer o “reino dos judeus”. Também naquelas terras viviam os samaritanos. Não eram judeus. Não freqüentavam o Templo de Jerusalém, nem davam atenção para sinagogas ou para a vinda de qualquer Messias da casa de Davi. Tinham para si mesmo que o Messias seria descendente de Moisés. Eram vistos pelos judeus como um povo impuro.
É claro que existia, também, um grupo menor cujos membros cumpriam o papel de funcionários da corte, no caso, a administração de Herodes. Eram os que mais prestavam atenção nos zelotes, para ver suas atividades e, se fosse o caso, os prender.
4.
Nos dias em torno da data de nascimento de Jesus, surgiram em Jerusalém três forasteiros perguntando pelo lugar em que poderia estar o menino. Eles se diziam homens do Oriente e, sem muita cerimônia, questionavam pessoas na rua sobre o local em que teria nascido aquele que seria “o rei dos Judeus”. Diziam que haviam chegado até ali por causa de um aviso no céu, algo como uma estrela que os havia guiado até Jerusalém. A missão dos homens, como contada por eles mesmos, era a de presentear o recém nascido e “adorá-lo”.

Os homens que estavam procurando pelo Jesus recém nascido eram magos – três magos, Belchior, Baltazar e Gaspar. Eram sacerdotes persas, da religião do profeta Zoroastro ou Zaratustra. Eles acreditavam em um deus único e na vinda de um messias, isto é, uma pessoa “consagrada”, capaz de reconstruir dinastias perdidas. Seguindo a estrela ou o fenômeno luminoso no Céu, eles se deslocaram de muito longe para ali a fim de prestar uma homenagem não só à criança que, num futuro não muito distante iria mudar o calendário do mundo, mas muito provavelmente venerar o que era o cumprimento de uma profecia de sua própria religião.

O desconhecimento deles a respeito da cultura local era visível. Não faziam idéia de quem governava a região e de que modo o fazia. Pois, caso tivessem alguma pista sobre isso, não teriam ziguezagueado pela cidade perguntando sobre Jesus, muito menos usando a expressão “o rei dos Judeus”. Como disse, a terra dos judeus estava sob domínio romano. Ora, como em todas as colônias, os romanos eram zelosos quanto ao aparecimento de líderes vindos dos povos dominados. Líderes só eram bem vindos quando aceitavam as diretrizes de Roma, mas, se eram aclamados já no nascimento, como saber no que iriam se tornar ao ficarem adultos?  Líderes assim não deveriam ficar adultos. O governante daquela época, ali na província, não era romano, e sim judeu, mas não pensava diferente dos romanos. Era até bem mais rigoroso nesse sentido. Seu nome era Herodes.
Estava no trono pela força do exército romano. Era despótico e cruel. Herodes era uma pessoa insegura, que fazia questão de se cercar de auxiliares menos cultos que ele, para que não viesse a ser ameaçado em seu cargo. Como não era muito inteligente, essa sua regra acabou por imprimir ao seu staff a marca da mediocridade. Foi essa incompetência que salvou Jesus no seu nascimento.

A conversa dos magos na cidade chegou ao palácio do governo. Mais que depressa, Herodes mandou seu mensageiro de confiança convidar os forasteiros para vir ter com ele no palácio, em um encontro secreto. Ao mesmo tempo, reuniu os sacerdotes locais, perguntando a eles sobre em que lugar nasceria o tal líder, o “rei dos Judeus”. Os sacerdotes apontaram a cidade de Belém, próxima dali. Quando os magos chegaram ao palácio, Herodes os adulou de toda maneira e insistiu em passar a eles uma imagem amável em relação ao recém nascido procurado.  Disse de pés juntos que iria visitar o menino para também “adorá-lo”. Então, pediu aos magos que ao retornarem de Belém, passassem de volta ao palácio para informar não só sobre onde residia a criança, mas também para falar sobre a família.

Qualquer outro rei teria seguido os magos ou, então, visto aquela estrela enorme no céu, vagando e mostrando o caminho para os forasteiros. Todavia, não foi isso que Herodes fez, ele realmente ficou ali, esperando a volta dos três persas. Os magos seguiram caminho e logo viram novamente a estrela que os havia guiado até então. Foi com a sinalização dela que eles chegaram exatamente ao local onde estava Maria e seu filho Jesus. Quando viram a criança nos braços de Maria, eles se abaixaram e, de joelhos admiraram o garoto. Depois de um tempo, eles abriram seus pertences de viagem e então presentearam mãe e filho com mirra, incenso e a resina “áurea”.

Os magos iriam voltar para Jerusalém, todavia, na noite que passaram ali sonharam com uma situação pouco amigável na corte de Herodes e, então, resolveram partir para suas terras por outro caminho. Tão logo eles partiram, José pegou Maria e o menino e foi para o Egito. Ele sabia muito bem que Herodes não era “flor que se cheire”, e não quis se arriscar nem um pouco em Jerusalém ou mesmo ficando por ali.
Passado algum tempo, Herodes se deu conta de que os magos o haviam ludibriado. Com ódio e, também, receoso sobre o futuro do tal “rei dos Judeus”, não hesitou em tomar uma atitude violenta. Mandou que seus soldados matassem todas as crianças até dois anos que encontrassem em Belém e nas circunvizinhanças. Sorte de Jesus, azar de outros meninos. Alegria de Maria e José, dor para outros pais.
Tudo isso determinou que Jesus passasse uma parte de sua infância no Egito, em uma cultura bastante diferente da de seus pais. Talvez isso tenha contribuído para fazer dele um jovem prodígio e uma pessoa um pouco diferente do que José e Maria esperavam de um filho.
5.
Depois de alguns anos, quando José avaliou que o perigo havia passado, resolveu sair do Egito e voltar para as terras de Israel. Todavia, prudentes, José e Maria não foram morar em Jerusalém, eles se estabeleceram na Galiléia.
Algumas vezes visitavam Jerusalém. Na Páscoa, essa visita era obrigatória. Em uma dessas visitas, passaram por um grande e angustiante susto.
Estiveram na cidade como de costume e, então, regressaram junto da caravana de peregrinos. Caminharam por um dia todo e só quando anoiteceu perceberam que Jesus não estava junto na caravana. Foram aos parentes em cada parte da caravana, perguntando pelo garoto e nada encontraram. Preocupados e aflitos, deixaram a caravana seguir e voltaram para Jerusalém. Procuraram na cidade por três dias e não acharam nenhuma pista de Jesus.

O acaso os levou ao Templo e foi justamente lá que encontraram Jesus. Fazia três dias que Jesus estava ali perguntando e discutindo com os sacerdotes. Havia já um público para ele, pois sua argumentação era envolvente e suas respostas eram inteligentes o suficiente para encantar os que ali estavam.
Quando Maria viu Jesus ali no templo correu para ele, abraçando-o firmemente. Mas, como não poderia deixar de ser, ela perguntou ao filho porque ele havia ficado ali e como ele não havia se dado conta de que, agindo assim, deixaria seus pais completamente malucos. O comportamento esquisito de Jesus foi marcante. Sua resposta também foi uma pergunta: “onde eu poderia estar senão na casa de meu pai?”.
6.
Antes de iniciar a sua pregação, por volta de seus trinta anos, Jesus realizou um período de autopreparação. Primeiro, encontrou João Batista, que realizava o batismo das pessoas. Enfiava a cabeça delas no rio e, após o banho, ensinava algumas diretrizes não tão distantes daquilo que, depois, veio a ser o ensinamento de Jesus. Jesus foi ter com João Batista e também foi submetido ao ritual do batismo. Depois, Jesus retirou-se para o deserto para jejuar, refletir e orar.
Solitário no deserto por quarenta dias, Jesus teve tempo suficiente para decidir se iria ou não seguir como missionário, educador popular e renovador moral. Como foi sua preparação? Jesus se viu colocado diante de tudo o que ele abandonaria se escolhesse a vida missionária. Tais coisas lhe apareceram como as “tentações”. Mateus, Marcos, Lucas e João relataram isso como tentações do mal, ou seja, como visões postas por um demiurgo maligno, “o diabo” ou “Satanás” ou coisa parecida.
Mas, enfim, o que eram as tentações?

Tendo o dom da palavra e gozando de perfeita saúde, não seria difícil para Jesus, naquela sociedade ávida por doutrinas, deixar a profissão de carpinteiro, que aprendeu de seu pai, e procurar se aproximar das autoridades para se transformar em uma liderança religiosa. Talvez a origem social de seu pai, um artesão, pudesse lhe dificultar um pouco a ascensão social. Mas, para aquele que, quando criança, foi respeitado por adultos no Templo, não seria tão complicado conseguir um lugar social melhor que o de seu pai. Por isso mesmo, optar por se tornar um reformador social e, então, abandonar esse caminho de êxito em conluio com o poder, não era uma decisão simples.

A um jovem de trinta anos, com o tipo de carisma de Jesus, o mundo realmente poderia aparecer aos seus pés. Foi assim que ele se sentiu no deserto, em vários momentos, como quem estava diante da tentação de agarrar o mundo, fazendo disso o instrumento de uma conquista que, certamente, traria felicidade para qualquer pessoa. Para outros, isso poderia parecer impossível. Mas duvido que Jesus não tivesse clareza de que, para ele, aquilo era muito bem uma possibilidade palpável. Assim, decidir por uma vida difícil de pregador de uma reforma moral merecia quarenta dias de reflexão.
7.
Uma vez no deserto, Jesus se colocou diante de três desafios: o do eu consigo mesmo, o do eu com os outros e o do eu com a natureza. Os que escreveram o Novo Testamento colocaram esses desafios nos termos das tentações de Jesus de ceder ao mal para conseguir o que poderia vir a desejar. E o que poderia vir a desejar? Satisfação de necessidades físicas, exemplificadas por fome e sede, certamente. Satisfação do desejo de poder e riqueza, exemplificado pela visão de Jesus de palácios e reinos grandiosos. Satisfação do desejo de controlar as forças naturais, exemplificado pela idéia de poder desprezar a lei da gravidade.
O desafio do eu consigo mesmo nada é senão a tarefa de notarmos o que somos diante de nossos desejos relativos às sensações. Aderimos ao mal para nos satisfazermos? Ou podemos nos conter e ficar sem a satisfação de nossas mais urgentes necessidades físicas, quando se trata de ter de fazer algum mal a nós mesmos e a outros para que tais necessidades cessem?

O desafio do eu com os outros diz respeito ao nosso convívio social, que inevitavelmente nos coloca no ambiente do poder e do dinheiro. Ninguém é imune ao desejo de ter algum poder sobre outros e de ter algum dinheiro. Todavia, o quanto nós pactuamos ou não com o mal para conseguir dinheiro e poder? Conseguimos abrir mão de todo desejo de dinheiro e poder se, para tal, o único caminho é aderir ao mal, ou seja, o prejuízo e o sofrimento de outros?

O desafio do eu com a natureza diz respeito ao nosso contínuo desejo de controle do mundo que nos cerca. Não raro, nos achamos no direito não só de controlar a natureza, mas de dominá-la a qualquer preço. Sentimo-nos deuses quando, com nossas engenhocas, alteramos a natureza e a fazemos se dobrar não só às necessidades humanas, mas até mesmo aos nossos caprichos idiossincráticos. Sabemos lidar com a natureza sem nos aliar ao mal, isto é, sem prejudicar nosso mundo?

Jesus no deserto viu tais males como uma forma de escravidão. Em um primeiro momento, ali no deserto, pensar no objeto dos desejos poderia parecer como sendo prazeroso, a fuga da permanência no deserto – o deserto da vida pobre. Mas, jejuando e meditando, Jesus se convenceu que a escravidão era exatamente o oposto. Seria escravo dos desejos aquele que não soubesse desprezar coisas desejadas quando, para obtê-las, o único caminho possível era adorar o mal. Jesus saiu fortalecido do deserto, pronto para sua atividade de pregador, quando ganhou a clareza de que poderia abrir mal de desejos se eles estivessem atrelados ao prejuízo de si mesmo, dos outros e do mundo.
Apesar dos fundamentos serem diferentes, em vários momentos é possível ver uma grande proximidade entre essa questão de ser ou não escravo do mundo na doutrina de Jesus e na doutrina dos filósofos estóicos. Aliás, posso ir mais além e lembra que São Paulo, que realmente foi quem organizou o cristianismo posterior, como havia sido soldado romano, tinha muito de estóico – o comportamento de quem busca saber de seus limites exatamente para não se ver subjugado a tudo que limita.

Quando Jesus saiu do deserto convencido de que queria ser um reformador moral, ele estava plenamente consciente de sua decisão. Saiu com o espírito fortalecido. Ele precisava disso. Somente uma pessoa altamente convencida de que o que faz é importante e é o que deve ser feito ensina como ele foi descrito ao falar nas sinagogas. Diziam dele: “ensina com autoridade”. “Ele ensina com autoridade” foi uma frase repetida pelos que escreveram o Novo Testamento, ao relatar o que as pessoas exclamavam quando as pregações de Jesus se iniciaram. Uma autoridade visivelmente maior que a de João Batista.
8.
João Batista era um pregador que vivia de modo muito simples, no campo. Usava como vestes uma pele de camelo, se alimentava de mel silvestre e fazia rituais perto do rio Jordão. Recebia pessoas para confessar pecados e as submetia ao ritual do batismo. O ritual nada era senão o de enfiar a cabeça das pessoas na água do rio, para o simbolismo de purificação e, é claro, de renovação espiritual.
Após o ritual que promovia no Rio Jordão, dizia aos que ali estavam que deviam repartir o que tinham. Aos soldados dizia para não maltratarem ninguém nem fazer falsas acusações e não reclamar de salários. Aos cobradores de impostos dizia para nunca cobrarem além do justo.

Não era por esses ensinamentos que foi preso, embora essa sua doutrina pudesse, realmente, incomodar uma sociedade acostumada a outro tipo de comportamento. João Batista foi preso por Herodes por causa das autoridades eclesiásticas superiores. Elas estavam sempre atentas ao surgimento de lideranças. Além do mais, João Batista falava em “um novo reino”, e os saduceus não gostavam nem um pouco de qualquer tipo de pregação que anunciava algo que lhes soasse como uma nova estrutura social. Isso lhes parecia incitação à revolta social e política. Para piorar as coisas para João Batista, ele também se indispôs com o governador da Galiléia, Herodes, criticando-o por suas maldades contra a população e também por desposar a mulher do irmão.

Apesar dessas querelas, a prisão de João Batista não parecia, ao menos à primeira vista, que deveria render grandes traumas. Mais cedo ou mais tarde ele seria solto, pois as acusações contra ele eram as de blasfêmia, completamente infundadas. Todavia, a mulher de Herodes tomou as críticas de João Bastista de um modo muito particular, e exigiu do marido a cabeça do pregador em uma bandeja. Isso realmente ocorreu.
Quando Jesus ficou sabendo da morte de João Batista, decidiu que havia chegado a hora de iniciar seu trabalho de reformador, que chegaria ao ponto culminante, ao menos para Lucas, no dia do beijo de Judas.
Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo.
Sunday, April 4, 2010

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