domingo, 8 de maio de 2011

FAUSTO : Johann Wolfgang von Goethe

eBookLibris

FAUSTO
Goethe





Fausto
Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832)

Tradução
António Feliciano de Castilho
(1800-1875)

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fontes Digitais
www.dlc.ua.pt/castilho/
Universidade de Aveiro
Obras integrais disponíveis:
O Presbitério da Montanha
Mil e Um Mistérios
Tradução do Fausto, de Goethe
Castilho a Francília [Terceira Epístola]
[O Cedro]
Departamento de Línguas e Culturas
ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO (1800-1875)
NO BICENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO
Autoria de:
Silas O Granjo

Fausto
Clássicos Jackson
Vol. 15
W. M. Jackson Inc. Editores, 1956

Capa
Do cartaz do filme Faust
de Friedrich Wilhelm Murnau
Alemanha, 1926
Fonte digital
ChiaroScuro
www.celtoslavica.de/chiaroscuro

©2003 - Johann Wolfgang von Goethe


ÍNDICE



Nota do Editor

A presente edição em eBook do Fausto de Goethe, não é, como se encontra no website da Universidade de Aveiro, a reprodução integral da 2a. Edição de 1919 da Livraria Clássica Editora, de A. M. Teixeira. Aos estudiosos das obras de Goethe e, particularmente, de Castilho, recomendamos que visitem o site original: www.dlc.ua.pt/castilho.
Não é, tampouco, reprodução do volume XV dos Clássicos Jackson que, a despeito do soberbo prefácio de Oto Maria Carpeaux, deixou de fora a dedicatória que a seu irmão fazia Castilho, resgatada aqui, de conformidade com a fonte digital da Universidade de Aveiro
Não sendo reprodução exata da fonte digital, uma vez que nos utilizamos da edição da W.M.Jackson, de 1956, para a apresentação gráfica, introduzindo elementos gráficos que não constam das duas fontes digitais citadas, deixamos de reproduzir, para não induzir a erro algum incauto leitor, a capa da 2a. edição.
Não conservamos, também, os números das páginas correspondentes à 2a. edição, de 1919, conforme a fonte digital. Para uma referência exata, caso necessária, o eventual leitor deverá visitar o website da Universidade de Aveiro, recorrer à segunda edição impressa ou alguma outra, caso exista, que a reproduza literalmente.
Boa leitura!
eBooksBrasil


FAUSTO

Goethe

Traslada ao português por
ANTÓNIO FELICIANO DE CASTILHO

AO SEU BOM IRMÃO
JOSÉ FELICIANO DE CASTILHO
COMO PEQUENO RECONHECIMENTO
DE IMENSA DÍVIDA
OFERECE
CASTILHO.


ADVERTÊNCIA

A tragédia Fausto de Goethe aclamado imperador pontífice dos poetas da Alemanha, é obra indubitavelmente única no seu género.
Em menos de meio século todas as nações têm forcejado para a ler e estudar nos próprios idiomas. Em toda a parte os mais soberbos talentos lhe sentiram em si os influxos triunfais, ao mesmo passo que o senso das turbas mal sabia como se houvesse com as trevas e monstros desta cordilheira de poesia rebentada a súbitas de profundezas desconhecidas.
De nenhum outro livro se tem dito e escrito tanto; é por que este é que foi o verdadeiro padrão que estremou o mundo poético antigo do mundo poético hodierno. Pode-se-lhe já hoje, sem medo de arriscar a profecia, aplicar o que o diabo e os anjos dizem da Margarida no final da primeira parte do poema: - Sentenciada! - Salva!
Como quer que seja, o indubitável é que esta Bíblia ou Alcorão, esta como que filosofia mal distinta, esta reforma da religião poética, merece e necessita que se teime ainda (e Deus sabe até quando) em na discutir; que só depois de bem padejado o grão na eira e levado no vento o palhiço, é que se averigua que abastança entrou para a tulha, e com que pão se pode contar, se ainda assim o gorgulho se não meter meeiro com o lavrador.
Para que tais apurações (que segundo as mostras têm ainda de tardar) se possam vir a fazer, claro está que a primeira condição é conhecer-se a coisa que tem de ser sentenciada. Daqui a multidão de traduções da tragédia Fausto tentadas em todos os países em que há literatura; daqui o acolhimento que mais ou menos a todas elas se concede, e daqui também o continuar-se na própria Alemanha o estudo dum sem conto de dificuldades de que o poema original nasceu inçado e ouriçado para os seus próprios conterrâneos.
Em Portugal corria já de anos a esta parte uma certa adoração pânica do nome de Goethe, e o contagioso assombro da tragédia Fausto, apenas enxergada mui por longe entre neblinas. O primeiro português que se determinou em empreender o descobrimento desta região nova da arte foi, não me consta de outro, meu irmão José Feliciano de Castilho durante a sua estada em Hamburgo, há hoje o melhor de trinta anos. Versado já, como quer que fosse, na língua alemã pelo trato com os da terra, entendeu que bom serviço faria aos da nossa, passando-lhes para vulgar o que por lá se lhe deparava de mais afamado e esplêndido, de mais convidativo e fecundo por entre as produções ubérrimas da caudalosa veia dos Germanos.
Assim escreveu excertos da Messiada de Klopstock, trechos de Wieland, e anos depois, e já em tempos mais chegados, a tradução do Guilherme Tell e da Maria Stuart de Schiller, e finalmente a do Fausto.
Aqui porém houve de reconhecer que todo o seu alemão laboriosamente granjeado naquelas versões, não bastava para autor tão abstruso no pensamento, tão fora do comum no estilo, e tão cheio de nós górdios na linguagem; e que não havia remédio senão socorrer-se a algum valente e zeloso auxiliar. Deparou-lho a sua boa estrela na pessoa de um amigo, o Sr. Eduardo Laemmert, alemão residente como ele e já de muito no Rio de Janeiro, erudito notável, e hoje sabedor por igual das duas línguas.
Aqui sobre a minha mesa tenho eu o autógrafo precioso da tradução interlinear e fidelíssima que o Sr. Laemmert fez, não só em obséquio à amizade, mas também em razão do afecto que lhe merecem os créditos da terra em que nasceu, e os da que hoje ama como segunda pátria.
Nada mais curioso que este inédito; sente-se em cada frase e em cada palavra a probidade, o escrúpulo quase beato do intérprete. O como ele depois de colocar as palavras portuguesas na confusa ordem das alemãs as concerta fora do hipérbato segundo a nossa ordem usual! O como procura e acha as frases, os modismos quando os há, que melhor se correspondem com os do idioma que transplanta! A sinonímia com que os termos embaraçosos do original vêm com ilustrada crítica trocados em miúdos! E sobretudo a franqueza de verdadeiro sabedor, com que às vezes declara que não aventa o senso ou a intenção do seu poeta, senso e intenção que os mais finos alemães não dissimulam escapar-lhes a miúdo.
Com esta colaboração, pois, levou meu irmão a cabo a sua tradução em metros variados do, em mais de um sentido, terribilíssimo e verdadeiramente diabólico poema Fausto.
Se louvores fraternos não foram proibidos pelos melindres da decência, e repugnantes ao pejo natural, folgaria de aquilatar o muitíssimo que na sua versão, miudamente examinada e confrontando-a ponto por ponto com outras estrangeiras, descobri de paciente investigação, de assisada crítica, de tino divinatório, de acerto e de ousadias felizes de linguagem, e não raro também de valentia no metro e originalidade na rima.
Outros com menos suspeições para juízes encarecerão isso tudo se a obra algum dia sair a público. Com pesar meu ponho este se por não saber o que a este e outros seus inéditos literários e poéticos, quase todos semi-improvisos de horas furtadas a imperiosas ocupações de maior monta, o autor fará por derradeiro quando vir que lhe falecem os ócios indispensáveis para minuciosas e prolixas emendações, coisa mal compatível com as índoles como a sua, impetuosas, precipita das, ferventes, indomáveis. A abundância estrepitosa, brilhante, esplêndida, é do seu; nada lhe custa; a paciência dos aprimoradores sumos recusou-lha a natureza, que raro ou nunca dá tudo a um só homem.
O seu Fausto, o seu Tell, a sua Stuart, e bem assim o seu drama Pujol, feito em colaboração com o nosso amigo Jacques Arago, as suas comédias originais O amor e a morte, Os estudantes de Coimbra, O mundo, e outros seus improvisos, formariam uma colecção festejável no juízo dos partidários das nossas boas letras, se quem tal fundiu não carecesse do necessário lazer e gosto para o limar e brunir à horaciana: nove anos e dez aperfeiçoamentos!
Porque pois traduzi eu o Fausto, se já em Portugal, e como que de portas a dentro, se achava traduzido? Direi isto francamente e em poucas palavras.
A primeira leitura que meu irmão me fez do seu Fausto, com aquele fogo e intimativa que lhe anima a declamação, e que nem na prática mais correntia e doméstica o desacompanha, maravilhou-me, absorveu-me, aturdiu-me; nada mais vi que excelências e formosuras! Como porém somos conhecidos de largos anos, e sei que a qualificação de grand dupeur d’oreilles que a si mesmo dava Andrieux, em ninguém acertou nunca mais à própria que em meu irmão, requeri logo segunda leitura, feita por outrem, despida de prestígios e pausada.
Nesta, posto não desaparecessem os motivos da minha primeira admiração, tive azo de ir descobrindo suas máculas das que o Horácio perdoava:
...........quas aut incuria fudit,
aut humana parum cavit natura;
e sobretudo reconheci que a pressa e fogo do trabalho deixara por muitas partes menos clareza, e em algumas outras menos vernaculidade, do que fora para desejar em obra destinada por sua natureza a estudo e meditação de muita e boa gente.
Enfim como quer que não haja dois gostos perfeitamente semelhantes, e cada qual abunda no seu senso, muita coisa me ocorria naquele escrito, que, sem me provocar censura nem merecer tacha de menos boa, desdizia do que eu tivera preferido por mais fluente, mais expressivo, ou por qualquer outra razão mais aceitável aos ouvidos do nosso povo.
Para melhor explicar ao tradutor todas estas minúcias, ou por ventura impertinências, comecei traduzindo a sua tradução mais achegada e conchegadamente à índole portuguesa.
Não sei se mereci, sei que obtive, a sua aprovação a essa primeira amostra. Animei-me, prossegui instado por ele e por ele próprio coadjuvado.
Nesta luta fraternal entre o Fausto português improvisado e o Fausto português reconsiderado e reconstruído de frase a frase e de palavra a palavra, se consumiu inteiro o ano que lá vai de 1870.
O como de tão prolixo trabalho, se a algum curioso importar por ventura conhecê-lo, aqui vai francamente declarado.
Estão simultaneamente abertas à roda de nós, a tradução textual e ilustrativa do Sr. Laemmert, a de meu irmão, em certo modo filha da precedente, a portuguesa do Sr. Ornellas, e quatro francesas em prosa raro entremeada de pequenos trechos em verso.
Sobre cada período do poeta alemão são sucessivamente chamados a depor todos estes sete interpretes e acariados uns com os outros com a maior severidade de crítica. A minha consciência está para ali como júri imparcial incumbido e ávido de liquidar entre tantos depoimentos diversos, muita vez confusos e não poucas vezes contraditórios, as máximas probabilidades de certeza, quando a certezas se não chegue.
Passos há, devo confessá-lo, em que nem sequer boas probabilidades se liquidam; discute-se, reestuda-se, medita-se de novo e quando Deus quer transfere-se para hora melhorada, ou para outro dia, a solução da dúvida com que o actual momento se não atreve, até que afinal, atinada a verdadeira, ou a mais plausível, ou a menos ruim sabida da dificuldade, diligenceio expor a coisa a nosso modo, que todos a entendam sem esforço e a possam escutar sem desagrado nem estranheza.
Devo declarar explícita e solenemente que a terem-me desacompanhado as luzes, a sagacidade investigativa com que meu irmão, só ele, me auxiliou para eu poder refundir acertadamente o seu primeiro tentame, nunca eu daria conta dele.
Logo nas primeiras jornadas me houveram faltado as forças, a fé, o ânimo e a vontade, porque (e aí vai outra revelação arriscada a graves perigos) a minha crença nas excelências, nas vantagens, no préstimo real e efectivo da tragédia Fausto, não era nem é ainda hoje tão exaltada, tão ardentemente devota como a de meu irmão; diferença essa fundamental, que a miúdo nos fazia perder em altercações escusadas o tempo que melhor se lograra em apressar a tarefa começada.
De tão espinhoso labirinto, ao cabo de tantos dias de trabalho ininterrupto, e não poucas noites desveladas até sol fora, saiu a presente versão, por mim ditada, e escrita pela própria pena que lançara a primeira.
Fora essa, até por ser a primeira, obra de muito maior mérito e dificuldade, posto que a segunda, pelo tempo que se lhe consagrou, e pelo valioso concurso de circunstâncias que segundo se vê a favoreceram, poderá talvez obter maior número de sufrágios. Uma recomendação, e para mim a mais invejável, tem ela já; e vem a ser a generosa preferência que meu irmão mesmo lhe liberalizou; acto esse que, ainda mais do que a mim, o honra a ele.
Aqui seria já supérfluo ponderar uma verdade, que à primeira vista pareceria paradoxo, a saber: que dadas certas circunstâncias pode um poeta de consciência verter a obra de outro sem aliás lhe conhecer a língua, muitos factos o comprovam. Monti, que deu à Itália a melhor tradução da Ilíada, pelo menos a que se lê com maior gosto, não sabia o grego.
Os salmos de David, centenares de vezes passados a diversas línguas por poetas excelentes, nunca talvez o foram do idioma original. O Oberon, que traduzido directamente do alemão pela Marquesa d’Alorna tão dessalgado saiu, que mal deixa adivinhar porque é que a Wieland se dera a qualificação de Voltaire do Norte, o Oberon veio a ser um dos mais saboreados poemas em nossa língua, saído da pena de Filinto, que nos declara não saber palavra do alemão; o meu admirável poeta Machado d’Assis, ornamento brilhantíssimo das letras brasileiras, deu-nos lindos fragmentos de poesias orientais tomadas não dos textos primitivos, senão de uma interpretação inglesa; e sem me andar à procura de mais exemplos, eu próprio, que do dinamarquês e do sueco não entendo uma sílaba única, traduzi poesias suecas e dinamarquesas, e fui por competentes juizes aprovado. Tudo esteve em ter quem minuciosamente mas interpretasse. Quanto ao grego, peço meças em ignorância ao Vicente Monti.
O mestre que tive dessa língua, no meu primeiro tirocínio de humanidades, desconhecia-a quase tão crassamente como os seus ouvintes, o que me fez perder-lhe para logo todo o gosto; e todavia não foi isso parte para eu não dar uma tradução de Anacreonte e outra do Rapto de Europa, por Moscho, com as quais os raros que têm voto na matéria não ficaram mal avindos.
Por aqui me cerro, ponderando só que me parece questão ociosa esta de se perquirir se um tradutor sabe ou não a língua do seu original; o que importa, e muito, é se expressou bem na sua, isto é, com vernaculidade, clareza, acerto e a elegância possível, as ideias e afectos do seu autor.
Fazem-se retratos do sol para o tornar, como quer que seja, conhecido de quem fito a fito o não encararia; e como se avém na empresa o desenhador? Não podendo encará-lo em frente, copia-o da imagem estampada no espelho reflector; aí desapareceram os esplendores que deslumbram, mas as feições do astro descobriram-se. Este símile da física, tão sabido de toda a gente, explica, me parece, com assaz de propriedade, o como se podia fazer, e se fez, das já mencionadas traduções, esta novíssima reprodução da maravilha germânica. Neste particular, tenho que não há mais contas que pedir, nem mais explicações que dar a curiosos.
Outra e derradeira declaração.
A divisão e subdivisões do poema, como neste livro aparecem, não pertencem ao original, nem também o descritivo do cenário e outras particularidades da execução teatral.
Goethe, como também Molière, como todos os dramaturgos da Grécia e da Itália antiga, transcuravam miudear com estas e semelhantes circunstâncias os seus grandiosos poemas, ainda que o subsídio de tais acessórios bem poderia contribuir para lhes completar as obras aclarando-as e para solver de antemão de modo autêntico e, por que assim o digamos, oficial, muitas perplexidades, muitas dúvidas, muitos perigos de desacerto, em que forçosamente laborariam empresários e actores quando pretendessem expor tais dramas aos seus públicos, especialmente em países remotíssimos, em civilizações quase em tudo outras, quando dos primitivos usos e costumes pouquíssimo ou nada subsistisse.
Em Molière e Goethe, sendo aliás ambos directores de teatro, custa realmente a explicar esta omissão, e em Molière ainda mais, que além de empresário fora também actor, como o fora Plauto, que lhes legara o mau exemplo tal como já o havia recebido de predecessores seus, poetas e comediantes da grande Grécia. Fosse qual fosse a causa desta falta deplorável, o caso é que todos esses notabilíssimos engenhos a cometeram com dano seu e prejuízo ainda maior para quem lá para ao diante os pretendesse interpretar conscienciosamente.
Todas essas lacunas me pareceu indispensável preencher; preenchi-as pois como pude pela reflexão e conjecturando, isto e, apalpando muita vez por entre sombras cerradíssimas. Outros fariam ou farão melhor; eu fiz o que pude. E por aqui me cerro quanto a isto.
Ao segundo Fausto, ao Fausto da velhice de Goethe, não me atrevi, seria esse um trabalho ainda mais fragoso e, quando as dificuldades se vencessem, menos acondicionado para ser bem aceito da nossa gente.
Na segunda parte, dizem alemães, é que o autor mais se despendeu em gentilezas e esmeros líricos. Pode ser; contemplado nos reflectores não o parece; e depois quando essas excelências acidentais e de mera forma, rara vez traduzíveis, sejam tais como no-las querem encarecer, tantos e tão crespos são no último Fausto os enigmas filosóficos, tão abstruso o senso das ficções, e as ficções mesmas tão desnaturais, tão inverosímeis, tão impossíveis, (ia-me quase escapando tão absurdas) que o bom gosto e o bom senso, que tão benévolos perdoaram e receberam a lenda velha do Dr. Fausto, não sei como se haveriam com o Fausto último. O primeiro, o nosso, foi um gigante; o último figura-se ao espírito da nossa consciência o homúnculo, um produto abusivo das forças da arte.
Agora é que de vós me despeço a valer, leitores caríssimos, para vos deixar já à pratica de muito melhor poeta, e inquestionavelmente um dos maiores de todo o mundo.
Castilho.


F A U S T O*



PRÓLOGO DO AUTOR

Está o Poeta no seu camarim, passeando e falando consigo mesmo, antes de compor o livro
Tornai-me a aparecer, entes imaginários,
que me enchíeis outrora os olhos visionários!
Poder-vos-ei fixar?... Tenho inda coração
capaz de se render à vossa sedução?...

Chegam... que densa turba! Envolve-me... Não posso
furtar-me ao seu triunfo. Eis-me, Visões, sou vosso.

Vai-se-me em névoa o mundo. Emanações subtis
que exalais, vem tornar-me aos anos juvenis.
Que imagens que trazeis de dias tão risonhos!...
Caras sombras! sois vós? aéreas como em sonhos?

Como recordação de lenda já perdida,
volve o amor, a amizade, e reassumem vida;
torna a dor a doer. Oh vida! oh labirinto!
de novo o mesmo sois. Já renascer me sinto.
Cá ’stão os bons d’outrora, entes que já gozaram
horas de oiro, e também... como elas se escoaram.
Não me hão-de ouvir agora os mesmos, bem o sei,
para quem noutro tempo os versos meus cantei.
Sumiu-se, aniquilou-se aquela amiga turba,
que nem com som mortiço os ecos já perturba.
Vibra meu canto agora a ignota multidão,
cujo aplauso, ai de mim! me aperta o coração;
e os a quem meu cantar outrora foi jucundo,
erram, se inda alguns há, dispersos pelo mundo.
Ai, plácida mansão, de espíritos morada!
revive na saudade, há tanto descorada!

Começa em vagos sons meu estro a palpitar,
qual de uma harpa eólia o triste delirar...
Já sinto estremeções; o pranto segue ao pranto,
e o duro coração se abranda por encanto.

O que foi, torna a ser. O que é, perde existência.
O palpável é nada. O nada assume essência.
DIÁLOGO PRELIMINAR*
Um teatro ambulante, ainda em osso

O EMPRESÁRIO, O POETA (homem idoso), O GRACIOSO DA COMPANHIA
EMPRESÁRIO
Amigos! (que ambos vós já bastas vezes
nas aflições e apertos me salvastes)
vingará na Alemanha a nossa empresa?
Quero agradar ao público, e preciso,
que o público é real, e eu vivo dele.
Dêmos que está já pronto o barracório,
o teatrinho armado, e cada ouvinte
no seu lugar, ansioso de festança.
Repimpam-se, arqueando as sobrancelhas;
vem todos com tenção de embasbacar-se.
Eu na arte de embair não sou dos pecos,
hoje porém, confesso, estou com susto.
Não anda o povo afeito a mãos de mestre,
mas lê, lê muito; um ler que mete medo.
Como hei-de eu conseguir que ele ache em tudo
novidade, substância, e graça às pilhas?
’Stou nas minhas três quintas quando vejo
acudir-me gentio às rebatinhas,
chegar inda com dia, antes das quatro;
atirar-se ao balcão do bilheteiro
como em tempo de fome à padaria,
e esmurrarem-se à pesca de um bilhete.
Milagre tal em tão mesclada gente,
só poetas de truz. Toca a tentá-lo!

O POETA
Não me fale ninguém do populacho,
a cujo aspecto a inspiração desmaia,
remoinho humano, que nos leva à força.
Ascenda-se ao recesso aberto a poucos,
ao mundo celestial da fantasia,
onde poetas só tem gozos puros,
onde amizade e amor com mão divina
a paz do coração produzem, velam.
O que então do imo peito nos prorrompe,
e nem sempre na voz logra exprimir-se,
embrião, que talvez contém portentos,
que vezes não o afoga a actualidade!
Mas não raro igualmente esmeros de arte
do diuturno desprezo alfim triunfam.
Quem de brilhos se paga abdica os evos.
Vão à posteridade as obras-primas.
O GRACIOSO
Mas que é posteridade, ou que te importa?
Não trate eu de agradar aos com quem vivo,
ao cheiro do louvor dos porvindoiros!
Quem nos pede folgança é o nosso povo;
fartemos-lhe a vontade. É boa gente,
e gente que se vê. Na alternativa
entre ausente e presente, este é quem ganha.
Como lhe hás-de agradar? mui facilmente.
Quem deseja com gosto ser ouvido
há-de aos gostos da turba acomodar-se.
Quanto mais auditório, mais efeito
fará nele o protótipo de génios,
que, dando rédea larga à fantasia,
lhe leva a par o sólito cortejo
de afectos, de paixões, de luz, de graças...
e, para adubo um grão de extravagância.
EMPRESÁRIO
Muita acção sobretudo. Os circunstantes
querem ver e mais ver. Chovam sucessos
uns sobre outros a flux. Folga a plateia,
na curiosa abundância embasbacada;
entra o poeta em moda, e cresce em fama.
Pela turba é que a turba se conquista:
cada qual tem seu gosto; o que um refuga,
outro vem que o prefere. Assim, dar muito
cifra a receita de agradar a todos.
Armar de peças mil uma só peça
é que é o non plus ultra; afortunado
o poeta que o logra: é mestre cuque
de chanfana afamada entre os fregueses.
Há comédia que chegue a um embrechado,
que se arma, enquanto o demo esfrega um olho,
e enquanto esfrega o outro, se desmancha?
O compacto! a unidade! história; petas.
Que vale ao ramalhete ser tuchado,
se a crítica lá está que ri do junco,
e a uma e uma as flores lhe desfolha?
O POETA
Mas que ignóbil mister! que oprobrioso
para artistas de lei! Já nós lá vamos?
já se admite a aldrabice desses tunos,
que dão gato por lebre em coisas d’arte?

EMPRESÁRIO
Barro o sarcasmo. O artífice de jóias
convenho em que se esmere em ferramenta;
achas, quem quer as faz co’uma podoa.
Apuros, para quê? para que ouvintes?
Este vem aborrido, aquele impando
de festim lauto; e, o que é pior, não poucos
da Babel jornalística aturdidos.
Vem aqui, como vão às mascaradas:
matar tempo; açodados, porém frios...
curiosos, quando muito. E as damas? essas
trá-las o empenho de assoalhar os luxos;
são actrizes gratuitas; são figuras
que só trabalham pelo amor da glória.
Já basta de quiméricos Parnasos.
Obténs enchente; aplaudem-te; vês nisso
motivo de ufanar-te? Observa atento
a gente que em Mecenas se te arvora:
metade dela é fria, o resto bronco.
Um tomara-se já no fim da peça,
para se ir ao baralho que o namora.
Outro está já na ideia pregustando
a noite que vai ter entre os abraços,
no seio nu de delirante Frine.
Para relé tão pífia invocar musas!
valha-vos Deus, basbaques da poesia!
Se agradar pretendeis, teimo na minha:
dai acção, mais acção, acção que farte;
O ponto é pôr os cérebros num caos;
contentá-los em cheio era impossível...
.................................
(Vendo ao poeta quase a ponto de se ir em delíquio)
Que tens? é pasmo? é êxtase? são dores?

O POETA
Deixa-me, por quem és; busca outro escravo!
Para ajudar-te na perversa empresa
de derrancar no mundo o siso, o gosto,
querias que o poeta assim brincando
seus foros naturais renunciasse?
Como é que ele os afectos senhoreia?
Com que poder subjuga os elementos?
Não será co’a harmonia entre ele e o mundo?
Ele a absorver do mundo as maravilhas,
e a expandi-las depois com brilhos novos?
Enquanto indiferente a natureza
vai torcendo no fuso o eterno fio,
e a tão discorde multidão dos entes
se entrebate estrondosa e dissonante;
quem vos tira a expressão pela fieira,
e a vivifica e inunda de harmonias?
Tantos entes diversos, desconjuntos,
quem os une em convívio harmonioso?
quem transforma paixões em tempestades?
quem acende arrebóis na mente escura?
No caminho da amada quem semeia
as flores mais louçãs da primavera?
Quem de ténues folhinhas entretece
c’roa, que a todo o mérito premeie?
Quem funda Olimpos? quem despacha deuses?
A força do homem, convertida em estro.

O GRACIOSO
Bem! Pois saca proveito dessa força!
Dê coisas de sustância a tal poesia
- mal comparado - à laia dos namoros:
Encontram-se uma e um; foi mero acaso.
Há simpatia; ninguém sabe o como.
Nenhum pensa em fugir, nem quer, nem pode.
Vão, mole-mole, uns laços invisíveis
prendendo os corações. Cresce o deleite;
dá-se às invejas pasto; acordam zelos;
principia a amargura; e quando a gente
mal se precata, armou-se uma novela.
Dêmos também nós outros na comedia
coisas deste jaez! Enterra em cheio
a mão na vida humana; toda a gente
a vive, sim, mas poucos a conhecem.
Por onde quer que a mires, é curiosa.
Mãos à obra, poeta!
Ouve um conselho!
Imagens a granel; clareza pouca;
erros mil; de verdade um raio apenas.
Oh que misto! oh que pinga saborosa!
Ninguém há que a não trague, e que a não louve.
A flor da mocidade então se apinha;
espia o desenlace; exalta a peça,
onde crê ver inspirações divinas.
Cada alma terna então sorve com ânsia
suave melancólico alimento;
ora isto, ora aquilo a impressiona;
cada um vê na cena o que em si acha;
ei-los prestes às lágrimas e aos risos;
à audácia, à execução vozeiam loas.
São de ruim contento os Padres Mestres.
Noviços, qualquer coisa os enamora.

O POETA
Já vão longe os meus tempos de noviço,
manancial de cânticos perenes,
ignorância do mundo, inexperiência
que num botão de flor Édens previa.
Então sim, que topava em cada vale
boninas que ceifar. Eu nada tinha...
e tinha tanto!: o anelo da verdade,
cobiça d’ilusões.
Oh! restitui-me
esses d’outrora indómitos impulsos:
a dita agri-dulcíssima; a energia
do aborrecer, do amar. Oh! restitui-me,
se podes, restitui-me a mocidade!

O GRACIOSO
A mocidade, meu amigo, é boa
para coisas que eu sei: - Num contra muitos,
por exemplo, é boníssima. - No aperto
de nos saltear um rancho de moçoilas,
à porfia a pender-se-nos do colo,
é mais que boa, é óptima. E no curso,
quando o prémio além-meta nos acena,
mas inda ao longe! E quando, ao fim de valsa
rodopiada, frenética se deve
levar o mais da noite em bonachira!
Agora lançar mão das áureas cordas,
costume vosso antigo, e dedilhá-las
com graça e fogo, volitar no rumo
de assunto que vos praz... senhores velhos,
ninguém vo-lo proíbe; é jus da idade;
e nem menos por isso vos honramos.
Diz que a velhice é nova infância! história;
não é tal; continua a infância antiga.

EMPRESÁRIO
Basta de altercações; queremos obras.
Venha coisa que sirva. Eu cá não creio
no que dizeis de estar-se ou não disposto.
Todo esse rodear de palavrório
só diz: míngua de veia; é procurá-la.
Quem uma vez se recebeu co’a musa,
ganhou jus marital; resiste? obrigue-a.
Sabeis o que se quer: bebidas fortes;
fermentá-las, e já. Quem não fez hoje,
amanhã não tem feito; um dia é muito.
Audácia pois! Agarra pelas repas
a ocasião fugaz; não tens remédio,
segue-a no voo, e está logrado o empenho.
No teatro alemão tudo se admite,
bem sabeis; nada pois de acovardar-te.
Pede afoito cenários, maquinismos,
lua, sol, astros, água, luz, rochedos,
feras e aves sem conto. Na barraca
podes meter a criação em peso.
Voa sem confusão, desde o superno
empíreo, à vária terra, ao negro inferno!



QUADRO I

[Prólogo no Céu]
O Empíreo. Ao meio o Senhor, no trono. À roda a corte celestial, com as suas jerarquias: anjos, arcanjos, querubins, serafins, tronos, potestades, dominações, virtudes, e coros.

CENA ÚNICA

O SENHOR, a sua corte, logo depois MEFISTÓFELES*
(Acercam-se do trono os três Arcanjos)
RAFAEL (cantando)
No coro sideral o sol vai prosseguindo,
qual na origem lho hás dado, o curso harmonioso.
Tonitruante baixo em teu concerto infindo,
só mandando-lho tu, Senhor, terá repouso.
Sua luz dobra a nossa, enchendo-nos de espanto
não podermos sondar-lhe a portentosa essência.
Como o fora a princípio, ó sacra Omnipotência,
teu sol é hoje ainda enigma, assombro, encanto.

GABRIEL (cantando)
E da terráquea esfera a máquina esplendente
segue em seu torvelino, eterno, arrebatado;
por que ora à luz dos céus florido Éden se ostente,
ora descanse envolta em negro véu bordado.
O mar espuma, troa, investe as brutas fragas,
que o repulsam desfeito, em nunca finda guerra.
Mas na perpétua luta, as rochas como as vagas
seguem juntas, sem termo, o volutear da terra.

MIGUEL (cantando)
Dos solos contra o mar, do oceano aos continentes,
jogam-se os temporais com ímpeto profundo;
zona de assolasses e criações potentes,
que desfaz e refaz perpetuamente o mundo.
Ígnea precede a morte ao trovejante horror.
Mas nós, os cortesãos da tua imensidade,
gozamos luz e paz por toda a eternidade.
Bendito sejas tu, Senhor! Senhor! Senhor!

OS TRÊS (juntos)
As tuas criações enchem os céus de espanto;
nem o arcanjo lhes sonda a portentosa essência.
Como o fora a princípio, ó sacra Omnipotência,
teu mundo é hoje ainda enigma, assombro, encanto.

MEFISTÓFELES (cortejando ao Padre Eterno)
Inda enfim cá tornei. Visto quereres
saber por mim o que lá vai no mundo,
pronto; que antigamente (inda me lembra)
gostavas de me ouvir. É só por isso
que me tornas a ver entre esta súcia.
Tem paciência! Eu, retóricas sublimes,
é coisa que não gasto; e mesmo escuso
deste augusto congresso expor-me às vaias.
Co’o meu patos tu próprio te ririas,
a não teres perdido esse costume.
Sei cá palavrear de sois! de mundos!
Toda a minha sabença é perder homens.
O deusito da terra está na mesma:
parvo como ab initio. Melhor fora
(digo eu cá) não lhe teres infundido
o raio dessa luz, que lá se chama
Razão,
e que na prática só presta
para o tornar mais bruto que os mais brutos.
Com licença da Tua Majestade,
o que ele me parece, é gafanhoto
pernilongo, com mescla de cigarra,
já voador, já saltão, já num relvado
co’a sua solfa velha a estrugir tudo.
E vá lá, se da erva não saísse
inda era meio mal; mas tem o sestro
de se andar sempre à cata de imundícies.

O SENHOR
Parece-se contigo. O teu regalo
é esse: acusar sempre. Então no mundo
nada há bom?

MEFISTÓFELES
Não senhor. Quanto eu lá vejo
passa até de ruim. Chega a haver dias
que eu próprio tenho lástima dos homens,
coitados! nem me animo a atormentá-los.

O SENHOR
Viste Fausto?
MEFISTÓFELES
O Doutor?
SENHOR
Sim, o meu servo.
MEFISTÓFELES
Servo teu? guapo servo! o rei dos parvos.
Seu comer e beber são do outro mundo.
Pasce-se no fervor da cachimónia,
que o traz há muito aéreo; em suma, é doido,
e ele próprio o suspeita. Ambiciona
cá do céu as estrelas mais formosas,
da terra gozos máximos. Nem perto
nem longe, vê, nem sonha, em que se farte.

O SENHOR
Por enquanto, anda à toa; em breves dias
lhe darei claridade. O fazendeiro
antevê, no abrolhar, a flor e o fruto.

MEFISTÓFELES
Quer Vossa Majestade uma apostinha?
Verá se também este se não perde,
uma vez que me deixe encaminhá-lo.

O SENHOR
Deixo, enquanto for vivo. Onde há cobiças,
é natural o errar.

MEFISTÓFELES
Muito obrigado.
Pois co’os vivos também é que me eu quero;
com defuntos embirro; o meu regalo
é tentar caras rechonchudas, frescas;
sou como o gato: de murganho morto
não faço caso; o meu divertimento
é correr e arpoar aos que me fogem.

O SENHOR
Como queiras. Permito-te que o tentes.
Se lograres caçá-lo desbaptiza-o,
e inferna-o muito embora. Mas, corrido
fiques tu in æternum, se confessas
que o bom, dado que errar às vezes possa,
nunca nos sai da estrada, a recta, a nossa.

MEFISTÓFELES
Bom. Não lhe há-de tardar o desengano,
Ganhei tão certo a aposta, como é certo
chamar-me eu Mefistófeles. Se eu vingo
na empresa, a palma do triunfo é minha.
Há-de se regalar de comer terra,
como a tia serpente.

O SENHOR
Alargo a vénia.
Outorgo, enquanto andares nesse empenho,
poderes incarnar, viver co’os homens.
Aos demos como tu, maraus e alegres,
nunca os aborreci tão cá de dentro,
como aos demais que a minha essência negam.
O homem cansa depressa; e quando cansa
nada mais quer fazer. Em razão disso
é que eu houve por bem dar-lhe estes sócios
que o despertam, activam; potestades
criadoras até!

(Voltando-se para os anjos)
Vós outros, filhos
legítimos de Deus! regozijai-vos
nesta mansão das perenais delícias,
aqui onde o poder que vive eterno
e eternamente cria, vos enlaça
com vínculos de amor indissolúveis.
E essas do mundo cambiantes cenas,
ide assentando na vivaz memória!

(Cerra-se o empíreo, dissipando-se os espíritos).
MEFISTÓFELES ()
E está bem conservado. Não desgosto
de o ver de vez em quando. O meu sistema
de não quebrar com ele inteiramente,
mesmo assim, não é mau. Tamanho vulto
conversar tanto à mão co’um diabrete
não é leve honraria.
E se eu lhe ganho a aposta! oh! que ufania!...



QUADRO II

Aposento gótico, altamente abobadado. Uma porta ao fundo, e janela à direita. Entre um fogão, que fica à esquerda, arredado da parede, e o primeiro plano, uma porta que deita para um corredor. É noite. Por uma fresta ao alto côa o luar. Estantes. Alfarrábios volumosos. Pergaminhos. Máquinas. Retortas. Vidros. Esqueletos, etc.; tudo em grande confusão.

CENA I

FAUSTO (dessocegado, sentado numa poltrona de sola e pregaria de cobre, com a cabeça fincada nas mãos, e os cotovelos na mesa de estudo, na qual derrama luz frouxa um candeeiro aceso.)
Ao cabo de escrutar co’o mais ansioso estudo
filosofia, e foro, e medicina, e tudo
até a teologia... encontro-me qual dantes;
em nada me risquei do rol dos ignorantes.
Mestre em artes
me chamo; inculco-me Doutor;
e em dez anos vai já que, intrépido impostor,
aí trago em roda viva um bando de crendeiros,
meus alunos... de nada, e ignaros verdadeiros.
O que só liquidei depois de tanta lida,
foi que a humana inciência é lei nunca infringida.
Que frenesi! Sei mais, sei mais, isso é verdade,
do que toda essa récua inchada de vaidade:
lentes e bachareis, padres e escrevedores.
Já me não fazem mossa escrúpulos, terrores
de diabos e inferno, atribulados sonhos
e martírio sem fim dos ânimos bisonhos.

Mas, com te suplantar, fatal credulidade,
que bens reais lucrei? gozo eu felicidade?
Ah! nem a de iludir-me e crer-me sábio. Sei
que finjo espalhar luz, e nunca a espalharei
que dos maus faça bons, ou torne os bons melhores;
antes faço os bons maus, e os maus inda piores.
Lucro, sequer, eu próprio? Ambiciono opulência,
e vivo pobre, quase à beira da indigência.
Cobiço distinguir-me, enobrecer-me, e vou-me
co’a vil plebe confuso, à espera em vão de um nome.
E chama-se isto vida! Os próprios cães da rua
não quereriam dar em troco desta a sua.

(Depois de longa pausa meditativa)
Só falta recorrer às artes da magia.
No espírito há poder; na voz cabe energia,
que a transforma em cominando. Então, consociada
a palavra ao querer, talvez lhe seja dada
força para arrancar com soberano império
à natureza avara o íntimo mistério.
Se o chego a conseguir... que júbilo! que dita!
Não precisarei mais, desde essa hora bendita,
após trabalhos mil como esses que frustrei,
dar por certas ao mundo as coisas que não sei.
Ser-me-á fácil dizer o vínculo profundo
que uniu partes sem conto, e fez do todo um mundo;
ver a força motriz de tanto movimento,
e consignar-lhe a causa. Ah! desde esse momento
em que o cerrado enigma alfim me for notório,
foi-se o torpe chatim de estulto palavrório.

(Depois de pausa, e voltando-se comovido, para a fresta por onde entra o luar)
Oh minha lua cheia, oh minha doce amiga!
Possas tu não mais ver em tão cruel fadiga
o homem que tanta vez dos céus hás contemplado
a desoras velando, em livros engolfado.
Melancólica amante! a claridade tua
achou-me sempre a ler. Se hoje um teu raio, ó lua,
me levasse a pairar nos cumes apartados,
a borboletear nos antros frequentados
dos espíritos só, a saltitar liberto
da científica névoa, em fundo de um deserto,
à luz crepuscular que tácita derramas
aos selvosos desvãos, por entre as móveis ramas!
Que refrigério d’alma um banho nesse rócio
não dera, amada lua, às febres do teu sócio!

(Silêncio. Cai em desalento. Depois levanta-se, e percorre com a vista o aposento)
Que masmorra que é isto! E aqui me vou gastando
neste covil infecto, abominoso, infando,
lôbrega escuridade a que o celeste dia,
prazer da terra toda, um raio a custo envia
pelos vidros de cor em treva mascarado.
Para onde quer que fuja o olhar do emparedado,
bate nesta Babel de livros bolorentos,
pastagem da polilha, informes, sonolentos,
e em rumas de papeis, do tempo denegridos,
caótico tropel de abortos esquecidos,
que trepa, galga, encobre, enluta, afeia, inunda,
a casa desde o solho à abobada profunda;
sem falar no sem-fim de drogas, pós, essências,
máquinas, que sei eu! misérias, importâncias,
que já me infundem tédio. E a isto se apelida
o meu mundo! Isto é mundo, ou esta vida é vida?

(Dolorosamente)
E inda perguntarás, pobre homem, donde vem
a angústia que te rala, e as forças te retém?
Toda a gente a gozar dos bens que o Factor Sumo
lhe faculta na terra; e eu... neste ascoso fumo
entre ossos de animais e esqueletos!
Sus! Sus!
Fausto, longe daqui! Torna-te ao ar, à luz!

(Vai a sair. Retrograda lentamente)
Mas... agora me ocorre; é bom tentar. Vejamos
que nos diz no seu livro o sábio Nostradamus*.
Não há guia melhor.

(Tira da livraria um calhamaço, e põe-no numa alta estante de coro, que está colocada a um lado do proscénio)
Aqui se põe patente
dos planetas o influxo; e logo em continente,
percebido o teor da natureza, tomo
com ela intimidade, e a meu sabor a domo;
trato-a de igual a igual. A espíritos é dada
esta mútua influência. Eis a teoria achada...

(Pausa)
Sim; mas o praticá-la! O humano entendimento
não pode só por si colher o pensamento
que o nosso abstruso autor depôs nestas figuras.

Génios que me cercais, volantes e às escuras,
se me ouvis, respondei!

(Continua a folhear o livro. Encara na estampa do Macrocosmo)
Que imagem peregrina!
que inefável delícia enleva repentina
todo todo o meu ser! enchentes de doçura,
nunca de mim sonhada! A mão que tal figura
aqui delineou, à fé que era divina,
pois só vê-la me acalma, a dor já me não mina.

O coração me exulta, alegre, alvoroçado,
sôfrego, crente, certo, ufano, endeusado
de atingir afinal explicação completa
do enigma que há já tanto os dias me inquieta.

Dar-se-á que eu seja um deus? Não sei. A claridade
que me cresce em redor, não é da humanidade.
Neste debuxo morto avisto claramente
a vivaz natureza, universal nascente,
estar-se em criações contínuas prorrompendo.
Vejo-o c’os olhos d’alma. Agora, agora intendo
a sentença do sábio:

(Em tom de quem recita coisa decorada)
- «O mundo espiritual
«a ninguém é vedado. O porque o julgas tal
«é por teres o senso obtuso, e o coração
«defunto. Rompe a inércia! Expulsa a indecisão,
«discípulo covarde, e engolfa-te brioso
«no arrebol que entrevês.»

(Contempla a estampa)
Quadro maravilhoso!
Como tudo se tece e junto se unifica!
Nora imensa e possante, esplendorosa, rica,
música e gemedora, esvaziando e haurindo
das matrizes dos céus, com jogo alterno e infindo,
vida e morte, uma à outra amplíssimo tesoiro,
tudo permisto e a flux nos alcatruzes de oiro,
e tudo de auras mil de bênçãos ventilado,
almo consolo empíreo ao mundo trabalhado!
Que visão teatral! mas ai! visão somente!
Oh Natureza enorme, oh tentação presente,
hei-de entrar-te...
Mas como? Onde é que tens sumidos
os seios da abundância, a que andam suspendidos
céu e terra? O meu ser, murcho, desanimado,
almeja ir lá sugar leite caudal, jorrado
a quanta sede há ’í! vê que só eu definho
faminto na abundância.

(Voltando impaciente uma porção de folhas do livro)
Avante! Outro caminho!
(Dá com a figura do Espírito da Terra)
Acho influição melhor nesta figura.
É Génio mais vizinho este da Terra.
Recresce-me vigor; como que entrada
de um vinho novo me referve a mente.
Ouso ao mundo lançar-me: aos bens e aos males;
Arcar com temporais; sentir sem medo
O estrondo de um naufrágio.

(A ser possível, o teatro representará tudo que no decurso da fala se vai mencionando)
Olha o negrume
que lá vai pela abobada! Sumiu-se
de todo a lua. A lâmpada vasqueja...
apagou-se, fumega. Raios rubros
sinto zunir-me em derredor das fontes.
Da abóbada me sopram calafrios...

Bem te pressinto, Espírito invocado!
Aparece! Todo eu já sou tumulto.
Transforma-se o meu ser: anseio, anelo
por novas sensações. A ti me entrego.
Obedece! Mando eu. Sai! sai! Não tremo;
custe-me embora a vida.

(Pega do livro, e profere em baixa voz a fórmula da evocação do Espírito. Acende-se uma chama avermelhada e trémula. Aparece nela o Espírito.)

CENA II

Um ESPÍRITO e o dito
ESPÍRITO
Quem me chama?
FAUSTO
Horrendo aspecto!
ESPÍRITO
Pois me evocaste
da minha esfera,
eis-me...

FAUSTO (afastando os olhos, e como quem foge)
Não posso!...
ESPÍRITO
(Durante esta fala, Fausto vai fazendo os gestos e accionados que o Espírito denuncia)
Olha-me! Espera!
Já que almejaste
por ver e ouvir-me,
podes falar!
Olha-me firme
sem titubar!
Aos teus conjuros
obedeci.
Bem! Que me queres?
Pronto! Eis-me aqui.
Pasmas, covarde?
foge-te a cor?
perdeste a fala?
tremes de horror?
O sábio, o forte,
o sem segundo,
o que em seu peito
criava um mundo,
o que nutria
orgulho tal,
que a nós, Espíritos,
se cria igual,
aí jaz por terra
convulso, exausto!
Quem me dá novas
do antigo Fausto?
Tu, que ousaste apostrofar-me
no teu carme,
co’a insolência mais que rara
de afrontar-me cara a cara,
mal que aspiras
o ar que efundo,
já deliras,
já no fundo
mais profundo
do teu ser,
verme calcado,
sentes a vida
quase perdida!

FAUSTO
Eu ceder-te, fogo fátuo!
Nunca tu presumas tal!
Sou Fausto; sou Fausto;
de ti sou igual.

ESPÍRITO
Neste mar,
neste mar tempestuoso
do viver e do actuar,
subo, desço, não repouso,
vou e venho sem cessar
neste mar.
Morredoiras vidas,
mortes renascidas
em fogosas lidas,
sem jamais parar...
eis de que eu fabrico
no imenso tear
as roupas fulgentes
que o rico mais rico,
que o Ente dos Entes
se digna trajar.

FAUSTO
Génio activo e infatigável,
bem que abarques todo o mundo,
eu, espírito incansável,
posso crer-me a ti segundo.

ESPÍRITO
Segundo a um ser, tua invenção,
mas a mim não.

(Desaparece.)

CENA III

FAUSTO ()
A ti não! a quem então?
Eu que de Deus imagem ser me cri,
nem sequer posso comparar-me a ti?

(Batem à porta)
Que raiva! Não me engano... Há-de ser Wagner,
o aluno cá de casa. E lá se perde
tão bela ocasião. Vem este mono
dar-me quebra a visões desta importância!


CENA IV

WAGNER, de roupão e barrete de dormir, com um candeeiro na mão. FAUSTO vira-se de mau humor.
WAGNER
Queira-me perdoar o interrompê-lo.
O Mestre estava agora declamando;
não ’stava? Dou que lia alguma cena
do seu teatro grego. O que eu gostava
de ser também um dia actor dramático!
É coisa que anda em moda, e rende fama.
Um moralista cénico, até dizem
ser mais útil que um padre.

FAUSTO
Ah, sim, se o padre
é moralista cómico; há bastantes.

WAGNER
O que me faz cabeça, é como pode
quem vive no seu canto, e não vê mundo
salvo algum dia santo, e só o observa
de longe e por um óculo, repito,
como pode ser guia de costumes.

FAUSTO
E certo que o não pode, se em si mesmo
não sentir lá por dentro o fogo sacro.
É só co’a inspiração própria, espontânea,
que se domina a turba, O chocho, o inerte,
como de seu não tem, mas quer pôr mesa,
pilha aqui, sisa ali; mistura, assopra
no seu fogareirinho um lumezito,
e sai-se co’um pitéu de mistifório,
que só porcos ou cães o tragariam.
Se gostas, prol te faça. Mas banquete
que seduza, e convide, e preste aos homens,
só dos miolos teus podes guisá-lo.

WAGNER
E eu a cuidar que nos sermões, o tudo
era a voz, o accionado, o tom solene!
Que lanzudo que eu era!

FAUSTO
Arma aos benesses
sem faltar ao decoro. Farfalhices
e guizalhada a bobos só pertencem.
A paixão verdadeira, o senso recto
escusam de artifício. Assunto sério
não se anda à caça de vistosas frases.
Os discursos de alardo e de oiropeles
com que os vícios zurzis, servem e aprazem
como o vento do outono às folhas secas.

WAGNER
Deus me acuda! A arte é longa, a vida breve.
Já de tanto estudar chego a ter dores
de cabeça e de peito. O achar caminho
certo, seguro, que nos leve às causas,
tem busílis. Primeiro que lá chegue,
pode mil vezes dar o triste à casca.

FAUSTO
Engano, engano! Onde há nuns alfarrábios
nascente milagrosa em que de um sorvo
se fartem para sempre as sedes d’alma?
Refrigério eficaz para tais sedes
só em ti o acharás.

WAGNER
Mas um bom livro!
Não será gosto o recuar nas eras,
ver o que era o saber da primitiva,
e compará-lo ao de hoje? Que progresso!
que esplêndido subir!

FAUSTO
Pois não! já vamos
pelo sétimo céu! Wagner amigo,
o mundo velho é livro arqui-brochado
com sete selos. Isso, que vós outros
apelidais o espírito de um século,
é simplesmente o vosso próprio espírito,
a debuxar fantasmas que abalaram.
Mas que espelho tão pífio a quem o observa!
Faz nojo; faz fugir; bem comparado,
como um barril do lixo, ou como um sótão
de cacaréus sem préstimo nem graça;
ou, por melhor dizer, como comédia
em barraca de feira, alardeando
pomposas vistas, máximas de arromba,
que em falsetes de títeres chimpadas,
são da plebe regalo e maravilha.

WAGNER
Conhecer o que o mundo e os homens sejam
a toda a gente agrada.

FAUSTO
E essa tal gente
que chama conhecer? Quem é que pode
dar à mínima coisa o nome próprio?
Os raros, que algo disso entreluziram,
e que, em vez de o esconder a sete chaves,
foram à doida assoalhar no vulgo
seu pensar e sentir em toda a parte,
acabaram na cruz ou na fogueira.
.................................
.................................
Amigo, por quem és, vai alta a noite.
Basta por hoje.

WAGNER
Eu cá por mim gostoso
velara a ouvir tal sábio a vida inteira.
Mas enfim cá me vou. Levo inda uns pontos
por aclarar; nas boas horas fiquem
para amanhã, que é Páscoa d’Aleluia.
Eu moirejo a estudar, e sei já muito,
mas inda não sei tudo.

(Sai)

CENA V

FAUSTO ()
Como estes crendeirões esperam sempre!
Fossam na terra, à cata de um tesoiro,
dão co’uma vil minhoca, e ficam pagos!
Mas aqui, aqui mesmo, onde há tão pouco
me conversava um génio, como pude
ouvir a voz deste homem? Todavia
bem hajas tu, misérrimo vivente,
pois vieste arrancar-me ao desespero
que me ia aniquilar.
Tão monstruosa
era aquela avejão, que me sentia
a par dela pigmeu.
Ter eu suposto
que era imagem de Deus! Crer-me chegado
à intuição da verdade, já despido
na plena luz o invólucro terreno!
e exceder querubins! e a meu talante
por toda a natureza insinuar-me,
fruindo gozos da criadora essência!!...
Pago bem caro o orgulho. Trovejou-me
tremenda voz: «És nada.»
Sim. Nem posso
equiparar-me a ti! Pude evocar-te
mas reter-te não pude. Vi-me a um tempo
sumo e ínfimo. Espírito inclemente,
co’um mero Vade retro me atiraste
de novo ao flutuar da sorte humana.

A quem já buscarei para instruir-me?
e de que hei-de temer-me?
É bem que eu ceda
ao meu impulso actual, ou que o resista?
Que maior jus terão sobre a existência
Os males do que a força?
És tu, matéria,
parte vil do meu ser, és tu quem sempre
vem contrastar do espírito os arrojos.
Como na vida há bens, fora da vida
já não cremos que os possa haver maiores.
Altos assomos d’alma, que haveriam
de nos dar a ventura, eis que os afoga
um mar d’interessículos mundanos.
Quando audaz fantasia arranca o voo,
brada insofrida: Eternidade, és minha!...»
leva-lhe as asas repentino raio;
esperança, alegria estão desfeitas,
e um cantinho qualquer então lhe basta.
Mas se a vaidade é ida, aí vem cuidados
ralar-nos o interior e destruir-nos
alegria e descanso; não sossegam;
trajam máscaras mil; agora a casa,
logo o paço, a mulher, a prole, os servos,
fogo, punhal, venenos, mar. Trememos
com receios quiméricos; choramos
perdas sonhadas, ilusórias, nulas.

(Pausa)
Deus, eu! Pois eu não vejo claramente
que não sou Deus? Imagem sua! imagem
mais depressa de um verme: um verme vive
a afuroar na terra, a alimentar-se
do pó da terra, enquanto um passageiro
o não pisa e sepulta.
E em a realidade
que é senão pó tudo isto que me cerca,
em tanta prateleira acumulado?
toda essa pedantona bugiaria,
que inda ao mundo dos vermes me afeiçoa?
Ali é que hei-de achar o que me falta?
Terei de ler milheiros de volumes
para saber que em tudo e em toda a parte
os homens tem vivido a atormentar-se?
não havendo senão de longe em longe
num sítio ou noutro alguém que se não queixe?

(Encarando no esqueleto)
Que me estás tu daí zombeteando,
caveira despejada? Entendo a mofa:
dizes que os teus miolos, quando os tinhas,
também como hoje os meus, esfervilhavam;
tudo era afadigarem-se às escuras
em demanda da luz que vivifica;
por gosto erravas, mísero, qual erro,
traz a verdade e em vão.

(Virando-se para as máquinas)
Se até vós mesmos,
instrumentos, que nunca houvestes alma,
estais co’as vossas cordas e cilindros,
rodas e dentes, a meter-me à bulha!
Eu ter-vos, eu supor-vos chave mestra
de tanto arcano, estar-lhe ansioso à porta,
forcejar... e afinal desenganar-me
de que a chave não diz co’a fechadura!
Ciosa de seus véus a natureza
nem ao mais claro dia se descobre;
e o que ela nos não mostre por si mesma
não lho hão-de arrancar máquinas.
Conservo
para aí todas essas velharias
porque eram de meu pai, que eu fruto delas
inda o não vi; nenhum! Olha a roldana,
como está do candeeiro enfumaçada!
Pudera! um lucubrar de tantos anos!
Melhor eu me tivera descartado
de tão reles herança, encargo e carga
que me faz suar tanto! O que homem herda
só o pode chamar seu quando o utiliza.
Haver que nos não presta é simples ónus.
Só no uso consiste a propriedade.

(Encara numa âmbula de vidro, que está na
prateleira
)

Mas, que atracção possante,
dalém, a todo o instante,
me está chamando o olhar?
Âmbula cristalina,
teu brilho me fascina,
me alegra e me ilumina.
Nesta alma, selva escura,
graças a ti fulgura
esplêndido luar.

(Tira a âmbula)
Salve, ó cristal que eu tiro
do ocioso teu retiro
com fé, com devoção!
Conténs a quinta essência
da indústria, da ciência,
a inércia, a sonolência,
a morte fulminante.
Sê-me, ó licor prestante,
refúgio e salvação.

Miro-te, e a dor se acalma.
Empunho-te, e já n’alma
se infiltra placidez.
Outra maré que estua:
Que ímpeto em mim actua!
e sobre a face tua,
vítreo estendal das vagas
me arroja a ignotas plagas
onde outros céus já vês.

Ígnea carroça alígera
aí vem tomar-me. Parto.
Já por caminho insólito
da terra vil me aparto.
Remonto no éter fluido.
Sacudo a humanidade.
Engolfo-me nos vórtices
da suma actividade.

Oh! que existir magnífico!
Sublimo-me até Deus.
Sus, verme; sus, blasfemo,
que o ínfimo ao supremo
alças nos sonhos teus!

De insanos terrores zomba!
Costas vira ao sol da terra!
Portão que a todos aterra,
eis braço audaz que te arromba.
Por um acto só pendente
da minha própria vontade,
provarei que a humanidade
é também omnipotente;
que não passam de delírios,
abortos da mente insana
esses infernos-martírios
com que a morte à vida engana.
Almejo ir com ledo rosto
devassar o passo estreito,
onde o humano preconceito
tão vivos fogos tem posto.
Partamos! É vinda a hora;
rompa-se a treva cerrada;
embora no arrojo, embora,
meu ser se resolva em nada.

(Tira um copo lavrado)
Desce! Vem! Sai do cofre esquecido
(e há bem anos) oh taça, que hás sido
dos avitos festins o prazer.
De conviva a conviva girando
nenhum triste, em te aos lábios chegando,
resistia ao teu ledo poder.
Cada um quando a vez lhe chegava,
sua trova às figuras cantava
do teu fúlgido insigne lavor,
e depois te enxugava de um trago.
Como em voz a sorrir inda vago,
tempos bons do meu flóreo verdor!
Agora estou sozinho;
não há já ’í vizinho
a que haja de passar-te.
Agora já não tenho
que me apurar o engenho
nos teus primores d’arte.
Bom! Venha este licor que súbito inebria;
dele é que te hei-de encher; eu mesmo o preparei;
nenhum lhe chega em força.

(Depois de ter vazado o veneno, da âmbula
para o copo, diz com solenidade:
)

Aurora do grão dia!
Com este tetro misto alfim te brindarei!

(Ao chegar a taça aos lábios tangem campas; ouvem-se anjos a cantar)
CORO DE ANJOS* (não vistos pelo espectador, sons que chegam da Igreja vizinha)
Cristo ressuscita!
Jubilai alturas!
Paz às criaturas,
salvas e seguras
da prisão maldita!

(Continuam a ouvir-se ao longe repicar os
campanários da cidade.
)

FAUSTO
Que divina toada e inesperado encanto
dos lábios me repulsa o líquido letal!
Este repique ao longe é já o sinal santo
que anuncia aos fieis o júbilo Pascal?
Será este cantar o do celeste coro
que outrora em dia igual, trocando em festa o choro,
por cima do sepulcro aberto ao Redentor
hosanas entoara à nova lei do amor?

CORO DE MULHERES (que cantam, sem serem vistas
também, no próximo templo
)

Por nós, seus devotos
aqui foi trazido;
aqui, entre votos
de aromas ungido,
aqui o envolvemos
no linho mais fino.
Como é que o perdemos,
o Mestre Divino?

CORO DOS ANJOS (que não são vistos)
Ressurgiu Cristo amante,
ileso, triunfante
de tanta provação.
Traz por coroa ufana
a humana salvação.

FAUSTO
Vozes celestiais, potente suavidade,
que assim baixais ao pó, de mim que pretendeis?
Não faltam por aí fracos em quem podeis
empregar-vos em cheio. Oiço-vos, é verdade,
mas falece-me a fé... Sem fé, que racional
daria seu assenso ao sobrenatural?
Àquelas regiões, donde oiço a boa nova,
não ouso abalançar-me. E ainda todavia,
só porque na puerícia os mesmos sons ouvia,
como que reverdeço, e o crer se me renova.
Ai, domingo Pascal, o que eras algum dia!
Coavas por mim dentro um ósculo celeste.
O argentino repique era uma profecia...
Ai, dia do Senhor, que júbilos me deste!
Era-me êxtase orar. Impulso irresistível,
inefável saudade, encanto indefinível
me levava a girar nos campos florescentes,
ou no mais ermo bosque, onde em silêncio fundo,
debulhando-me à farta em lágrimas ferventes,
sentia dentro n’alma abrir-se um novo mundo.
Este alegre cantar era, naquela idade,
um bando de folgança à pronta mocidade:
Vinha lá primavera! Inda hoje estas lembranças
de boa fé tamanha e tão pueris folganças
tanta força em mim tem, que junto ao passo extremo,
depois de resoluto... hesito, se não tremo.
Bem hajais! Prossegui!... oh cânticos celestes,
que abrir-me enfim soubestes
a fonte onde a ternura as lágrimas encerra.
Por vencido me dou: reconquistou-me a terra.

CORO DOS DISCÍPULOS (Invisíveis para o espectador)
Do avarento moimento arrombado
reascendeu para o trono paterno,
Deus de Deus, luz de luz, sempiterno,
perenal Criador incriado.
Ai de nós! ai, que invejas ao Mestre!
De ora avante sem ele tão sós
cá ficamos no exílio terrestre,
Ai saudades! ai céus! ai de nós!

CORO DOS ANJOS (invisíveis para o espectador)
Da corrupção da morte
alou-se incorruptível.
Discípulos do forte,
fugi da mesma sorte
da culpa à herança horrível!
Aos que amam de verdade,
cumprem a caridade,
e para a eternidade
chamando os homens vão,
a esses, pia gente,
o que chorais ausente
é, foi, será presente:
pai, mestre, amigo, irmão!



QUADRO III

Fora de portas. Variado campo. Ao fundo escureja a porta baixa e arqueada da cidade. À direita do espectador, um oiteirinho, com sua pedra tosca em cima para assento. Do lado fronteiro, vista de montes ao longe, e mais perto um rio com seus barquinhos a ir e a vir. Também se descobrem, por aqui por acolá, veredas rústicas, com gente passeando em várias direcções. Ao meio de um terreiro, há uma tília copada (árvore grande que em Alemanha se encontra em todas as povoações, fora de portas, para os bailaricos do povo).

CENA I

Vem sucessivamente aparecendo OFICIAIS DE OFÍCIO, CRIADAS DE SERVIR, ESTUDANTES, BURGUESES, UM MENDIGO, UMA VELHA, DUAS SENHORITAS, UM RANCHO DE SOLDADOS, e PASSEANTES DE TODA A CASTA, que vem saindo da cidade, a espairecer-se.
(Diversos oficiais de ofício)
UM
Por aí!
OUTRO
Não é caminho
para a casa do monteiro?

O PRIMEIRO
Nós gostamos mais do oiteiro
do Moinho.

UM OFICIAL
Para a parte da cascata
é que era o melhor recreio.

SEGUNDO
Isso é caminho que mata,
não passeio.

OUTRO
Tu que votas? que é que fazes?
TERCEIRO
Sei cá? vou c’os mais.
QUARTO
Rapazes,
é mister que alguém decida.

FAUSTO
Toca a Burgdorf; é subida,
mas vale a pena; verão
belas moças de feição;
cerveja de encher o papo;
e para um chibante guapo,
como todos vocês são,
muito labrosta pimpão
com quem se jogue o sopapo.

QUINTO
Já te não lembram, farsola,
as duas vezes que lá
te derrearam as costas?
Queres terceira! Se gostas
sopeteia, vai; eu cá
não caio na corriola.

UMA CRIADA DE SERVIR
Escusas de aporfiar!
Torno já para a cidade.

OUTRA
Verás que o vamos achar
além no olmedo a esperar
comidinho de saudade.

A PRIMEIRA
E eu com isso que aproveito?
Se eu gostasse do sujeito,
valeria a pena; assim
só para o ver no terreiro
ser teu constante parceiro
no bailarico, isso sim!
Olha que bem para mim!

OUTRA
Vem decerto acompanhado.
A PRIMEIRA
Sim?
A OUTRA
Sim; disse-me que vinha
com ele o tal Carapinha,
que assim tinham ajustado.

UM ESTUDANTE (para outro)
Ih! que pernas que elas tem!
Parecem-me ventoinhas.
Digo que estas cachopinhas
dão calças à gente. Vem!
Vem daí! mexe-te! avia,
senão perdemo-lhe a pista.
Eu cá dos gáudios na lista
só acho três de valia:
pinga forte, esperto fumo,
e servas embonecradas.

UMA DONZELA BURGUESA (afirmando-se nos estudantes)
Mocetões assim, no rumo
das tristes de umas criadas!
É força de indignidade!
Não podiam conseguir,
em mais nobre sociedade,
objectos a quem servir?

SEGUNDO ESTUDANTE (ao primeiro)
Forte correr! Pouco atrás
vem duas tão bem vestidas,
tão elegantes! Verás.
São duas páscoas floridas.
... Ai ai ai, que vem com elas
a minha bela das belas.
Oh! que dita! A minha, a minha
formosíssima vizinha,
o meu anjo, o meu amor!
co’o seu passo miudinho
aposto seja o que for
que nos alcança o ranchinho.

PRIMEIRO
Que seca de emprazadoras!
Anda daí, companheiro.
Deixa-as lá. Não ’stão primeiro
criadas, do que senhoras?
Achavas agora graça
em perder o rasto à caça
que vai fugindo? Vem, vem!
Olha que a mão que mais destra
varre ao sábado, também
domingo a amimar é mestra.

UM BURGUÊS
O tal Burgomestre novo
não me cheira. A nomeação
fê-lo soberbo co’o povo:
vara na mão do vilão.
Que bem tem feito à cidade?
O que eu vejo cada dia
é crescerem sem piedade
vexames e tirania.

UM MENDIGO
Oh meus devotos senhores!
Minhas santinhas floridas!
Lançai vistas condoídas
A quem só vos canta dores!!
Co’a vossa bendita esmola
calai-me as lamúrias tristes!
A esmola que repartistes
também voss’alma consola.
Almas devotas e pias,
haja festa para todos!
Sobras dos ricos são bodos,
e trégua a mil agonias.

OUTRO BURGUÊS
Ao domingo, ou num dia de festa,
não conheço delícia como esta
de estar a gente
nas suas terras,
mansa e contente,
forra a perigos,
falando em guerras
co’os seus amigos.
Diz que a Sublime Porta
tudo em barulho traz.
E a nós que nos importa
que haja lá guerra ou paz?
A Turquia é no cabo do mundo.
Onde há pois outro bem mais jucundo
do que isto de estar
um homem pregado
na sua janela,
vazando quod ores,
e a ver pelo rio
os barcos pintados
de tanto feitio,
que sobem, que descem,
a remos e à vela!
Corre o dia satisfeito;
chega a noite regalada;
vai-se ao leito
prosseguir sonhando a eito
nesta paz abençoada.

TERCEIRO BURGUÊS
Assim digo eu também, senhor vizinho.
Deixá-los lá matar-se os tais Turquescos,
com tanto que haja paz neste cantinho,
vivendo todos como bons Tudescos.

UMA VELHA (a uma Senhorita)
Psiu! Como vai casquilha!
Certo é que a mocidade
é quem no mundo brilha.
Ai, benza-te Deus, filha,
que a tal graciosidade
seria maravilha
que resistisse alguém.
É só esse desdém
esse ar de soberbia
que lhe não fica bem.
Sorria!... Isso que tem?
Sorria!... Vá... sorria!
Assim. Ora inda bem.
Não sabe? Tenho um dedo,
que tudo me adivinha,
e diz que esta rosinha
nutre, mas em segredo,
um bicho que a definha...
amores,
bem me entende,
e eu sei quem eles são;
e dar-lhe o que pretende
está na minha mão.

SENHORITA
Que impertinência! Oh Águeda,
Deixe-me! tenha siso!
E forte causticar!
Para me governar
conselhos não preciso,
Se alguém nos visse agora
aqui sós de palestra
com esta bruxa-mestra...
Suma-se, vá-se embora

(Aparte para as companheiras)
E contudo o certo é
que em noite de Santo André
me amostrou distintamente
a figura que há-de ter
o futuro pretendente
com quem me hei-de receber.

A OUTRA
Tal qual, sem tirar nem pôr.
Mandou-me o espelho mirar,
e vi nele um militar,
que há-de ser o meu amor.
E que figura tão linda
que ele era entre os mais soldados!
Desde então, dez mil cuidados
tenho posto em no buscar,
e não o encontrei ainda.

SOLDADOS (cantando)
Castelos roqueiros,
e altivas donzelas
de assalto levar;
¿onde há, bons guerreiros,
coroas mais belas
para um militar?
Se é agra a vitória,
a glória é sem par.
Tocou-se a rebate.
Vencer ou morrer!
Voe-se, ao combate!
Isto é que é viver.
Caí, fortalezas!
Rendei-vos, belezas!
Triunfo e cantar!
Se é agra a vitória,
a glória é sem par.
Ao som dos peloiros
ceifaram-se os loiros.
Avante, soldados!
Por nós são os fados.
Avante! marchar!


CENA II

A maior parte dos ditos, que giram ad libitum. FAUSTO, WAGNER
(Wagner é um amigo e discípulo do Doutor Fausto)
FAUSTO (conversando e caminhando com Wagner para o proscénio)
Descoalharam-se os rios e ribeiros.
Bem haja a primavera! Já nos viça
por todas essas veigas esperança.
O inverno, já caduco, aí vai buscando
refúgio pelas serras. Pobre inverno!
ver como ainda está baldando raivas
por se vingar da fuga! e nós a rirmos
dos tiros mortos, que de lá nos lança,
granizo imbele, que realça os verdes,
mal que um raio de sol os desmortalha.
Por toda a parte desabrolham vidas.
Que folgazão que é o sol! Como se alegra
de entrajar de matiz a natureza!
Como inda por aqui lhe minguam flores,
supre-as com tanta gente pintalgada.

(Continua sempre a sair gente da cidade)
Vira-te para trás! Desta eminência
olha para a cidade; o formigueiro,
que do escuro da porta vem surdindo!
Não há quem neste dia não cobice
vir ao campo assoalhar-se. Este alvoroço
co’o ressurgir de Cristo, é clara mostra
de outra ressurreição em todos eles.
- Da casa-sepultura, - das canseiras
da oficina ou do trato; - da estreiteza
dessas vielas, que apelidam ruas,
- do soturno dos templos, - é o instinto
quem os promove à luz. Vê com que anseio
se atira a turbamulta ao campo, às quintas!
Que barcadas de gente jubilosa
sobem, descem, transpõem a movediça
veia do rio! Vê-me aquele bote
além, além, o último; de cheio
já mete a borda na água; até as sendas
dos montes lá ao longe estão querendo
quebrar-nos olhos co’as garridas cores
do gentio que as peja. Já cá chega
o estrondear da aldeia. O céu do povo,
se há céu do povo, é isto; o rapazio,
os homens feitos, tudo grita, salta,
ri, tripudia. Aqui me sinto eu homem,
e me é dado que o seja.

WAGNER
Honra e proveito,
Senhor Doutor, é o passear convosco.
Mas eu, se dirigisse este passeio,
não vinha para aqui; nunca achei graça
ao que cheira e tresanda a grosseria.
Este zangarrear cantigas toscas,
estes jogos de bola, esta algazarra,
tudo isso odeio; implica-me co’os nervos.
Andam doidos; parecem-me possessos.
Nem é cantar nem festa; é só balbúrdia.

CAMPONESES debaixo da tília. (Canto e dança, ao som de uma rabeca)
VOZ
Viva o bailarico!
Já está no terreiro
o nosso ovelheiro
de graças mais rico;
laços no pelico,
flores por cimeiro.

CORO
Dancemos, voemos à volta do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Rabeca magana,
tocar sempre assim!

VOZ
Tão sôfrego vinha
que esbarrou no seio
de esbelta mocinha,
que assim reconveio:
- «Olha que lorpinha
«que ao balho nos veio!»

CORO
Dancemos, voemos à roda do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Quem viu nunca, ai mana!
ovelheiro assim?

VOZ
E como vai dando
co’os seus calcanhares!
Gire, gire o bando!
Saias pelos ares!
Ai, já vão cansando;
pendam-se aos seus pares!

CORO
Dancemos, voemos à roda do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Apertar com gana
braços de marfim

VOZ
- «Não seja atrevido,
«que eu não sou daquelas
«com quem se tem rido»
Baldadas cautelas!
Co’o seu repelido
fugiu dentre as belas.

CORO
Dancemos, voemos à volta do til,
rapazes e moças do balho gentil!
Zina, zana, zana,
zana, zana, zim.
Rabeca magana,
tocar sempre assim!

UM CAMPÓNIO VELHO (trazendo uma infusa, e dirigindo-se para Fausto)
Guapa acção, sô Doutor! Num dia destes
vir juntar-se co’a gente cá de fora,
toda ignorante, um sábio dessa polpa!
Aceite-nos portanto esta infusinha.
Melhor não se encontrou. Que a pinga é fresca,
isso é; mas o que importa mais que tudo
é ser de boamente oferecida
para que a beba em gosto, e tantos anos
lhe acrescente de vida, quantas gotas
contêm no bojo.

FAUSTO
Bem hajais! Aceito
o refresco oportuno; e correspondo
com outro tanto afecto ao de vós todos.

(Reúne-se o povo à roda)
OUTRO CAMPÓNIO VELHO
Quem nos dias ruins não faltou nunca,
bem devia na festa aparecer-nos.
Aqui está, vivo e são, mais de um salvado
pelo pai do senhor, quando as malinas
levavam tudo a eito; e a não ser ele,
inda agora durava a epidemia.
O senhor nesse tempo era um crianço,
e mesmo assim andava em roda viva
co’o paizinho por casa dos enfermos.
Caíam como tordos os defuntos,
e ele sempre de pé. Livrou de boa!
Livrou? Quis de propósito salvá-lo,
para bem nosso, o Salvador do mundo.

TODOS
Viva, viva tempos largos
quem nos põe à morte embargos!

FAUSTO
Reservai para Deus as vossas graças!
Quem ensina a salvar, quem salva é Ele.

(Vão-se todos para o fundo, e depois a pouco e pouco vão-se dispersando, ficando só Fausto e Wagner a conversar no proscénio.)

CENA III

FAUSTO e WAGNER, passeando
WAGNER
Mestre! mestre! Que arroubo hão-de causar-lhe
estas aclamações! Feliz quem saca
do talento e saber tão belos frutos.
Correm todos a vê-lo; os pais aos filhos
o apontam; é o oráculo das turbas.
Emudece a rabeca; a dança estaca;
formam alas ao sábio; as carapuças
voam pelo ar; e quase lhe ajoelham,
nem que fora o viático.

FAUSTO
Subamos
um pouco mais a encosta, e poisaremos
além na pedra.

(Sobem e sentam-se na pedra)
Quanta vez, meu Wagner,
não vim eu assentar-me aqui, sozinho,
co’a mente desvairada, consumido
do orar e de jejuns, rico de esp’ranças,
firme na fé! Que choros e suspiros,
que estorcer destas mãos, a ver se obtinha
do poder sobre-humano o fim da peste!
Estas aclamações soam-me a escárnio.
Se bem me leras no íntimo, verias
que nem filho nem pai merecem glórias.
Meu pai era um sujeito obscuro, honrado,
crendeirão, todo entregue a vãs teorias
sobre o teor do enigma Natureza.
Logrou ter seus prosélitos. Fechavam-se
numa cozinha negra, onde tentavam
toda a casta de récipes co’a mira
na fusão dos contrários: Leão ruivo,
(peralvilho montês) ia a consórcio
co’a tenra Flor de lis em banho morno;
passados logo a fogo mais intenso,
levantavam fervura ambos os noivos,
cada qual em sua câmara, e se uniam,
feitos os dois um só; bastava aquilo
para surdir num íris de mil cores
dentro no copo a juvenil princesa.
’Stava pronto o remédio; era tomá-lo,
o enfermo ia puxando, e ninguém punha
nem suspeição de culpa ao mata-sano.
(Morre quem tem seus dias acabados!)
Aqui verás com que infernais mistelas,
socolor de atacar a epidemia,
fomos por todas estas vizinhanças
muito mais peste do que a própria peste.
A quantos mil não propinei eu mesmo
a bebida funesta! e vendo-os ir-se,
ouvia ao mesmo tempo encomiados
por coisa grande os brutos assassinos!

WAGNER
Que aflição por tão pouco! A probidade
que mais tem que exigir, quando se exerce
honrada e pontualmente o que aprendemos?
Enquanto foi rapaz, novel no ofício,
ia-se com seu pai, que era o seu mestre,
e exemplar que na cópia se revia.
Cresceu, adiantou conhecimentos;
nada, mais natural. Depois, seu filho,
se o tiver, lançará mais longe a barra.

FAUSTO
Que ditosa ilusão, supor que ao homem
seja dado emergir do mar dos erros!
O que é mister saber, ninguém no atinge,
e o que se alcança para nada presta.

(Após alguns momentos de absorção:)
Fora com tais tristezas, que destoam
deste festivo dia!
Cede, ó alma, aos rebates da alegria!

Que lindeza de tarde! Olha os casais fronteiros
engastados no verde, e como estão festeiros,
banhados no esplendor do sol que vai fugindo!
Mais um dia vivido, um dia mais que é findo.
Vê-lo lá vai agora, o astro procriador,
alegrar sucessivo, e encher de almo calor
terras, céus, regiões, montes, cidades, povos,
que em círculo sem termo avista sempre novos.
E eu, eu, que o sigo assim co’os votos e co’a mente,
sem asas, preso ao solo e escravo eternamente!
Que delícia montar num raio vespertino,
e acompanhar no curso ao grão farol divino,
vendo sob os meus pés, na imensa profundeza,
sem eu lhe ouvir nem som, girar a redondeza!
montes a trajar sol; vales escurecidos;
os regatos de prata, em oiro convertidos!
Abismos e alcantis da serra mais bravia
não serviram de empacho à minha etérea via.
Oh! pasmo! aí vem o mar co’as mornas enseadas!
Que é isto, ó sol! quem faz que aos olhos meus te evadas?
Cansei-me eu de o seguir? Como? Por quê?
Reassumo
do querer força nova; hei-de alcançar-te, ó sumo
voador luminoso, eterno fugitivo,
fartar-me em ti de luz, vulcão perene-activo.
O dia me precede; a noite me acompanha;
por cima os céus; aos pés a undísona campanha.

(Pausa)
Que aprazível sonhar! mas ah, que o sol no entanto
cada vez mais se aparta e me desfaz o encanto.
Nas sedes do infinito, ó alma, em vão te abrasas:
prende-te ao solo o corpo; o corpo não tem asas...
não tem, não pode ter. Mas todos, por instinto,
já sentiram por certo o mesmo que em mim sinto:
cobiças de transpor, anseios de subir.
Quando na madrugada em giros se vê ir
subindo pelo azul a esperta cotovia,
que, já sumida à vista, inda o seu canto envia;
quando as águias reaes, sobre os pinhais da serra
pairam lá pela altura; e sobre o mar e a terra
o grou retorna à pátria, ao ninho, aos seu amores...
quem não inveja a sorte àqueles voadores?

WAGNER
Quimeras, também eu tenho sonhado;
mas dessa casta nunca. Isto de campos
depressa me enfastia; o ser alado
para quem gosta será bom, concedo,
mas eu não tenho inveja ao passaredo.
Tem lá comparação co’os gozos d’alma
do que anda a viajar de livro em livro
e de página em página! Há delícia
para alegrar no inverno as seroadas
como isto, que até dá calor aos membros?
Desenrolando um nobre pergaminho,
parece-me que a bem-aventurança
toda se embebe em mim.

FAUSTO
Sim. Por enquanto
não aspiras a mais. Conheces uma
das duas sedes d’alma; o céu te livre
de sentires a outra.
Albergo dentro
dois espíritos, dois; forcejam ambos
por se fugir: - um deles, voluptuoso,
abraça a terra; os órgãos o segundam;
o arraigam nela; - o outro, desdenhando
este mundo, este pó, se evade em busca
das regiões que nossos pais habitam.
Ah! se entre o céu e a terra existem entes
dotados de poder, eia! aos meus rogos,
do doirado nevoeiro onde se ocultam
descendam presto!
Dessem-me uma capa
de tal condão, que, em me embarcando nela,
me visse por encanto em longes terras...
não a trocava por nenhumas galas,
nem por manto de rei.

WAGNER
Tate! Não chame
por essa indigna cáfila de trasgos
que (toda a gente o sabe) andam sem termo
a remoinhar-nos pelos ares turvos
e a chover-nos a súbito desgraças.
- Os do norte com dentes navalhados
e lancetas por língua, a nós se atiram.
- Os do nascente secam-nos, consumem
o pulmão afanado. - Quando saltam
do deserto africano às nossas terras,
abrasam-nos. - Os d’oeste entram suaves,
mas para logo nos afogam tudo:
gados, campos, casais. Pérfidos todos,
alegram-se de ouvir nosso desejo
co’a mira sempre em convertê-lo em males;
folgam de nos servir para burlar-nos;
mensageiros do céu se nos inculcam,
e com doçura angélica nos mentem.
Mas, basta de passeio. Olhe que o dia
já se quer despedir lá do horizonte,
soltas as frias cãs; desce a cacimba.
Nesta hora é que é delícia o lar caseiro.
Não se demore!...
Que pasmar é esse?
que mira no crepúsculo?

(Avista-se um grande cão preto, que vai fazendo todos os movimentos indicados no diálogo)
FAUSTO
Um cão preto!
Não vês como anda à doida a espolinhar-se?
agora pelo chão da sementeira,
logo sobre o restolho?

WAGNER
Há muito o vejo.
mas isso que nos monta?

FAUSTO
Observa, observa!
Que julgas tu que seja aquele bruto?

WAGNER
Eu sei? algum cão d’água que perdesse
a peugada do dono, e ande, a seu modo,
naquele desatino a procurá-lo.

FAUSTO
Vê-lo em torno de nós caracolando
de giro em giro, e cada vez mais perto?
Se a vista me não mente, vai deixando
rasto de lume após.

WAGNER
O que eu só vejo
é um canzarrão preto. Isso é no mestre
alguma ilusão óptica.

FAUSTO
Suspeito
que anda a armar-nos em roda imperceptíveis
mágicos laços com que os pés nos tolha.

WAGNER
E eu entendo que a pobre da alimária
o que faz é saltar, medrosa e incerta,
por só nos ver a nós, em vez do dono,

FAUSTO
O círculo se aperta; ei-lo conosco.
WAGNER
Então já vê se é cão, ou se é fantasma.
Ele grunhe, ele agacha-se de rojo,
abana a cauda... Nada disso é novo;
nunca vi cão que não fizesse o mesmo.

FAUSTO (falando ao cão)
Boca, boca, vem cá!
WAGNER
Tem graça o perro.
Sempre gostei de um bruto desta casta:
- Se o dono pára, assenta-se; - falou-lhe,
salta-lhe doido em cima; - lambe e ladra;
- busca o perdido; - aboca da corrente
a bengala do amigo, e à mão lha torna.

FAUSTO
Tens razão; sim, tudo isso é mero ensino,
que não entendimento.

WAGNER
A cães tão mestres
não fica mal a um sábio o afeiçoar-se.
Este caiu-lhe em graça, e não me admira:
discípulo melhor não no há no mundo.

(Entram pela porta da cidade.)


QUADRO IV

O anterior camarim de Fausto.

CENA I

FAUSTO, entrando pela porta do fundo, que deixa aberta, seguido de um grande cão d’água preto
FAUSTO
Lá deixei planície, prados,
tristemente sepultados
na mudez da noite escura.
A alma pura sobre a impura
já cá dentro predomina
com sutis pressentimentos;
calca a essência alta e divina
as terrenas sensações.
Oh! que insólitos momentos!

Redimi-me das paixões,
que no âmago consomem
o melhor dos meus dois eus.
Só respiro afecto ao homem;
só respiro afecto a Deus.

(Voltando-se para o cão, que anda desassossegado)
Pára aí, cão! Já basta de corridas.
Que fariscas à porta? Ali tens lume;
vai-te deitar ao pé! Toma, cachorro,
a almofada melhor que tenho em casa.

(Atira-lhe para o pé do fogão a almofada de cima da cadeira em que se costuma sentar)
Já que lá no caminho da montanha
a correr e pular nos divertiste,
hei-de tratar-te bem, se o mereceres.

(Senta-se à mesa, e espevita o candeeiro)
Aqui sim, no meu cantinho
vendo rir-me o candeeiro,
gozo o bem de estar sozinho,
e esquecer o mundo inteiro.

N’esta mansa claridade
reamanhece o coração!
Dentro, há paz, serenidade;
raia luz, fala a razão;
refloresce a esp’rança amante;
e um saudoso instinto envida
em nosso ânimo anelante
o grão Ser, o Autor da vida.

(Uiva o cão)
Não me uives, cão! Tapa essa boca, bruto!
Belo acompanhamento às harmonias
que vão dentro de mim! Costume é de homens
zombar do que transcende a sua esfera;
belo e bom muita vez os incomodam,
por isso rosnam; queres tu, cachorro,
fazer-te igual juiz? rosnar como eles?

(Pausa)
Por demais é cansar-me. O júbilo celeste
foi-se, não volta mais. É força de desgraça,
oh minha alma sedenta, achar no ermo agreste
abundante matriz, entrar a encher a taça,
e cair, sem ter morto o ardor com que vieste!
Comigo é sempre assim. Paciência! O que inda val
como compensação, é esta ânsia inata
que nos ala o querer, do ínfimo escuro val,
às altas regiões, onde a alma se dilata,
em comunicação co’o sobrenatural.
Salve, ó revelação! Teu mais brilhante assento
é o Evangelho Santo, o Novo Testamento.
Cobiço perscrutar o texto primitivo,
e co’a maior lealdade, e o escrúpulo mais vivo,
transplantar, se puder, à locução materna,
à minha língua amada, a augusta frase eterna.

(Abre a Bíblia no Evangelho de S. João)
No princípio era o Verbo. É esta a letra expressa;
aqui está... No sentido é que a razão tropeça.
Como hei-de progredir? há ’í quem tal me aclare?
O Verbo!!
Mas o Verbo é coisa inacessível.
Se apurar a razão, talvez se me depare
para o lugar de Verbo um termo inteligível...

Ponho isto: No princípio era o Senso... Cautela
nessa primeira linha; às vezes se atropela
a verdade e a razão co’a rapidez da pena;
pois o Senso faz tudo, e tudo cria e ordena?...
É melhor No princípio era a Potência... Nada!
Contra isto que pus interna voz me brada.
(Sempre a almejar por luz, e sempre escuridão!)
... Agora é que atinei: No princípio era a acção.

(Voltando-se para o cão)
Entendamo-nos, cão. Se te agrada o meu quarto,
não me tornes a uivar, que já ’stou mais que farto.
Não tolero ao meu lado um atrapalhador.
Desempata: - eu ou tu! - Dei-te abrigo e calor;
sou o teu hospedeiro, e da hospitalidade
não quero as leis quebrar. Tens plena liberdade:
se te agrada sair, bem vês a porta aberta.

(Vai-se o cão transformando, do modo que a fala indica)
Mas... que é isto que observo? Assim se desconcerta
das coisas o teor, o ser da natureza!
Sonho, ou velo?... O meu cão não tinha esta grandeza,
nem este corpanzil. E o súbito denodo
com que se ergueu de um pulo! Isto de todo em todo
não é já cão; os cães não tem esta figura.
Então, que génio mau, que horrenda diabrura
hospedei eu em casa? Ui! como vai crescendo!
Que hipopótamo é este! Horrendo vulto, horrendo!
Vibra chamas do olhar! ameaça co’a dentuça!...
Teu diabólico ser debalde se rebuça;
apanhei-te. Ora espera; e tu verás se o signo
do grande Salomão contra o poder maligno
de vós, relé do inferno, essências vis e imundas,
te não vai atirar de súbito às profundas.

ESPÍRITOS MAUS (no corredor)
Um de nós lá caiu na esparrela.
Companheiros, cautela, cautela,
não entreis em tal casa. Podemos
cá de fora observar; observemos.
E era um lince do inferno, o coitado
que lá jaz na armadilha atrusado
a tremer como um triste raposo.

Sus, escravos do perro tinhoso,
vogai para cá!
vogai para lá!

Acima e abaixo!
Com isso faredes
que o sócio oprimido
se livre do empacho
das magicas redes.
À obra! Sentido!
Sois-lhes todos devedores
de favores.
De os pagar é vinda a hora.
Ponde-o fora
da prisão que o desalenta.
Leva! Gira! Aferventa! Aferventa!

FAUSTO (abrindo um vade-mecum de magia)
Atiro-me ao bruto; primeiro, co’a fórmula
dos quatro
chamada:
«Arda a Salamandra! Retorça-se a Ondina!
«Esvaia-se o Silfo! Da terra na mina
vá Gnomo lidar!»
(Quem não soubesse a fundo os elementos,
o seu poder, as suas qualidades,
por nenhum modo punha leis a génios.)

(Torna-se ao livro)
«Tu, se és Salamandra, salta flamejante!
«Se Ondina, difunde-te em vaga espumante!
«Se és Silfo, em meteoro te exala brilhante!
«Íncubo, Íncubo! acode! Protege a vivenda!
«Sai do chão, sai! Acabe tão longa contenda!»
Nenhum dos quatro é nele; está bem visto.
Nem se ergue, nem se move; olha-me fito,
imóvel que nem órbitas de crânio.
Inda lhe não fiz mossa. Em vão persiste;
a est’outra imprecação não me resiste:

(Voltando ao livro)
És tu do inferno prófugo,
bruto animal?
Então, encara, pícaro,
este sinal
que espanta as negras cáfilas
do antro infernal!

(Continua o bicho a inchar, esconde-se atrás do fogão; cresce até o tamanho de elefante; vai-se ainda desenvolvendo cada vez mais.)
Oh! que balofo inchar! que pelos hirtos!
Podes tu ler, maldito, o ente incriado,
o inefável, o que enche a imensidade,
o que expirou na cruz alanceado,
e redimiu da culpa a humanidade?

Olha aquilo! Emprazado atrás do lume,
cresce, intufa-se; é vulto de elefante.
Mais? enche tudo; em breves audiências,
vêl-o-eis desfeito em névoa.

(Ao bicho)
Não me esbarres
pela abóbada! Aqui! Aqui! Lançar-te
já já aos pés do Mestre! Toma tento,
que eu não ameaço em vão; bem o tens visto.
Tisno-te ao fogo sacro; não te exponhas
ao corisco trisulco! não provoques
das artes em que excedo a mais terrível!


CENA II

FAUSTO, e MEFISTÓFELES, que, dissipada a névoa, sai de trás do fogão, em trajo de estudante em jornada
MEFISTÓFELES
Que berreiro, Senhor! às suas ordens.
FAUSTO
O recheio do cão cifrou-se nisto!
Um viandante escolar! faz rir, faz.

MEFISTÓFELES
Salve,
luzeiro do saber! Fez-me, confesso,
suar a bom suar.

FAUSTO
Como te chamas?
MEFISTÓFELES
Ridícula pergunta para um sábio
que timbra tanto em desprezar palavras,
não pode ver sem tédio as aparências,
e só aspira ao âmago das coisas.

FAUSTO
Dos entes como tu saber-se o nome
(Blasfemo, Tentador, Pai da Mentira)
é para logo conhecer-lhe as manhas.
Quem és pois?

MEFISTÓFELES
Quem eu sou? Parte da força,
que, empenhada no mal, o bem promove.

FAUSTO
Não te percebo o enigma.
MEFISTÓFELES
Sou o espírito
que estorva sempre. E com razão, pois tudo
quanto nasceu merece aniquilado;
portanto era melhor não ter nascido.
Meu elemento é o que chamais vós outros
Destruição, Pecado, o Mal, em suma.

FAUSTO
Dizes que és parte, e eu vejo-te completo!
MEFISTÓFELES
Falo verdade chã. Retro bazófias!
Cada homem (microcosmo de loucuras)
imagina-se um todo; e eu sou, confesso,
parte da parte que era tudo in ovo;
parte da treva, mãe da luz, sim dessa
vaidosa luz, que à sua mãe pleiteia
foros de universal; por mais que o tente
não lhos há-de usurpar; quem lhe deu posses
para mais que abraçar as superfícies?
penetra num só corpo? (e inumeráveis
são eles) só os tinge e aformosenta;
e o mais pequeno em seu correr a embarga.
Deixál-a; tenho fé que cedo acabe;
se perece a matéria, está perdida.

FAUSTO
Já sei o que és, e qual teu nobre empenho.
Como não podes destruir o todo,
pões-te a tomar desforra em ninharias.

MEFISTÓFELES
Consigo pouco, é certo. O oposto ao Nada,
o Que quer que é que existe, o mundo bronco,
por mais que em vulnerá-lo me desvele,
fica-me sempre ileso. Em vão lhe arrojo
ondas, procelas, fogos, terremotos;
ao cabo, terra e mar ficam serenos.
Pois a relé nojosa, a corja humana!
Não há meter-lhe dente. Ando, há que tempos,
a matar neles, sem parar na faina,
e a espécie a medrar sempre em sangue, em forças.
É para endoidecer! De ar, água, e terra,
do quente e frio, do húmido e do seco
mil germes brotam... Se não pilho o fogo,
ficava-me sem nada.

FAUSTO
E opões à força
eterno-activa, criadora, amante.
pobre demónio, o punho teu fechado!
Busca outro ofício, aborto vil de caos.

MEFISTÓFELES
Pensarei nisso, e falaremos. Posso
ir-me embora; pois não?

FAUSTO
Pedes-me vénia!
Não te percebo. És livre. Mas, agora
que já sei quem tu és, outorga franca
para me vires ver, quando quiseres.
Aí tens a janela, aqui a porta,
e além a chaminé, que se não fecha.

MEFISTÓFELES
Bom; mas para sair, força é dizê-lo,
acho um certo empecilho: e é ver pintado
no limiar um pé de feiticeira.

FAUSTO
Tens medo ao pentagrama! Essa é bonita!
E quando entraste, diabão do inferno,
emandingou-te acaso? Um génio desses
deixa-se assim lograr?

MEFISTÓFELES
Repare o sábio!
Aquele pentagrama está mal feito.
O ângulo que aponta para a rua
não fechou bem.

FAUSTO
Ditoso acaso. Temos
portanto que estás preso, e eu sou teu dono.
Foi o tal bico-aberto uma fortuna.

MEFISTÓFELES
O cão vinha a correr; não viu a coisa.
Agora é que reparo no busílis.
Não há sair; não há.

FAUSTO
Pela janela.
MEFISTÓFELES
É uma lei de espectros e demónios:
sai-se por onde se entra; à entrada livres,
forçados no sair.

FAUSTO
Regulamentos
até no inferno! Bravo! Então convosco
também, senhores meus, pode haver pactos?

MEFISTÓFELES
Mau é nós prometermos; que faltar-vos
nenhum de nós vos falta; é pagamento
rés-vés; nem meio chavo se lhe sisa.
... Essas explicações são contos largos;
ficam para outra vez. Agora, peço
co’a maior ânsia, deixe-me ir embora!

FAUSTO
Mais um instante: lê-me a buena-dicha!
MEFISTÓFELES
Basta de me emprazar. Solte-me e breve
há-de tornar-me a ver então prometo
satisfazer-lhe em cheio as veleidades.

FAUSTO
Não te armei laço algum. Se estás na rede,
foi por teu alvedrio. Asno me julgas
que havendo às mãos o demo, o lance a monte,
e que fique boca aberta a ver se torna?

MEFISTÓFELES
Mui bem. Se leva em gosto a convivência,
também eu; já não parto. O que lhe ponho
por condição, é que há-de permitir-me
entretê-lo tão só co’as minhas artes.
É nobre passatempo,

FAUSTO
Assino, pondo
por condição também, que essas tais artes
me possam divertir.

MEFISTÓFELES
Dou-lhe a certeza,
caro amigo e senhor. Vai regalar-se
numa só hora mais que em todo um ano
do seu viver monótono. Os cantares
que se hão-de ouvir a espíritos mimosos,
e as imagens formosas, sedutoras,
que esse coro gentil virá mostrando,
será tudo real, que não prestígios
de nenhuma arte oculta enganadora.
Haverá para o olfacto almas delícias.
Depois para o paladar tão finos gostos
como nunca os provou. Depois volúpias
até às fibras íntimas. À obra!
Tudo é prestes.
Espíritos potentes!
Podeis principiar. Eis-nos presentes.


CENA III

OS MESMOS. Sai do corredor um bando de ESPÍRITOS, cantando
ESPÍRITOS
(Ao som dos seguintes cânticos, Fausto, que se havia sentado na sua cadeira, vai a pouco e pouco descaindo no sono)
Some-te, abóbada
torva e sombria!
Éter cerúleo,
verte a alegria
neste lugar!
As nuvens sumam-se!
Brilhar, cardumes
dos sois noctívagos!
Suaves lumes,
brilhar! brilhar!
Lindezas célicas,
cercai este homem
com danças lânguidas
que todo o tomem
de almo langor.

Co’as vossas túnicas,
lindezas puras,
velai no tácito
das espessuras,
ninhos de amor,
onde, abraçando-se
amantes pares,
mil votos férvidos
mandem aos ares
de amar sem fim.
Como prolíficas
da flor vem flores,
do amor delícias,
- destas amores
brotem assim.
Sus, cachos túrgidos!
Presto aos lagares,
espúmeas púrpuras,
que entre dançares
à luz brotais!
Correi quais Ródanos,
fulgi quais lagos,
espelhos trémulos,
dos cumes vagos,
nus de vinhais!
E vós, ó pássaros,
que irrequietos
sempre andais sôfregos
de haurir afectos,
luz e prazer;
eia, aos céus rútilos
das madrugadas!
Voai às ínsulas
afortunadas,
onde há viver,
torrões fluctívagos
respira em cânticos
de noite e dia,
e onde sem véus
o amor e o júbilo
de mil dançantes,
de horas suavíssimas
fazendo instantes,
relembram céus.
Vão, espairecem-se
pelos oiteiros,
por vales flóridos,
ou nos ribeiros
retoiçam nus.
Vários e unânimes
cada qual mira
a estrela próspera
por quem suspira,
e que o seduz.

MEFISTÓFELES
Adormeceu. Bem haja a criançada aérea,
que assim mo acalentou!

(Apontando para Fausto)
Inda homem não és, vil filho da matéria,
para reteres preso um génio como eu sou.

(Dirige-se aos Espíritos)
De visões mágicas
povoai-lhe os sonhos,
fáceis, risonhos
filhos do ar!
Adormecestes-mo.
Dure profundo
o seu jucundo
feliz sonhar.

(Saem os Espíritos.)

CENA IV

MEFISTÓFELES, FAUSTO adormecido, depois uma ratazana
MEFISTÓFELES
Agora toca a ver se desfazemos
o encalhe da soleira. Quem nos dera
dente de rato aqui!... Pedi-lo e tê-lo,
tudo foi um; já lhe oiço a roedura;
não tarda uma unha negra. Esconjuremo-lo!
«O Senhor dos ratos, murganhos e moscas,
«das rãs, percevejos e mais sevandijas,
«ordena que roas as figuras toscas,
«que ele unta de azeite nestas pedras rijas.

(Sai do buraco uma ratazana, e chega-se à soleira da porta do fundo)
Saiu do buraco; já chega à soleira.
Brio, ratazana, que a obra é só tua!
Rapa do triângulo a ponta cimeira
do degrau na aresta que dá para a rua!

Ali é que o pé do diabo esbarrou.
Mais dois raspõesinhos, e acabas, meu filho.
... Zan... zan...Belamente. Mil graças te dou.
Podes-te ir embora; desfez-se o empecilho.

(Volta o rato para o buraco)
Sonha, Fausto, sonha, que eu salto a soleira.
Fica-te, meu sábio, e até à primeira.


CENA V

FAUSTO, acordando
Olé, já outra! pois não seria
tudo isto, e os génios que eu via e ouvia,
mais do que abortos da fantasia?
e o que eu supunha demónio astuto
não passaria de um mero bruto?



QUADRO V

O mesmo camarim de Fausto

CENA I

FAUSTO, depois MEFISTÓFELES, trajado como ele mesmo indica no diálogo. Batem.
FAUSTO
Bateram. Entre! Quem virá moer-me?
MEFISTÓFELES (de fora)
Sou eu.
FAUSTO
Entre!
MEFISTÓFELES
Repita-mo três vezes!
FAUSTO
Pois pela vez terceira, entre!
MEFISTÓFELES (entrando)
Ora graças!
Voltei ou não voltei?
Manos a l’obra!
Toca a deitar cá fora. Eu já no intuito
de lhe furtar a mente a hipocondrias,
aqui venho, entrajado à fidalguinha:
- corpete carmesim bordado de oiro,
- capa de gorgorão, gorra enfeitada
com sua pena de galo,- e o coruscante
chanfalho à cinta. Não percamos tempo.
Vestir como eu, e andar! Livre dos cepos,
verá o que é viver.

FAUSTO
Mudar de pele
não muda interior. Com quaisquer trapos
há-de ir comigo o meu viver terrestre.
Já sou velho de mais para brinquedos,
e para descartar-me de cobiças
inda muito rapaz. Que há nesse mundo
que me possa atrair? Priva-te! Abstém-te!
Eis o eterno refrão com que nos quebram
o bichinho do ouvido a toda a hora.
De manhã, quando acordo, é sempre aflito
e ansioso de chorar, pela certeza
de que o dia que enceto é, como os outros,
incapaz de cumprir-me um só desejo,
nem um só. Pois se eu sei que a expectativa
do mínimo prazer já chega eivada
de sua improbação, e cada almejo
do meu férvido sangue há-de ir gelar-se
ante as carrancas do viver prosaico!
À noite é-me forçoso entrar num leito
onde já sei me aguarda o labirinto
da turbulenta insónia, e, se olhos cerro,
medonho pesadelo! O Deus que me enche
rege-me a seu talante, influi, domina
té o âmago mais fundo o meu composto.

E tamanha potência nada pode
fora de mim nos mínimos objectos!
Dura carga é viver! quem dera a morte!

MEFISTÓFELES (ironicamente)
Devagar, devagar! Hóspeda é essa
que dispensa convite e zanga a todos.

FAUSTO
- Feliz o herói que, na embriaguez da glória,
no instante mesmo em que lhe pega os loiros
com sangue hostil nas fontes a vitória,
cai fulminado ao silvo dos peloiros!
- Feliz o amante que depois do enleio
de louca dança, e no auge do delírio,
súbito expira no adorado seio,
e antes da morte vislumbrou o Empíreo!
- E feliz eu, se quando, face a face,
logrei tratar com génio alto e possante,
nesse extra-vida glorioso instante
morte improvisa os dias meus soprasse!

MEFISTÓFELES (ironicamente)
Assim será; mas certo sujeitinho,
certa noite que eu sei, não teve a força
de tragar certo líquido.

FAUSTO
Já vejo
que também gostas de espiar.

MEFISTÓFELES
Não digo
que tudo sei, mas sei que farte.

FAUSTO
E ignoras
o porque eu não bebi? Foi porque a ponto
uns conhecidos sons, ecos da infância,
me arrancaram do horrendo labirinto
por onde eu tumultuava, e me puseram
nos meus primeiros, meus saudosos dias!...
e era tudo fantástico!
Mal haja
quanto humano artifício enleia as almas,
e com suaves forças lisonjeiras
na mundanal caverna as traz cativas.
- Maldita a presunção, que ilude ao homem.
- Malditas as miragens, que nos cegam.
- Maldita a glória vã.- Maldito o sonho
dos póstumos laureis. - Maldito o gozo
do possuir: de ter esposa, filhos,
servos, campos ubérrimos. - Maldito
o Mamon, que envidando-nos seu oiro,
ora nos lança às íngremes façanhas,
ora (e só para uns frívolos recreios)
por cima dos deveres nos afofa
preguiceiros coxins. - Maldita a vinha
co’o seu néctar balsâmico - Maldita
essa das graças graça, amor chamada.
- Maldito o esperar sempre. - A fé maldita.
- Maldita sobre tudo a paciência!

CORO DE ESPÍRITOS (invisíveis)
Ai ai! desta feita deixaste arrasado
c’oa força do murro tão lindo universo;
já tudo em ruínas desaba disperso.
Já é! Ver um homem com Deus comparado!

Andar, companheiros, levar por ’í fora,
para os sumidoiros do vácuo sem fundo,
os cacos e entulhos da fábrica mundo.
Pasmava-se dela; choremo-la agora.

Sus, filho do barro, sus, sus, potentado!
Em troca do mundo, que já destruiste,
extrai de ti outro, melhor, menos triste!
Profere o teu Fiat, e logo é criado!

Vida nova, clara vida,
corra limpa de mistérios!
Encha os âmbitos etéreos
o cantar do teu Edén!

Ao factor do novo mundo
fama em cânticos florida
alce em coro adorando
glória, glória, glória, Amen!

MEFISTÓFELES
Aí tem no que os meus pajens lhe cantaram
regras do bom viver; de mais acerto
nem conselheiros velhos as dariam.
Aproveite a lição! Torne-se ao mundo!
Fuja do viver só, que estagna a mente,
os sentidos embota, e mole-mole
chucha os sucos vitais. Mau passatempo
é esse de cevar melancolia,
feros abutres d’alma. Em sociedade,
por mui ruim que seja, ao menos sente-se
com homens homem. Não direi que desça
a conviver co’a sórdida gentalha.
Figurão não sou eu; mas se lhe serve
comigo acompanhar na aventureira
jornada deste mundo, pronto e às ordens!
Aqui tem um criado, um companheiro,
um pau mandado, o mais pontual dos servos.

FAUSTO
E eu que te hei-de pagar?
MEFISTÓFELES
Depois veremos;
não é coisa de pressa.

FAUSTO
Ai, nada, nada,
que eu sei de cor as manhas dos diabos:
não dão ponto sem nó. Venha o primeiro
que pelo amor de Deus a alguém servisse.
Vamos às condições: propõe-nas franco.
No tomar um tal servo há seus perigos.

MEFISTÓFELES
Obrigo-me a servi-lo em tudo e à risca
enquanto vivo for, e obedecer-lhe
aos acenos até, sem cansar nunca.
Depois, quando lá em baixo nos toparmos
trocamos os papéis.

FAUSTO
Pouco me afreimo
do teu depois, e mais do teu em baixo!
Escavaca este mundo, e engendra um novo,
que se me dá, se é deste que deriva
tudo que me contenta, e o sol que doira
os meus males é este? Em se acabando
mundo e sol para mim, saia o que saia;
e não há mais dizer. Que me interessa
que lá se odeie ou se ame? haja ou não haja
um abaixo e um acima?

MEFISTÓFELES
Então já pode
no pacto conchavar-se. O que eu lhe afirmo
é que estes dias que passarmos juntos
lhe hão-de por minhas artes dar tais gostos
quais os não teve alguém.

FAUSTO
Pobre diabo,
que hás-de tu dar-me? O espírito de um homem
como eu sou, foi jamais compreensível
aos da tua relé? Tens iguarias
que não matam a fome; oiro que fulge,
mas que igual ao mercúrio, escapa aos dedos;
jogo em que é certa a perda; uma beldade
que até nos braços meus soltando arrulhos,
já está piscando o olho ao meu vizinho;
pompas de glória, um fumo!
O que eu preciso,
se o tens, são frutos a pender de copa
sempre frondosa, e que antes de apanhados
não tenham já por dentro o podre e os vermes.

MEFISTÓFELES
Bem; tudo isso há-de ter; conte comigo
Desde agora, amiguinho, à rédea solta.
Folgar e mais folgar! Leva de escrúpulos!
Tudo quanto bem sabe, é permitido.

FAUSTO
Se eu me acosto jamais em fofa cama,
contente e em paz, que nesse instante eu morra!
Se uma só vez com falsas louvaminhas
chegares por tal arte a alucinar-me
que eu me agrade a mim próprio; se valeres
a cativar-me com deleites frívolos,
súbito a luz da vida se me apague.
Vá! queres apostar?

MEFISTÓFELES
Se quero! Aposto.
FAUSTO
Aperto mais: Se me chegar momento
a que eu diga: «Demora-te! És formoso»
então aos teus grilhões entrego os pulsos;
então a morte aceito; os sinos dobrem;
já livre estás de mim. Dessa hora avante,
quede o relógio! Caiam-lhe os ponteiros!
Acabou-se-me o tempo.

MEFISTÓFELES
Olhe o que afirma,
que entre nós outros nada esquece.

FAUSTO
Embora!
Não me obriguei de leve. O que eu padeço
não é escravidão? Ser logo servo
de outro ou de ti, que monta?

MEFISTÓFELES
Às suas ordens,
desde já. Tem a nata dos serventes
para este bródio de barrete fora,
meu querido Doutor!
Mais uma nica.
Há morrer e viver. É bom primeiro
pôr o preto no branco: um tudo-nada;
duas regritas só.

FAUSTO
Que é! Papeladas
até no inferno, rábula! Bem mostras
entender pouco do que seja um homem.
Não vai librado o meu destino inteiro
na palavra que dou? Sendo o universo
um turbilhão perene, achas que possam
quatro letras de borra agrilhoar-me?
(E é geral todavia o preconceito)
Feliz o que tem fé: não se aventura
a coisas em que é tarde o arrepender-se.
De pôr num pergaminho uns papa-ratos,
e assiná-lo, é que todos estremecem,
por entenderem... que a palavra humana
que na pena é já morta, assume vida
se a uma pele defunta a incorporaram.
Vá! Que exiges, espírito danado?
pergaminho? papel? mármore? bronze?
letra de pena, de buril, de escopro?
Escolhe!

MEFISTÓFELES
Ih! que facúndia, e que fogachos
sem quê nem para quê! Basta um farrapo
de papel fino ou grosso, e uma gotinha
do sangue próprio, com que assigne em baixo.

FAUSTO
Se nessas pataratas fazes luxo,
vá lá!

(Arregaça o braço esquerdo; Mefistófeles pica-lhe a veia; Fausto molha no sangue a pena, e assina com ela o pergaminho que Mefistófeles lhe apresenta.)
MEFISTÓFELES
Isto do sangue é burundanga
que tem seu quê.

FAUSTO
Não te violo a avença;
não tenhas medo. As minhas posses todas,
já daqui tas obrigo. Inchei de modo
que só posso caber na tua esfera.
O Factor Sumo pôs-me em bando. Encontro
cancelos a vedar-me a natureza.
O fio do pensar quebrou-se. Há muito
que de todo o saber vivo enjoado.
Deixar-me ora engolfar em vosso abismo,
deleites sensuais, paixões fogosas!
Rompam já ’í portentos e portentos,
qual a qual mais possante a enfeitiçar-me!
Mergulhemos no vórtice dos tempos,
no encapelado mar das aventuras.
Sigam-se embora, como queiram, dores
a deleites, ou júbilos a mágoas.
Tudo, menos a inércia, o mal dos males,
o que mais vexa a dignidade humana.

MEFISTÓFELES
Não ponho restrições; peça por boca!
Se as primícias quiser libar de tudo,
de qualquer coisa (por fugaz que seja)
se quiser na voadura apoderar-se,
não faça cerimónia; e que lhe preste!

FAUSTO
Entendamo-nos bem. Não ponho eu mira
na posse do que o mundo alcunha gozos.
O que preciso e quero, é atordoar-me.
Quero a embriaguez de incomportáveis dores,
a volúpia do ódio, o arroubamento
das sumas aflições. Estou curado
das sedes do saber; de ora em diante
às dores todas escancaro est’alma.
As sensações da espécie humana em peso,
quero-as eu dentro em mim; seus bens, seus males
mais atrozes, mais íntimos, se entranhem
aqui onde à vontade a mente minha
os abrace, os tacteie; assim me torno
eu próprio a humanidade; e se ela ao cabo
perdida for, me perderei com ela.

MEFISTÓFELES
Pode crer (há muitos mil janeiros
que eu ando a roer nisto), inda não houve
homem nenhum que desde o berço à cova
lograsse digerir esse fermento.
O complexo do mundo (e pode crê-lo,
pois lho afirma um diabo) é incompreensível
a todos salvo a Deus. Só ele brilha
na luz perpétua; a nós enclausurou-nos
nas trevas sem limite; e a vós, aos homens,
alterna dia e noite.

FAUSTO
E eu quero.
MEFISTÓFELES
Entendo.
O mau é que a arte é longa, e a vida breve.
Dou que não leva a mal uma lembrança.
Tome por sócio um vate, e dê-lhe largas.
Deixe-o campear nos páramos dos sonhos,
até ao ponto de ajuntar às prendas
do meu caro Doutor os dons mais nobres:
valor leonino, rapidez de cervo,
estro d'Itália, madurez do Norte.

Deixe-o ver se, por artes de berliques,
o faz a par magnânimo e velhaco;
se lhe improvisa uns férvidos amores
como os tinha em rapaz, e juntamente
segundo o plano dele arrazoados!
Figurão tal, quem dera vê-lo! Eu curvo
chamava-o logo - «Senhor Dom Mundinho!»

FAUSTO
Mas então eu que sou, se me é defeso
ao ápice aspirar da humanidade,
alvo constante de meus crus anseios?

MEFISTÓFELES
É...? o que é... e acabou-se. Erga o toitiço
emperrucado com milhões de crespos,
ponha salto em tacões maior de vara,
que não cresce uma aresta.

FAUSTO
Em mal, que é certo.
Quanta ciência em mente de homem cabe
toda em balde juntei; por mais que explore,
força nenhuma se criou cá dentro;
não cresci a grossura de um cabelo,
e em nada do infinito estou mais perto.

MEFISTÓFELES
Senhor meu! Ver as coisas desse modo
é vê-las como o vulgo. A nós compete
pensar com mais juízo, enquanto há vida
para se desfrutar. Eu t’arrenego!
Se tem por coisa sua os pés, os braços,
cabeça, et cœt’ra... ao mais de que se apossa
porque o não tem por seu? Merco seis urcos,
de seis urcos a força ajunto à minha.
Levo-me pelo ar, porque possuo
mais vinte e quatro pés. Fora tontices!
Vamos por esse mundo. O que lhe eu digo
é que um palerma que esperdiça o tempo
em perpétuo hesitar, é como besta
levada pela beiça à roda, à roda,
por mão de um trasgo em árida charneca
insulada entre flóridos pastios.

FAUSTO
E onde nos vamos?
MEFISTÓFELES
Vamo-nos primeiro
pôr já já daqui fora, que em tal sítio
só mártires. E chama-se isto vida!
uma eterna moedeira dos rapazes
e de si próprio! Deixe-me esse inferno
ao seu vizinho Pança! Há quantos anos
anda aí como o boi no calcadoiro!
e inda assim o mais fino do que sabe
não lhe é dado ensiná-lo aos estudantes.
.................................
Passos no corredor... Algum que chega.

FAUSTO
Não me é possível recebê-lo agora.
MEFISTÓFELES
Coitado! Estar à espera há tanto tempo,
e ao cabo... Não consinto. Eu lho recebo.
Faça favor, empreste-me a batina,
mais o barrete.

(Fausto despe o trajo de Doutor, e Mefistófeles atavia-se com ele)
Cáspite! Que estampa!
que vera efígies de Doutor chapado!
Deixe por minha conta o mais da festa.
Dê-me este quarto de hora; e vá no entanto
para a nossa viajata aperceber-se.

(Fausto vai-se pela porta da esquerda para o corredor.)

CENA II

MEFISTÓFELES ()
(Voltado para a porta por onde saiu Fausto)

Descarta-te do siso e da ciência,
máximas forças do homem! Crê somente
nas ficções dos espíritos falazes,
e és meu sem redenção! Deu-te o destino
alma que, desdenhando os bens do mundo,
só aspira vaidosa a bens sem termo.
Com este posso eu bem. Voto arrastá-lo
por quanto há ’í de frioleiras chilras
ao mais bruto viver. Já o estou vendo
escabujar de raiva, inteiriçar-se
aferrado à matéria. À boca, aos olhos,
(quando o vir mais sedento e mais faminto)
hei-de-me regalar de negacear-lhe
fartos manjares, rescendentes vinhos.
Dar-se ao diabo este asneirão foi luxo,
que ele ia ao fundo pelo próprio peso.


CENA III*

O MESMO, e UM RAPAZOLA, simplório e acanhadíssimo.
RAPAZOLA
Eu vim há pouco tempo. Desejava
falar, podendo ser, a um grande sábio
que diz que mora aqui.

MEFISTÓFELES
Muito obrigado
por tanta cortesia. Encontra um homem
como todos os mais. Já viu a terra?

RAPAZOLA
O meu empenho todo é que me tome,
Senhor Doutor, à sua conta. Eu venho
co’as melhores tenções; dinheiro, trago
quanto me baste; e sou rapaz sadio,
bem vê. Lá a mãezinha, essa, coitada,
é que lhe custou muito eu vir-me embora.
Mas eu, sim, eu... percebe-me? trazia
na ideia outra tineta: era uma ânsia
de vir para a cidade, e aprender tudo...
como o outro que diz...

MEFISTÓFELES
Pois, meu menino,
sou por dizer-lhe que acertou co’a a porta.

RAPAZOLA (depois de ter estado a considerar mudamente no aspecto da casa; e mudando para o tom de aborrido)
Falo a verdade. Quem me dera ver
já bem longe daqui! Estas paredes,
estes tectos arcados, aborrecem-me.
Faltam-me o espaço e o ar; nem folha verde,
nem árvore descubro. Em me sentando
no banco duro de uma sala destas,
já não vejo, não oiço, e nada entendo.

MEFISTÓFELES
Tudo vai do costume. Um pequenito
recém-nascido esquiva-se da mama,
depois já busca o bico, e chuchurreia.
Aplico el cuento:
as tetas da ciência
vão sabendo melhor dia a dia.

RAPAZOLA
Quem já me dera pendurado nelas!
Mas se eu não sei trepar!

MEFISTÓFELES (sentando-se doutoralmente na cadeira de Fausto, e deixando o rapaz em pé)
Vamos por partes.
Que faculdade elege?

RAPAZOLA
Eu sei! queria
tornar-me sabichão de maço e mona.
Queria compreender a natureza
e abarcar a ciência; o que se avista
na terra, e o que há no céu.

MEFISTÓFELES (que em todo o diálogo vai, de vez em quando, tabaqueando o caso, de uma grande caixa, que tirou do bolso, e pôs em cima da mesa)
E deu co’a estrada.
O tudo está em conservar o acúmen
da aplicação científica, evitando
pestes scientiæ
as distracções.
RAPAZOLA
Percebo.
E essa gana trago eu. Só lembro o gosto
que eu teria, aos domingos de bom tempo,
em saltar por ’í fora.

MEFISTÓFELES
Foge a vida
more fluentis aquæ
. Necessário
se faz logo com regra aproveitá-la.
Siga, amiguinho, siga o meu conselho,
que não se há-de dar mal.

(Levanta-se)
E antes de tudo
muito colegium logicum; por ele
é que um novato aprende a enfiar justinho
os pés da mente em botas à espanhola,
que assim é que é seguir, sereno e cauto,
pé ante pé, a via das ciências,
em vez de andar pulando a um lado e a outro,
qual fogo fátuo em chão de cemitério.
Depois, levam-se meses a ensinar-lhe
o que antes de ensinado é já sabido,
como o comer, como o beber, et cœtera;
Naturæ donam
, sapiência infusa,
mas vulgar, mas sem brilho e sem relevo.
Acode um sábio; espostejou-se a coisa:
«Um, dois, três.» Sim senhor, é o que lhe digo.
A alma, que de ideias nos faz teias,
é como o tecelão, quando se esmera
em obra de examina: a cada piso
que ele na apianha dá, mil fios move;
voa, indo e vindo a lisa lançadeira;
no ordume a trama às cegas se entretece;
um golpe só fez tudo.
Ora o filósofo
bate a pata do espírito, e provou-nos
que o que é, devia ser; sendo o primeiro
isto, e aquilo o segundo, é consequência
ser o terceiro assim, e o quarto assado.
É corolário pois, que suprimidos
o primeiro e o segundo, era impossível
que existissem jamais terceiro e quarto
«Bela demonstração!» proclama à uma
a escola toda... mas nem meio ouvinte
nos saiu tecelão.
Pretende um sábio
conhecer e pintar qualquer vivente:
lança-lhe a garra e avia-o. Tem sem dúvida
todas as partes dele. O que lhe falta?
Unicamente
o seu vivaz liame:
Encheiresin naturæ
o chama a química.
Zomba de si, sem perceber que zomba.

RAPAZOLA
A modo que não pesco.
MEFISTÓFELES
Em pouco tempo
há-de entender melhor, quando já saiba
reduzir e classar.

RAPAZOLA
Faz-me tudo isto
confusão tal, que sinto, me parece,
galgas de azenha a andar-me no miolo.

MEFISTÓFELES
Logo depois, tratar da metafísica.
Com ela buscará sondar a fundo
o que no humano cérebro não cabe;
mas ou lá caiba ou não, nunca nos falta
para uma pressa um termo altissonante.
Agora, estes seis meses mais chegados,
há-de ir empregando em costumar-se
a ser em tudo tudo arranjinho.
Cada dia cinco horas para a aula,
entrando sempre ao toque da sineta;
a lição bem de cor, trinchada em párrafos.
Disto saca um proveito: é ficar certo
de que o seu mestre não falseia o livro,
nem lhe acrescenta um jota. Não obstante,
desunhe-se a escrever na caderneta
quanto ele proferir como ditado
pelo Espírito Santo.

RAPAZOLA
Entendo à légua;
e é muito bom conselho. Uma pessoa,
levando para casa a coisa escrita,
vai até mais segura e mais contente.

MEFISTÓFELES (tornando a sentar-se)
Mas torno a perguntar; que ciência elege?
RAPAZOLA (depois de ter estado a cuidar entre si)
Lá da jurisprudência Deus me livre.
MEFISTÓFELES
E acho que tem razão. Não sei que exista
faculdade mais chocha. Herdam-se e testam-se
leis e direitos, tais e quais se coam
de bisavós a avós, de pais a filhos
o sangue eivado, a tísica, as alporcas.
Não há mudar, não há progresso: aviso
chama-se parvulez; o benefício
degenera em trabalho. És descendente
de Fuão? mal por ti: do teu direito
real e inato, é que o Pretor não cura.

RAPAZOLA
O teiró que eu já tinha a tal ciência
tresdobrou desta feita.

(À parte)
Isto é que é mestre.
Que achadão! que fortuna!

(Alto)
E a teologia?
Talvez que...

MEFISTÓFELES
De enganá-lo é que eu não gosto.
Na teologia há mil caminhos falsos
difíceis de evitar; há mil peçonhas
tão ruins, que estremá-las de remédios
é quantas vezes foro de impossíveis.
Também nesta ciência, o mais seguro
é não pensar por si, mas jurar sempre
na palavra do mestre. Em suma, os textos
boias são que, em se a elas aferrando,
nunca um bom nadador se vai ao fundo.

RAPAZOLA
Mas as palavras devem ter sentido.
MEFISTÓFELES
Deverão, deverão; mas não é caso
para tanto ralar, porque onde falta
ideia que se intenda, acode um texto
que vem de molde, e calafeta o rombo.
O palavrório é tudo. Com palavras
se esgrime, contra ou pró, nas magnas teses.
Com palavras arranja-se um sistema.
As palavras tem fé. De uma palavra
não se cerceia um til.

RAPAZOLA
Eu bem conheço
que tanto perguntar é de importuno;
mas gostava de ouvir-lhe um poucochinho
sobre a ciência médica.

MEFISTÓFELES
Esse estudo
leva três anos só; que são três anos
para um campo tão vasto? em se apontando
a boca de um caminho, é como um gamo:
correr e mais correr.

(À parte)
Leva de embófias!
Vou falar chão, como a diabo cumpre.

(Alto)
O essencial da medicina é fácil.
Lê por dentro e por fora o mundo e o homem,
e afinal vê sair-lhe cada coisa
conforme aprouve a Deus. Esbaforis-vos
num corropio à roda da ciência,
e cada qual por fim... pilha o que pilha.
Saber aproveitar as circunstâncias
é que cifra o saber. Pois bem! Figura
não lhe falta, e suponho-lhe ousadia.
Que mais quer? fie em si; verá se os outros
se não fiam também.
Co’o mulherio
é que mais se precisa habilidade.
Os seus ai-ais e ui-uis, perene tema
de eternas variações, curam-se todos
co’a mesmíssima droga. Ao que bem sabe
ser magano à socapa, inda a primeira
há-de vir que resista; é que um sujeito
com Carta de Doutor merece crédito,
e a arte que ele pratica excede a todas.
Anos empata um suplicante avulso
em vencer nicas; um Doutor fez tudo
no primeiro rompante: pede o pulso,
dão-lho logo; tacteia-o brandamente,
regala-se a estudá-lo, e vai no entanto
co’o meigo olhar incendiando a linda;
depois, sem má tenção, sem falsos pejos
apalpa-lhe a cintura, a ver não traga
demasiado aperto no espartilho.

RAPAZOLA (pulando de contente, e esfregando as mãos)
Por aí! por aí! Dessa maneira
vê-se o que há e não há.

MEFISTÓFELES
Meu caro amigo,
toda a teoria é névoas; auriverde
só a árvore da vida.

RAPAZOLA
À fé que ouvi-lo
é para mim como um sonhar delícias.
Se me desse licença, ateimaria
em causticá-lo, até roçar no fundo
poço tal de saber.

MEFISTÓFELES
Vá, não se acanhe;
até onde eu chegar...

RAPAZOLA
Eu desejava,
antes de me ir embora, merecer-lhe
a honra de escrever neste meu álbum.

(Entrega o álbum a Mefistófeles, o qual depois de escrever nele, o restitui ao dono. Este recebe-o mui respeitosamente, e lê estas palavras.)
«Eritis sicut Deus, scientes bonum et malum.»
(O rapaz fecha o livro com grande reverência, e retira-se às cortesias, até sair pela porta do fundo.)

CENA IV

MEFISTÓFELES ()
Adopta o parecer da minha tia cobra!
Um dia no pavor com que o ânimo soçobra
lá reconhecerás, passando a ser dos meus,
se há ou se houve jamais um ente igual a Deus.


CENA V

O MESMO, e FAUSTO, que volta do corredor, já entrajado à fidalga, como Mefistófeles, mas ainda de barbas compridas
FAUSTO
Onde iremos?
MEFISTÓFELES
Escolha! Acho que poderemos
correr da sociedade os dois confins extremos,
começando na plebe, e indo do baixo ao sumo.
Que instrução! que recreio há-de encontrar, presumo,
nesta desfrutação!

FAUSTO
Com barbas tão compridas,
índole assim montês, maneiras encolhidas,
que vou eu lá tentar? Sou feito deste modo.
Detesto o conviver. Não sei, não me acomodo,
co’o bulício mundano. Onde se encontra gente,
fico como um pigmeu tolhido inteiramente.

MEFISTÓFELES
Isso, amigo, mau é; mas não há mal sem cura.
Anime-se e verá...
Mas que olha? que procura?

FAUSTO
Como havemos nós de ir? Cavalos, trens, criados...
onde estão?

MEFISTÓFELES
Nunca eu tivesse outros cuidados!
Estende-se este manto, embarca-se a seu bordo,
e despede-se o voo.

FAUSTO
Isso é melhor, concordo.
MEFISTÓFELES
De certo. Saiba mais que para tal viagem
bom será não levar grande matalotagem.
Enquanto fecho um olho, apronto o gás que deve
levantar-nos da terra. Assim, quanto mais leve
for a carga, melhor. Que rapidez! Aceite
já os meus parabéns, à conta do deleite
que tem de lhe excitar na mente comovida
o ver entrado-a nova e prodigiosa vida,

(Durante esta fala, tem Mefistófeles ido estendendo no chão a capa; e quando se está colocando sobre ela, cai o pano.)


QUADRO VI

Taberna do Retiro d’Auerbach, em Leipsick. Porta, ao fundo, para a rua, entre duas janelas de peitos. Ao meio da casa, mesa grande, com pratos, talheres, garrafas e copos de estanho e vidro, tudo em confusão, e sem toalha. À roda da mesa, bancos. À esquerda o balcão, e mais uma armação de taberna. Por trás do balcão, uma cesta de ferramenta. Pendente do tecto, um grande lampião aceso.

CENA I

Festança de rapaziada. RÃS, O BOTAFOGO, O PENEIRA, O QUINTEIRÃO, e outros
O RÃS
Bom! Ninguém bebe, ninguém ri. Que lesmas!
Pois é livrar de mim, que eu com mazombos
não me sei entender. Façam-se agora
palhiço podre, uns melcatrefes destes,
que os não há de mais fogo!

O BOTAFOGO
A culpa é tua
meu Rãs, que não nos botas a espertar-nos
alguma brejeirice, alguma asneira.

O RÃS (despejando-lhe um copo de vinho na cabeça)
Vão as duas por junto.
O BOTAFOGO (levantando-se para arredar-se, e sacudindo da cabeça o vinho)
Arreda, porco!
O RÃS
Serei, se à fina força assim o querem.
O PENEIRA
Quem desconfia, rua! Andem, rapazes.
Beber como animais; dançar à doida;
e esvaziar o bofe em cantarolas,
Leva acima!

O QUINTEIRÃO
Ui! que berro! Quem me acode
com algodão, que arrolhe estes ouvidos?
Goelas do diabo!

O PENEIRA
A voz de um baixo
deve estrugir a abóbada.

O RÃS
Está visto.
Paliou bem. Quem não gosta de chalaças
pode-se pôr a andar. Larilarára (cantando).

O QUINTEIRÃO (cantando)
Larilarára.
O RÃS
Bravo! Afinadinho!
(Canta em tom de chasco)
Meu santo Império romano,
inda te vejo de pé!...

O BOTAFOGO (interrompendo)
Barro cantar políticas. T’arr’nego!
Forte sensaborão! Dêem vocês graças
cada manhã, que, ao levantar da cama,
lhes não dê que pensar o santo Império.
Ser Rei e Imperador, não chega a isto
de ser um jan-ninguém; mas como é de uso
haver um maioral que nos governe,
toca a eleger um Papa. Todos sabem
que para onde acode o maior peso
é que verga a balança; e em consequência,
o homem que tem mais peso é que mais vale.

O RÃS (cantando)
Voa, voa, Filomela!
Vai levar dez mil bons dias
ao meu anjo, à minha bela;
e, poisada ante a janela,
acordá-la entre harmonias!

O PENEIRA
Que tolice! enviar a raparigas
comprimentinhos! Fora! eu cá não uso.

O RÃS
Pois não uses; e eu sim. À minha amada
comprimentos e beijos. Estou vendo
que lho quer proibir este papalvo!

(Canta)
Abre! é noite erma e calada.
Abre a porta, ó minha amada!
Vem, se estás inda acordada.
Vem, se em mim cuidando estás.
Abre; em vindo a madrugada,
a fechá-la tornarás.

O PENEIRA
Aporfia em cantar-lhe. É gabarolas
mais gabarolas. Deixa estar que um dia
inda espero rir muito. Há-de lograr-te
como a mim me logrou. Namore um bruxo,
com quem na encruzilhada, à meia noite,
dance a dança macabra; ou mais à própria
um bode velho, que, ao voltar da serra
de Block, onde celebram seus pagodes,
lhe passe pela porta, e galopando
lhe berre: Boa noite! Agora um moço,
que é gente de osso e carne, pentear-se
para um diabo assim! Os comprimentos
que lhe eu faria co’a melhor vontade
era quebrar-lhe os vidros da janela.

O BOTAFOGO (dá um grande murro na mesa. Ficam todos sentados à escuta. Levanta-se com gravidade)
Atenção! Vou falar! Calem-se todos!
Ninguém me negará que eu sei as regras
do bom viver. Aqui nesta assembleia
há gente femeeira, à qual eu devo,
em atenção à sua dignidade,
oferecer, neste serão de amigos,
algum pratinho bom. Aí vai; sentido!
Uma canção do trinque; e vocês, súcia,
berrem-me no estribilho até que estoirem

(Erguem-se todos, e vão rodeá-lo com os copos na mão. Canta.)
Era uma vez um ratinho,
que tinha feito o seu ninho
numa dispensa Real.
A dispensa era tamanha,
que em mar de manteiga e banha
nadava o nosso animal.

Roe, roe, roe. Não tem parança.
Engorda; cresce-lhe a pança
de um modo descomunal.
Nem o pai do nosso clero,
o grande doutor Lutero
se gabou de pança tal.

Cozinheira, que anda à espreita,
descobre-o, e treda lhe ajeita
bom pitéu arsenical.
Apesar de andar sem fome,
o bichinho prova... come...
comeu tudo; achou-se mal.

São pinchos; são guinchos
co’a dor interior,
que todos diriam
que dentro lhe ardiam
garrochas de amor.

CORO
Sim: dentro lhe ardiam
garrochas de amor.

O BOTAFOGO (continuando a cantar)
Corria de cabo a cabo;
dava dentadas no rabo;
fugia para o quintal;
mordia; arranhava; a frágua
era tal, que à míngua d’água
bebia num lodaçal.

Contemplar tanta agonia,
em lágrimas desfaria
corações de pedernal.
Ver passar este inocente,
de uma vida tão contente
para um suplício infernal.

Nem chia! Arqueja deitado!
Sente que o termo é chegado
da sua vida mortal.
Moléstias destas e amores,
não as entendem doutores,
nem se curam no hospital.

São pinchos; são guinchos
co’a dor interior,
que todos diriam
que dentro lhe ardiam
garrochas de amor.

CORO
Sim: dentro lhe ardiam
garrochas de amor.

O BOTAFOGO (continuando a cantar)
Sem lhe importar com ser dia,
no exaspero da agonia
corre à cozinha fatal;
e espumando a atroz peçonha,
na amada manteiga sonha,
e bufa o sopro final.

Foi seu fúnebre elogio
rir-lhe sobre o corpo frio
a cozinheira brutal:
- «Adeus, rei dos roedores!
Também quem morre de amores
padece martírio igual.»

Que sorte! que morte!
Senhor, por favor,
livrai-nos de asneiras
de más cozinheiras,
bem como de amor!

CORO
Livrai-nos, Senhor,
livrai-nos de amor!

O PENEIRA
Como os sensaborões gostam daquilo!
Que feito! envenenar um pobre rato!

O BOTAFOGO
Dou que este ratazana é da família.
O QUINTEIRÃO
E tu, pançudo da careca à mostra,
como viste no bicho o teu retrato,
ficaste consternado; entendo e louvo.

(Tornam todos a sentar-se, conversando baixinho uns com os outros)

CENA II

OS MESMOS, FAUSTO e MEFISTÓFELES, que entram pela porta do fundo.
MEFISTÓFELES
Houve por bem mostrar-lhe, antes de tudo,
o que são bons vivants. Toda esta malta
faz do folgar seu pão quotidiano.
Pensar pouco e rir muito, eis o que explica
toda essa funçanata. Aqui se gira
à laia dos peões, ou de um bichano
que anda ao redor a ver se apanha a cauda;
pois enquanto a cabeça lhes regula,
e o locandeiro fia, adeus, cuidados!
e estão divertidíssimos.

O BOTAFOGO (aos companheiros, maliciosamente)
Aqueles
vem de jornadear. Logo demonstram,
pelos seus modos, que não são da terra.
Uma hora há só talvez que chegariam.

O RÃS
Certo; e viva Leipsick! Isto é que é terra.
Abaixo de Paris, Leipsick! Um homem
para ser gente, há-de vir cá.

O PENEIRA (baixo, aos companheiros)
Mas estes
que diabo serão?

O RÃS (para o Peneira)
Deixa-os comigo!
Faz-se de um bom copázio saca-trapos,
e hão-de desembuchar. Dão-me ares ambos
de ser alguém. Tem caras de enjoados,
modos de soberbões.

O BOTAFOGO
Tunos de feira
aposto.

O QUINTEIRÃO
Pode ser.
O RÃS (enfeitando-se para falar aos dois recém-chegados)
Toma sentido
como eu tos enrodilho.

MEFISTÓFELES (a Fausto)
Estes patetas
nem faro tem para aventar o demo,
que está já, vai não vai, para filá-los.

FAUSTO
Vivam, senhores!
O PENEIRA
Viva!
(Baixo, olhando de soslaio para Mefistófeles.)
Aquele, a modo
que claudica de um pé.

MEFISTÓFELES
Dão-nos licença
de tomarmos assento entre os senhores?
Como não há na casa boa pinga,
folgaremos co’a bela sociedade.

O QUINTEIRÃO
Quer-me a mim parecer que o meu amigo
é biqueiro, de mal acostumado.

O RÃS (a rir)
Digam-me cá: saíram muito tarde
de Ripach? E ceou co’o Mané-Coco?

MEFISTÓFELES
Não senhor. Temos vindo tanto à pressa,
que o não pudemos. Na última jornada
sim, por sinal que nos contou mil coisas
dos primos da cidade, encarregando-nos
de dar a cada um muitas saudades.

(Cortejando de cabeça.)
O QUINTEIRÃO (baixo, a Rãs)
Apanha! Capiscou-te. É fino o meco.
O PENEIRA
É pássaro-bisnau.
O RÃS (aos companheiros)
Eu já to arranjo.
MEFISTÓFELES
Se nos não enganamos, figurou-se-nos
lá ao longe escutar para esta parte
um coro magistral; aqui as vozes
debaixo desta abóbada, por força
que hão-de fazer efeito peregrino.

RÃS
Dar-se-á que seja acaso o nosso amigo
cantor de profissão?

MEFISTÓFELES
Quem dera um disso!
Vontade não me falta; agora as forças...

O QUINTEIRÃO
Petas da vida; uma cantiga!
MEFISTÓFELES
Um cento.
O PENEIRA
Coisinha nova.
MEFISTÓFELES
Pronto. Agora mesmo
vimos de Espanha; em vinho e cantorias,
não quero que haja terra igual àquela.

(Canta.)
Catava-se um rei, quando acha
nas suas meias reaes
uma grande pulga macha,
pai-avô e Adão das mais,

O RÃS
Vocês não ouvem? Que hóspede! uma pulga!...
MEFISTÓFELES (continuando a cantar)
Causou no rei tal encanto
a lindeza do animal,
que desde logo o amou tanto
como ao príncipe real.

Chama o alfaiate régio,
e diz-lhe: - «Fará favor
de arranjar um fato egrégio
aqui a este senhor.

Não se esqueça que é preciso
trazer-lhe calções também.
Faça a obra de improviso;
talhe-a justo, e cosa-a bem.»

O BOTAFOGO
Olhe lá! O tal rei, que diga ao mestre
que, se a farpela não sair bem feita,
com ele se há-de haver; e se as calçotas
fizerem pregas, cortam-lhe o gasnete.

MEFISTÓFELES (continuando a cantar)
No clero, nobreza, e vulgo,
foi imensa a admiração,
a primeira vez que o pulgo
se mostrou de fardalhão.

Eram bordados, veludo,
rendas, laçarrões, cetim,
rebrilhando sobre tudo
as veneras e o espadim.

Deu-lhe el-rei grã-cruz e pasta,
um viscondado, e o poder
de elevar e enriquecer
aos bichos da sua casta.

Teve inda outro privilégio
muito invejável, que foi:
pastar, comer como um boi
nas damas do paço régio,

e até na própria rainha;
sem nenhuma ter acção
de coçar tal comichão
nem recusar-lhe a maminha,

quanto toda a outra gente,
se a morde a pulga, o que faz?
Vai co’os dedos de repente,
pilha-a, estortega-a, e trás!

TODOS (levantando-se em coro alegríssimo)
Vai co’os dedos de repente,
pilha-a, estortega-a, e trás!

O RÃS
Bonita peta! bravo!
O PENEIRA
Abaixo as pulgas!...
O BOTAFOGO
Esticar dedos, zumba, estão pilhadas.
O QUINTEIRÃO
Viva e reviva a liberdade e o vinho!
MEFISTÓFELES
Eu, em honra e louvor da liberdade,
também vazava um copo, se não fora
tão soez a mistela cá da casa.

O PENEIRA
Cale a boca praguenta!
MEFISTÓFELES
Se eu soubesse
que se não agastava o taberneiro,
oferecia à bela sociedade
um quod ore do nosso. Estou que haviam
lamber-lhe os beiços.

O PENEIRA
Venha sempre, venha.
Com ele eu me haverei.

O RÃS
Sendo a pinguinha
do que a gente mastiga, e farta a dose,
cá louvor ao que é bom não se recusa.

O QUINTEIRÃO (baixinho)
São do Reno, já vejo.
MEFISTÓFELES
Uma verruma,
se a há!

O BOTAFOGO
Mas para quê? Deixou na rua,
fora da porta, a pipa?

O QUINTEIRÃO
O taberneiro
há-de ter disso ali naquele canto,
na cesta em que arrecada a ferramenta.

MEFISTÓFELES (tira da cesta um trado. A Rãs.)
Para o seu paladar, que vinho escolhe?
Peça por boca!

O RÃS
Diz então na sua
que tem de toda a casta?

MEFISTÓFELES
O que repito
é que peçam por boca!

O QUINTEIRÃO (a Rãs)
Este já cuida
que está chuchurreando.

O RÃS
Eu, já que é livre
a cada um pedir, peço do Reno;
sempre é vinho patrício.

MEFISTÓFELES (furando na borda da mesa, diante do lugar de Rãs)
Arranjem cera,
que há-de servir para fazer batoques.

O QUINTEIRÃO
Prestigiações, aposto.
MEFISTÓFELES (apontando para o Botafogo)
E o seu vizinho?
O BOTAFOGO
Eu cá, champanha; e que esfuzeie escumas.
(Mefistófeles vai furando. Um vai no entanto tapando os buracos com as rolhas de cera)
Nem tudo que é da estranja há-de enjeitar-se.
Muita coisa há bem boa em longes terras.
Sou alemão de lei: detesto a França
pessoalmente falando; agora os vinhos...

O PENEIRA (ao aproximar-se-lhe Mefistófeles)
Sempre embirrei com pinga avinagrada.
Para mim, quero vinho de senhoras,
docinho.

MEFISTÓFELES (furando)
Aí tem Tokay.
O QUINTEIRÃO
Leva de brinco.
Dar-se-á que estes senhores se apostassem
a vir zombar de nós?

MEFISTÓFELES
Zombar! que ideia!
Zombarmos com tão nobre sociedade,
era audácia de mais.

(Para o Quinteirão)
Sem cerimónia,
de qual toma?

O QUINTEIRÃO
Qualquer, mas desempate!
MEFISTÓFELES (que, diante de todos, vai fazendo buracos que se tapam com rolhas, canta.)
De si cachos a parreira,
de si pontas deita o bode.

Logo, a exemplo da videira,
deitar vinho a mesa pode,
apesar de ser madeira.

Grande abismo, ó natureza!
Quem rastreia os teus caminhos!
Ora sus, mortais mesquinhos!
Rolhas fora! Aí vão da mesa
borbotar caudais de vinhos.

(Todos tiram as rolhas, e a cada um corre no copo o vinho que desejou.)
TODOS
Que belo chafariz!
MEFISTÓFELES
Mas sumo tento
em não verter por fora alguma gota.

(Bebem repetidas vezes.)
TODOS (cantando)
Beber, beber! sinto barruntos
de desbancar qualquer selvagem!
Beber, beber, quais na lavagem
bebem quinhentos porcos juntos.

MEFISTÓFELES (a Fausto)
Aí tem o povo livre, e os seus regalos!
FAUSTO
Tomara-me já longe destes brutos.
MEFISTÓFELES
Inda isto não é nada. Aguarde um pouco,
e verá onde chega a brutidade.

O PENEIRA (bebe sem cuidado, e entorna parte do vinho, que, em tocando no chão, se converte em labareda)
Acudam! fogo! fogo! Isto é, má hora,
lume do inferno.

MEFISTÓFELES (esconjurando a chama)
Meu valido lume,
pára aí já! (Aos convivas.) Foi só uma pinguinha
do que há no purgatório.

O PENEIRA
Estes figuros
não sabem com que gente estão metidos.
Pode sair cara a brincadeira.

O RÃS
Não caia você noutra; eu já o aviso.
O QUINTEIRÃO (aos companheiros)
Será melhor pedir-lhe em cortesia
que se nos ponha ao fresco.

O PENEIRA (levantando-se, de punho fechado, para Mefistófeles)
Ah, sô marmanjo,
pois então, lá supôs que isto eram asnos,
bons para embasbacar com peloticas?

MEFISTÓFELES (ao Peneira)
Cal’-te aí, pipa velha!
O PENEIRA
Então já viram
atrevimento assim? vir insultar-nos
este pau de vassoira, cavalinho
dalguma bruxa ao sábado!

O BOTAFOGO
Sem tosa
já ele se não vai.

O QUINTEIRÃO (tira uma das rolhas de cera, e golfa do buraco sobre ele uma língua de fogo)
Ui! que me queimo!
O PENEIRA
Mata, mata o marau! facada nele!
Olhem não voe! Segurá-lo e fogo!

(Puxam pelas facas e correm sobre Mefistófeles.)
MEFISTÓFELES (declamando)
Falsas vistas, sons fingidos,
transtornai-lhes os sentidos!
Sem sair, vaguem perdidos!

(Param atónitos, olhando uns para os outros.)
O QUINTEIRÃO (como fascinado)
Onde estou? Linda terra!
O RÃS
É certo... vejo-os...
são parreirais!

O PENEIRA
Que suspensão de cachos!
e tão à mão!

O BOTAFOGO
Oh! que alentada cepa!
oh! que formosos cachos, que se abrigam
aqui sob esta parra verdejante!

(Agarra o Peneira pelo nariz, e cada um vai fazendo outro tanto ao seu vizinho, e levantando a faca.)
MEFISTÓFELES (como acima)
Varrei-vos, ilusões!
De lhes mostrar acabo
se podem co’o diabo
medir-se uns beberrões.

(Saem Mefistófeles e Fausto)

CENA III

O PENEIRA, O QUINTEIRÃO, O BOTAFOGO, O RÃS, e outros
(Todos estes patuscos largam os narizes do próximo, e as facas com que os iam decepar)
O PENEIRA
Hein!
O QUINTEIRÃO
Que é?
O RÃS
O teu nariz!
O BOTAFOGO (a Peneira)
A tua penca!
O QUINTEIRÃO
Ai que estou derreado. Uma cadeira,
que me sinto ir abaixo.

O RÃS
O que foi isto?
Vocês não me dirão?

O PENEIRA
Qu’é dele, o biltre?
Se o pilho às mãos, matei-o.

O QUINTEIRÃO
Onde irá ele!
Vi-o eu, com estes, abalar da venda
Montado numa pipa. Estou co’as pernas
que as não posso mexer.

(Voltando-se para a mesa)
Examinemos
sempre à cautela, se haverá na banca
inda algum escorralho.

O PENEIRA
A boas horas!
Tudo aquilo era um sonho, uma trapaça.

O RÃS
Lá que eu bebi, bebi.
O BOTAFOGO
Pois a das uvas!
Essa foi outra.

O QUINTEIRÃO
E riam de milagres!


QUADRO VII*

Vasta caverna de Feiticeira. Ao fundo, uma porta baixa e informe. Do lado esquerdo, uma lareira térrea; por cima dela uma espaçosa chaminé. Na lareira, assente numa trempe, um grande caldeirão*. Na fumarada que dele sai, vão vislumbrando varias figuras. Espalhadas pela caverna tripeças, e uma canastra com diversos objectos, entre os quais um copo de dados, archotes, uma bola, uma coroa, um cartapácio encadernado de preto com broches de ferro. Pelas paredes sem reboco e afumadas, pendem desordenadamente vasilhas de mil formas, uma peneira, um espelho, uma vara, um abano de cauda. Uma cantareira com garrafas e copos.

CENA I

Ao pé do caldeirão, e a escumá-lo, com sentido que não deite por fora, está sentada uma CERCOPITECA (macaca muito grande, de rabo comprido)(*). O CERCOPITECO (o macho) está sentado, com os filhinhos ao pé, a aquecer-se. FAUSTO, MEFISTÓFELES.
FAUSTO (a Mefistófeles)
Este sarapatel de nigromâncias
faz-me nojo, declaro. E projectava
este diabo restaurar-me a vida
em tão vil charco de hediondezes fúteis!
Aconselhem-se lá co’uma carcassa!
Ou tenham fé que possam burundangas
duma cozinha assim descarregar-me
trinta anos do cachaço. A não saberes
receita que mais valha, estou servido.
Pois dar-se-á que não tenha a natureza
algum bálsamo seu, já descoberto
por algum alto engenho?

MEFISTÓFELES
Aí ’stão palavras
que mostram não ser parvo o nosso amigo.
Sim senhor; sem sair da natureza
há também com que um homem se remoce.
Vem isso noutra obra; e bem curioso
que ele é, o tal capítulo.

FAUSTO
Declara-o!
MEFISTÓFELES
Guapa receita. E curativo grátis,
sem precisar Doutor, nem feiticeira.
Ponha-se fora; vá-se aos campos; are;
cave; enclausure-se, alma e corpo, em solo
dadivoso mas parco; esteie a vida
com frugal passadio; aprenda e exerça
co’os seus brutinhos o viver nativo;
não julgue desairar-se, em repartindo
por suas mãos o adubo ao chão que o nutre.
Fie-se em mim: se há coisa que descargue
de oitenta anos, é isto.

FAUSTO
Agora é tarde
para me acostumar. Nunca até hoje
peguei num alvião. Para o meu génio
esse viver obscuro era insofrível.

MEFISTÓFELES
Então, é recorrer à feiticeira.
FAUSTO
Mas porque há-de ser logo a preferida
a tal mondonga velha? Não podias
preparar-me tu próprio a beberagem?

MEFISTÓFELES
Belo divertimento! Eu preferia
gastar o tempo em construir mil pontes.
Para arranjar os filtros desta casta
quer-se, além do saber, paciência e muita,
e atenção de anos largos; só co’o tempo
é que se alcança o fermentar completo
do líquido eficaz. Pois a quantia
d’ingredientes raríssimos! É certo
que o diabo é quem os sabe, e ensina tudo;
mas lá para os estar manipulando
é que não tem pachorra.

(Reparando nos animais)
Olhe a gracinha
do casal que ali está! São a criada
e o servo cá da casa.

(Aos animais)
Olá! já vejo
que a velhusca, vossa ama, anda por fora.

OS ANIMAIS
Eh eh eh eh!
Ao fricassé!
Foi pelo cano
da chaminé.

MEFISTÓFELES
Gasta lá nessas frescatas
muito tempo a feiticeira?

OS ANIMAIS
O tempo em que na lareira
nós aquecemos as patas.

MEFISTÓFELES (a Fausto)
Que tais acha estes nossos bicharecos?
FAUSTO
Ai! de apetite! Nunca os vi mais feios.
MEFISTÓFELES
E eu então o meu gosto é conversá-los.
(Aos animais)
Dizei, bonecos danados,
que tendes no caldeirão,
que estais tão azafamados
a mexer co’o colherão?

OS ANIMAIS
Pois não vês? esta iguaria
são as sopas dos mendigos.

MEFISTÓFELES
Nesse caso, meus amigos,
tereis muita freguesia.

O CERCOPITECO (tira da canastra o copo dos dados, e vai-se chegando a MEFISTÓFELES fazendo-lhe muitas festas)
Joguemos aos dados!
Meu rico parceiro,
não tenho dinheiro,
fazei-mo ganhar.
Ser pobre é ser parvo.
Espírito nobre,
salvai-me de pobre,
salvai-me de alvar.

MEFISTÓFELES
Este cercopiteco endoidecia,
se pudesse ganhar na loteria.

(Nestes entrementes, andam os cercopitequinhos a brincar com uma grande bola que tiraram da canastra, e vão rolando diante de si.)
O CERCOPITECO
Tal é o mundo!
Rolar, correr,
subir, descer.
Vidro rotundo
sonoro e ouco,
a pouco e pouco
fendas a abrir.
Aqui brilhante;
lá coruscante;
sempre cambiante,
sempre a fugir.
Fala-te um ente,
qual tu vivente,
qual tu mortal.
Evita, amigo,
esse inimigo
mundo fatal.
Crê-lo maciço,
e é quebradiço
como cristal.

MEFISTÓFELES
Que faz aqui esta peneira?
Tem algum préstimo?

O CERCOPITECO (tirando a peneira do prego)
Pois não?
Mostra a verdade nua e inteira.
Supõe que fosses um ladrão,
cara de santo e fala arteira,
logo eu te via a maganeira,
em observando o teu carão
pela peneira!

(Corre para a fêmea, a quem obriga a olhar para Mefistófeles, através da peneira)
Toma a luneta, companheira,
observa, observa o figurão.
Reconheceste-lo à primeira.
Declara o nome do ladrão!
Viva a peneira!

MEFISTÓFELES (aproximando-se do lume)
E este pote?
OS CERCOPITECOS (macho e fêmea)
Fora zote,
burro, estúpido, asneirão.
Não vês que é um caldeirão?
Chama a um caldeirão um pote!

MEFISTÓFELES
Bruta corja!
O CERCOPITECO (levanta arrebatadamente do chão um abano de rabo e mete-o na mão de Mefistófeles)
O quê! Depressa!
Toma o rabo deste abano!
Assenta-te na tripeça,
e esperta a fogueira, mano!

(Obriga Mefistófeles a sentar-se numa das tripeças, fazendo do abano ventarola)
FAUSTO (que durante todo este tempo, estivera parado defronte de um espelho, ora aproximando-se, ora recuando)
Oh mago espelho! que divina imagem!
Asas, asas, Amor! conduz-me a ela!
Se me acerco, recua, e mal a avisto
sombra de sombra esmorecida em névoa.
Tais graças feminis, dar-se-á que existam?
Estarei vendo neste esbelto corpo
das delícias dos céus a quinta essência?
Cabe ao mundo um tal dom?

MEFISTÓFELES
Naturalmente.
Quando lida na obra um Deus seis dias,
ao sétimo a contempla, e exclama: Bravo!
De ver está que executou portento
de costa acima. Farte os olhos, farte!
Deixe-me furoar que tarde ou cedo
lhe hei-de desencantar esse tesoiro.
Feliz quem no obtiver.

(Continua Fausto a olhar para o espelho. Mefistófeles espreguiçando-se na tripeça, e brincando com o abano, continua a falar.)
Que belo assento,
em que eu me estou aqui repetenando!

Nem rei no trono. Empunho um ceptro. Resta
vir a coroa radiar-me a testa.

OS ANIMAIS (que até aqui tem estado, uns com os outros, fazendo trejeitos e momices, trazem da canastra a Mefistófeles uma coroa, com grande algazarra)
Tome-a lá! Grude-a a si bem grudada,
com suores e sangue, oh Senhor!

(Ao brincarem à doida, deixam cair a coroa, que se parte em pedaços. Apanham-nos e atiram-nos por joguete uns aos outros.)
Ih! Quebrou-se a coroa sagrada!
Viva a turba! Acabou-se o temor.
Galrar já podemos,
de ventas no ar.
As zangas que temos,
até poderemos,
querendo, rimar.

FAUSTO (sem se apartar do espelho)
Ui que sanzala! Esvaem-me o juízo!
MEFISTÓFELES
Se até eu tenho a bola à roda, à roda!
OS ANIMAIS
E se a coisa desta feita
vinga e dá seu resultado,
das ideias a colheita
torna o mundo afortunado.

FAUSTO (como acima)
Já me arde o coração. Presto, fujamos!
MEFISTÓFELES
Já se vê pelo menos que estes mecos
tem para a poesia embocadura.

(Como a macaca tinha largado o caldeirão, começa este a entornar-se, ocasionando grande labareda que sobe pela chaminé. Pelo meio dessa labareda, desce a Feiticeira vozeando.)

CENA II

A FEITICEIRA e os MESMOS
FEITICEIRA
Ão, ão, ão, ão!
Maldita mona,
que me entornaste
o caldeirão,
e a vossa dona
incendiaste!
Maldita! ão, ão!

(Repara em Fausto e Mefistófeles)
Que temos? Vós quem sois? Quem teve o atrevimento
de vos deixar entrar? qual era o vosso intento?
Por entrardes sem vénia e a furto aos lares nossos,
má fogo que vos queime, e vos derreta os ossos!

(Mete o colherão na caldeira; tira-o cheio; sacode o líquido, que vai cair, convertido em chamas, sobre Fausto, Mefistófeles e os animais. Os bichos lançam grandes guinchos)
MEFISTÓFELES (levantando-se a súbitas, revira o abano com o cabo para fora, e começa a malhar com ele na caldeira, e em tudo que vê diante)
Ah! tu brincas? Pois eu faço
à tua solfa o meu compasso,
múmia ascosa. Na fogueira
vaso as sopas. A caldeira
ela aí vai tornada estilhas;
e atrás dela estas vasilhas...
Nada inteiro há-de ficar.

(A Feiticeira tem ido retrocedendo, cheia de terror)
Monstro! horror! arcaboiço! Olá! Não reconheces
o teu amo e senhor? Ínfima das refeces,
queres-te opor a mim? Não sei que me tem mão
que vos não leve a pau, desfeitas, de rondão,
tu, e toda a relé da tua bicharia.
Pois já esta demente acaso esqueceria
este cocar de galo? a cor de grã que eu visto?
até o meu semblante? Ainda, após tudo isto,
para saber quem sou precisa que lhe ponha
claro, eu próprio, o meu nome, a biltre sem vergonha!

A FEITICEIRA
Confesso, Grão Senhor, que foi mal recebido.
Vossa alteza perdoe;... mas tinha-lhe esquecido
o pezinho cabrum e o par de corvos*.

MEFISTÓFELES
Bem.
Por esta inda te passo.

(A Fausto)
Ele havia também
já tantíssimo tempo, a dizer a verdade,
que me não tinha visto!... A lei da humanidade
também se estende a nós: Le monde marche. Um vento
que se chama O Progresso, ora rijo, ora lento
mas constante, que varre e leva a quanto existe,
também por cá chegou. Foi-se o fantasma triste
do nevoento Norte. Onde há já ’í diabo,
que use chavelhos, garra ou pé de cabra e rabo?
Ora eu enquanto ao pé, - membro que não dispenso,
por ser quem me carreia em basta gente assenso -
quanto ao pé, anos há que uso ao disfarce botas,
como usam panturrilha os magrizéis janotas.

A FEITICEIRA (cantando e dançando)
Não caibo em mim d’alegria
por ver meu Dom Santanás
nesta minha cova fria,
tal como outrora soía,
lá quando eu era algum dia
menos velha, e ele rapaz.
Viva o meu Dom Santanás!

MEFISTÓFELES
Vedo que nunca mais tal nome se me dê.
A FEITICEIRA
Pois que mal lhe fez ele? explique-se: porquê?
MEFISTÓFELES
Nome é que anda há já muito entre outros mil escritos
no volumoso rol das fábulas e mitos.

(A Fausto)
Coisas da espécie humana: o génio mau proscrevem
e ficam-se co’os maus; a esses não se atrevem.

(À Feiticeira)
Chama-me se te apraz «Barão!» «Senhor Barão!»
Não há mais que dizer. Fico um fidalgarrão
como os do sangue azul. Quanto eu sou nobre, escuso
encarecer-to; e aí vão as armas do meu uso!

(Faz certo accionado.)
A FEITICEIRA (rindo a bandeiras despregadas)
Ah ah ah ah!
Ih ih ih ih!
Nunca vi, não há,
não há, nunca vi
brejeiro maior!
Bargante, bargante!
Em moço, tunante;
em velho, pior!

MEFISTÓFELES (a Fausto)
Repare, meu amigo e aprenda! Esta a maneira
como deve tratar co’a súcia feiticeira.

A FEITICEIRA
Que desejam agora estes senhores?
MEFISTÓFELES
Mando
que nos tragas já já um copo trasbordando
da sabida mistela, e quanto mais anosa
a tiveres, melhor, mais eficaz.

A FEITICEIRA
Gostosa
obedeço já já.

(Tira uma garrafa e um copo da cantareira)
Nesta garrafa tenho
com que dar ao seu mando óptimo desempenho.

Desta é que eu muita vez mato o bicho. Fortum
nem por onde ele passe. Um copo! e mais do que um
se quiser, essa é boa!

(Baixo a Mefistófeles)
Olhe que o sujeitinho,
se traga aquilo assim como quem bebe vinho,
sem se ter preparado, estoira antes de um’hora,
bem sabe.

MEFISTÓFELES (baixo à Feiticeira)
O teu receio é mal cabido agora.
Eu sou amigo dele e não lhe quero a morte.
Podes-lhe dar sem medo o que haja de mais forte
no teu laboratório. A l’obra, presto, a l’obra!
Risca-me nesse chão o círculo da cobra.
Reza lá o conjuro, e dá-lhe um copo cheio.

(A Feiticeira com solenes ademães, risca um círculo e põe-lhe dentro coisas esquisitas. Para logo principiam os utensis e os copos a traquinar, com certa afinação. Traz afinal um cartapácio. Mete no círculo os cercopitecos. Um deles fica a servir-lhe de estante. Os outros archotes tirados da canastra, e que per si se acenderam simultaneamente. A Feiticeira acena a Fausto, que se lhe acerque)
FAUSTO (a Mefistófeles)
Mas tudo isso a que vem? Patranhas vãs! Descreio
de quanto vejo aqui: visagens estudadas,
imposturas sem sal, tontices, meros nadas.
Sei tudo isso de cor; tenho-lhe nojo.

MEFISTÓFELES,
Asneira!
É forte bravejar contra uma brincadeira!
Pois não vês que a mulher não faz em tudo aquilo
senão seguir à risca o medical estilo?
para que te aproveite e preste a beberagem,
põe muito palavrão, muitíssima visagem.

A FEITICEIRA (empurra Fausto para dentro do círculo; e põe-se a ler no livro, declamando com grande ênfase)
Agora me explico,
Do um, dez fareis;
o dois deixareis;
o três uguareis;
e já sondes rico.
Lançar quatro fora.
Dos cinco e dos seis,
sete e oito fareis.
São estas as leis,
e andai-vos embora.
E os nove são um;
e os dez são nenhum.
E tenho acabada,
segundo cumpria,
toda a tabuada
da feitiçaria.

FAUSTO (a Mefistófeles)
Ela estará com febre? A modo que extravaga.
MEFISTÓFELES
Ai! de pouco se admira. Inda por ora a saga
do intróito não passou; e todo o calhamaço
vai no mesmo teor. Eu já o li de espaço;
por sinal que até fiz sobre o seu conteúdo
o estudo mais cabal, mais sério, mais miúdo,
do que vim a inferir o que lhe exponho franco:
no que é contraditório, o sábio fica em branco,
assim como o ignorante. Esta arte, meu amigo,
é velha e nova; há nela, a par do imenso antigo,
algo também moderno. Inda não houve idade,
que, a bem de traficar co’a pobre humanidade,
não andasse a espalhar, com rara impavidez,
erros de três por um, ou erros de um por três.
Onde havia ensinar-se o claro, o verdadeiro,
mentiu-se adrede ao vulgo estólido e crendeiro.
Contra a superstição e audácia, era preciso
combater e suar; e a gente de juízo
preferiu sempre a tudo um bom viver pacato.
Nos mortais em geral dá-se um pendor inato
para absorverem crença. Era melhor primeiro
pensar, e crer depois; crer só no verdadeiro.

A FEITICEIRA (continuando)
A potência da ciência
que anda oculta em névoa escura,
só revela a sua essência
ao mortal que a não procura.

FAUSTO
Que absurdo nos diz ela? A tantos disparates
já se me oira a cabeça; oitenta mil orates
não doidejavam mais.

MEFISTÓFELES
Nobre sibila, basta!
Venha o copo e bem cheio. Um homem desta casta,
um famoso Doutor em tanta faculdade,
pode beber sem risco e sem dificuldade.
Mal imaginas tu que tragos de alto engodo
ele já tem provado.

(Notando em Fausto alguma hesitação, continua.)
Abaixo! abaixo! Todo!
Animo! escorripicha! E tu verás em breve
como esse coração bate contente e leve.
Ora gosto de ti! Convives co’o demónio
tu cá, tu lá
, e agora estás como um bolónio
com medo a um fogachinho!

(Fausto acaba de beber resolutamente o copo apesar de saírem dele pequenas chamas.)
(A Feiticeira desfaz o círculo. Fausto sai dele.)
Estás liberto. Agora,
exercício que farte.

A FEITICEIRA
Em muito boa hora
que tomasse o meu filtro.

MEFISTÓFELES (à Feiticeira)
E tu, se me quiseres
alguma coisa, velha, é bom que lá me esperes
na Valburga esta noite.

A FEITICEIRA (a Fausto)
Aprenda outra cantiga
antes de se ir embora; e é dadiva de amiga.
Toda a vez que a entoar, há-de sentir no peito
um certo não lho digo; enfim um certo efeito

(Fausto dá-lhe costas enjoado, com ar desprezativo)
MEFISTÓFELES (a Fausto)
Vem comigo, eu te guio. Afim de que a poção
no interior e por fora opere a sua acção,
não há que estar à espera; é necessário e urgente
medir terra, correr, suar copiosamente.
Depois te ensinarei como se logra a vida
no suave far niente em flores envolvida,
e como o deus de amor brinca, borboleteia,
e oferta aos lábios mel pela áurea taça cheia.

FAUSTO (querendo tornar-se ao espelho)
Deixem-me inda uma vez mirar nesse brilhante
venturoso cristal a que é sem semelhante,
da graça o non plus ultra.

MEFISTÓFELES
À fé, que a imagem dela
era de todo o ponto e em todo o extremo bela;
mas que não dirás tu, em vendo o original?
vivinho! em carne e osso! ao pé de ti!

(À parte)
Que tal!
Co’a dose que tomou, qualquer mulher que aviste
vai julgá-la outra Helena.
Ah, sábio, alfim caíste!



QUADRO VIII

Vista de rua.

CENA I

FAUSTO, já remoçado, MARGARIDA, que vai passando
FAUSTO
Minha linda fidalga, dá licença
de oferecer-lhe o braço e acompanhá-la?

MARGARIDA
Senhor, nem sou fidalga, nem sou linda.
Vou para casa só, perfeitamente.

(Dá-lhe costas, e sai)

CENA II

FAUSTO ()
Vive Deus! que formosa criatura!
Nunca vi coisa assim. É tão sisuda,
tão bela! Tem de mau só a esquivança.
Nunca me hão-de esquecer em toda a vida.
o carmim da boquinha, a cor das faces!
Aquele abaixar de olhos, que profundo
que se gravou cá dentro! E as respostinhas
tão concisas! Encanto como aquele
não quero eu que haja outro.


CENA III

O MESMO e MEFISTÓFELES
FAUSTO
Uma palavra:
Arranjas-me a cachopa?

MEFISTÓFELES
Eu! qual?
FAUSTO
Aquela
que por aqui passou não há minutos.

MEFISTÓFELES
Ah, sim, sim: essa vinha do confesso,
por sinal que o padreca lhe lançara
o te absolvo dos pecados todos,
o que eu sei de raiz, porque à sorrelfa
pelo confessionário ia passando.
Se há inocência é aquilo; escrupuliza
de uma aresta que seja, e não sossega
sem ir desabafar aos pés do padre.
Naquela nada posso.

FAUSTO
O quê! pois ela
não tem já seus quatorze?

MEFISTÓFELES
Ui! Já lá vamos,
meu Dom João de obra grossa? Pelos modos,
onde houver flor é sua; o privilégio
de colher honras e estrear carícias
é só deste senhor. Contas são essas,
que ao enfiar às vezes se escangalham.

FAUSTO
Mestre paparrotão! Deixemos regras.
Digo-lhe isto, e mais nada. Se esta noite
não abraço a moçoila, ao dar das doze
acabou-se o contrato.

MEFISTÓFELES
Ao que me pede
não chega a minha alçada. Quinze dias
gastarei eu no esquadrinhar os azos.

FAUSTO
Com sete horas, não mais, se as eu tivesse,
era capaz de haver a franganota,
sem precisar ajudas de diabos.

MEFISTÓFELES
Galra, que nem francês. Mas piano, piano!
Gozar logo à primeira, é parvoíce.
O verdadeiro, o fino, é quando um homem
amassa de princípio, amolda, ajeita
com mil quindins a sua bonequinha;
do que dão fé novelas estrangeiras.

FAUSTO
Bom apetite escusa especiarias.
MEFISTÓFELES
Mas sério, sério, a moça, inda o repito,
não é dessas, que amor leva d’assalto;
precisa-se estratégia.

FAUSTO
Vê se ao menos
me trazes desse angélico tesoiro
uma prenda qualquer. Leva-me ao quarto
em que pernoita. Brinda-me co’um lenço
que lhe velasse o peito, co’uma liga
que lhe cingisse a curva torneada...

MEFISTÓFELES
Bem! Para lhe provar quanto desejo
dar algum lenitivo a tais ardores,
levo-o sem mais tardança ao quarto dela.

FAUSTO
A vê-la? a possuí-la?
MEFISTÓFELES
É cedo, é cedo.
Saiu a visitar certa vizinha;
portanto pode, a sós inteiramente,
chamar a casa sua; e antegozando
já no ânimo outros bens, inebriar-se
a fartar na atmosfera do seu anjo.

FAUSTO
Vamos já?
MEFISTÓFELES
Dentro em pouco.
FAUSTO
Hás-de arranjar-me
algum dom que lhe eu leve.

(Sai.)

CENA IV

MEFISTÓFELES ()
Já presentes?!
Macacão! sabe-a toda! Agora digo
que a tem na palma, e breve. O meu canhenho
reza de mil tesoiros enterrados.
Vou-me à busca de algum que lhe encha o olho.



QUADRO IX

Quarto pequeno e limpinho. Uma porta ao fundo, outra ao lado, e janela do oposto. Uma mesa composta, com o seu pano. Um engenho de fiar. Um armário com chave. Um leito com cortinado. Uma poltrona. Um espelho. É ao cair da tarde.

CENA I

MARGARIDA*, (acabando de arranjar as tranças)
Tomara inda saber quem era o cavalheiro!
Presença mais gentil! E o rosto? verdadeiro
retrato de um fidalgo. Até no atrevimento
bem demonstrou que o era.

(Vai-se pela porta do lado, fechando-a por fora à chave)

CENA II

FAUSTO e MEFISTÓFELES, os quais, passado pouco tempo da saída de Margarida, entram pela porta do fundo.
MEFISTÓFELES
Está-lhe no aposento,
Doutor! Entre animoso e sem ruído.

FAUSTO (após algum silêncio)
Peço
que me deixes sozinho.

MEFISTÓFELES (pesquisando por todos os cantos)
Inda não vi, confesso,
casa de rapariga em tão completo arranjo!

(Sai)

CENA III

FAUSTO ()
(Lançando os olhos à roda de si)
Clarão crepuscular, bem-vindo ao céu deste anjo!
Descei-me ao coração, mágoas de amor mimosas,
que a esp’rança alimentais como o rocio às rosas.
Ave do paraíso, em teu cerrado ninho
não vejo senão paz, contentamento, alinho.
Oh! que rica pobreza, oh! que prisão risonha!

(Dá consigo para cima da poltrona de coiro, que está ao pé da cama. Fala com a poltrona.)
Permite que um estranho o peso em ti deponha
da ventura que o enche e o assoberba. Amigo,
que em teus braços fieis, desde o bom tempo antigo,
constante hás acolhido os gostos e os pesares
de cada possessor destes quietos lares;
hereditário trono, enquanto aqui repousas,
que de ranchos pueris, volúveis mariposas
te haverão rodeado a rir de idade a idade!
Aqui, a que hoje admiro esplêndida beldade,
viria em pequenina, afável, jubilosa,
em noite de Natal beijar a mão rugosa
do avô, e agradecer-lhe os bolos de regalo
com que ele a alvoroçava ao descantar do galo.
Ai, virgem graciosa, aqui neste recinto
como que andar-me em torno a ciciar pressinto
essa alma arranjadeira, amena, dadivosa,
que te inspira qual mãe, te ensina cuidadosa
a pôr na limpa mesa o seu pano asseado,
e a realçar com a areia o solho escasqueado.
Cara mão divinal,
fazes de uma choupana um Éden terreal.

(Levanta-se, e corre a cortina do leito)
E aqui! aqui! Não sei de que ávida tremura
padeço e gozo o assalto. Ai, sonhos de ventura,
durai-me, se podeis, por horas esquecidas.
Foi aqui, puro amor, que uniste duas vidas
num êxtase dos teus, e à terra a glória deste
de obter, fruto de um beijo, um serafim celeste.
Aqui jazeu criança, arfando o terno seio
de vivaz sangue ardente e de porvir tão cheio,
e aqui foi pouco a pouco enfim, toda pureza,
unindo em si os dons da perenal beleza,

(Fala indignado consigo mesmo)
A que vieste aqui? Todo eu sou comoção.
Que intentas? Que pesar te oprime o coração?
Já não és, pobre Fausto, o mesmo que eras dantes.
.................................
Terá magia este ar? Eu, que inda há dois instantes
aos deleites carnais voava audaz, faminto,
como é que num relance enternecer-me sinto?
Somos acaso nós e os nossos sentimentos
um vil joguete do ar, qual chama exposta aos ventos?
.................................
Mas se ela agora entrasse! Ideia qual seria
a justa punição de tanta aleivosia!
Cair-lhe-ias aos pés, convulso, fulminado,
bravo Dom João Tenório em Jan Ninguém tornado!


CENA IV

FAUSTO, e MEFISTÓFELES, que entra correndo da porta do fundo
MEFISTÓFELES (açodado)
Fuja, que já vem perto.
FAUSTO
E é de repente. Juro
nunca mais arriscar-me a semelhante apuro.

MEFISTÓFELES
Aqui lhe trago um cofre, e não é nada leve.
Pilhei-o onde eu cá sei. Meta-o no armário, e breve!
Afirmo-lhe que a moça em vendo o conteúdo,
fica fora de si. Não faço rol miúdo
por não no demorar. São certas prendasitas
que vencem geralmente a feias e a bonitas,
Sei que esta é doutra massa... Adeus! toda a criança
é criança, e um bonito é sempre uma festança.

(Abre-o e mostra-o de relance a Fausto, sem que os espectadores vejam o conteúdo)
FAUSTO
Não sei se devo ousar...
MEFISTÓFELES
E inda o pergunta?... salvo
se prefere deixar a rapariga em alvo,
e fugir co’o presente; e acho que assim faria
muito melhor negócio: o tempo que perdia,
gasta-o a passear; e eu cá lucro igualmente
em não aturar mais um amo impertinente.
Dou que isso no Doutor não vem de ser avaro.
À fé de diabo amigo, eu já não sei, meu caro,
o que lhe hei-de fazer, por mais que esfregue a testa.

(Põe o cofre no armário e dá volta à chave)
Abalar! abalar! Agora o que nos resta
é deixar livre o campo, e tempo à jovem fada
para se lhe mudar de esquiva em namorada.

(Fausto tem-se ido fazendo sorumbático)
Que é isso, meu Doutor? Porque se pôs mazombo?
que chega a atarantar-me? É tal e qual, não zombo,
a carranca de um lente, indo tomar assento
no claustro pleno, e ao dar co’os olhos no espavento
do corpo catedral, que é ter diante a Física
toda como um fantasma, e toda a Metafísica.
Ponhamo-nos ao fresco. Aí vem a nossa bela
já perto desta porta.

(Apontando para a porta do fundo)
Aquela! por aquela!
(Vão-se precipitadamente, enquanto Margarida abre da parte de fora, a porta do lado, e entra.)

CENA V

MARGARIDA, (trazendo na mão uma lanterna, que põe em cima da mesa)
Ai que ar abafadiço o deste quarto agora!
(Abre a janela)
Mas corre bem fresquinha a noite lá por fora.
Sinto-me não sei como; estou co’uns arrepios!...
Tomara eu já que a mãe... (Credo! olha o mocho aos pios)
tornasse para casa. É celebre! Esta noite
chego a não me entender; preciso quem me afoite.

(Começa a despir-se cantando)
Reinava em Tule algum dia
um bom Rei tão fino amante,
que até morrer foi constante
à dama com quem vivia.

À hora do passamento
deixou-lhe ela um vaso d’oiro,
que foi do Real tesoiro
o mais falado ornamento.

Punham-lho sempre na mesa;
só por aquele bebia;
e o choro que então vertia
causava a todo tristeza.

Vendo o seu termo chegado,
repartiu pelos herdeiros
os bens, té aos derradeiros,
excepto o vaso adorado.

Foi isto em jantar de mágoas
que El-Rei deu à fidalguia,
em torre herdada que havia
ao rés das marinhas águas.

Como El-Rei houve bebido
o seu último conforto,
co’o braço já quase morto
levanta o vaso querido,

e por não deixá-lo ao mundo,
da janela ao mar o atira.
Ondeia o vaso, revira,
enche-se, e desce ao profundo.

No mesmo triste momento
em que o vaso se abismava,
o Rei seus olhos cerrava,
soltando o último alento.

(Abre o armário para arrumar os vestidos, e dá com os olhos no cofre)
Quem poria isto aqui! Meu Deus, eu sei de certo
que não deixei ficar o guarda-fato aberto.
Parece até milagre. É lindo o cofrezinho.
Que haverá dentro nele?... Ah!... cuido que adivinho;
é coisa de penhor que algum necessitado
traria a minha mãe. Tem um fitilho atado,
e presa uma chavinha... Abro ou não abro?... Adeus!
O ver não é furtar. Que escrúpulos os meus!

(Traz o cofre para cima da mesa e abre-o)
Que é isto, Pai do céu! Nunca em dias de vida
vi jamais coisa assim, tão linda, tão luzida.
E adereço completo! A mais rica senhora
com isto num domingo, em festa grande, fora
levar atrás de si o olhar de toda a gente.
Que bem que este colar aqui

(indicando a garganta)
tão refulgente
me havia de ficar! A quem pertenceria
tão vistoso tesoiro!

(Enfeita-se com as jóias, e mira-se ao espelho)
Eu nada mais queria
que estes brincos. A gente, assim paramentada,
té nem parece a mesma. A moça e linda agrada,
é bem certo; contudo os próprios que a elogiam
não se matam por ela: apenas principiam
a lembrar-se que é pobre, os gabos da lindeza
já vão juntos co’o dó. Coitada da pobreza!!



QUADRO X

Um arvoredo de passeio.

CENA I

FAUSTO vai e vem meditabundo. MEFISTÓFELES
MEFISTÓFELES (acercando-se furioso a Fausto)
Voto ao falsear no amor! Voto às essências
do meu reino infernal!... e votaria
praga maior, se me lembrasse. Voto...

FAUSTO
Que tens? quem te fez mal? Nunca vi cara
de tanto desespero.

MEFISTÓFELES
Hoje ao diabo,
se o eu não fosse, me daria eu próprio.

FAUSTO
Que pancada na mola! Acho pilhéria
nesse teu bravejar.

MEFISTÓFELES
Faça de conta
que o ladrão de um sotaina...

FAUSTO
Um padre?
MEFISTÓFELES
Um padre:
atabafou à pobre Margarida
quanto o Doutor lhe dera. Aí vai a história:
Entra-lhe a mãe no quarto; avista as jóias,
e enche-se de terror. É que a velhusca
tem um faro! Como anda de contínuo
afocinhada no seu livro de Horas,
só por esse fortum distingue à légua
se o cheiro que lhe vem de cada coisa
é santo, ou cá dos meus. Por conseguinte
pronta aventou nas jóias do adereço
cheirarem pouco a céu:
- «Digo-te, filha
- resmoneou - que os bens mal adquiridos
peste são d’alma e corpo. O mais seguro
é darmo-los de oferta à Mãe Santíssima,
e a benção do Senhor será connosco!»
A Margarida, um tanto amuadinha,
pensou consigo, a sós:
«Cavalo dado,
et cœt’ra
. E quem nos manda um tal presente,
de um modo tão cortês, não dá motivo
para o crermos perverso.»
A mestra abelha
sempre à cautela foi chamando o bonzo.
Este, apenas ouvida a brincadeira,
quis ver; alvoroçaram-se-lhe os olhos,
e exclamou:
- «Sim senhora, isso é que é honra!
Quem se vence é que vence. A madre igreja
esmoe bem, Deus louvado; engole reinos
sem ter indigestão. Só ela pode,
minhas caras irmãs, tragar sem risco
riquezas mal ganhadas.»

FAUSTO
Quanto a isso
tem companheiros. Um judeu, podendo,
e um Rei lêem pelo mesmo breviário.

MEFISTÓFELES (continuando)
E acto continuo, foi chamando ao bolso
afogador, aneis, pulseiras, tudo
como coisas de nada, um cabazinho
de avelãs chochas. Deu-lhes por seguros
mil prémios na outra vida, e pôs ao fresco,
deixando-as grandemente edificadas.

FAUSTO
E a Margarida? a Margarida?
MEFISTÓFELES
Ai! essa
lá está sentada a malucar sozinha,
sem saber o que deva, ou que resolva.
Não lhe saem da ideia as louçainhas,
e menos quem lhas deu.

FAUSTO
Portanto pena;
e eu por ela também. Corre a buscar-lhe
novo adereço, e vê se melhorado,
que o outro realmente era bem pífio!

MEFISTÓFELES
Com que então, pareceram-lhe as tais jóias
uns bonitos de feira! Agradecido,
magnânimo Doutor!

FAUSTO
Silêncio! Parte,
e arranja as coisas a meu gosto. Ouviste?
Faze-te bem de casa co’a vizinha!
Não sejas papa-assorda, e presto presto
já nova joalharia.

MEFISTÓFELES (com humildade afectada)
Inteiramente
ao seu dispor meu amo.

(Sai Fausto.)

CENA II

MEFISTÓFELES ()
Um doido amante
daquela força, iria, se pudesse,
às estrelas, à lua, ao sol pôr lume,
só para regalar a sua amada
de ver nos céus um fogo d’artifício,
em que tudo estoirando esfuzilasse.



QUADRO XI

Casa da vizinha Marta. Quarto pobre. Porta ao fundo, entre duas janelas cortinadas. Cadeiras. Mesa com espelho.

CENA I

MARTA ()
Valha-te Deus, marido! Ires-te assim à tuna
pelo mundo de Cristo à cata da fortuna,
e deixares-me aqui em frio celibato,
tristinha, muda, e só, nas palhas de um grabato!
E então porquê? porquê? Dei-lhe eu razão de queixa?
Não lhe quis sempre tanto?

(Desata a chorar)
E ele não só me deixa,
senão que nem me escreve, a dar-me algum conforto,
por modo que nem sei se é vivo ou se está morto.
Se me tivera vindo ao menos certidão
de estar já com o Senhor...!


CENA II

MARTA, e MARGARIDA, que entra azafamada com um cofre escondido
MARGARIDA
Pode-se entrar?
MARTA
Pois não!
MARGARIDA
Venho fora de mim, Senhora Marta!
MARTA
O que é,
menina? que tens tu?

MARGARIDA
Mal posso ter-me em pé.
MARTA
Pois senta-te!
(Margarida senta-se)
Que tens? que foi?
MARGARIDA
No guarda-fato
outro cofre. Este agora é de ébano. O aparato
das jóias que ele encerra é tal, que em brilho e preço
deixa a perder de vista o primeiro adereço.

MARTA
Agora desta vez cautela e mais cautela!
Tua mãe que o não sonhe! A beatice dela
já tu viste onde chega. O confessor matreiro
fazia deste achado o que fez do primeiro.

MARGARIDA (abrindo no regaço o cofre, e tirando de dentro um afogador de brilhantes)
Veja só isto, veja, e diga-me...
MARTA (que à proporção que fala, vai enfeitando Margarida com as jóias, enquanto esta se está narcisando ao espelho)
O que eu digo,
Margaridinha, é só que à fé que anda contigo
fada de bom condão.

MARGARIDA
Pois sim, mas que me presta
possuir estes dons? Numa ocasião de festa
eu não os posso pôr, nem ir com isto à rua.

MARTA
Que importa? Nesta casa estás como na tua.
Podes vir para cá as vezes que te agrade;
fechamo-nos por dentro; estás em liberdade;
pões em cima de ti as tuas jóias ricas;
e o espelho te dirá que linda que não ficas,
passeando a espanejar-te uma hora, se quiseres,
vendo-te nele a flor e a inveja das mulheres.
Muito hemos de folgar; verás. Depois, lá vem
certas ocasiões em que parece bem
pôr mais um dixezinho, agora uma corrente,
depois uns brincos bons, sem que se espante a gente.
A pouco e pouco assim, todos os teus asseios
irão saindo à praça. E rir de vãos receios!
Lá enquanto à mãezinha, adeus; tão enlevada
vive nas orações, que não repara em nada.
E também que repare, embutes-lhe uma peta.

MARGARIDA
Mas quem poria lá no armário esta boceta,
e já também a outra? Aqui anda bruxedo,
por força, e não dos bons. Eu fino-me de medo.

(Batem à porta. Margarida estremece.)
Jesus! Se é minha mãe:
MARTA (levantando a cortina da janela, e olhando para fora)
É um desconhecido.
(Vai à porta e abre)
Pode entrar.

CENA III

MEFISTÓFELES, e as ditas
MEFISTÓFELES
Co’o respeito a damas tais devido
peço humilde perdão desta importunidade.

(Inclina-se respeitosamente diante de Margarida.)
Saber-me-iam dizer onde é, nesta cidade
que assiste, e daqui perto, uma senhora Marta,
mulher de um Espadinha?

MARTA
A própria. Se traz carta
do meu homem, sou eu.

MEFISTÓFELES (baixo a Marta)
Bem. Visto achar-se agora
aqui esta fidalga, à tarde a qualquer hora
eu voltarei.

MARTA (em voz alta)
Não vês, Menina, as honrarias,
que deves ao Senhor? «Fidalga!» Não sabias.

MARGARIDA
Não passo, meu senhor, de uma pobre de Cristo.
Isso é bondade sua! Eu fidalga? Por isto?

(Apontando para os adereços)
Mas nada disto é meu.
MEFISTÓFELES
Que importa? que valia
tem junto a graças tais o oiro e a pedraria?
Pois esse olhar tão nobre! e a senhoril presença!
o tudo que a distingue... Encanta-me a licença
de poder demorar-me.

MARTA
Então que novidade
me traz? mate depressa esta curiosidade!

MEFISTÓFELES
Quisera-lhe trazer melhores novidades.
O seu homem morreu, e manda-lhe saudades.

MARTA
Morreu! Bem mo dizia o coração. Morreu
o meu homem! Jesus, que desamparo o meu!
Vou ter um faniquito.

MARGARIDA (a Marta)
Anime-se, vizinha!
Conforme-se!

MEFISTÓFELES
Já agora, a senhora Espadinha
há-de ouvir toda a história.

MARGARIDA
Aí tem porque eu nem quero
ouvir falar de amor; um golpe assim tão fero
dava-me logo a morte.

MEFISTÓFELES
É mundo: às alegrias
juntam-se as aflições, e o gosto às agonias.

MARTA
E o seu fim como foi?
MEFISTÓFELES
Jaz em Pádua enterrado
ao pé de Santo António; um sítio abençoado;
cama fresquinha e eterna.

MARTA
E vamos: além disso
que mais me traz?

MEFISTÓFELES
Mais nada... Ah, sim; pede um serviço
custoso, mas enfim muitíssimo preciso;
que lhe mande dizer pela alma, e de improviso,
trezentas missas. Nada e nada mais. Tão pobre
morreu, que não deixou nem meio chavo em cobre.

MARTA
O quê! pois nada nada! inteiramente nada!
Pois nem uma prendinha! Até um jornaleiro
tem sempre no bornal coisa que val dinheiro,
e não se desfaz dela, inda que peça esmola
para matar a fome.

MEFISTÓFELES
É certo; desconsola
ouvir tamanha míngua; o que eu porém lhe atesto
é que, se consumiu até o último resto,
não foi por perdulário; e fique persuadida
que se arrependeu muito, ao despedir da vida.
Fazia uns escarcéus sobre a sua desgraça,
que abria os corações.

MARTA
Que desditosa raça
não deixou a mãe Eva! O que eu prometo, amiga,
é rezar-lhe por alma.

MEFISTÓFELES (a Margarida)
Eu, deixe que lho diga,
acho que uma gentil de tanta formosura
devia já pôr casa.

MARGARIDA
Inda não há marido.
MEFISTÓFELES
Mas pode haver amante. O moço mais garrido,
mais amável, mais bom, dar-se-ia por ditoso
se chegasse a abraçar corpinho tão mimoso.

MARGARIDA
Isso cá não é uso.
MEFISTÓFELES
Uso ou não uso, queira
e arranja-se.

MARTA (a Mefistófeles)
Que mais? Porque me não inteira
de tudo, já que o sabe?

MEFISTÓFELES
Ai, sei; pois se eu me achava
em pé, junto da cama onde ele agonizava!
(No chamar cama àquilo, amoldo-me ao costume;
era um retraço podre, até pior que estrume.)
Porém lá que morreu morte cristã, morreu;
pensando mesmo assim que o grande rol que encheu
de pecados por cá talvez no grande dia
à entrada para o céu muito o atrapalharia.
«- Hoje me quero mal - dizia - pela asneira
de ter desamparado a minha companheira
e o meu riquinho ofício. É esta uma lembrança,
que dá cabo de mim. Vá; veja-me se a amansa,
para que me perdoe.»

MARTA (interrompe-o, chorando)
Há muito, coitadinho,
que eu, já lhe perdoei.

MEFISTÓFELES (continuando a frase)
«Mas se eu lhe fui daninho,
Nosso Senhor bem sabe o que ela também era.»

MARTA
Mente, mente. Olha aquilo! A Morte ali à espera
e ele ainda a mentir!

MEFISTÓFELES
Oiço que na agonia
muita gente de tino às vezes tresvaria
(que eu disso entendo pouco). E prosseguiu choroso:
- «Toda a vida a lidar sem hora de repouso,
e vir a parar nisto! Eu a engendrar-lhe filhos
por lhe dar gosto a ela! Entre esses empecilhos,
eu a arranjar-lhe o pão... o pão, à própria o digo,
pão negro sem conduto; eu, cruzes, inimigo!
rilhando o meu motreco, às vezes sem sossego...»

MARTA (interrompendo)
E nada de falar do meu desassossego,
da honra da mulher, do amor que ela lhe tinha!

MEFISTÓFELES
Ai! falava; pois não? Da senhora Espadinha
nunca se deslembrou. - «Quando saí de Malta
- tartameleava-me ele - há-de crer que me assalta
uma saudade tal dela e dos pequerruchos,
que não só desatei dos olhos dois repuxos,
senão que até rezei com entranhada gana
por toda aquela súcia! O céu, que não se engana,
pagou-me a devoção. Permitiu Deus aos nossos
prear uma galé de mercadores grossos,
todos relé turquesca, a qual galé levava
de mimo ao Grão Senhor, além de muita escrava
de rara formosura, uma carga, um tesoiro
de armas, de gorgorões, de pérolas, e de oiro.
Lançada ao mar primeiro a moirisma vencida,
o nosso capitão, da carga ali colhida
talhou logo quinhões, que deu proporcionados
aos que na sarrafusca andaram mais ousados,
proclamando: - O Espadinha é que foi o primeiro!
(era um pirata honrado, e amigo verdadeiro).» -

MARTA (interrompendo)
Espere! mas então... esse lote de vulto
havia de ficar nalguma parte oculto.

MEFISTÓFELES
Pois não? procure bem; nem rasto. Se avarentos
enterram, este cá foi por ares e ventos.
Em Nápoles, um dia, andando seu marido,
como estrangeiro que era, a correr divertido
as ruas da cidade, adergou que uma bela
o pescasse ao anzol de cima da janela;
e tanto gostou dele (era um ricaço ainda),
tais provas lhe embutiu a pescadora linda
do seu íntimo ardor, que as teve, até o instante
do trânsito feliz, a recordar-lhe a amante.

MARTA
Ladrão dos filhos! traste! A gente cá ralada,
e ele às soltas por lá naquela vida airada!

MEFISTÓFELES
Aí tem; por isso jaz debaixo dos torrões.
Eu, se fosse a senhora, atirava paixões
p’ra trás das costas; punha um lutozinho d’ano,
por decência, e entretanto ia-me piano piano
buscando outra fortuna.

MARTA
Outro como o primeiro!
Nem correndo co’um prego aceso o mundo inteiro
não o torno eu achar. Gaiato mais amável!
O que ele tinha só de menos convinhável
era o nunca parar; fazer seu pé d’alferes
à solteira, à casada, a todas as mulheres;
gostar dos vinhos bons das terras lá de fora,
e do maldito jogo...

MEFISTÓFELES
E mesmo assim deplora
não no ter; vamos lá. Falando sem disfarce:
ou ambos ou nenhum tem causa de queixar-se.
Ele fez-lhe o que pôde; a senhora igualmente
fez-lhe o que pôde a ele; a conta está corrente.
Com semelhante ajuste, eu próprio aceitaria
matrimoniar-me já.

MARTA
Quem? O senhor! Não ria.
MEFISTÓFELES (lá de si para si)
Ai! fujo. Esta é capaz de obrigar o demónio
a restaurar com ela o santo matrimonio.

(A Margarida)
E a menina! Que diz esse coraçãozinho?
MARGARIDA
Sobre quê? não percebo.
MEFISTÓFELES (à parte)
Imaculado arminho!
(Despedindo-se)
Minhas senhoras!
MARTA
Sai?
MARGARIDA (cumprimentando)
Meu senhor!
MARTA
Um momento,
nada mais. Poderia obter-me um documento
do quando, como, e onde, o meu consorte amado
faleceu, e onde jaz? Fui sempre, Deus louvado,
muito amiga do arranjo. Até cá no Diário
muito estimava eu ler entre o noticiário
a morte do meu tudo.

MEFISTÓFELES
Esteja descansada;
isso há-de-se arranjar, e sem lhe custar nada.
Em qualquer terra, havendo um par de testemunhas
fidedignas (e embora a gente lhe unte a unhas)
prova-se logo tudo. Em minha companhia
veio outro figurão que muito o conhecia.
Vai comigo ao juiz, depõe... Se determina
que o traga também cá...

MARTA
Pois não!
MEFISTÓFELES
E esta menina
também cá se há-de achar; não há-de? É um moço belo,
tem visto muito mundo, e não no há mais modelo
em pontos da galã.

MARGARIDA
Jesus! Um tal senhor
ver-me a mim... que vergonha!

MEFISTÓFELES
Um Rei, e Imperador
do mundo que ele fosse, afoita deveria
olhá-lo sem corar.

MARTA
Ao despedir do dia,
no quintal junto à casa, há-de ela estar comigo
à espera do senhor e do seu nobre amigo.



QUADRO XII

Rua.

CENA ÚNICA

FAUSTO e MEFISTÓFELES
FAUSTO
Que tens feito? Adianta-se o negócio?
MEFISTÓFELES
Cáspite, que fervença! A rapariga
dá-se a partido em breves audiências.
Na própria desta noite hão-de avistar-se
em casa da viúva, a mais de molde
que nunca vi para um papel promíscuo
de terceira e cigana.

FAUSTO
Aprovo.
MEFISTÓFELES
Em câmbio
põe-nos um berbicacho.

FAUSTO
É muito justo:
uma mão lava a outra.

MEFISTÓFELES
Havemos ambos
de jurar ao juiz, em como a ossada
do homem dela repoisa em terra benta,
em Pádua.

FAUSTO
É previdente a mulherzinha;
mas então claro está que antes da coisa,
temos de ir ver em Pádua a sepultura.

MEFISTÓFELES
Santa simplicidade! O que é preciso,
é jurar que se viu,

FAUSTO
Se não me alvitras
coisa melhor, gorado está o ajuste.

MEFISTÓFELES
Beatíssimo varão! Gosto do escrúpulo.
Pois nunca nunca, em toda a sua vida,
deu testemunho falso?
Que de vezes
não haverá, com magistral entono,
coração firme e intrépido semblante,
declarado o que é Deus! aberto o arcano
do mundo e das míriades dos entes
que o povoam! do homem, co’o sem conto
de afectos, de paixões, de pensamentos,
que n’alma e coração lhe tumultuam!
Meta, bem dentro, a mão na consciência,
e diga-me se tinha dessas coisas.
mais noção que da morte do Espadinha?

FAUSTO
És, foste, e hás-de ser sempre um mentiroso,
e um sofista de marca.

MEFISTÓFELES
É isso: ápodos,
porque antevejo o que o Doutor não pesca:
que amanhã, por exemplo, o escrupuloso
há-de enganar, jurando-lhe mil honras,
e amores mil, a pobre Margarida.

FAUSTO
E a-la-fé que não minto em protestar-lhos.
MEFISTÓFELES
Bravíssimo! Portanto essas constâncias
sem limite, esse afecto incontrastável,
tudo isso que a tristinha há-de engolir-lhe...
tudo lhe há-de brotar da consciência?

FAUSTO
Há-de sim; não mo impugnes. O que eu sinto!
este meu alvoroço! nem rastreio
como lhe chame. Busco-lhe nas línguas
de todo o mundo um nome, e não lho encontro.
Excogito as hipérboles mais anchas,
infindo, imenso, eterno, mais que eterno,
e tudo é curto, e nada iguala ao fogo
que arde aqui dentro... De infernal engano
darás título a isto?

MEFISTÓFELES
E pur si muove!
FAUSTO
Basta de me esfalfares. Quem por força
quer vencer, e tem língua que não cansa,
fica sempre de cima. Estou já farto
do teu bacharelar.
Não disputemos:
tens razão, tens.
Não fora a dependência...!



QUADRO XIII

Quintal com árvores, pertencente à morada de Marta. Do lado direito a casa. Do esquerdo, vê-se ao fundo a entrada de uma rua de verdura, e à boca do teatro o fim de um caramanchão, com porta para a frente. Ao fundo porta para a rua. Aos pés de algumas das árvores, suas redoiças de flores.

CENA I

MARGARIDA, FAUSTO, MARTA, e MEFISTÓFELES
(Esta cena complexa é ordenada do seguinte modo: Formam-se dois grupos: Margarida, de braço dado com Fausto; Marta com Mefistófeles. Estes dois pares, cada um dos quais trata assunto inteiramente desligado do do outro, passeiam desencontradamente: um sobe o teatro até o fundo, enquanto o outro desce do fundo até o proscénio. Cada um deles, tanto ao aproximar-se, como já defronte dos espectadores, diz as respectivas falas, enquanto o outro mais distante, só pelos gestos se conhece que está conversando.)
MARGARIDA (pelo braço de Fausto)
Por ver que eu nada sei, é que o senhor só usa
dessas falas tão chãs. Sinto-me até confusa
da minha estupidez. Um sábio viajante
tratar tão mão por mão co’uma pobre ignorante!
É força de bondade!

FAUSTO
O que te sai dos lábios,
o que te luz no olhar... diz mais que dez mil sábios
para o meu coração.

(Beija a mão dela)
MARGARIDA
Jesus! Não se incomode,
meu senhor! Mão grosseira assim, como é que a pode
beijar um cavalheiro? Em casa não há lida
para que a minha mãe não chame a Margarida:
então bem vê que as mãos...

(Vão subindo, enquanto o outro par vem descendo.)
MARTA
Não sei como se atura
andar sempre a viajar.

MEFISTÓFELES
Tive esta sina escura;
que lhe quer? é dever; segui esta carreira.
Deus sabe quanta vez, por mais que um homem queira
dilatar-se num sítio, a atroz necessidade
o arroja para longe, e zomba da saudade!

MARTA
Nos anos verdes, vá; lá pode achar-se gosto
no andar correndo mundo; agora, no sol posto,
quando já vem caindo as sombras da velhice,
acho eu que um solteirão, que não se prevenisse
de um arrimo de amor, enquanto a idade o aprova,
para depois descer manso e chorado à cova,
grande pesar curtira.

MEFISTÓFELES
Essa aflição tardia
já só de a imaginar me assombra de agonia.

MARTA
Então não perca tempo!
(Vão subindo, enquanto o outro par vem descendo.)
MARGARIDA
Ah! sim, longe da vista,
longe do coração. Por mais que afirme e insista,
não me há-de convencer de que esses seus louvores
passem de um comprimento usual entre senhores.
Por força que há-de ter no rol da gente imensa
com quem trata e convive, e que aprendeu e pensa,
quem discorra melhor de que eu, que não sei nada,

FAUSTO
Crê, crê, mulher sem par, que vives enganada.
Bastas vezes no mundo o nome de ciência
é c’roa da vaidade, e véu da insipiência.

MARGARIDA
Não percebo.
FAUSTO
Faz dó ver a simples candura
ignorar sua ingénua e santa formosura.
Pródiga natureza! A modesta humildade
é o mais formoso dom que hás feito à humanidade!

MARGARIDA
Acha que hei-de alembrar-lhe alguma vez por lá?
Eu cá, não se pergunta; a mim não se me dá
de nada mais no mundo; então...

FAUSTO
Vives sozinha
quase sempre?

MARGARIDA
Isso vivo. A casa é pobrezinha,
mas dá bem que fazer. Como não há criada,
sou eu só quem faz tudo, e nunca estou parada.
Eu lido na cozinha, eu varro, eu coso, eu fio,
eu recados por fora... em suma, um corropio
de manhã té à noite. A mãe, coitada, quer
ver tudo num brinquinho; e se eu lho não fizer
não sei como há-de ser; que em realidade a gente
não tinha precisão de andar eternamente
metida nesta frágua. O meu pai, que Deus tem,
deixou, graças a Deus, com que passarmos bem,
e melhor do que alguns que estão à boa vida
fazendo mais figura. A conta, se duvida,
é fácil: ademais da casa, nosso ninho,
temos no arrabalde um lindo quintalinho.
Vivo em paz, isso vivo; agora mui contente
não direi. Meu irmão tem praça, e vive ausente;
e a minha irmã pequena está no céu... Que linda
que era aquela criança! e o que eu a amava! Ainda
oh! permitisse-o Deus, aceitava com ânsia
as canseiras que tinha em na velar na infância.

FAUSTO
Sendo ela como tu, melhor dizer podias
um anjo a velar outro.

MARGARIDA
Alembram-me esses dias
como uma primavera; a sua inseparável
fui eu sempre, e ela a minha; o risinho amorável
com que ela me pagava as festas e as carícias!
Servi-la para mim era colher delícias.

Quando ela veio à luz, tinha já falecido
o nosso pai; a mãe, co’a pena do marido,
esteve vai não vai, tão mal tão mal, que espanta
como pôde arribar; graças à Virgem Santa,
lá foi a pouco e pouco enfim convalescendo;
já vê que nesse tempo era impossível, tendo
tão pouca força ainda, haver sequer lembrança
de empregar-se em tratar da pobre da criança;
quem a esteou fui eu, só eu, com água e leite;
medrou, medrou, medrou, que o vê-la era um deleite;
pois quando eu a trazia ao colo, ou do regaço
lhe fazia bercinho?! aquilo é que era um passo:
vê-la rir, pernear, crescer.

FAUSTO
Assim tiveste
o bem dos bens do mundo.

MARGARIDA
Um bem quase celeste,
certo é, porém rajado às vezes de tormentos:
co’o berço ao pé da cama, a quaisquer movimentos
que a menina fazia, aí ’stava eu já desperta
a enxugá-la, a voltá-la, a pô-la bem coberta,
a dar-lhe de beber, a metê-la na cama,
a conchegá-la a mim, e até (são pensões de ama)
se ateimava no choro, a erguer-me, (pobre linda!)
cantando sem vontade horas e horas! Se ainda
pelo menos, depois da noite assim passada,
se pudesse dormir... mas qual! Vindo a alvorada,
era saltar do leito, era ir lavar na tina
antes de nada mais a roupa da menina;
depois fazer o almoço, ir às compras, e a esmo
assim o dia todo, e cada dia o mesmo.
O que eu lhe digo só, meu senhor, é que a vida
levada deste modo é pouco divertida...
se bem que para abrir apetite à gente
e dar sonos bem bons, não na há mais excelente.

(Vão subindo. O outro par desce)
MARTA
Mau, mau é ser mulher. Os senhores solteiros
são caça tão arisca! e fogem tão ligeiros!

MEFISTÓFELES
É verdade: em geral pouco nos agarramos
ao visco, de que o sexo unta os floridos ramos;
entretanto eu por mim talvez talvez caisse,
se uma dama que eu sei...

MARTA
Vá, inda mo não disse:
Nunca achou até hoje algum ditoso objecto,
que nesse coração causasse muito afecto?

MEFISTÓFELES
«Lar próprio e mulher boa (o provérbio que o diz
é que o sabe) mais são que minas de rubis.»

MARTA
Portanto, é natural que alguma vez... teria
suas... sim, tentações...

MEFISTÓFELES
Nunca até este dia
me receberam mal em parte alguma.

MARTA
Vejo
que não me explico bem. O que eu saber desejo
é se ainda não amou digo amar seriamente.

MEFISTÓFELES
Pois com damas quem brinca?
MARTA
Indubitavelmente
não me entende.

MEFISTÓFELES
Paciência. Entendo todavia
que ninguém vence em graça a Vossa Senhoria.

(Sobem. Vem ao proscénio o outro par)
FAUSTO
Mal que entrei no quintal, pergunto, o meu anjinho
reconheceu-me logo?

MARGARIDA
Ai, logo de caminho,
tanto assim que abaixei os olhos de repente.

FAUSTO
Inda me queres mal pela audácia impudente
com que te ousei falar quando vinhas da Igreja?

MARGARIDA
Causou-me admiração, causou, verdade seja.
Era a primeira vez que tal me sucedia;
ninguém teve jamais que me dizer. Veria
em ti ou no teu ar (dizia-me eu comigo)
alguma leviandade (abr’núncio do inimigo!)
para te vir falar com tanto desempeno?!
Contudo já então no seio mal-sereno
confesso... um não sei quê, novo, desconhecido,
me andava a suplicar perdoasse ao atrevido.
A raiva com que estava a mim própria era tal
que nem lugar me deu para lhe eu querer mal.

FAUSTO
Oh querida, querida!
MARGARIDA (largando o braço de Fausto)
Ai, quero ver.
(Apanha um malmequer, de uma das redoiças de flores, e principia a desfolhá-lo.)
FAUSTO
Que fazes?
Um ramalhete?

MARGARIDA
Nada; um brinco dos rapazes.
FAUSTO
Que brinco?
MARGARIDA
Ai, quer-se rir? não digo; esteja quedo.
(Continua a desfolhar a florinha, falando baixo.)
FAUSTO
Tu, que estás murmurando? Ah!! temos um segredo!
MARGARIDA (sempre na mesma ocupação, mas falando de modo que se oiça)
Bem me quer, mal me quer...
FAUSTO (à parte)
Rosto do paraíso!
MARGARIDA
Bem me quer, mal me quer...
FAUSTO (como acima)
Tem sustos no sorriso.
MARGARIDA
Bem me quer, mal me quer...
(Arrancando a última pétala, louca de alegria)
Bem me quer!
FAUSTO
Sim meu bem!
Falou-te Deus na flor; na flor creio eu também.
Se te quer! o feliz por quem a desfolhaste!
mas com que veras d’alma! Ainda não amaste
de certo; mas por fé procura adivinhar
o infinito que encerra esta palavra: amar
Amo-te, amo-te.

(Pega-lhe em ambas as mãos.)
MARGARIDA
Sinto em mim toda um abalo,
um tremor...

FAUSTO
Sê mulher! impõe-te dominá-lo!
Consente que este olhar que em ti se está cravando,
consente que estas mãos às tuas abraçando,
te expressem mudamente o que de mim tens feito,
o que nem cabe em voz, nem cabe já no peito;
permite-me engolfar-me em bem-aventurança,
num afecto sem fim, sem quebra nem mudança,
eterno... sim, que a ser menor que a eternidade,
seria o desespero, o nada. Este não há-de,
não pode já ter fim; jamais, jamais.

(Margarida aperta-lhe as mãos, e foge precipitadamente pela vereda da esquerda, ao fundo do teatro. Fausto fica alguns instantes absorto, e depois como acordando, procura Margarida; não a avistando, corre ao acaso pela mesma vereda por onde ela desaparecera.)
MARTA (que desce com Mefistófeles)
O dia
findou.

MEFISTÓFELES
Força é deixar tão bela companhia.
MARTA
Eu havia de instar para que estes senhores
se demorassem mais; porém murmuradores,
que em toda a parte os há, tem línguas tão daninhas!
e então cá nesta rua!... eu tremo das vizinhas;
o seu modo de vida é estar continuamente
a espiar, a inquirir tudo que faz a gente;
a princípio é zum-zum; depois já são balelas...
Livrar de bachareis... e mais, de bacharelas!...
Mas que fim levaria o nosso casalinho?
onde estarão?

(Durante a fala precedente, tem, do lado esquerdo, entrado no caramanchão Margarida, que se põe ansiosamente a espreitar em todas as direcções.)
MEFISTÓFELES
Descanse; é perto e bom caminho.
Vi-os ir-se um trás outro, além, de fito posto

(Indicando o caramanchão)
na casinhola verde, e voavam que era um gosto!
não lembravam, senão dois pássaros maganos,
acesos co’o verão.

(Vê-se Fausto voltar da alameda por onde saíra, e procurar Margarida por toda a parte)
MARTA
Eu lá desses arcanos
pouco sei, porém ele acho que gosta dela.

MEFISTÓFELES
E ela dele. No amor é jogo usual a pela.
(Continuam ambos a conversar baixo, indo para o fundo do teatro. Fausto aproxima-se do caramanchão. Margarida, de modo que o espectador veja, cose-se com a verdura, e espia para fora.)
MARGARIDA
Lá vem ele!
FAUSTO (entrando para o caramanchão)
Ah velhaquita!
Supunhas zombar comigo.
Toma para teu castigo! (Beija-a.)

MARGARIDA (beijando-o também)
Meu amado! e minha dita!
(Mefistófeles tira uma cana do tecido do caramanchão, e bate com ela na ombreira da porta, como quem pede para entrar.)
FAUSTO (batendo com o pé no chão)
Quem é?
MEFISTÓFELES
Paz.
FAUSTO
Besta!
MEFISTÓFELES
É já tarde.
MARTA (chegando)
Por certo, já não é cedo.
FAUSTO (a Margarida)
Acompanho-a?
MARGARIDA (em decisão e acanhamento)
Eu sei...?
FAUSTO
Tens medo?
MARGARIDA
Minha mãe...
FAUSTO (com pesar)
Pois Deus te guarde.
MARGARIDA
É forçoso que me ausente.
MARTA
Boas noites, meus senhores.
MARGARIDA
Até breve...
(Saem Fausto, e Mefistófeles, pela porta do fundo.)

CENA II

MARGARIDA e MARTA
MARGARIDA
Ó Deus clemente!
Esclarece os meus temores!
Não há nada que ele ignore;
nada escapa ao seu engenho.
O enleio que ante ele eu tenho
faz que eu de mim própria core.
Digo-lhe a tudo que sim.
Pareço uma criancinha.
Sou mais dele do que minha.
Mas que acharia ele em mim?



QUADRO XIV

Floresta no meio de fraguedo, escancarado em cavernas. De uma rocha alta, precipita-se uma cascata natural.

CENA I

FAUSTO (só, meditabundo, encostado a uma árvore, com os olhos no céu. Luar encoberto. Relampeja. Zune o vento.)
Tudo obtive de ti, sumo, inefável Ente.
Entrevi-te no mundo a face refulgente.
Sou rei da criação; sinto-a e desfruto-a. Dás-me
não só que a observe à flor e em seus prodígios pasme;
sondo-a, leio-a por dentro, assim, como leria
no peito de um amigo. Intendo, da harmonia
que une tantos milhões de seres passageiros,
ser tudo uma família, e irmãos meus verdadeiros
o mudo arbusto, o ar, as águas.

(Cresce o temporal e ouve-se ao longe o desabar de um pinheiro)
Quando a mata
ruge co’o temporal, e o pinheiro-magnata
rui fracassando em torno as arvores, e atroa
co’a trovejante queda o monte que reboa,

(Encaminhando-se para uma caverna)
forças-me co’o terror a entrar na alta caverna,
onde me descortino eu próprio à luz interna,
e no fundo do peito, aberto, omnipotente
mil prodígios descubro incógnitos à mente.

(Após um espaço de contemplação muda, amansa e cessa a tormenta. A lua rompe brilhante dentre as nuvens, e alumia a cena.)
Desfez-se o temporal: ergue-se clara a lua!
O mato gotejante, a penedia nua
vem-me representar, num alvor prateado,
miragens da saudade, as cenas do passado.

(Descendo da caverna, passeia na mata)
Ai! que não caiba um gozo, estreme, verdadeiro,
nesta vida falaz! Deste um companheiro,
que onde sinto endeusar-me, acorre sempre frio,
impassível, cruel, a recalcar-me o brio,
a provar-me o meu nada; um monstro, que eu forcejo
para afastar do lado e sempre ao lado vejo.

Se me choves teus dons, ele, co’um leve acento
da sua voz maldita anula-os num momento;
ele mal que vislumbra aos olhos meus o belo,
dentro no coração me ateia um Mongibelo.

Que vida! angústias sempre: ora a almejar por gozo,
ora inquieto na posse, e do almejar saudoso!


CENA II

FAUSTO e MEFISTÓFELES, que desceu rapidamente no meio de um relâmpago desde o alto das rochas.
MEFISTÓFELES (chegando-se a Fausto)
Com que então, já cansou? Depois da faina
da boa vida que levámos juntos,
tornou-se a divertir? De tempo a tempo,
bom é que se descanse um poucochinho.
Isso é que abre o apetite e aumenta as forças.
Vamo-nos procurar mais novidades.

FAUSTO
Não tens mais que fazer, que vir tentar-me
nas horas boas?

MEFISTÓFELES
Co’a melhor vontade
o entrego a si, se quer; declare-o franco:
vai-se-me um sem-sabor, grazina e doido;
forte perda! levar o dia inteiro
sempre a servi-lo, sem lhe ler nas trombas
nunca jamais se está ou não contente!

FAUSTO
Bravo! O diabo sempre a atanazar-me,
e quer que inda por cima eu lho agradeça!

MEFISTÓFELES
Que seria de ti, filho do barro,
se não fosse eu, que te ando há tanto tempo
a curar de esquentadas fantasias?
Tinhas-te já safado deste mundo,
há que folhas!
Não sei que te aproveita
o andar poisando, à laia de coruja,
neste lapedo bronco; e o pró que tiras
de alimentar-te como o sapo inerte
do bafio de musgo e covas húmidas.
Que belo, que aprazível passatempo!
Sabes o que te eu digo? é que inda alojas
nesse corpo o Doutor.

FAUSTO
Não, que nem sonhas
que de força vivaz neste ermo alpestre
já tenho haurido em mim; se a bem souberas,
tão demo és tu, que por furtar-ma davas
trinta voltas no ar.

MEFISTÓFELES (ironicamente)
Se há gosto, é isso!:
Velar a noite à chuva pelos brejos,
abraçar com volúpia o céu e a terra,
empantufar-se a crer-se divindade,
fossar o mundo à cata do secreto,
volver no caco a obra dos seis dias,
sonhando-se Factor Arqui-potente...
não sei de quê, finando-se de amores
por quanto objecto avista, e desvestido
o invólucro terrestre, achar-se ao cabo
de tantas intuições maravilhosas,
a fazer... a fazer...
Cala-te, boca!

FAUSTO (indignado)
Passa fora!
MEFISTÓFELES
Isso mesmo: um passa fora
é a única resposta a quem profana
ouvidos castos, mencionando... coisas...

(Sorrindo)
Mas vá lá: se o divertem mentirinhas
pregadas a si próprio, outorgo vénia
como seja com regra. Acho contudo
que o meu Doutor, nesse papel sublime
depressa há-de cansar.

(Notando que Fausto lhe trejeita de agastado)
Ei-lo assomado
já outra vez! Se vai por essa via,
cedo recai na insânia e nos terrores.

(Mudando de tom)
Falemos de outro assunto. O seu benzinho,
sabe o que está fazendo? Está sentada,
no seu quarto, sozinha, o peito em ânsias,
o pensamento a monte; a sua teima
é toda o sujeitinho; e quer-lhe! quer-lhe
que não há mais dizer. Valha a verdade,
a paixão do Doutor teve rompantes
de furiosa lava; incendiou-a,
mas coalhou pouco a pouco, e está já fria.
Quer-me a mim parecer, que o potentado
deste reino silvestre acertaria
em no abdicar, e recolher-se amante
ao seio da gentil desconsolada.
Como ela vai fiando as horas longas!
Encostada à janela, agora mesmo
já está olhando o caminhar das nuvens
para a muralha antiga da cidade.
Daqui lhe escuto a usada cantilena:

Tomara ser passarinho.
para ir ter onde eu desejo;
depressa formara as asas,
que as penas são de sobejo.

Nisto de sol a sol consome os dias;
nisto de sol a sol desvela as noites.
Se alguma rara vez lhe assoma às faces
vislumbre de alegria, as mais das vezes
de mortal pesadumbre as tem nubladas;
ora mostra no rosto mal enxuto
sinais de ter chorado, ora parece
a poder de cansada estar serena...
mas sempre namorada.

FAUSTO
Ah, cobra, cobra!
MEFISTÓFELES (à parte sorrindo)
Cáspite! enrodilhei-te.
FAUSTO
Amaldiçoado!
Sume-te! e nunca mais boquejes nela.
Não tornes a acender-me nos sentidos
inda revoltos o desejo infrene
de ter nos braços tão suave prenda!

MEFISTÓFELES
Mas enfim que resolve? A rapariga
julga-o fugido... e não se engana.

FAUSTO
Como,
se eu lhe vivo tão perto, e não na esqueço,
nem querendo esquecê-la o poderia,
por maior que entre nós fosse a distância
Ouve! É tanto que até, quando a imagino
ajoelhada e contrita à mesa santa
ao corpo consagrado tenho inveja

MEFISTÓFELES
Como eu, quando imagino o meu amigo
pascendo rosas... no amorável horto
de dois gémeos que eu sei.

(Apontando para o selo.)
FAUSTO
Fora, alcoveto!
MEFISTÓFELES
Bom; insulta-me, e eu rio. O fabricante,
quando inventou rapaz e rapariga,
tomou a si o deparar-lhe ensejos.

(Ironicamente a Fausto)
Coitado! Faz-me dó, que em realidade
ir para o quarto dela ou para a forca
vem quase a dar na mesma!

FAUSTO
É céu na vida
sentir-me entre seus braços, repassado
no calor de tal seio... e todavia
mal sabes como até nesses momentos
co’o pensar que a desgraço estou penando!...
Eu sou um foragido, um pária, um monstro,
que, sem ver norte, sem gozar descanso,
se despenha caudal, de fraga em fraga,
via do abismo; e ela! uma criança
tão simplesinha, que trocara o mundo
por se ver, num recôncavo dos Alpes,
ditosa dona de um feliz tugúrio,
onde sempre a lidar, fosse rainha.

(Falando consigo mesmo)
Não te bastou, vil réprobo, a jactância
de arrasar o universo, inda por cima
quiseste destruir a paz deste anjo.
Os caídos no inferno inda eram poucos?
Sus, sus, diabo! O teu auxílio imploro!
Ajuda-me a encurtar este suplício!
O que há-de ser que seja! A sorte dela
despenhe-se na minha, e pereçamos!

MEFISTÓFELES
Ih, como torna a arder! Vá daí, tonto,
vá consolá-la! Um néscio destes cuida,
se não vê logo furo, estar perdido.
Com gente denodada é que me eu quero.
Pontos há em que o julgo outro diabo;
mas diabo que logo desanima
é coisa que eu não levo à paciência.



QUADRO XV

O quarto da Margarida

CENA ÚNICA

MARGARIDA (só, fiando na roca, e cantando)
Sinto o coração pesado.
Dias de paz, onde estais?
Ai, descanso abençoado,
nunca, nunca, nunca mais!

Inda não quitei a vida,
e já ’stou na sepultura.
Quem nasceu tão sem ventura,
melhor não fora nascida.

Trago esvaído o juízo,
o coração como louco.
Sempre durastes bem pouco,
horas do meu paraíso.

Sinto o coração pesado.
Dias de paz, onde estais?
Ai, descanso abençoado,
nunca, nunca, nunca mais!

Canso a buscar-te por fora;
canso à janela a esperar-te,
sem ver em nenhuma parte,
nem saber quem te demora.

Que nobre andar! que figura!
que olhar! que riso! e que boca,
donde eu sentia já louca
jorrar caudais de doçura

E aquela mão, que inda vejo
a apertar convulsa a minha
o fogo que ela não tinha!
E o beijo! oh meu Deus, o beijo!

Sinto o coração pesado.
Dias de paz, onde estais?
Ai, descanso abençoado,
nunca, nunca, nunca mais!

Onde estás, que me esvoaço
por colher-te? onde...? não sei.
Se outra vez a ti me abraço,
das angústias que hoje passo
como então me vingarei!

(Levantando-se, e declamando com veemência.)
Prendo-te ao seio,
já sem receio
de te perder.
Farto os desejos
de toda em beijos
me desfazer.



QUADRO XVI

Quintal de Marta, como no quadro XIII.

CENA I

MARGARIDA e FAUSTO
MARGARIDA
Sim? prometes-mo, Henrique?
FAUSTO
Inda o duvidas?
Tudo quanto eu puder.

MARGARIDA
Pois bem: que ideia
tens da religião? Sei que és bondoso;
agora crente... desconfio um tanto.

FAUSTO
Melhor é que tratemos de outra coisa,
filha. Sabes se eu te amo, e se eu daria
por ti a própria vida; agora as crenças.
deixo-as a cada um.

MARGARIDA
Pois não to louvo.
Crença é dever.

FAUSTO
Dever!
MARGARIDA
Eu não queria
senão poder guiar-te. E os Sacramentos,
respeitá-los?

FAUSTO
Respeito.
MARGARIDA
Oh sim, mas frio.
Não vais à confissão, não vais à missa...
Crês em Deus?

FAUSTO
Quem se atreve, amada prenda,
a dizer: Creio em Deus? Se o perguntares
a qualquer padre, a qualquer sábio, afirmo-te
que há-de a resposta parecer-te escárnio.

MARGARIDA
Então não crês?
FAUSTO
Encanto meu querido,
não tomes o que digo em mau sentido.

Defini-lo, que língua o tentara?
Quem se atreve a dizer: Em Deus creio?
Ou quem pode, sentindo-o no seio,
Não há Deus
, temerário afirmar?
Pois aquele que abrange, que ampara
todo um mundo em seu grémio patente,
a nós ambos não pode igualmente
e a si próprio abranger, amparar?
Não nos cobre uma abóbada imensa?
Não pisamos um chão tão seguro?
Não nos banha em clarões pelo escuro
de astros meigos perene caudal?
Quando embebo este olhar, que em ti pensa,
nesse teu, que à minha alma responde,
¿de um poder que entreluz e se esconde
não sentimos o influxo fatal?
Toda a vez que o teu peito sedento
se afundir neste mar de doçura,
põe-lhe o nome a teu gosto: ventura,
céu de amor,
ou potência de um Deus.
Eu nenhum. De o gozar me contento.

Nome é fumo em que a luz se reveste;
e eu não quero um tal fogo celeste
encobrir aos teus olhos e aos meus

MARGARIDA
Lindo! O meu director diz-me isso mesmo,
por outras expressões.

FAUSTO
Em toda a parte
rompe idêntica voz das consciências;
cada um na linguagem que lhe é própria
a traduz, e eu na minha.

MARGARIDA
Em realidade
o que aí me tens dito não destoa
de todo em todo... mas não sei se envolve
sua moedinha falsa... Enfim, vá tudo:
tu não tens fé cristã.

FAUSTO
Meu caro anjinho!
MARGARIDA
Uma coisa que há muito me faz peso
é ver acompanhar com tal figura.

FAUSTO
Como assim?
MARGARIDA
É verdade: desadoro
do teu colchete; não vi coisa nunca
jamais que tanto horror me produzisse
como aquela carranca.

FAUSTO
Ele, criança,
que mal te fez?

MARGARIDA
Não sei; ferve-me o sangue
sempre que o vejo; é a única pessoa
a que não quero bem. Tanto me alegro
quando tu chegas, como ao vê-lo esfrio.
Tem-me ar, Deus me perdoe, de um sacripante.

FAUSTO
Como há gente sisuda, há valdevinos;
que se lhe há-de fazer?

MARGARIDA
Deus me livrara
de conviver com semelhante escória!
Quando entra, encara sempre nas pessoas
como quem zombeteia ou vem zangado;
não toma nada a sério; está-se lendo
naquela testa que ninguém lhe agrada.
Sinto-me tão contente a sós contigo!
tão senhora de mim! tanto à vontade
no calor que a tua alma infunde à minha!
vem ele... e eis-me tolhida inteiramente.

FAUSTO
Superstições de um anjo.
MARGARIDA
É tal o enguiço
que onde me ele aparece, até já cuido
que não gosto de ti. Diante dele,
fosse eu querer rezar! Faz-me cá dentro
tudo isto uma aflição! Não te sucede
o mesmo, Henrique?

FAUSTO
Antipatias.
MARGARIDA
Vou-me.
É forçoso.

FAUSTO
O que eu dera, Margarida,
por poder, uma hora, uma só hora,
passar contigo descansado! unidos
peito a peito! alma a alma!

MARGARIDA
Tu bem sabes
que não durmo sozinha. Eu, por meu gosto,
deixava-te ficar já hoje a porta
fechada em falso, e então... Mas a mãezinha
tem o sono tão leve! E se ela fosse
dar connosco, eu morria de repente.

FAUSTO
Para isso, meu anjo, há bom remédio.
Toma este vidro! basta que lhe lances
três gotas na bebida, e adormeceu-ta
a bom levar: nenhum rumor ta esperta.

MARGARIDA
Desejas, cumpro. Esta água, já se sabe,
não pode fazer mal...

FAUSTO
Pois, se o pudesse,
eu dava-ta, querida?

MARGARIDA
Homem como este,
onde há outro? Sim, sim, querido amante;
lê-se no teu aspecto a probidade
às cegas te obedeço. Tenho feito
por ti já tanto que o restante é nada.

(Sai.)

CENA II

MEFISTÓFELES e FAUSTO
MEFISTÓFELES (entrando)
A espertalhona foi-se?
FAUSTO
E não me perdes
a manha de espiar.

MEFISTÓFELES
Ouvi-lhe tudo;
desta feita o Doutor, em catecismo
pode fazer exame; que lhe preste!
O amigo é pouco visto em raparigas:
não dão ponto sem nó. Talvez não saiba
porque as encanta o converter marmanjos;
é porque dizem: - Quem me cede nisto,
há-de ceder-me em tudo.

FAUSTO
Ó monstro bruto!
Pois não concebes que uma crente ingénua,
convicta de que ao céu não vão descrentes,
curta um martírio em só cuidar que o homem
que ela a todos prefere é já do inferno?

MEFISTÓFELES
Charco de vício e flor de namorados!
Com que assim dás o beiço a uma criança!

FAUSTO
Fogo do inferno, e espírito de borra!
MEFISTÓFELES
E é mestra em decifrar fisionomias:
- Tenho ar, Deus lhe perdoe, de um sacripante!
- Ver, é ficar tolhida! - Acha-me uns ares
de traidor mascarado, algum duende,
talvez até diabo...
Então o amigo...
sempre, esta noite...?

FAUSTO
Que te importa?
MEFISTÓFELES
Ai! muito.
Vou-lhe bailar na boda as tripecinhas.



QUADRO XVII

Um chafariz

CENA I

MARGARIDA e LUISINHA, com os seus cântaros
LUISINHA
E a Bárbara? que tal! sabes?
MARGARIDA
Eu não: a gente
vive tão retirada!

LUISINHA
A Beatriz não mente;
foi ela que mo disse. A sonsa, a delambida,
tão cheia de fidúcia, aí ’stá também caída!

MARGARIDA
A Bárbara! ó mulher, explica-te! A pequena
que é que fez?

LUISINHA
Mete nojo. Era tão açucena,
e agora...

MARGARIDA
Agora o quê, Luisinha?
LUISINHA
Agora come
e bebe para dois, senão morria à fome.

MARGARIDA
Credo!
LUISINHA
Foi um castigo. Aquilo tinha jeito?
Sempre como carraça agarrada ao sujeito
em passeios ao campo, em dançarás, tratada
com bom doce e bom vinho, e toda empantufada
nem que fora fidalga. E então de boniteza
presunção até ali! Pois, com ser tão princesa,
chegou c’oa desvergonha até a aceitar mimos!
Tais princípios, tais fins; nós sempre o presumimos.
Do obséquio ao galanteio, um passo; do namoro,
outro ao atrevimento; e meio ao desaforo.
Assim é que a florinha, em breves audiências,
fez víspere; entendeste? Aí tens as consequências.

MARGARIDA
Coitadinha!
LUISINHA
Ah! tens dó? e eu não. A gente à roca
empregada a engordar a sua maçaroca
num quartinho fechado, e a mãe por sentinela;
e ela... imagina bem como era o serão dela!
No corredor escuro, ali ao pé da entrada,
co’o chichisbéu no banco em paz repetenada
horas e horas; que admira? o relógio aos amantes
faz de um dia uma hora, e de uma hora instantes.

Agora há-de pagar (e tenha paciência);
há-de à porta da Igreja ir fazer penitência,
beijar aquele chão, de vaso e dó trajada,
e servir de desprezo à gente recatada.

MARGARIDA
Ele há-de-a receber de certo por mulher.
LUISINHA
Espera lá por isso! ele é parvo? ele quer
levar fruta do chão, um rapaz como um maço?
Para se divertir acha-as a cada passo.
De mais a mais, que é dele? onde estará já agora,
se bem andar?

MARGARIDA
Fugiu?!
LUISINHA
Logrou-a, e foi-se embora.
MARGARIDA
Jesus, que acção tão feia!
LUISINHA
Inda que ele tornasse
e a recebesse a ela, os gostos desse enlace,
Deus me livre de os ter: vinha a rapaziada
arrancar da cabeça a c’roa à desposada,
e nós à porta dela havíamos de ir todas
lançar palha picada. Olha que lindas bodas!

(Põe o cântaro à cabeça e parte.)

CENA II

MARGARIDA, ()
(Tomando também da fonte o seu cântaro, e partindo-se com ele para casa, em direcção diversa da de Luisinha)
Também eu no meu tempo, em vendo moça errada,
logo a punha por monstro: a língua era uma espada,
e feita eu própria ré de atroz descaridade
benzia-me, e ficava impando de vaidade!...
E hoje... incursa no mesmo!!

(Após alguns momentos)
Oh! Deus! mas quem podia livrar-se de um prazer, que as pedras fundiria?


QUADRO XVIII

Muro da cidade, visto da parte de fora e nele um nicho, com a imagem em vulto da Senhora das Dores; uma lampadazinha, e duas jarras de flores murchas diante dela.

CENA ÚNICA

MARGARIDA ()
(Pondo flores novas nos vasos)
Ó Virgem dolorosa
inclina à desditosa
o teu benigno olhar!
Só tu, com sete espadas
no coração cravadas,
sabes o que é penar;

tu sim, que viste aflita
pender, ó mãe bendita,
o filho teu na cruz,
alçaste, com dois rios,
aos céus teus olhos pios,
chamando em vão Jesus.

Da dor que me lacera
mortal nenhum pudera
sondar a profundez.
O que este peito chora,
treme, receia, implora,
só tu, Senhora, o vês.

Que dor! Nos sonhos cevo-a;
corro a fugir-lhe, levo-a;
que dor, oh mãe, que dor!
Sozinha a ti me abraço,
e em pranto me desfaço.
Mercê! perdão! favor!

Antes que a aurora assome,
já o mal que me consome
o sono me quebrou;
sentada já no leito
regando aflita o peito
co’as lágrimas estou.

Quando hoje abro a janela,
para dos vasos dela
trazer-te um ramo aqui,
e a vejo apedrejada...
co’o choro sufocada
sem luz no chão caí.

Ó Virgem dolorosa,
inclina à desditosa
o teu benigno olhar.
Só tu, com sete espadas
no coração cravadas,
sabes o que é penar.



QUADRO XIX

Rua, com casas de ambos os lados, entre as quais, mais perto da boca do teatro, - da direita a casa de Marta, - da esquerda a de Margarida, com duas sacadas para uma varanda, onde há vasos de flores e trepadeiras, que se arqueiam por sobre as portadas. Lá ao diante, uma frontaria de Igreja. Dá meia-noite na torre do templo.

CENA I

VALENTIM ()
Dantes era regalo ir a uma súcia,
daquelas onde a gente bravateia
sem ninguém lho estranhar. Cada confrade
chamava à sua a flor das raparigas,
empinava um copázio em honra dela,
e, fincando na mesa os cotovelos,
quedava-se todo ancho. Eu, do meu canto,
ia-os mui pachorrento ouvindo, ouvindo,
a sorrir-me, e a anediar este bigode;
depois, erguendo ao alto o copo cheio,
proclamava: «Não digo menos disso;
porém que iguale à minha Margarida,
nem lhe deite água às mãos, quitam buscá-la;
sou seu irmão, e ufano-me de sê-lo.»
«Toque! Faço a razão!» vozeavam todos,
todos à uma, ao terlintim dos copos.
- «Não diz nada de mais: a Margarida
é realmente a jóia das mulheres!»
Não se ouvia outra coisa; os roncadores
nem chus nem bus...
E agora! Dão-me ganas
de arrancar estas barbas de vergonha,
e esmagar numa esquina esta cabeça!
Agora, pode já qualquer patife
mirar-me de revés, e até deitar-me
sua picuinha; e eu moita, sem ousio
para me erguer sequer, suando em bagas,
que nem ruim-paguilha, atanazado
diante do credor. Fazer em postas
um bruto desses não custava muito;
mas desmenti-lo...

(Vem do fundo do teatro acercando-se Mefistófeles e Fausto, e conversando entre si sem ser ouvidos. Valentim começa a coser-se com a casa de Marta.)
Enxergo além dois vultos.
Para cá se encaminham... Vem pisando
com passo de patrulha. Alto! observemos!
Dá-me no coração que estes figuros
hão-de ser os meus dois. Se apanho o melro,
já o não largo, senão feito em postas.


CENA II

MEFISTÓFELES, de guitarra às costas, e FAUSTO, descendo para a boca do teatro, observados por VALENTIM, recolhido ao portal de Marta.
FAUSTO
Arde a perene alâmpada do templo.
Repara na alta fresta!

(Apontando para uma das janelas cimeiras da Igreja)
O lume santo
circunfunde-se em luz, que a pouco e pouco
vai de círculo em círculo caindo
até penumbra, e da penumbra em trevas:
imagem deste amor na escuridade.

MEFISTÓFELES
Entendo, e até já estou com farnicoques
como os do meu Doutor. Não nos comparo
co’a lâmpada da Igreja. Só me lembra
um bichano em janeiro, quando sobe,
a arrulhar e a esfregar-se, ao paraíso
do telhado, onde a bela o está chamando.
A gente como nós ama a virtude;
mas, uma vez por outra, lá se alembra
de cobiçar o alheio, e andar à tuna.
Eu só de pôr na ideia o regabofe,
que em Valburga vou ter co’o femeaço
já depois de amanhã, não tenho fibra
que não me ande a bailar dentro no corpo.
Quem perde assim a noite é quem na ganha.

FAUSTO
Vamos nós: o tesoiro soterrado
que me fizeste ver, e que inda aos olhos
me está brilhando, entregas-mo, ou que fazes?

MEFISTÓFELES
Pode desenterrar, se o leva em gosto,
por suas próprias mãos. Que panelada
de boas peças de oiro! Eu, que lho digo,
é que já noutro dia as vi com estes,
e estive-as namorando.

FAUSTO
Não me arranjas,
ademais disso, algum condigno adorno
com que eu possa arraiar a minha amante?

MEFISTÓFELES
Ah! lembrou bem! A modo que entre as loiras
enxerguei... não sei quê... de aneis, de brincos...
Nada; um colar de pérolas.

FAUSTO
Aprovo.
Quando a vou procurar co’as mãos vazias,
vexo-me.

MEFISTÓFELES
O desfrutar gratuito às vezes
também tem seu lugar.
Noite de estrelas
como esta, meu Doutor, pede um descante.
Vamos-lho dar por baixo da janela.

FAUSTO
A do seu quarto é essa, onde estão vasos,
MEFISTÓFELES
Se ainda não dorme, escutará gostosa.
São trovas de mão cheia, e sobretudo
muito morais. Assim é que as eu logro.

(Canta, acompanhando-se com a guitarra)
Que fazes, por vida minha,
à porta do namorado,
quando inda não é sol-nado,
Catarininha?
Ai, levianita, cautela,
cautela com essa entrada!
Vais donzela; mas, coitada,
sairás donzela?
Florinha, esquiva-te à aragem,
por mais que amor te prometa
que, em fugindo a borboleta,
boa viagem!
Com ave que não tem medo
bem vai ao passarinheiro.
Catarininha! primeiro,
o anel no dedo!

VALENTIM (adiantando-se furioso)
A quem vai o descante, alma danada?
Leva-te a breca a banza, e a ti com ela.

(Arranca-lhe o instrumento e quebra-o.)
MEFISTÓFELES
Escangalhou-ma, que não tem concerto.
VALENTIM (desembainhando a espada e arremetendo com Fausto)
E agora essa caveira!
MEFISTÓFELES (à parte para Fausto, e dirigindo-lhe o braço)
Alma! Não ceda,
Senhor Doutor! Cosa-se bem comigo,
que eu lhe tenteio o jogo. Ande com ele
Esgrima-me o chanfalho! Afronte os botes,
que eu lhos aparo.

VALENTIM
Apara-me este.
MEFISTÓFELES
E aparo.
VALENTIM
Mais este.
MEFISTÓFELES
Pronto.
VALENTIM
Brigo co’o diabo.
Deu-me estupor no pulso.

MEFISTÓFELES
Ande-me, acabe-o!
VALENTIM (que, varado de uma estocada de Fausto, vai estrebuchando até cair sentado no degrau da porta de Margarida, e encostado à ombreira.)
Ai!
MEFISTÓFELES
Já está manso o bruto. Agora ao fresco!
(Ouve-se vozear e abrir janelas, em várias casas da rua; depois principiam a sair das portas os moradores com luzes
Já anda alvoratada a vizinhança.
Fugir, que vem gentio. Eu da polícia
sei muito bem safar-me; agora em coisa
de foro crime, até o demo esbarra.

(Vão-se.)

CENA III

VALENTIM, MARTA e MARGARIDA, primeiro, nas suas janelas e depois na rua, HOMENS e MULHERES
MARTA (com luz à janela)
Acudam!
MARGARIDA (com luz à janela)
Tragam luz!
MARTA (mais alto)
É gente aos gritos:
brigam na rua; ouvi tinir espadas.

(Os populares vêm das casas a correr com luzes.)
HOMEM DO POVO
Homem morto!
MARTA (correndo)
Onde estão os matadores?
MARGARIDA (ainda na janela)
Quem jaz aí?
HOMEM DO POVO
Jaz teu irmão.
MARGARIDA (da janela)
Socorro!
Grande Deus!

(Margarida desce à cena. Todas as mulheres estão chorando, e lamentando o caso umas com as outras.)
VALENTIM
Morro. Curto é o dito; e o feito
muito mais curto. Porque está chorando
todo esse mulherio? Aqui!... Mais perto...
Escutem-me!

(Acercam-se-lhe as mulheres)
Tu, mana Margarida,
inda estás verde em anos e em juízo;
não sabes arranjar-te. Um bom conselho,
aqui muito entre nós. De prostituta
já tu tens praça; então, marchar em frente!
a valer! a valer!

MARGARIDA
Que estás dizendo,
irmão? Meu Deus!

VALENTIM
A que vem Deus chamado
para estas coisas? Por desgraça, o feito
já ninguém to desfaz; e a ruins entranças
mais ruins saídas.

Principiaste, a ocultas,
com um; provado o bolo, acodem outros;
em se chegando à dúzia, é porta aberta.
Vem fraquinha, a princípio, a desvergonha.
Teme ser vista, embuça-se co’as trevas.
Não custava a matá-la. Como a deixam,
medra, até sair nua; e como cuida
que a desnudez a alinda, embora a afeie,
despida, ao sol, na praça, se apavona.
Dentro em bem pouco toda a gente honrada
há-de fugir de ti, rameira indigna,
como se foge de um cadáver podre.
Se alguém te encarar fito, há-de transir-te.
Não pões mais oiros. Já não vais na Igreja
para a capela mor: nem com romeiras
de rendas finas florear nas danças.
Hás-de-te encafuar numa possilga,
refúgio de pedintes e aleijados.
Talvez que Deus ao cabo te perdoe,
mas o mundo é que nunca.

MARTA
Recomende
sua alma a Deus; não ’steja a encarregá-la
com mais ódios e injúrias!

VALENTIM (para Marta)
Quem me dera
poder-te lançar mão desse arcaboiço,
alcaiota maldita! Ai! que indulgência
que indulgência plenária a que eu ganhava!

MARGARIDA
Valentim! meu irmão! ai! que suplício!
VALENTIM
Sabes que mais? Deixemos choradeiras.
Quando tu deste mate ao teu decoro,
correste-me no peito uma estocada
que me acabou.
Já a morte me adormenta.
Vou-me acordar em Deus. Fui bom soldado
e homem de bem; feneço descansado.



QUADRO XX

Interior de um templo, com eça armada, entre tocheiros acesos. Altar mor do lado direito, e guarda-vento da entrada, à esquerda. Ofício de defuntos, cantado a órgão.

CENA ÚNICA

MARGARIDA, de luto, ajoelhada, com o seu livro na mão. Por trás dela, em pé, o ANJO MAU. MULHERES e BURGUESES, de joelhos.
ANJO MAU
Inda te lembra, Margarida,
quando tão outra, e fronte erguida,
vinhas aos pés daquele altar
as santas rezas soletrar
do teu livrinho, já tão gasto,
dando à tua alma o doce pasto
do amor de Deus e do folgar?
Hoje só negros pensamentos.
Hoje só dor no coração.
Mataste a mãe, que arde em tormentos
vens sufragar-lhe absolvição?
Quem derramou à tua porta
um mar de sangue? o teu irmão.
De sua voz, já quase morta,
que herança houveste? a maldição.
Não sentes já nessas entranhas
ânsias insólitas, estranhas,
presságio atroz de um novo ser?
visão que em sonhos te aparece,
e que, inda a luz não lhe amanhece,
já principia a padecer?

MARGARIDA
Deus meu, Deus meu, que já não posso
com esta guerra interior.
Pelo infinito afecto vosso
valei-me, ó Deus, em tanta dor!

CORO
Dies iræ, dies illa,
Solvet sæculum in favilla,

(Toca o órgão.)
ANJO MAU
Tremem-te os membros gélidos.
Fatal momento!
Troa a trombeta lúgubre
do chamamento.
De cada aluído túmulo
surde um fantasma.
Julgavas leito a lápida.
Agora pasma,
que a vês alçapão lôbrego
do fogo ardente,
que ressuscita os réprobos
eternamente.

MARGARIDA
Quem já me dera daqui fora
Que órgão, meu Deus! Falta-me o ar.
Como é feliz a dor que chora!
Não poder eu sequer chorar!...

CORO
Judex ergo cum sedebit,
quidquid latet apparebit,
nil inultum remanebit.

MARGARIDA
Ai que opressão! que negra abóbada!
Quem me prendeu neste lugar?
Quero-me erguer, não posso. Acudam-me!
Ar! ar! ar! ar!

ANJO MAU
Fugir! Sumires-te! Não, mísera!
O teu opróbrio, o teu pecado
já não se esconde. A lei do Altíssimo
o há decretado.

CORO
Quid sum miser tunc dicturus?
Quem patronum rogaturus,
Cum vix justus sit securus
?

ANJO MAU
Santo nenhum já te olha, ó réproba.
Cada fiel, em tu saindo,
para evitar o torpe escândalo
te irá fugindo.

CORO
Quid sum miser tunc dicturus?
ANJO MAU
Vai teu caminho!
MARGARIDA (voltando-se para uma mulher ao pé)
Ai! por piedade! o seu vidrinho...!
(Cai desmaiada)


QUADRO XXI

Noite de Santa Valburga*. Montanhas de Harz. Região de Schirke e Elend.

CENA I

FAUSTO e MEFISTÓFELES
MEFISTÓFELES (a Fausto)
Em vez de palmilhar, Doutor, não gostaria
de ir num pau de vassoira? Eu por mim preferia
montar um bom cabrão. Antes que lá cheguemos
não nos falta que andar.

FAUSTO
Sou rijo; caminhemos.
Este bordão de nós por ora me é bastante.
E apressar, para quê? Se há gosto que me encante
na jornada que faço, é isto: ir à vontade
vendo este labirinto e a sua variedade;
tanto vale espantoso! e aqui sobre esta penha
a cascata sem fim que troa e se despenha!
Já primavera nova anima os vidoeiros;
engalana-se o mato; alegram-se os pinheiros.
Poderá resistir a natureza humana
a tais influições?

MEFISTÓFELES
Se o mato se engalana
e o Doutor se alvoroça, eu cá não sinto nada.
O que eu tomara sempre era grande invernada,
frio de tiritar, e por quaisquer caminhos
ver só neve, sentir só neve nos focinhos.
Como hoje vem a lua avermelhada, cava,
e a alar-se sem poder! por pouco mais, deixava
às escuras o mundo; é quebrar os narizes
de contínuo em calhaus, em troncos, em raízes.

... Um fogo-fátuo! Bravo! Há-de dar licença
de o chamar. Fraca luz val mais que sombra densa.
Uh! uh! ó da luzerna! Há-de ter a bondade
de vir mais para aqui. Não gaste a claridade
assim sem mais nem mais. Obséquio nos faria,
se nos fosse diante a destrinçar-nos via
por esta serra acima!


CENA II

Um FOGO-FÁTUO e os ditos
FOGO-FÁTUO
Inda que a nossa essência
é saltitar à toa, eu farei diligência,
já que manda quem pode.

MEFISTÓFELES
Esta é que não é feia.
Até já este pífio os homens macaqueia!
Salte-nos para a frente, em nome do diabo;
e ir direito; senão, verás como te acabo
co’a flamante farófia; um sopro basta.

FOGO-FÁTUO
Sei
que está em sua casa; o que mandar fá-lo-ei;
mas veja que esta noite é a festa das diabruras
cá no monte; e eu também sou uma das figuras,
mas vá lá; faltarei, contanto que releve
a um pobre fogo-fátuo o modo como o leve.

FAUSTO
Cuido que já ’stamos no país fantástico
de encantos e sonhos.
Avante, bom guia! Transpõe estes páramos
vazios, tristonhos.
Como umas trás outras nos fogem as árvores,
recurvas, ligeiras!
E os serros baixando-se! E os roncos e os síbilos
das rotas pedreiras, que vão a arquejar!

Que palram as águas? que diz toda a harmónica
loquaz natureza?
Serão ternas mágoas, queixumes, ou cânticos?
é gozo? é tristeza?
de dias celestes celestes memórias?
amor? esperança?
recordos confusos de gostos pretéritos?
vão eco? ou lembrança de lenda a passar?

MEFISTÓFELES
Ui! que algaravia!
Bufídos e pios,
silvos e assobios
cada vez mais perto!
Já antes do dia,
cá neste deserto,
andam levantados
gaios, papafigos!
Que sócios e amigos
tão desafinados
as c’rujas não tem!

FAUSTO
E aqueles pernudos,
ascosos, pançudos,
nas moitas além...
serão salamandras?
E aquelas malandras,
que rompem das gandras,
fazendo ameaços,
lançando mil braços
qual polvo traidor!

MEFISTÓFELES
Meras raizadas,
todas emproadas
a aterrar as gentes,
fingindo serpentes.

FAUSTO
Toupeiras e ratos,
relé variegada,
no musgo dos matos,
na lama encharcada
sem conto esfervilham.
Para a festa voam, brilham,
vaga-lumes aos milhares,
azoinado redemoinho.

MEFISTÓFELES
Mas seguimos nós caminho,
ou quedamo-nos pasmados?

FAUSTO
Tenho os olhos já cansados
de ver tudo a rodopiar,
de ver tanto horrendo esgar
nuns penedos desalmados,
na rudez de uns troncos broncos
tão medonhas carantonhas.
Fogos-fátuos nunca vi
como aqui tão abundantes,
alentados e arrogantes.

MEFISTÓFELES (a Fausto)
Mas não me largue a cauda. Estamos na eminência,
que descobre em redor toda a magnificência
do espantoso Mamon*.

FAUSTO
Que baça aurora estranha
se espraia lá por baixo ao sopé da montanha
té ao mais fundo abismo! Aqui surge um vapor,
exalações de além; mais longe um misto horror
de treva e fogo, a andar como um fio delgado,
que afinal como fonte em jorro desatado
serpeia pelo vale em cem veias; confluem
todas ao mesmo ponto, e dali distribuem
no vizinho arredor chispante areia d’oiro.
Quem a escarpa do monte iluminou de estoiro,
toda de cima a baixo?

MEFISTÓFELES
In verbo luminárias,
as do senhor Mamon são extraordinárias;
pois não são? Despicou-se a abrilhantar a festa.
À fé que o meu Doutor nunca esperou por esta;
hein?
Mas tate... que avento a cáfila bravia
vir já lá de rondão ao cheiro da folia.

FAUSTO
Safa, que furacão! Mete-me as costas dentro.
MEFISTÓFELES
Se não quer ir parar do negro abismo ao centro,
Doutor, não há remédio; é com unhas e dentes
ferrar-se por aí às costelas patentes
do serro descarnado. Ui! que nevoeiro cego
cega inda mais a noite, escura como um prego!
Ouviu nunca fragor como anda no arvoredo?
As corujas pelo ar esvoaçam-se de medo;
as colunas do paço eterno-verde racham
as pernadas gemendo estorcem-se e se escacham;
estalam troncos; rota a raizada crepita;
tudo em medonho caos rui e se precipita,
trovejando e silvando até o fundo abismo
das voragens que atulha o horrendo cataclismo.
Não sente vozear lá no alto, e ao longe, e ao perto?
Ora aí vem já de certo
chegando o reboliço
que vem povoar este montês deserto
nas horas do feitiço.


CENA III E SEGUINTES

OS MESMOS, e sucessivamente as figuras que a seus tempos se irão indicando
FEITICEIRAS E FEITICEIROS
De Brocken ao rochedo,
correr, correr, bruxedo!
Onde a cana já loireja,
mas a espiga inda verdeja,
todo o bando unido seja.
Posto de alto e todo mano,
é o senhor Dom Fulano*
quem preside ao nosso arcano.

Por cima da folha, mais do pedregulho,
festança rasgada com todo o barulho.
O bode tresanda fartum que enfeitiça,
e a bruxa castiça, castiça e castiça.

UMA BRUXA
Lá vem, e vem só,
a velha Bóbó,
nossa rica avó.
Que flamante vem
para a patuscada,
toda escarranchada
numa porca-mãe!

CORO
Quem de todas é primeira,
toca-lhe ir na dianteira.
Tudo atrás da vo-vozinha,
que parece uma rainha
sobre a porca parideira.

UMA BRUXA (para outra)
Donde vens?
A OUTRA
Da roca
d’Ilsen, onde está,
dentro numa toca
funda negra e suja,
ninho de coruja.
Deitou-me de lá,
com ar macambúzio,
por ver a espreitá-la,
um lúzio... que lúzio!

BRUXA
Cal’-te aí! Quem te ora fala
de coruja? Subvertida
sejas tu!

OUTRA
Mas que pressa! Onde é a ida?
A OUTRA
Já do chouto vou ferida.
Podes vê-lo: olha este...

FEITICEIRAS E FEITICEIROS
Leva, leva, cavalgada,
que tão cedo não se apanha
ver o fim de tal jornada
por tais fragas de montanha.
A vassoira arranha.
O forcado fura.
E todas põe manha
na cavalgadura.
E o chouto nas panças
abafa as crianças.
E as mães coitadinhas,
a cada pinote
vão para as vizinhas
tocando fagote.

O CORIFEU DOS FEITICEIROS
Deixar lá ir as seresmas
de escantilhão nos seus potros.
Fica melhor a nós-outros
esta andadura de lesmas.
Se tudo vai para o paço
do Grão-Perro, não se queira
estranhar ao femeaço
que nos leve dianteira.

A CORIFÉIA DAS FEITICEIRAS
Falem, falem, linguarudos!
É que na estrada dos demos,
onde nós mil passos demos,
chegam num pulo os barbudos.

VOZ DO ALTO DO MONTE
Olá da lagoa,
vinde para a altura!

VOZ NA BAIXA
A vontade é boa,
mas o banho apura
do corpo a brancura.
Por isso, cá ’stamos,
se bem, coitadinhas,
que, mais que façamos,
por mais que lavamos,
por mais que esfregamos,
ficamos maninhas,

FEITICEIRAS E FEITICEIROS
Cala o vento; não há vê-la
meia estrela.
A baça lua
de todo amua.
Passa alvorotado
o bando encantado
como um turbilhão,
deixando crivado
de chispas o chão.

VOZ EM BAIXO
Parem, parem!
VOZ NO ALTO
Quem nos brada
dos algares do rochedo?

VOZ EM BAIXO
Levai-me deste degredo,
que a trepar pelo fraguedo
levo há já trezentos anos,
sem chegar à cumeada!
Deixai-me ir convosco hermanos!

FEITICEIRAS E FEITICEIROS
Ala, ala, vassouras, forcados,
bodes, trancas! arriba, às alturas!
Ai de quem as não vinga; maus fados
para sempre lhe estão destinados
nas funduras.

SEMI-BRUXA (na baixa)
Vou-lhes na peugada
correndo estafada.
Tamanho é o avanço,
que não as alcanço.
Já lá na casinha
Não tinha descanso.
Mesquinha, mesquinha,
debalde me canso.

FEITICEIRAS
Feiticeira bem untada
feiticeira bem dotada.

De uma gamela
faz caravela;
de uma rodilha
faz uma vela
com que a amantilha.
Navega por ’í fora;
bom vento, e vive Alah!
Quem não viaja agora,
quando viajará?

TUTTI
Sus, apear, desembarcar!
Chegou-se enfim aos grandes cimos.
Poisar agora e descansar
quantos e quantas ora vimos
esta charneca povoar!

(Vão-se assentando).
MEFISTÓFELES
Que apertão, que empurrões, que barafunda,
tropeções, castanholas, assobios,
empuxões, voltas, pálreas, luzes-luzes,
fagulharia, fétidos ardores...
em suma feira franca de feitiços.
Cosa-se bem comigo, que a esgarrar-se
não sei onde irá ter... Onde está ele?...
Doutor! Doutor!

FAUSTO (Muito longe)
Aqui...
MEFISTÓFELES
Já lá tão longe!
Não há remédio. Cá nos meus morgados
sou eu só quem governa. Afasta! arreda!
Dom Barzabu que chega! Abri-lhe praça,
raia miúda!
Aqui, Doutor! segure-se!
Belo; e agora é safarmo-nos num pulo,
dentre esta turbamulta, que atordoa
até aos do meu pano.
Espere... aquilo
que será que além brilha? Estou curioso,
Meto-me à sarça. Venha, venha! Entremos,
sem fazer bulha.

FAUSTO
Mais variável génio
do que tu és, não quero que haja. Embora!
Vamos lá; mas só doidos tal fariam:
Cansar a gente a marinhar ao Brocken
na noite de Valburga, e por desfecho
ter o que? embrenhar-se como os bichos.

MEFISTÓFELES
Não trove de repente! Afirme a vista!
Perceberá candeios de mil cores.
Há lá festa; há-de achar-se acompanhado,
mas sem balbúrdia.

FAUSTO
Ao píncaro do monte
mais folgara que fôssemos; avisto
já por lá turbilhões de fogo e fumo.
Que de devotos que ao maligno acodem!
E que de enigmas que hão-de ali solver-se!

MEFISTÓFELES
E que de outros urdir-se! Os mais que folguem
a seu sabor; nós-outros desfrutemos
à chucha-caladinha a nossa conta.
Isto de conventículos formados
na grande sociedade é moda antiga.
Lá vejo eu bem gentis feiticeirinhas
nuas em pelo; e velhas à cautela
todas bioco. Não me faça d’urso!
Mas que seja tão só por me dar gosto,
quero-o ver todo França. O custo é pouco,
e o gáudio de enche-mão. Oiço instrumentos,
ou coisa que o parece; irra, que bulha!
Paciência! a princípio é que se estranha.
Venha comigo, mexa-se! já agora
não há remédio. Eu sou quem o apresenta,
por isso vou diante. Em realidade,
sempre o nosso Doutor me deve muito!
Que tal acha este campo? é formidável,
pois não é? custa a ver o limite.
Arde ao redor um cento de fogueiras;
baila-se; palra-se; enche-se a barriga;
pinga a rodo; mocedo à tripa forra.
Onde é que pode haver melhor cantate?

FAUSTO
Tu, como é que na súcia te apresentas?
como diabo, ou disfarçado em bruxo?

MEFISTÓFELES
Costumo andar incógnito; mas hoje
dia de gala, assoalham-se as veneras;
não ponho jarreteira; o pé de cabra
mete mais vista. Já lá vem a rastos
um caramujo, de focinho em terra;
já me aventou aposto. Está sabido:
encobrir-me eu aqui, era impossível.
Toca, toca a rodar essas fogueiras.
O alcaiote sou eu; por sua conta,
só fica o desfrutar.

(Dirige-se a uma roda de velhos*, que cercam um brasido de fogueira)
Vocês, velhotes,
que fazem por aqui? Se os visse andarem-se
de réstia co’os pimpões da brincadeira,
entendia; mas isto, acantoados
como ermitães, que val ou que lhes presta?
Era muito melhor não vir à festa.

UM DOS VELHOS, GENERAL
No fim lhe há-de achar a errata
um parvo que serve ao povo,
e por lhe agradar se mata.
Mulher quer sempre ao mais novo;
plebe ao da última data.

OUTRO VELHO, MINISTRO
Tempinho santo o passado.
Hoje, que há ’í de sisudo,
de bom, de bem ordenado?
Século, em que éramos tudo,
foste o século doirado.

TERCEIRO VELHO, PARVENU
Espertos, também nós fomos,
que engordámos e subimos,
sem nos prendermos nos cornos.
Entraram novos mordomos,
fugiu-nos tudo, e caímos.

QUARTO VELHO, UM AUTOR
Quem sofre hoje as obras ler
de chorume e de saber?
A exclusiva faculdade
do julgar e do escrever
toca à fátua mocidade.

MEFISTÓFELES (parecendo de repente velhíssimo)
O dia de juízo é já propínquo.
Nesta minha subida derradeira
ao monte dos feitiços, reconheço
que está chegada ao termo a humanidade;
por isso o meu barril já deita as borras.

UMA BRUXA BELFURINHEIRA*
Não passem, fregueses, sem ver a fazenda
de trinta mil castas, que trago hoje à venda.
Não são galanduchas, que nunca alguém visse.
Não vem coisa alguma, que já não servisse
uma vez ao menos de perder a alguém.
quem vem? quem enfeira? fregueses, quem vem?
Nenhum punhal trago que não se embainhasse
nalgum coração;
nem copa brilhante, que não propinasse
veneno terrível aos lábios de um são;
nem jóia que à honra de bela donzela
não fosse fatal;
nem folha de espada que nunca em cilada
se visse cravada por mão desleal.
Mil outras como estas a arqueta contém,
que em algo funestas já foram a alguém.
Quem vem? quem enfeira? fregueses, quem vem?

MEFISTÓFELES (tornando-se outra vez moço)
A adela anda no mundo trasnoitada,
por força; pois não sabes que hoje em dia
só se quer dito e feito, e sempre novo?

FAUSTO
Já começo a temer, com tal barulho,
de mim próprio afinal vir a esquecer-me.
E chama-se isto feira!

MEFISTÓFELES
Antes se chame
fervença de ambiciosos apostados
a qual primeiro se verá no cume.
Cuidas ir empurrando, e és empurrado.

FAUSTO
Aquela quem será?
MEFISTÓFELES
Pois não conhece!
Repare; é a Lilita*.

FAUSTO
Hein! que Lilita?
MEFISTÓFELES
A Lilita da Costa; não te lembras?
a primeira mulher de Adão de Barros.
Cuidado em ti co’os seus gentis cabelos,
que os não há mais encanto. Ai do mancebo
que neles se enredar; nunca mais foge.

FAUSTO
E essas duas a par tão bem sentadas,
a velha, mais a moça? Esbaforiu-as
sem dúvida o bailar.

MEFISTÓFELES
Isto hoje, amigo,
não dá trégua nem folga. Aí principia
já outro bailarico. Ande depressa!
agarre um par e salte! A coisa é essa.

(Fausto dança com a moça, e Mefistófeles com a velha.)
FAUSTO (dançando e cantando)
Em macieira de estima
sonhei ver duas maçãs;
tão d’enche-mão, tão louçãs
que lhes saltei logo em cima.

BELA (idem)
Se de maçãs tanto gostas,
não vás com o Éden sonhar.
Também eu no meu pomar
cá tenho maçãs bem-postas.

MEFISTÓFELES (idem)
E eu sonhei co’uma cepeira
.................................
.................................
.................................

A VELHA (dançando)
Lá tocas não têm concerto,
senhor Dom Pé cavalar,
.................................
.................................

PROCTOFANTASMISTA
Gente maldita, que ousadia a vossa!
Não se vos provou já que nunca espírito
pode aguentar-se em pé? Sais-me agora
até dançantes!

BELA (continuando a dançar)
Que lhe importa a ele
o que se faz no baile?

FAUSTO (dançando)
É manha velha:
em tudo se intromete. Em não podendo
impugnar cada passo, abnega o todo.
E o que o mais rala, é ver que se progride.
Resolvessem-se os mais a andar como ele
sempre à roda em zunzum de dobadoira,
tinham certo o seu A, principalmente
se o mazorral sistema encomiassem.

PROCTOFANTASMISTA
Ateimam! não se vão! Quem viu tal birra?
Víspere, coisas más! Não nos ouviste
O Fiat lux? Canalha de diabos,
as regras só lhes servem de debique.
Até nós, nós, protótipo do siso,
sentimos dar-nos volta a mioleira,
pensando no que aí vai. Ter eu varrido
todas essas insulsas nigromâncias,
e ver como inda o mundo me enxovalham
Ateimam! Não se vão! Quem viu tal birra?

BELA
Homem, não mace mais!
PROCTOFANTASMISTA
Na própria cara
vo-lo repito, Espíritos! Não sofro
a Espíritos ser déspotas; e a causa
é que déspota ser não posso eu mesmo.

(Continuam a dançar)
Tudo hoje me sai torto. Paciência!
Aldemenos, fiz mais esta Viagem.
E antes que faça a última, inda espero
vencer alfim diabos e poetas.

MEFISTÓFELES
Daqui a nada, assenta-se num charco,
que nisso é que acha alívio. As sanguessugas
as nalgas lhe dessangram, té que o deixem
de espíritos e espírito curado.

(A Fausto, que deixou a dama)
Deu de mão à formosa parceirinha,
tão sereia no canto?

FAUSTO
Irra, que nojo!
Ao cantar, cuspiu fora um morganhinho,
por sinal encarnado.

MEFISTÓFELES
Ora que espantos!
Inda se fosse pardo... E por tão pouco
se esperdiça a maré do carvoeiro?

FAUSTO
Mas é que inda vi mais.
MEFISTÓFELES
Mais quê?
FAUSTO
Repara!
Não vês além ...ao longe...em pé...sozinha
uma linda menina, aspecto pálido,
passos de quem arrasta ferropeias?
Quer-se-me figurar que as parecenças
são tais quais as da boa Margarida.

MEFISTÓFELES
Deixe lá isso: o engar em certas coisas
às vezes não é bom. São vãs sombrinhas;
que lhe quer? imposturas do bruxedo.
Querer vê-las ao perto é perigoso.
Pessoa em que as visões encarem fito
ficou, a bem dizer, petrificada.
Sabe o que era a Medusa?

FAUSTO
Em realidade,
os olhos são como olhos de defunto
não cerrados à luz por mão piedosa.
Aquele é o próprio seio, o ninho amante
da minha Margarida; aquele o corpo
que já foi meu tesoiro.

MEFISTÓFELES
Usuais efeitos
da arte ruim, meu crendeirão palerma.
Cada um vê naquilo a própria amada.

FAUSTO
Oh que céu! oh que inferno! Olhar é esse,
que o não posso fugir. E a gargantilha
que lhe cinge o pescoço! um fio apenas,
estreito como as costas de uma faca,
e vermelho.

MEFISTÓFELES
Bem vejo. Até podia
trazer já a cabeça sobraçada,
que lha cortou Perseu; não há quimeras
que lhe fartem a sede.
Ora subamos
àquele oiteiro; é vista deleitosa
como a do Prater.
Bravo! Se não trago
eu próprio a vista co’os feitiços doida,
vejo um teatro. Que irá lá?

SERVIBILIS
Senhores,
há hoje peça nova, a derradeira
das sete do costume; é de um curioso,
e por curiosos só representada.
Sem mais, vou-me com pressa erguer o pano.

MEFISTÓFELES
Sim senhor; se no Block a representam,
em sítio próprio o seu teatro assentam.



ÁUREAS NÚPCIAS
DE
OBERON E TITÂNIA
(INTERMESSO)*

ADVERTÊNCIA
ACERCA DAS ÁUREAS NÚPCIAS
DE
OBERON E TITÂNIA
Havia o tradutor omitido a princípio esta pequena parte do poema; movera-o a isso o receio de quebrar importunamente o fio dramático; e, mais que tudo, o horror à escuridade que afronta e regela o trecho todo, no conceito dos próprios alemães.
Ficaram-no todavia remordendo escrúpulos por uma parte, por outra receios do que diriam praguentos, pelo decote cérceo de tal enxerto; e (custasse o que custasse, e desse por onde desse) resolveu à última hora que se atulhasse o fosso, para que o poema saísse, se não mais aprazível a quem houvesse de o correr, pelo menos sem a pecha de incompleto.
Cabe porém advertir que o próprio autor, já talvez por descargo de consciência, intitulara intermesso esta ensancha alinhavada no seu manto poético, e da qual os seus patrícios, e seus primeiros admiradores, nenhuma conta fazem nas representações do Fausto.
Outro tanto poderão fazer os nossos leitores quando aqui chegarem.
Pelo que toca ao mérito literário e poético do fragmento, muito de indústria se abstém o tradutor de emitir aqui a sua opinião. Declara só que nenhuma outra parte de todo o livro lhe queimou tanto o sangue como esta; e que ainda agora lhe desvela horas da noite o cuidar, se às vezes não andaria perdido por tão intrincado labirinto.
As Áureas Núpcias são, em boa e leal verdade, uma enfiada de adivinhações, mais temperadas, ao que se pode crer, de pimenta que de sal, e com cujo sentido alusivo, ou satírico, dou que nem já atinarão hoje em dia os mais dos leitores dessas Alemanhas.
Vai pois a coisa o melhor, ou o menos mal que por cá se pôde entender e interpretar.

ÁUREAS NÚPCIAS
DE
OBERON E TITÂNIA
OU
OS CINQÜENTA ANOS DE CASADOS

(INTERMESSO)
(N. B. - A vista poderá ser ainda a precedente)
O DIRECTOR DO TEATRO
Sus, boa gente de Miedingue*!
folguedo franco hoje nos vingue
da eterna lida teatral.
Para o bailete alegre e vário
aí ’stá nosso único cenário:
um monte seco, e um fresco val.

ARAUTO
De oiro se chama o casamento*
que atingiu de anos meio cento
mas eu mais de oiro o chamarei,
quando, após guerras desabridas,
a paz reenlaça as duas vidas.
Esse é que é de oiro, e oiro de lei.

OBERON
Olá, meus génios! se a alegria,
que me alvoroça neste dia,
é para vós também prazer,
deveis mostrá-lo. Hoje a Rainha,
graças a Amor, volve a ser minha,
como eu já dela torno a ser.

PUCK
Cá vem Róbim* desengonçado,
como pião num pé firmado,
e à roda dele o outro a girar.
Doutros que tais profuso bando
o vem à farta acompanhando,
que a todos toca este folgar.

ARIEL*
Cá está o Ariel dos sons divinos,
que enleva a muitos malandrinos,
e a belas mil também atrai.

OBERON
Pares de esposos desgraçados,
se desejais ser bem casados,
lição e exemplo em nós tomai.
Quem me hoje alegra o casamento
não foi senão o apartamento;
o apartamento esperta amor.

TITÂNIA
Quem vir mulher que já não zomba,
e homem que sempre anda de tromba
cure-os de mal tão sem-sabor:
mande o marido para o norte,
e para o sul mande a consorte;
reacendeu-se o extinto ardor.

ORQUESTRA TUTTI (fortíssimo)
Besoiros e moscas, e mais parentela
que zumbe e gaiteia por vários estilos,
as rãs nos caniços, nas tocas os grilos,
serão nossa orquestra; quem na ouviu mais bela?

SOLO
Lá vem por cornamusa
a bolha de sabão,
com salsada abstrusa
das cantilenas que usa
juntar ao seu roncão.

ESPIRITINHO* (que se está formando)
Pés de aranha, barriga de sapo,
e asasitas de um nada vivente,
se de ser animálculo escapo,
em poemeto darei certamente.

PARZINHO*
Passinhos, pulinhos por névoas melífluas
consomem-te, matam-te em ânsia ilusória.
Patinha, patinha, já nunca do ínfimo
te irás às esferas; gorou-se-te a glória.

VIANDANTE CURIOSO*
Que será o que vejo? mascarada
sem tom nem som,
ou delírio da vista alucinada?
será esta realmente a venerada
figura de Oberon?

ORTODOXO*
Não tem unhas nem tem rabo;
mas com lhe faltar tal sécia,
é, como Os Deuses da Grécia,
um verdadeiro diabo.

ARTISTA DO NORTE
Só faço por enquanto esboços d’arte;
mas cedo, Itália, espero visitar-te.

PURISTA*
Onde eu me vim meter! que bruxas depravadas!
só duas, duas só, só duas empoadas!

BRUXA MOCINHA
Quem é carcassa usa polvilho,
e cobre o corpo o mais que pode;
eu monto nua no meu bode;
quem é gentil não quer mais brilho.

BRUXA MATRONA
Não somos nós tão grosseironas,
que te queiramos replicar;
mas se co’as graças te apavonas,
olha que a rosa há-de murchar.

MESTRE DE CAPELA
Besoiro trompa,
mosquito gaita,
co’a nua pompa
da serigaita
que tendes vós?
grilos e relas
a tempo a voz;
solfas tão belas
sem o compasso
com que vos maço
são bulha atroz.

O CATA-VENTO* (para um lado)
Quem viu nunca melhor sociedade?
tudo moças, perfeitas donzelas!
tudo moços digníssimos delas!
que promessas à posteridade!

(Para o outro lado)
Eu se a terra, enquanto encho um só giro,
se não abre e os soverte por junto,
juro, à fé de quem sou, que barrunto
abismar-me no inferno; e prefiro.

XÉNIOS*
Vespões de acérrimos ferrões
cá vimos nós; arredem lá;
morder é a chança dos vespões,
mais de Satã seu bom papá.

HENNINGS*
Tem muita graça o denso enxame;
que ingenuidade de vespões!
ninguém lhe chame
maus corações.

MUSAGETE*
Sim senhor; aqui sim, neste bando
de bruxas machuchas
é que eu ando no meu elemento.
As musas confusas
nunca eu trouxe a mandamento.

O EX-GÉNIO DO SÉCULO*
«Chega-te aos bons» - diz o rifão;
portanto, agarra-te ao meu rabo;
esta montanha do diabo
é como o Parnaso alemão,
que ninguém pode ver o cabo.

O VIANDANTE CURIOSO*
Aquele figurão empertigado,
ventas no ar, olho alerta, orelhas fitas,
quem será? que fareja azafamado?
anda à caça; de quê? de jesuítas.

O GROU*
Nas águas turvas pesco assim como nas claras;
de quaisquer sítios gosto, em sendo à pesca idóneos.
Se o tiveras sabido, à fé que não pasmaras
de ver tão mão por mão um santo com demónios.

UM MUNDANO*
Há, sempre houve, e há-de haver, beatos dessa casta
que o int’resse conduz, como a boi, pela soga
qualquer demo os atrai à sua sinagoga,
co’o engodo do lucro; é acenar-lho, e basta.

O DANÇARINO
Outro coro lá vem; não ouvis
tamboris?
Sossegai; não é som de pelejas;
são narcejas
lá ao longe a gralhar nos caniços
movediços.

O MESTRE DE DANÇA
Aquele perneia, que é só o que importa;
dá saltos cá este, que os olhos entorta;
est’outro, o baselga, pirueta; e nem meio
pergunta se dança bonito nem feio.

O RABEQUISTA
Em toda esta súcia nenhum dos mais gosta;
tomaram trincar-se! irias vê-los à aposta
de mútuos cortejos! à gaita de fole
se deve o milagre; domou alimárias
como Orfeu, à lira casando as suas árias.

O DOGMÁTICO*
Nem objecções nem críticas
me hão-de tirar da minha
e escusam de gritar;
o diabo algo é sem dúvida;
se não fosse algo, eu tinha
modo de o acreditar?

O IDEALISTA
Domina-me a fantasia.
Se quanto existe sou eu,
havendo gente sandia,
ergo sou também sandeu.

O REALISTA
Ser é para mim tormento;
devo aborrecer o ser;
são-me as pernas fundamento
que sinto hoje estremecer.

O SUPER-NATURALISTA
Dou a tudo isto mil gabos;
folgo com estes marmanjos;
pois de existirem diabos
concluo existirem anjos.

O CÉPTICO*
Anda após luzes-luzes toda a gente
um tesoiro a buscar sempre escondido;
a dúvida é aos diabos inerente;
fico-me entre eles, que eu também duvido.

O MESTRE DE CAPELA
Rãs nos ervançais, grilos nos relvados,
músicos danados!
moscas e mosquitos!
que inferneira é esta!
que orquestra!
músicos malditos!

OS HABILIDOSOS
Somos uns padres sem cuidados;
nosso viver é desfrutar.
Quando nos tolhem caminhar
co’os pés no chão, pronto virados,
nas mãos e cabeça firmados,
corremos de pés para o ar.

OS LORPAS
Que bons bocados que outrora
apanhávamos! agora,
a poder de rapapés
foram-se as solas; e os pés
andam co’os dedos de fora.

FOGOS FÁTUOS
Recém-nados dos lameiros
cá viemos mui lampeiros
figurar de cavalheiros
assoalhando estes luzeiros.

ESTRELA CADENTE
Já fui astro dos céus; caí num mato agreste;
poder nenhum me acode.
Quem reascender-me pode
Do pó em que ora jazo, à cúpula celeste?

OS SÓLIDOS*
Arreda! afasta! abram caminho!
guardar de baixo ervas e arbustos!
somos espíritos robustos;
pesamos pois um poucochinho.

PUCK (para o sólidos)
Nada de peso de elefantes
no dia de hoje hoje é mister
que todos vençam em farsantes
ao próprio Puck; e ele o requer.

ARIEL
Se asas tendes vigorosas,
por condão da natureza,
e do génio criador,
é seguir-me com presteza
ao montículo onde as rosas
dão fragrância e sombra a amor.

ORQUESTRA (pianíssimo)
O sol reaparece; desfaz-se a neblina;
nas canas, nas ervas, por toda a colina
sussurram as auras; desfez-se o prestígio;
de tanta diabrura não resta vestígio...

FINIS LAUS DEO


QUADRO XXII

Campo. Dia enuviado.*

CENA ÚNICA

FAUSTO e MEFISTÓFELES
FAUSTO
Penúria, desconforto a vida inteira,
e um cárcere afinal.
Quem to diria,
bela inocente! como ré fadada
a cruz tormentos! Tanto pôde a sina!
E este infame traidor a ter-mo oculto
Ousa ainda encarar-me! Anda, dardeja-me
as áscuas desse olhar. Se te parece,
exaure-me de todo a paciência
a arrostares-me em face!

Encarcerada,
falta de tudo, obsessa de demónios,
em garras de juizes desalmados,
e eu no entanto em mil frívolos recreios
engodado por ti, seus ais não oiço,
não na arranco do abismo onde a recalcas.

MEFISTÓFELES
Já não é a primeira.
FAUSTO
Ah perro! há monstro!
Retorna-o, Senhor Deus, que podes tudo,
ao ser canino com que o vi rojar-se
aos meus pés, com que fila atraiçoado
ao viandante incauto, e salta às costas
do homem caído! ou torne à costumada
forma de cobra, arraste-se na terra,
e eu que pise, que esmague o miserável!
Já não é a primeira!!
Onde há ’í peito,
que abranja horror tamanho! Haver mais de uma,
que se tenha afogado em tal miséria!
Não terem logo os transes da primeira
por todas pago e resgatado a todas!

Eu só de imaginar as penas desta
sinto infernos cá dentro!... ele, impassível,
mencionando as sem conto amostra os dentes!

MEFISTÓFELES
E quer isto connosco associar-se!
Onde a ciência em nós começa apenas,
a de homens deu em seco.
Ambicionaras
seguir-me o voo, e mal batemos asas,
já se te oira o juízo e cais.
Busquei-te,
ou buscaste-me tu?

FAUSTO
Não me arreganhes
a dentuça roaz! metes-me nojo!
Espírito sublime, oh tu, que observas
meu sentir e pensar, como te aprouve
jungir-me escravo ao mais feroz dos génios,
para o qual dor alheia é pasto, é glória!
MEFISTÓFELES
Findou?
FAUSTO
Salvá-la!... ou mal por ti, que voto
com tal imprecação assoberbar-te,
que te há-de durar séculos.

MEFISTÓFELES
Não cabe
na minha alçada espedaçar os ferros
da pública vindicta. Acho-te pilhas
no teu Salvá-la! Quem pregou com ela
nesse abismo? eu ou tu?
Vá lá. Fulmina-me!
(Inda foi providência o não ser de homens
o jus do raio.) Usual nos tiranetes
foi sempre, onde inocentes se desculpam,
tapar-lhe a boca, por livrar de empachos.

FAUSTO
Leva-me a ela: vou soltá-la.
MEFISTÓFELES
E os riscos?
Lá na cidade o crime de homicida
acha-se inda em aberto... Inda revoam
sobre os terrões do morto espiritinhos
vingadores, à espera do homicida.

FAUSTO
Outra das tuas. Maldições sem termo
sobre ti, monstro! Já to disse; mando
que lá me ponhas, e ma salves.

MEFISTÓFELES
Pronto,
quanto ao levar-te; agora omnipotência
confesso que a não tenho. O que eu só posso
é sepultar em sono o carcereiro.
O mais não me pertence: há-de ser de homem
a mão que furte a chave e solte a presa.
Eu fico de vigia. Tenho prestes
os nossos palafrens enfeitiçados;
montam, ponho-os em salvo. O que prometo
é isto, e hei-de cumpri-lo.

FAUSTO
Andar! Corramos!


QUADRO XXIII

Campo no arrabalde da cidade. É noite.

CENA ÚNICA

FAUSTO e MEFISTÓFELES, galopando estrepitosamente em cavalos pretos.
FAUSTO
Não sei que avisto ao longe... a modo de figuras
a esfervilhar num ponto, em diversas posturas,
a subir, a descer, à luz de archotes. Creio...

MEFISTÓFELES
Serem bruxas talvez, que andem no seu recreio.
FAUSTO
Não. Quer-me parecer, se o olho não me é falso,
ver gente azafamada a armar um cadafalso.

MEFISTÓFELES
Deixa-os lá cozinhar a gosto seu. Crerão,
dar um prato à justiça, outro à religião.
Isso a nós que nos monta? O nosso empenho agora
é chegarmos a tempo. Açoite, e fite a espora!



QUADRO XXIV

Prisão. Janela alta gradeada. Uma alcova ao fundo da prisão, onde há, sobre uma tarimba, uma cama de palha, com um cobertor velho, e uma bilha d’água ao pé. À esquerda do espectador, no primeiro plano, supõe-se ser a entrada da prisão, fechada com uma portinha de grades de ferro, que abre para o palco.

CENA I

FAUSTO, por trás da grade, com um molho de chaves e uma lanterna. MARGARIDA, deitada na cama de rosto para o espectador, ferros aos pés e nos pulsos, e o cobertor por cima de si; está pálida, e numa espécie de sonolência.
 
FAUSTO
Arrepios assim nunca eu senti. (Fraqueza
da humana condição.) Aqui, nesta escura,
nesta humidade infecta onde entro horrorizado,
e que ela está vivendo, é que ela tem penado
por um sonho de gosto horas sem fim de luto.

Que é isto, coração! Tremes irresoluto
no momento de ir vê-la! A sua aparição,
que tem para assustar-te? Avante, coração!
Valor! Para a salvar apenas resta um passo.
Cada instante perdido acerca-a do trespasso.

(Mete a chave na fechadura.)
MARGARIDA (cantando em delírio)
Nasci de uma perdida.
Gerou-me um salteador.
A mãe roubou-me a vida.
O pai tragou-me em flor.
Saltou-me a irmã vizinha
do fresco seu coval;
mudou-me em avezinha
no agreste matagal;
fugi da terra feia;
vim ser feliz no ar;
aqui só me recreia
voar, voar, voar.

FAUSTO (diligenciando abrir a fechadura)
Ah! Mal sabe a infeliz, que o seu querido ausente
já tão perto lhe está, que lhe ouve claramente
o tinir dos grilhões, das palhas o soído,
cada vez que revolve o corpo dolorido.

(Entra)
MARGARIDA (desvairada, envolve-se no cobertor, voltando-se para a parede)
Jesus, vê-los lá vem! Que horrendo fim!
FAUSTO (mansinho)
Não tremas.
Não grites; sou eu; venho arrancar-te as algemas
salvar-te.

MARGARIDA (arrastando-se para Fausto)
Se és acaso um ente humano, e pode
tocar-te um mal extremo, ao meu martírio acode!

FAUSTO
Silêncio! O teu clamor acorda os guardas.
(Pega nos grilhões para os abrir.)
MARGARIDA (de joelhos)
Não!
Não! Quem te deu licença, algoz, de me pôr mão?

Antes da meia noite! É cedo. Tem piedade!
Um pouco mais de vida! Espera a claridade!

(Levanta-se)
Sou tão nova, tão nova! Hei-de morrer tão nova?
Meu Deus! diz que sou bela, e vou por isso à cova.
Ai! qu’é do meu querido? antes sempre ao meu lado,
e agora tão distante? a c’roa do noivado
desmanchou-se-me; o pó sumiu-lhe as tristes flores.

(Fausto forceja para a levar)
Larga-me os pulsos, larga! «Acrescentar-me dores,
selvagem! para quê? fiz-te algum mal? até
nunca te vi.

FAUSTO
Que transe!
MARGARIDA
Estás-me aqui ao pé;
bem vês que te não fujo. É mister que amamente
primeiro o meu menino, e depois o adormente,
que toda a santa noite a levámos de vela,
a criancinha a rir-me, e eu a afagá-la a ela.
Para me atormentar, furtam-ma, e agora teimam
que a matei eu! Vê, vê, co’as penas que me afreimam
se posso nunca mais ter hora de alegria?
Até já pela rua (olha que tirania!)
cantam a Margarida; a moda é moda antiga,
mas comigo é que entende a letra da cantiga.

FAUSTO (caindo em joelhos)
É ele, o amado, o teu, que te ora de mãos postas
ajoelhado a teus pés, que o sigas, que dês costas
a este infame horror.

MARGARIDA (ajoelhando ao lado dele)
Oh sim; ajoelhemos.
Nos céus mora a piedade; os santos invoquemos.
Vê, ouve lá por baixo o inferno em fúria, a sanha
com que o espírito mau o fogo eterno assanha!

FAUSTO (em voz mais alta)
Margarida, repara! Atende, Margarida!
MARGARIDA (atenta)
Ouvi-lhe a voz... Chamou-me... Onde está?
(Caem-lhe os grilhões e as algemas)
Desprendida!
Já o posso abraçar; já posso neste peito
senti-lo palpitar no abraço mais estreito.
Chamou-me. Vi-o ali. Todo o motim do inferno
a escarnecer-me em coro, e a blasfemar do Eterno,
não lhe encobriu a voz; reconheci-lha; disse
Margarida! e era a mesma, a mesma na meiguice.

FAUSTO
Sou eu.
MARGARIDA
És tu?! Repete-o.
(Tacteando-o)
És; és; já não duvido.
Ficai-vos, meus grilhões, meu cárcere insofrido!
Vens salvar-me: estou salva e livre... Espera!... aqui
é (se a não reconheço?!) a rua em que eu te vi
pela primeira vez; a porta além diviso
que entra ao quintal da Marta, ao nosso paraíso.

FAUSTO (forcejando para que saiam)
Vem, vem! Segue-me!
MARGARIDA
Espera. É tão grande a alegria
que estou sentindo aqui na tua companhia!

(Afagando-o.)
FAUSTO
Se teimas em ficar, perdemo-nos.
MARGARIDA
Já vejo
que tudo lhe esqueceu: pois nem sequer um beijo?
Não me entendo! a abraçar-te e inda aflita! Mas dantes
quando o teu falar terno, os teus olhos amantes
me envolviam de céu, beijavas-me; um beijar
como quem me queria em beijos sufocar.
Beija-me, ou beijo-te eu.

(Beija-o)
Que lábios! que regelo!
que mudez! Tanto amor, pudeste-me esquecê-lo?

(Vai-se afastando dele)
FAUSTO
Vem! Segue-me, querida! Anima-te! Protesto
que ardo por ti, mas sai deste lugar funesto!
Nada mais te suplico. Anda comigo.

MARGARIDA (encarando-o, indecisa)
Creio...
mas não sei se és o mesmo. Afirma-mo! Receio

FAUSTO
Sou, sou; fujamos!
MARGARIDA
Bom. Tens-me desalgemada.
Senta-me no teu colo!... Estou maravilhada
de me olhares sem tédio. Ignoras por ventura
quem seja esta mulher, a quem vens dar soltura,
meu amigo?

FAUSTO
Vem, vem! Já rompe a alva.
MARGARIDA
A mãe
matei-a; a criancinha afoguei-a também...
mas não era só minha, era tua igualmente;
para os dois, é que Deus a dera de presente;
sim, também para ti...
Mas, fala-me sincero:
és na verdade o mesmo? ou será sonho? Quero
sentir nas minhas mãos a tua mão querida.

(Toma-lhe a mão)
Enxuga-a! que lentor!
(Encarando fitamente na mão)
De sangue vem tingida!
Justos céus, que fizeste? Embainha essa espada!
Pela cruz to suplico.

FAUSTO
O pretérito é nada.
Matas-me.

MARGARIDA
Não te hás-de ir, antes de satisfeito
o que aos mortos se deve, e exige pronto efeito,
e amanhã já. Repara! Importa que to explique:
No principal sepulcro a mãe; meu mano fique
logo ao pé dela. A mim, talha-me a cama fria
mais longe, mas, por Deus, não longe em demasia.
Ao meu seio direito, o nosso pequenino
muito aconchegadinho; e mais, só determino
que junto a mim, ninguém. Por suma glória tinha
jazer-me ao pé de ti; foi outra sorte a minha.
Como que sinto um braço a empuxar-me invisível
para ti... de ti outro a repulsar-me horrível.
E mesmo assim és tu, que me olhas tão piedoso.

FAUSTO
Pois se vês que sou eu, se vês que te amo, e ouso
salvar-te, é vir comigo, e já.

MARGARIDA
Lá para fora?
FAUSTO
Sim, sim, para o ar livre.
MARGARIDA
Ai, não, não. Nesta hora
anda por lá a morte à minha espreita. Escuta!
Avizinha-se; fico; e espero-a resoluta.
Não movo pé daqui senão para a jazida
onde nunca se acorda, e todo o mal se olvida.
Adeus, e para sempre, amado Henrique! Parte!
Vive!... Não poder eu agora acompanhar-te!

FAUSTO
Podes, queira-lo tu. A porta está patente.
MARGARIDA
Não me é dado sair. Perdida totalmente
a esperança! Fugir! E para quê, se eu sei
que me alcançavam logo? oh! não, não fugirei.
Achavas que era dita andar de terra em terra
a mendigar o pão, comigo própria em guerra?
sempre em sustos? Quem foge a tantos mil espias?

FAUSTO
Bem; morrerei contigo, uma vez que aporfias.
MARGARIDA
Vem! Corre! Dá-te pressa!
Acude ao teu filhinho!
Sabes? a via é essa,
que borda o ribeirinho.
Remonta-lhe a corrente!
Corta-o na ponte! Dás
num matagal em frente!
À esquerda encontrarás
o açude de um moinho...
É lá, é lá,
que inda boiando está
o inocentinho.
Vai, salva-o, que és seu pai!
vai! vai!

FAUSTO
Deliras, Margarida! Ah! torna em ti! Desperta!
Decide-te! Um só passo, ó cara, e estás liberta.

MARGARIDA
Oh! quem já me dera passado este monte!
A mãe lá em cima diviso sentada
na penha escalvada, que fica defronte!
Que mão regelada as tranças me aferra!
Não posso; fujamos; assombra-me; aterra
ver sempre defronte a mãe assentada
na penha escalvada no cimo do monte.
Meneia a fronte,
sem que me veja.
Não pestaneja.
Que ar de quebranto!
Se dormiu tanto!
Dorme, e jamais há-de acordar:
adormeceu para deixar
o nosso amor em liberdade.
Gostos da minha mocidade,
quão breve tínheis de acabar!

FAUSTO
Já que és surda à razão, e às súplicas do amor,
levo-te à força.

(Deitando-lhe as mãos.)
MARGARIDA
Pára! Afasta-te! Ousas pôr
mãos violentas em mim? Neguei-te eu nunca outrora
nada do que é devido àquele a quem se adora?
FAUSTO
Doce amor da minha alma, é dia; vês? é dia.
(Apontando-lhe para as grades da janela)
MARGARIDA
Vejo; o meu derradeiro, o mesmo que devia
sagrar o nosso enlace.
Esconde a toda a gente
que estiveste comigo.
Adeus eternamente,
pobre coroa minha!
Hajamos esperança
de tornar-nos a ver, mas não será na dança.
... Em cada rua povo! e povo! e povo! a praça
apinhada em silêncio; o juiz que espedaça
a vara, e aos pés ma atira! aquilo é o campanário,
que lá me está chorando o dobre funerário!
Tomam-me; atam-me as mãos; chegam-me ao cepo, sente
cada um no seu colo o golpe ao meu pendente...
Acabou-se o universo.

FAUSTO
Antes não ter nascido
se tinha de ver isto: ela, assim! eu perdido!


CENA II

MEFISTÓFELES da parte de fora da grade, os DITOS
MEFISTÓFELES
Perdidos, se exauris em frases e terrores
o instante de escapar.

(Entra)
Os nosso corredores
escarvam d’impaciência. A manhã rasga.

MARGARIDA (com grande terror)
Aquilo
que surde além do chão... quem é?! Vai despedi-lo,
Ele, ele! que me quer! Tenta levar-me! Ousado
vem-me inda perseguir neste lugar sagrado!

FAUSTO
Viverás!
MARGARIDA (pondo os olhos no céu)
Juiz Sumo, a ti me entrego.
MEFISTÓFELES (a Fausto)
Vem,
ou deixo-te com ela. Escolhe!

MARGARIDA
Sumo Bem,
Pai meu, que estás nos céus, salva-me, que eu sou tua
Santos Anjos de Deus, levai-me à vista sua!
Henrique, horror a ti minha alma purifique!


CENA III

Abre-se por cima o Empíreo. CORO DE ANJOS e OS DITOS
MEFISTÓFELES
Sentenciada!
CORO DE ANJOS
Salva!
MEFISTÓFELES (apossando-se de Fausto e levando-o consigo)
És meu.
MARGARIDA (já nas alturas, para onde tem ido subindo)
Henrique! Henrique!

FIM DO POEMA



NOTAS
[Do tradutor]

* Título da obra – FAUSTO – Este personagem extraordinário, misto de história e lenda, e trinta vezes tratado antes de Goethe por escritores alemães, ingleses, e franceses, já em crónicas, já em dramas, já em romances, parece ter vivido na segunda metade do século XV, e (conforme a opinião mais aceita) nas cercanias de Weimar, que foi a terra adoptiva do nosso poeta.
São todos concordes em pintar Fausto como homem versado em todos os conhecimentos do seu tempo, inclusivamente na magia, e o qual, com ânsia de saciar as suas ambições, fizera doação da sua alma ao diabo, para este o servir em tudo por decurso de vinte e quatro anos. Estes vinte e quatro anos, levou-os ele sem envelhecer na mais desonrada vida; até que, findo o prazo fatal da escritura assinada com o seu sangue, o diabo, que em tudo o servira pontualmente, o levou consigo para os infernos.
Aí está o que desde a puerícia de Goethe, lhe trabalhava no espírito, e lhe namorava o talento, desde que vira pela primeira vez, num teatro de títeres, a mais que popularíssima, plebeia representação, das aventuras do doutor João Fausto. E à fé que havia naquelas descomunais narrativas matéria, que, sendo tratada por um talento de primeira plana, não podia menos de cativar fortemente a atenção de todo o género de leitores. Ousou Goethe cometê-lo; e saiu-se realmente com a mais famigerada de todas as obras fantásticas; um livro sobre que se podem escrever muitos de fácil e justa crítica, mas que é ao mesmo tempo um tesoiro abundantíssimo, no qual, segundo a expressão de uma grande filosofa, se encontra tudo, e algumas coisas mais.
Apesar de se haver saído triunfalmente de tal façanha, a ambição do poeta ainda de si para consigo se não dava por satisfeita. Muitos anos depois, e bem entrado já na velhice, retomou o assunto donde o tinha deixado, e compôs o seu novíssimo Fausto.
Nesse, se a linguagem, se a riqueza lírica, icem (segundo afirmam tedescos) quilates ainda mais subidos, força é confessar que já o primitivo vigor se não encontra; e as extravagâncias absurdas são muito mais repugnantes ao bom senso; razão porque não empreendemos traduzi-lo.
Quem ler atentamente a vida de Goethe descobrirá sem dúvida, que o especial interesse que ele achou no Fausto provinha da muita semelhança que havia entre o espírito e génio do cantor e do cantado: avidez insaciável de saber; tendência inata para o maravilhoso, para o misticismo, e ao mesmo tempo para o cepticismo, para a cabala e para as ciências ocultas; frenesi de gozar sensualmente, e orgulho sem limites.
Isto não é decerto uma apoteose; mas vale mais do que se o fosse: é uma verdade.
* – DIÁLOGO PRELIMINAR. – Sob este titulo encerrou o autor, não sabemos se o seu credo poético, se uma apologia, ou, pelo menos, desculpa antecipada das novidades da sua tragédia, se uma curiosa sátira do teatro alemão.
Quer seja alguma destas coisas, quer o complexo de todas elas, como é mais provável, esta cena preambular é inegavelmente escrita com talento e graça, e não deixa de oferecer a espíritos meditativos alguns princípios literários de grande alcance.
* – MEFISTÓFELES. – Nome, que (segundo a sua etimologia grega) parece significar inimigo da luz. Assim se chamava o demónio de Fausto nas antigas lendas alemãs; donde Goethe o fez passar para a sua tragédia. Diz Philarète Chasles: On assure que le Baron de Merk, ami de Goethe, a posé pour Méfistofélès.
* – NOSTRADAMUS. – Miguel de Nostre Dame, conhecido pelo nome alatinado de Nostradamus era um cristão novo, procedente de família da tribo de Issachaar. Nasceu em S. Remígio na Provença.
Dos desta tribo lê-se nos Paralipomenos: De filiis quoque Issachaar viri eruditi, qui noverant omnia tempora. Bem pode ser que esta sentença do Antigo Testamento actuasse no miolo do homem, para se meter em presunções de descobrir passados e revelar futuros, sestro em que também deram depois dele outros seus parentes. Como quer que seja, este Miguel Nostradamus adquiriu grande nomeada de curandeiro e adivinhão, com dez centúrias de quartetos disparatados, com versinhos daquém e dalém-metro, tudo em estilo sibilino, e nos quais, como os nossos sebastianistas nas profecias do Bandarra, os crendeiros enxergavam, cada um o que lhe fazia conta, ou que desejava se realizasse.
Deste orate explorador da simpleza do próximo do seu tempo existe impresso um tratado de astrologia. É provavelmente esse o livro que o doutor Fausto consulta; ou então algum outro, que o poeta lhe atribua, e que ficaria inédito. Sobre os seus vaticínios compôs um curioso o seguinte dístico:
Nostra damus, quum falsa damus; nam fallere nostrum est.
Et, quum falsa damus, nil, nisi nostra, damus.
* – CORO DE ANJOS (não vistos do espectador). – A Baronesa de Stael, relatando na sua prosa, que desbanca a muitas poesias, o drama Fausto, acode aqui com uma plausível explicação dos cantares que dissipam no ânimo de Fausto a resolução do suicídio, quando a taça do veneno ia já caminho dos lábios. Todos estes cantares, diz ela que chegam da igreja vizinha. O autor esquecera-se de o declarar; com o que pouco explicável ficou, e escusadamente sobrenatural, que o filósofo, e bem assim os espectadores, pudessem ouvir tais coros. Entendemos portanto dever perfilhar, como fizemos, a discreta correcção da eminente escritora.
* – CENA III – As diatribes contra as ciências, blasonadas por Mefistófeles, saem das próprias convicções do autor. Este, depois de cursar a Universidade de Leipsick saiu desenganado da lógica, da teologia, da jurisprudência, da medicina, e dos mais estudos, que todos lhe pareceram imperfeitos, incompletos, e falazes; logomaquias impostoras mais, que verdadeiros conhecimentos.
* – QUADRO VII – Oiçamos a Baronesa de Stael acerca desta cena:
«Tem esta feiticeira ao seu mando uns animais meio macacos meio gatos. Esta cena pode a alguns respeitos haver-se em conta de paródia das feiticeiras na tragédia Macbeth de Shakespeare. As feiticeiras de Macbeth cantam palavras misteriosas, a que basta o seu soído descomunal, para fazerem impressão de sortilégio. As feiticeiras de Goethe proferem, não menos, palavras insólitas, abundantemente rimadas com artificiosa indústria. Estas palavras dispõem para que se folgue, até em razão do como vem extravagantemente construídas; por onde o diálogo, que a ser em prosa não passara de burlesco, assume índole mais alta pelo condão da poesia.
«Quem ouve as falas cómicas daqueles gatos-macacos, cuida estar descobrindo quais seriam as ideias dos animais, se eles as pudessem expressar, e que impressões toscas e ridículas lhes produziriam a Natureza e os homens. Em dramas franceses pode dizer que não há exemplo de pilhérias assim, assentes no maravilhoso, portentos, feiticerias, transformações, et reliqua; um brincar com a natureza assim como na comédia de costumes se brinca com o homem. Mas para se achar graça no cómico desta espécie, não se lhe há-de aplicar o raciocínio: é tomar os recreios da fantasia como um passatempo livre e sem alvo. Pois mesmo assim, passatempos tais não são fáceis, porque das barreiras se fazem muitas vezes arrimos; e quando alguém em coisas de literatura se entrega a invenções sem termo, só a exorbitância e o rapto do talento é que lhe podem dar algum mérito. Consorciar extravagância com medíocre ninguém o perdoaria.»
*Na caverna da feiticeira, o caldeirão. – O caldeirão desta feiticeira está bem longe de desbancar ao das feiticeiras do grande Shakespeare no acto 4.° do Macbeth. A caverna mágica do poeta inglês e o que nela nos aparece é de muito mais subido quilate poético, sem que pretendamos com esta confissão abater o merecimento de Goethe. Para baixo de Shakespeare há ainda inumeráveis graus de talento gloriosos e invejáveis.
(*) Raça atravessada de mono e gato, segundo Madame de Stael na sua análise ao Fausto. [Nas fontes digitais, esta nota está colocada no corpo do texto. NE]
*Par de corvos. – Corvos são acessórios com que se pinta o diabo na mitologia do Norte.
* – MARGARIDA. – Este nome parece não ter sido tomado ao acaso. Margarida se chamava a primeira amada de Goethe, e amada com verdadeira paixão.
*Noite de Santa Valburga. – Santa Valburga ou Valpurga (Walpurg em alemão) é figura de vulto no calendário dos católicos alemães; e não só lá, mas também em Inglaterra, na Holanda, na Bélgica, e em muitas terras de França, onde o povo lhe transtorna o nome de modos vários: Vaubourg, Gauburge, Gualbourg, Falbourg, e Avaugour. Foi abadessa de Heidenheim na Baviera, e faleceu no ano de 779, ou antes 780. A sua festa era geralmente celebrada no 1.° de Maio.
A véspera ou vigília de Santa Valburga era de grande festança popular em Heidenheim. Por isso talvez é que o poeta se lembrou de chamar a esta balbúrdia de feiticeiras, duendes, e trasgos, Noite de Santa Valburga, sendo que a bem-aventurada nada tinha com bruxas nem demónios; assim como iam bem entre nós a véspera de S. João foi sempre famosa pelas moiras encantadas, vaticínios de amores, passagem pelo vime, virtudes das orvalhadas, etc.; coisas que nunca nem pela ideia passariam ao Santo do deserto, apesar de profeta.
Muito bem nota o tradutor italiano Maffei, que o poeta alemão, como protestante que era, intitulou isto Noite de Valburga e não de Santa Valburga, segundo é costume entre os católicos.
O importante, e o que faz ao nosso propósito é que na noite de 30 de Abril para o 1.° de Maio os camponeses, no pressuposto de que as feiticeiras andam por essas horas escuras fazendo invisivelmente as suas procissões e correrias pelos campos, giram com archotes e aos tiros por toda a parte, a ver se as disturbam e afugentam.
*Do espantoso Mamon. – Mamon ou Mamona divindade de origem assíria, segundo se crê, é nomeado no Novo Testamento como demónio das riquezas ou como sinónimo delas.
Ninguém pode servir ao mesmo tempo a Deus e a Mamona diz o texto. Razão teve logo o poeta para conferir a tal génio uma espécie de presidência sobre as inferneiras da véspera de Santa Valburga.
Não deixa de ser curioso o pequeno artigo de Bluteau no vocabulário acerca de Mamona.
* É o senhor Dom Fulano
Quem preside ao nosso arcano.

Fulano pareceu a melhor tradução do nome Urian posto por Goethe e convertido pelo tradutor francês em Belial, pelo Sr. Maffei em Uran, pelo Sr. Ornellas em Uriante.
A palavra alemã não é nome próprio, empregam-na quando querem suprir com um termo genérico um nome que ou não ocorre ou por qualquer motivo se pretende ocultar, assim como entre nós se diz fulano ou sicrano, e fuão se dizia entre os nossos passados.
A repugnância que muitos sentem a proferir diabo, Lúcifer, Satanás, etc., tem ocasionado no povo o costume de o designarem por diversas alcunhas: o cão ou perro tinhoso, o careca, o Pero de Malasartes o inimigo, o tentador, o maldito, o atiça, o canhoto, o Pero Botelho, etc., etc. Pareceu-nos, atento tudo isto, e considerando que as bruxas o não quereriam injuriar, que a designação de fulano vinha em tudo de molde para verter o Urian.
*Uma roda de velhos. – É natural que nestes cinco velhos o autor aludisse satiricamente a pessoas do seu tempo.
* – BRUXA BELFURINHEIRA – Há quem presuma que a pregoeira de monstruosidades, perfídias e infâmias simboliza a Imprensa desaforada.
*Lilita. – Pareceu-nos que o nome assim escrito saia melhor para o português que Lilit. O que ainda não conseguimos entender é a razão de se ter assim trocado o nome de Eva bem como o dizer-se que fora ela a primeira mulher de Adão. Se graça é isto que o poeta põe na boca do pai da mentira, fria graça nos parece.
Andaria aí alguma alusão à Lili, por quem o poeta nos conta nas suas memórias ter andado perdido de amor? A ser isso, o trecho para ele e para ela poderia ter algum sentido talvez: para os mais ficou enigma indecifrável.
Como disparates se podem sem dispensa casar entre si, não pusemos dúvida em aplicar ao primeiro homem o apelido de Barros e à primeira mulher o de Costa, destemperado joguete de palavras que nos lembra ter encontrado nas facécias do poeta cabeleireiro António Joaquim de Carvalho.
* – ÁUREAS NÚPCIAS DE OBERON E TITÂNIA; INTERMESSO. – Por este próprio título se reconhece que o autor tinha presente ao espírito, quando compôs este quadro intercalar, o curiosíssimo e formoso drama Sonho de uma noite de S. João, de Shakespeare.
Dos epigramas satíricos enfiados neste comprido ramal diz um comentador o seguinte: haviam eles sido na primitiva feitos para saírem no Almanaque das Musas, do ano de 1798, de Schiller, para complemento, e se não complemento, continuação dos xénios que haviam saído no Almanaque do ano anterior; não saíram porém então a lume, em razão de ter o Schiller assentado em dar de mão a polemicas literárias, ocasionadoras que sempre são de dissabores e arrependimentos, e miserabilíssimo desperdício das horas de oiro.
Amis, ce temps qui fuit peut nous rendre immortels!
Não sofria a Goethe o coração, depois de ter forjado, brunido, e ervado tantas frechas, perder-lhes assim o feitio; tornou a aperfeiçoar nelas, e cá as embutiu como pôde no seu Fausto.
*Miedingue. – Escrevemos em português Miedingue em lugar de Mieding, que era o verdadeiro nome do alemão. Dele diz em nota o nosso laborioso predecessor na tradução do Fausto, o Sr. Agostinho de Ornellas, o seguinte: «João Martinho Mieding era director do cenário no teatro da corte em Weimar. Chamava-lhe Goethe, em razão da sua habilidade, o director da natureza
*De oiro se chama o casamento. – Inegavelmente a ideia originária destas Áureas núpcias pertence, como já tocámos, a Shakespeare. Da mesma fonte procedeu também provavelmente o Oberon de Wieland, donde adveio à nossa poesia o mais agradável dos escritos de Filinto Elísio.
*Cá vem Róbim desengonçado. – Este Puck, Robin, Róbim, Robino, ou como mais acertadamente se possa chamar, é um trasgo brincalhão, pertencente à corte do rei dos génios Oberon, e filho também do fecundo espírito de Shakespeare. Se quereis ver o diabrete retratado por si mesmo, ouvi-o no drama do seu ilustre progenitor. Fala assim:
Sim, o tal sou que leva à tuna
a noite em peças; por fortuna
consigo às vezes distrair
El-Rei meu amo, e faço-o rir.
Vejo um cavalo sossegado,
de boa fava arraçoado,
dou-lhe de longe o meu relincho
de égua amorosa; é logo um pincho,
e orelha fita. Encontro a Brázia,
comadre séria, ancha e durázia,
que está co’o olho na bebida,
faço-me, zaz! maçã cozida
dentro na malga ocultamente;
põe-se a beber; vou de repente,
filo-lhe o beiço. A velha fula
pula; a cerveja com ela pula;
verte-se, e toda se desata
pelas beiçolas e barbela
rugosa, flácida, amarela
dela; não há, não há cascata
de tanta graça como aquela!
Austera avó para contar
um caso atroz de arrepiar,
quer-se assentar na tripecinha
que ao lado enxerga, e em que eu me tinha
mudado adrede; eu fujo, e truz!
sentou-se no ar, cai de chapuz!
fica no chão amesendada;
salta-lhe a tosse; quer surgir,
tosse cresce; está danada;
tudo doido! a rir! a rir!
* – ARIEL. – Também este Ariel, génio músico, é, assim como o Puck, filho legitimo de Shakespeare, que no drama da tempestade o pôs ao serviço do feiticeiro Próspero.
* – ESPIRITINHO (que se está formando). – Aqui dizem ter sido a intenção do autor meter a bulha os poetas do género chamado vaporoso, que por esses tempos formigavam em Alemanha, e cuja raça tanto se propagou por toda a parte, que não leva jeitos de acabar. O chiste da pintura, poderá ser muito, mas o tradutor confessa que ainda não cai nele. Será porventura aquilo paráfrase, ou paródia, ou reminiscência vaga, dos primeiros versos da Epístola de Horácio aos Pisões até
.......nec pes nec caput uni
redatur formæ?
* – PARZINHO. – Uns querem ver nesta copla um busca-pé atirado ao Wieland por causa do seu poema Oberon Outros fundando-se talvez no termo parzinho, conjecturam que o remoque satírico recai nos poetas e músicos das dúzias, que, sem talento nem inspiração, se consociam para aborrir e adormentar o próximo.
* – VIANDANTE CURIOSO. – Fantasiam que o alvo desta frechada de Goethe bem poderá ter sido Nicolai, que não podia levar à paciência coisa que cheirasse, nem por longe, a superstição ou misticidade.
* – ORTODOXO. – Tinha Schiller publicado o seu poemeto dos deuses da Grécia; suscitou-se grave escândalo entre os teólogos alemães; tomaram a ode em trambolho, e apodaram de ímpio (nada menos) ao poeta. A essa desavença é que afirmam aludir-se no quarteto.
* – PURISTA. – Anotando este passo, diz o tradutor italiano o Sr. Andrea Maffei:
«O purista representa Joaquim Henrique Campe, que em pontinhos de vernaculidade era cheio de escrúpulos, e que, pelo seu amor ao purismo não punha dúvida em despojar a língua dos termos mais necessários e já consagrados pelo uso».
* – CATA-VENTO. – Traduzamos também aqui o comentário do Sr. Maffei:
«Parece que o poeta, com este seu cata-vento, quererá aludir aos irmãos Stolberg, os quais na mocidade se tomaram daquela inclinação para a independência, que andava em moda por esse tempo; e pressupondo (com Rousseau) que o homem devia tornar-se para o primitivo estado natural, tinham para si que se haviam de desprezar todos os respeitos mundanos; mas de repente, eis que os nossos dois Condesinhos renegam este culto encarecido da natureza, e tomam pelo rumo inteiramente contrário».
* – XÉNIOS. – Xénios (e não xénias) se chamavam os presentes que o dono da casa dava aos seus convidados, depois do festim, ou lhes mandava a casa no dia seguinte, e que em geral consistiam em comestíveis de regalo.
Deste costume, que os romanos tomariam dos gregos, se originou o titulo que Marcial pôs ao livro XIII dos seus epigramas; assim como do livro XIII dos epigramas de Marcial proveio sem dúvida o ter Schiller baptizado com o nome de xenios uma colecção de quatro centos dísticos satíricos, que publicou em 1797 no Almanaque das Musas; com esta notável diferença porém, que em vez de serem mimos para o paladar, os seus epigramas eram azedos e envenenados. Os autores de pouco mérito, e as doutrinas falsas e destemperadas desse tempo, tiveram ali o seu peloirinho.
Nestes xénios do Schiller já o seu amigo Goethe tinha colaborado; o que, apesar de ter saído anónimo o opúsculo, foi para logo adivinhado pela opinião pública.
O mais que na matéria poderíamos aqui dizer, já lá o tocámos na nota ao titulo das Áureas núpcias.
* Pág. 399, lin. 16 – HENNINGS. – Este é Augusto Adriano Frederico de Hennings, um dos atassalhados nos xénios de Schiller e Goethe. Era camarista do Rei de Dinamarca. Fundou e redigiu o periódico Génio do século, e nele invectivou com acrimónia os autores dos xénios, como desonradores da musa, escrevedores de trivialidades, e gente maligna. Dizem os imparciais, que lhe não faltava razão para o afirmar.
* – MUSAGETE. – Outra vez em cena o mesmo Hennings. Designa-se aqui por Musagete, que vale tanto como dizer condutor das Musas, em razão de ter sido ele o redactor de um jornal intitulado As Musas e as Graças.
* – EX-GÉNIO DO SÉCULO. – Ecce iterum Chrispinus; outro encontrão no pobre Hennings.
* – VIANDANTE CURIOSO. – Nova alusão a Nicolai, autor de uma viagem pela Europa escrita com o propósito assentado de descobrir e denunciar jesuítas. Vê-los em todos, em tudo, e por toda a parte era a sua mania; por onde já os alemães o alcunhavam, Jesuitenriecher (farejador de jesuítas).
* – GROU. – Por esta alcunha costumava o poeta designar um Lavater, grande místico, nessa parte o antípoda do farejador de jesuítas.
* – MUNDANO. – Diz o Sr. Maffei que neste quarteto o poeta se representou a si mesmo na figura do Mundano. Pouco verosímil nos parece isso, e mais fácil cortar fundo nos outros do que arranhar homem em si próprio.
* – DOGMÁTICO. – O Dogmático, o Idealista, o Realista, o Semi-naturalista e o Céptico são representantes das diversas escolas filosóficas em que a Alemanha andava dispartida no tempo do poeta.
* – CÉPTICO. – Anotando o dito do céptico, escreveu um tradutor francês o seguinte:
Na estrofe alemã o chiste está num joguete de palavras, que não era traduzível. Teufel, diabo, e Zweifel, dúvida, são termos uníssonos, e por isso o céptico se acha no inferno, não por ser a dúvida consentânea ao diabo, mas sim porque o diabo e a dúvida rimam.
À vista disto pôs o mencionado tradutor francês o seguinte:
Courant après maints feux follets,
Chaqu’un voite de l’or dans du sable;
Puisque le doute sied au diable
Ici je demeure, et m’y plais.
O Sr. Maffei pôs:
Van seguendo fiammele, ed al tesoro
Vicini si prosumono costoro:
Nel mio seggio stò qui, pero che fanno
«Dubio» e «diavolo» rimi in allemano.
Esta cláusula do in allemano é que não ocorreu ao Sr. Agostinho Ornellas, e, por isso ficou tão confusa a sua quadra:
Seguem das chamas o rasto
cuidando o tesoiro achar;
«diabo» rima com «dúvida»;
aqui estou no meu lugar.
O terceiro verso desta quadra ainda assim não é tanto para estranheza como poderia parecer a quem não soubesse ao verbo rimar senão a sua acepção usual. Vejam-lhe a outra no dicionário de Moraes.
Quanto a nós, entendemos que não valia a pena de grandes trabalhos, para conservar tão pequenina pedra de sal; e preferimos dar aproximativamente o pensamento, que é o nosso descarte do costume em apertos semelhantes.
* – SÓLIDOS. – Presume o Sr. Maffei que estes sólidos vem a ser os homens das revoluções, os quais tendem aos seus fins sem se importarem com os obstáculos que no caminho encontram.
*Campo. Dia enuviado. – Esta cena vem no original escrita em prosa; porquê? O tradutor, que não aventa solução possível a tal pergunta, passou-a para verso e entende que ela o merecia. O mais que pôde fazer, para observar até nisto um longe de fidelidade, foi abster-se de rimas e empregar só decassílabos, enfim arremedar, como quer que fosse, a prosa.

FIM.


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