"Foi entre a preparação de caldos e guisados que as mulheres começaram a praticar o trabalho de laboratório, desenvolvendo uma série de produtos que, posteriormente, foram utilizados por médicos e botânicos",
diz cientista (repr.de tela de Hendrik Valkenburg)
16/11/2011
Por Elton Alisson
– A cozinha franqueou a entrada das mulheres no laboratório científico – o marco da ciência moderna que se transformou em um espaço eminentemente masculino, onde algumas delas se destacaram a duras penas em áreas que até então não atraiam a atenção dos homens.
A avaliação foi feita por Ana Maria Alfonso-Goldfarb, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, na penúltima edição do Ciclo de Conferências Ano Internacional da Química – 2011, realizada em 9 de novembro no auditório da FAPESP com o tema
“A contribuição de Marie Curie
para a ciência e um olhar sobre o papel
das mulheres cientistas”.
De acordo com Goldfarb, foi por meio da habilidade de atear e controlar o fogo para preparar os alimentos – considerada uma atividade difícil e propriamente feminina – que as mulheres ajudaram a desenvolver até meados da Idade Média uma série de produtos. Entre eles estão os primeiros destiladores, extratos, além de perfumes, medicamentos, pomadas e licores.
“A cozinha
era um espaço restrito
para a maioria das mulheres.
E foi entre a preparação de caldos e guisados que elas começaram a praticar o trabalho de laboratório desenvolvendo uma série de produtos que, posteriormente, passaram a ser utilizados por médicos e botânicos, na maioria das vezes se apropriando das descobertas femininas e não lhes atribuindo o devido crédito”, disse.
Segundo a pesquisadora, foi entre os séculos 16 e 17, quando o prelo se tornou importante e aumentou a circulação dos livros, que a “medicina da cozinha” ou “química das damas”, como foi denominado esse trabalho realizado pelas mulheres nos laboratórios-cozinha da época, ganhou maior importância.
Algumas delas, que tinham mais posses ou importância social, começaram a publicar livros com seus nomes. Uma delas foi a rainha Henrietta Maria (1609-1669), da Inglaterra, que financiou a edição do livro The Queen’s Closet Opened.
Entretanto, essa fase, que durou entre 50 e 60 anos, acabou justamente no momento em que surgiram os laboratórios, que marcaram a ciência moderna.
“Como decorrência desse fato,
as mulheres começam a voltar
discretamente para a cozinha”,
disse Goldfarb.
Já no século 18 surgiram os grandes salões literários, onde as mulheres ditaram o tom. Porém, de acordo com a pesquisadora, elas não tinham acesso às sociedades científicas ou aos grupos restritos de cientistas da época, onde a ciência, de fato, era feita.
Em função disso, são raros os exemplos de mulheres que conseguiram ter algum destaque, ainda que superficial, na ciência realizada nessa época. Alguns dos poucos exemplos são os da madame Émilie du Châtelet (1706-1749) e de Marie Anne Pierrete Paulze (1758-1836), a madame de Lavoisier.
Já entre os séculos 19 e 20 se iniciou o processo de educação científica feminina nos países saxônicos e anglo-saxônicos a conta-gotas, quando as primeiras mulheres conseguiram ter acesso aos colleges. Porém, a maioria que conseguia se formar acabava voltando para casa frustrada, por não conseguir trabalhar.
Como saída, algumas delas direcionaram suas carreiras para áreas que estavam passando por uma reformulação de bases ou emergindo, e que demandavam um trabalho fastidioso de cálculos e observações que não raro duravam meses. Entre essas áreas estavam a cristalografia, a astronomia e a radioatividade.
“Foram nessas áreas
que sobrou espaço para as mulheres
e nas quais elas foram recebidas,
porque tinham que ser abnegadas e dedicadas
para realizar um trabalho duro, pesado
e que repelia o sexo masculino”,
explicou Goldfarb.
Não por acaso, Marie Curie (1867-1934) se tornou a primeira mulher a ser laureada com o Prêmio Nobel de Química, em 1911, e o de Física, em 1903, que dividiu com seu marido, Pierre Curie (1859-1906) e com Antoine Henri Becquerel (1852-1908), justamente por suas pesquisas sobre radioatividade.
A filha da cientista polonesa radicada francesa, Irène Joliot-Curie (1897-1956), tornou-se a segunda mulher a ganhar o Nobel de Química, em 1934, com o marido Frédéric Joliot-Curie (1900-1958), pela descoberta da radioatividade artificial.
E as outras duas únicas mulheres que receberam o prêmio Nobel de Química, entre os 159 laureados com a honraria – a egípcia, radicada inglesa, Doroty Crowfoot Hodgkin (1910-1994) e a israelense Ada Yonath –, foram premiadas por pesquisas em cristalografia.
Marie Curie
De acordo com Goldfarb, além de Marie Curie, outras mulheres de sua época foram indicadas ao prêmio Nobel. Porém, a cientista francesa conseguiu se distinguir das demais e não se tornar mais uma “ilustre desconhecida” na história da ciência, além de sua genialidade, pela maneira como conseguiu projetar sua imagem.
“Ela era, de fato, talentosa,
abnegada, uma fábrica de ideias,
e soube potencializar isso como poucas mulheres.
Ela registrava tudo e sempre aparece nas fotografias da época
atarefada e compenetrada, observando
ou realizando experimentos”,
disse Goldfarb.
Além disso, Curie soube escolher os homens certos. O marido, Pierre Curie, que a conheceu na Universidade de Sorbonne, onde era professor de física, tinha uma enorme admiração por ela. E seu orientador, Becquerel, com quem o casal dividiu o Nobel de Física, era uma figura complacente, que facilitou muito o seu trabalho de pesquisa.
“Ela conseguiu penetrar
o núcleo duro da ciência da época, sem dúvida,
pelo trabalho, excelência e dedicação à pesquisa.
Mas, também, com muita estratégia”,
avaliou.
A cientista só conseguiu atrair a atenção de Pierre para suas pesquisas sobre radioatividade quando Gabriel Lippman (1845-1921), que era supervisor dela em Sorbonne, leu seu primeiro trabalho na Academia de Ciências de Paris, na qual ela não foi aceita como membro.
O trabalho só foi reconhecido e passou a ser discutido pela comunidade científica da época quando Pierre assinou juntamente com ela os resultados.
“Esse reconhecimento científico
só ocorreu quando se formou a figura do casal.
E esse fato tem uma relação direta com uma noção de gênero que havia na época, chamada de complementaridade sexual, que está relacionada com a longa história do isolamento da mulher das práticas laboratoriais”, disse Gabriel Pugliese, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), durante o evento.
Segundo Pugliese, por essa noção de gênero da época, o homem era vinculado à política, ao espaço público, enquanto a mulher estava restrita à esfera privada, aos trabalhos domésticos. Uma complementaridade de funções que está ilustrada na própria forma como Marie e Pierre Currie dividiram o trabalho de pesquisa sobre a radioatividade.
Enquanto Marie ficou encarregada de realizar os experimentos para purificar os elementos radioativos (o trabalho “doméstico”), Pierre foi incumbido de estudar as radiações emitidas pelas substâncias químicas (o trabalho de laboratório).
“Isso também tem relação com a noção de laboratório como cozinha, em que Marie Curie aparece como aquela que faz os experimentos, uma auxiliar do Pierre, enquanto ele faz o trabalho mais prestigioso de pensar e cumprir o ofício de chefe do laboratório, procurando recursos e estabelecendo relações com outros cientistas”, disse Pugliese.
“A intenção dos organizadores do Nobel,
na época, era premiar apenas Becquerel e Pierre,
mas esse último, ao saber disso, recusou-se a receber o prêmio
sem dividi-lo com Marie”, disse.
Homenagem à FAPESP
Durante a abertura da penúltima edição do Ciclo de Conferências Ano Internacional da Química – 2011, a FAPESP recebeu uma homenagem pelos seus 50 anos, que completará em maio de 2012, da Sociedade Brasileira de Química (SBQ).
A homenagem, feita na forma de uma escultura, criada pela artista plástica Sara Rosemberg, batizada de “Rosa dos ventos”, foi entregue por Vanderlan da Silva Bolzani, professora do Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e membro do comitê nacional de atividades do Ano Internacional da Química 2011, da SBQ, a Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP.
Cruz agradeceu a homenagem em nome da FAPESP e cumprimentou Bolzani pela organização do Ciclo de Conferências Ano Internacional de Química – 2011, além da comunidade de química do Estado de São Paulo e todos os pesquisadores da área pelo trabalho que têm realizado em prol da ciência brasileira.
“Muitas vezes lutando e vencendo
de forma imaginativa diversos tipos de obstáculos,
os químicos brasileiros vêm produzindo ciência
que é competitiva mundialmente em vários dos centros
de pesquisa que nós temos no Estado
de São Paulo e no Brasil”, disse.
Promovido pela Sociedade Brasileira de Química (SBQ) em parceria com a revista Pesquisa FAPESP, o Ciclo de Conferências Ano Internacional da Química – 2011 integrou as comemorações oficiais do Ano Internacional da Química, instituído pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a União Internacional de Química Pura e Aplicada (Iupac, na sigla em inglês).
O ciclo foi coordenado
por Bolzani e por Mariluce Moura,
diretora de redação de Pesquisa FAPESP.
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Li
Fonte:
Agência FAPESP
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