sábado, 9 de novembro de 2013

JUNG RESPONDE A JÓ - JÓ - Audio Livro



 
JÓ - AÚDIO LIVRO - BÍBLIA SAGRADA - PARTE1_xvid.avi -105min.
   
  
JÓ - AÚDIO LIVRO - BÍBLIA SAGRADA - 2_xvid.avi - 106min
Livro do Apocalipse - narrado por Cid Moreira - 173min.

Livro : Salmos - 537min 

Jung Responde a Jó

JUNG RESPONDE A JÓ 

Texto de Paulo Urban, 
publicado na Revista Planeta, edição nº 349, outubro/2001
Dr. Paulo Urban é médico psiquiatra e Psicoterapeuta do Encantamento
            Havendo certo dia os anjos apresentado-se diante do Senhor, e dentre eles Satanás, dirigiu-lhe Javé a palavra, fazendo-o notar seu servo Jó, homem íntegro, afastado do mal e incapaz de blasfemar. “Porventura Jó teme debalde a Deus?”, indaga Satanás, considerando que, cercado de bens como vivia, seria mesmo de se esperar que o abastado Jó nunca protestasse. 

Bastaria que Javé lhe tirasse a família, 
o conforto, a saúde, e o fiel logo estaria cuspindo em Sua cara. 

“Pois bem, responde-lhe o Senhor,
 tudo o que ele tem está em teu poder; 
somente não estendas tua mão sobre ele próprio”.
 E Satanás dali se foi (Jo 1,12), autorizado que estava a desgraçar o pobre homem. 
   
Livro de Jó (ilustr. Gianni de Luca)
Livro de Jó (ilustr. Gianni de Luca)
Escrito em prosa no séc. VI a.C., este é o prólogo do Livro de Jó do Antigo Testamento, de autor desconhecido, cujo estranho enredo vive a inquietar-nos.
O demônio arruina Jó completamente. Incita os sabeus e os caldeus a roubarem-lhe os bois e os camelos e a matarem seus escravos. Num incêndio, queima seu rebanho e seus pastores e, não satisfeito, o anjo maldito levanta um furacão no deserto, levando deste mundo os dez filhos de Jó. Este, resignado, não profere palavra contra Deus.
Livro de Jo - Gianni de Luca
Livro de Jo - Gianni de Luca
Satanás volta ter com Javé, mantêm-se os mútuos desafios, e o diabo obtém nova chancela divina para continuar atazanando Jó. Javé, dizendo-se seguro da integridade do representante de seu povo, negocia: “Pois bem, ele está em teu poder, poupa-lhe apenas sua vida”. (Jo, 2,6). E Satanás se exalta; faz arder em Jó, corpo inteiro, a lepra maligna. Mesmo assim, Jó não ofende seu Senhor. Mas, desta vez, senta-se para se coçar com um caco de telha, e solta impropérios, amaldiçoando o dia em que nasceu. 
Nesse ponto o texto estende-se sob a forma de hinos que confrontam a fala de Jó à de quatro amigos que vêm visitá-lo com intuito de ensinar-lhe a moral, criticá-lo, explicar-lhe o porquê de seus reveses. Sempre há farta amostra de pessoas moralistas deste tipo, e desgraças não faltam para vê-las em serviço.
Jo1. G. de Luca
Jó e seus quatro amigos - ilustração do italiano Gianni de Luca
Elifaz de Teemã diz que só os ímpios são castigados, e Jó lhe responde que seu castigo é bem maior que seus pecados; Baldad de Chua lembra que Javé é sempre justo, com o que concorda Jó, ressalvando que Ele não aflige só os maus; Sofar de Naama fala que Javé é o único sábio a ver toda injustiça, ao que Jó repete ser desproporcional o seu castigo. Sofar replica que a alegria dos ímpios é breve, mas Jó aponta a prosperidade de vários deles. Acusado de arrogância, apela para o testemunho de Deus. Eliú de Buz discursa exaustivamente, diz que só o sofrimento purifica o homem, até ser interrompido pela aparição do próprio Javé, saído de uma tempestade (influência do helenismo, cujo deus maior, Zeus, é Senhor dos Raios e Trovões), pronto a atender a súplica de seu servo inconformado.
Javé defende Jó, proclama sua inocência diante de seus quatro amigos, e repreende-os. Também interroga Jó sobre os mistérios da Criação, abusa de ironias, e cobra do infeliz uma resposta. Pasmo, Jó diz que se arrepende em nome do pó ao qual retornará, pede perdão e se retrata. Javé, sentindo-se vitorioso sobre Satanás, restitui então a Jô, em dobro, todos os seus bens; dá-lhe ainda novos filhos e o faz viver por mais 140 anos, para compensá-lo(!?).
Mas que Deus é este? 
 Ao contrário dos deuses gregos, Javé não tem genealogia. Criador absoluto do Universo, antes Dele, só havia o Nada. Zeus grego, pai da 3a geração divina, ao contrário, tem família: é filho de Cronos, neto de Urano. Por sinal, Zeus nada quer da humanidade; vez por outra fecunda uma mortal, cobra lá seus sacrifícios, joga seus raios sobre este ou aquele que o afronte, mas vive distante dos homens, regendo o mundo por instintos, lá do Olimpo.
Javé, por sua vez, é afetivo. Ciumento, faz da humanidade uma de suas maiores preocupações, decide o que é melhor para seu povo e, via de regra, assume um comportamento neurótico. Sela pelo arco-íris sua aliança com Noé, renova-a com Abrãao, daí com Moisés no monte Sinai, depois com Davi. Vale-se ainda de severos castigos coletivos com os quais tenta corrigir seu povo eleito, que insiste em ser teimoso, haja vista o episódio do Dilúvio, a destruição de Sodoma e Gomorra, e Sua inclinação para matar primogênitos, como lemos em Gênesis 22 e Êxodo 22,29. 
 Qualquer reflexão mais profunda nos prova: 
Javé não é o Summun Bonum, Ele tem também seu lado perigoso. 
O temente a Deus, treme de medo diante de sua austeridade!
Carl Gustav Jung
Carl Gustav Jung
Estranhamente, a figura de Jó expõe, de modo inequívoco, a frágil condição humana diante de uma inexplicável crueldade divina; complexo dilema sobre o qual se deteve o psiquiatra suíço Carl G. Jung, dedicando-lhe um profundo tratado, escrito aos 76 anos de idade, intitulado Resposta a Jó.
Jó parece ter vivido entre o tempo de Esaú e Moisés. Sua história foi escrita cerca de 200 anos antes dos Provérbios, onde, pela primeira vez, surge a figura de Sofia, a Sabedoria de Javé. Ela é a natureza feminina de Deus, que até então não havia sido sequer mencionada. Javé criou o mundo sem reconhecê-la, mas é a própria Sofia quem nos diz ter estado por toda eternidade ao lado Dele: 
“O Senhor me criou desde o princípio… 
ainda não havia abismo quando fui concebida”
 (Pro 8,22-24).
Prometeu Acorrentado (de Adam Nicolas Sebastien) no Cáucaso, castigado por Zeus por ter-lhe roubado o fogo sagrado, o qual entregou aos homens.
Prometeu Acorrentado (de Adam Nicolas Sebastien) no Cáucaso, castigado por Zeus por ter-lhe roubado o fogo sagrado, o qual entregou aos homens.
Sabedoria corresponde no cãnon bíblico à deusa Isthar dos Babilônios que, por sua vez, originou Ísis egípcia, ambas capazes de se apresentar sob a forma de árvore, seja o cedro, o carvalho, a oliveira etc… Gênesis alude a esta face desconhecida de Deus, disfarçando-a na serpente arbórea que corrompe o casal edênico. Isto porque Sofia também pode ser representada pelo Logos, isto é, a razão, a luz de nossa consciência; afinal, a inteligência tem um caráter que a aproxima da Sabedoria. Nesse aspecto, podemos entender Satanás (do hebraico; satan: o que se opõe) como aquele que nos oferece o fruto interdito da consciência que, uma vez experimentado, nos separa da natureza absoluta original (Deus e o Paraíso), transformando-nos em indivíduos, com a luz própria do arbítrio e do discernimento. Distante da idéia do mal, seu correspondente clássico é Prometeu, que rouba o fogo de Zeus para entregá-lo aos homens.
O demônio é aquele que nos entrega, então, cumprindo seu papel no jogo cósmico, a luz da inteligência. Desde o Gênesis, portanto, Satanás poderia ser chamado Lúcifer, cujo nome latino revela: Lux+Phoros, Portador da Luz.
Moisés.0.3 
 Moisés
Jung mergulha sua alma nesse assunto para revelar-nos o seguinte: 
 “Jó está diante de um Deus que não é perfeito nem forte. 
Javé tem pensamentos de dúvida, e fraqueja com o desafio proposto por Satanás. 
Por qual outra razão Deus aceitaria apostar sem escrúpulos, à custa de uma criatura desamparada? Está evidente: Satanás nada mais é que mais um dos muitos aspectos de Javé, um de seus olhos que perambula pela Terra (Jo, 1,7), explica-nos Jung, a conferir com a tradição persa, onde Ariman, deus propiciador do mal, nasce da bipartição da divindade suprema Ahura-Mazda. Do ponto de vista humano, o comportamento de Javé chega a ser revoltante; somos obrigados a perguntar se não há razão maior por trás de tudo. Mas, o que o homem possui que Deus também não o tenha? 
Javé percebe que a luz infinitamente pequena de um só homem poderia ser, não obstante, mais concentrada que a Dele próprio. E Deus não quer aqui passar por justo, apenas exerce seu poder absoluto, que ultrapassa todos os direitos, e explora de forma amoral as implicações do mal, procurando “conhecer-Se por inteiro”, algo que Jó não compreende, posto que considera seu Deus como alguém personalizado, bom, moral e justo. Para dificultar ainda mais nossa compreensão, note-se que Javé transgride nesse episódio pelo menos três de seus próprios Mandamentos, promulgados no Sinai.
Jó tentado pelo demônio, ilustr. Gianni de Luca
Jó tentado pelo demônio, ilustr. Gianni de Luca
Jó, como criatura mítica, espelha a Criação. Constitui apenas a ocasião para um confronto intradivino, diz Jung, e ao vislumbrar a onipotência de Javé, humildemente reconhece Sua antinomia interior, diante da qual não discute. Por fim, compreende que a unidade de Deus não se preocupa com julgamentos morais nem com uma ética que Lhe imponha obrigações, posto que a moralidade pressupõe consciência, e Deus, avalia Jung, é uma experiência psíquica transcendente, um fenômeno absolutamente portentoso, e não um homem, simplesmente. Jó, imediatamente, dá-se conta de estar diante de seu único advogado e protetor contra o próprio Deus, por isso não blasfema. Agindo assim, faz com que Satanás perca a aposta.
Não será, porém, o arrependimento divino, ao devolver em dobro a Jó tudo aquilo que perdera, que irá compensar esta situação; muito menos sua atitude reticente em relação a Satanás, mas o desdobrar da descoberta de Javé, que viu suscitar em Si um estranho pressentimento a colocar em cheque toda a Sua onisciência. E Javé continuará tolerante com o demônio por todo o sempre, até a batalha final de Armagedon, quando deverá vencê-lo definitivamente, segundo roga o Apocalipse de João.
Jung levanta outros véus deste mistério: Javé trocara sua esposa primordial Sofia pelo pacto que fizera com o povo de Israel. Desde aquela época, seu povo era exclusivamente patriarcal, e as mulheres exerciam papel meramente secundário. Por esta razão, o casamento de Deus com Israel era assunto essencialmente masculino. A mulher, considerada imperfeita (esta idéia sobreviveu até recentemente no catolicismo) tendia à integralidade da natureza, ao passo que somente aos homens fora dado o poder de buscar a perfeição. Da mesma forma que a integralidade é imperfeita, a perfeição é sempre incompleta, razão pela qual Javé, perfeccionista, termina num beco sem saída, projetando sobre seu povo uma esperança de evolução tanto maior quanto mais Ele se esquece de Sofia. O próprio Jó anseia por uma sabedoria impossível de encontrar (Jo, 28,12), por isso não compreende sua sina, apenas a aceita.
Coroação da Virgem, afresco Filippo Lippi, 1466-69
Coroação da Virgem, afresco Filippo Lippi, 1466-69
Jó é o ponto culminante de um arquétipo em evolução, pois ele viu o semblante de Javé, a partir do que Deus se renova “conhecido”, agindo e crescendo dentro dos homens. Resta agora à divindade completar a contraparte desta experiência mística, quando então Javé decide encarnar-se em nosso meio. Entretanto, o segundo Adão não deverá nascer de Suas mesmas mãos, mas sim do ventre de uma mulher humana, uma segunda Eva, conforme podemos entender em Gênesis 3,15; aquela que, há muito esperada, ferirá e esmagará a cabeça da serpente. Por isso a Virgem Maria é escolhida como vaso puro para o nascimento futuro de Deus, avalia Jung; ela é portadora da imago Dei, encarna o arquétipo de nova esposa de Deus, parte sem a qual Ele não se completa; é Sofia do Novo Testamento, mediadora entre os homens e Javé, aquela que concebe de forma pura, ou “Imaculada Conceição”.
A tradição hebraica não aceita a idéia de um filho de Deus; o Messias não poderá sê-lo senão simbolicamente. O nascimento virginal, uma regra mitológica universal, nem encontra vestígios nessa tradição. Tal idéia, a propósito, só ingressa no cristianismo por influência da cultura grega, posto que dos Evangelhos, somente o de Lucas e o de Mateus se referem à virgindade de Maria. Lucas era grego, e Mateus, traduziria ele próprio para o grego seu texto original hebraico.
Evoluindo o drama cósmico, Javé pretende criar pela segunda vez seu equivalente terreno; além de Sua mera imagem que fora o Adão primordial, deseja ora criar algo aperfeiçoado. Longe de continuar castigando seu povo, incomodado desde o drama de Jó, quer agora redimi-lo. Cristo deverá ser mortal, condição pela qual Javé experimentará o sofrimento; mas ao mesmo tempo divino, a ponto de fazer brotar a luz e o amor entre os homens, a facilitar-nos o caminho em direção ao Pai. Afinal, diz Jung, o mundo inteiro é de Deus, e Ele está presente no mundo inteiro, desde o início. Deus querer tornar-se homem significa uma mudança no Universo todo!
Na época de Jó, continua o psiquiatra, Javé esteve embriagado pela grandeza de sua Criação; a partir daí não mais se ouvem falar em alianças Dele com seu povo. Ganham destaque então as máximas sapienciais, os Salmos e os Provérbios, até surgirem as revelações apocalípticas, cujas imagens fantásticas bem representam nosso mundo inconsciente querendo nos dizer algo sublime. Em Ezequiel, pela primeira vez aparece o título “Filho do Homem” (Ez, 2,1), com o qual Javé se dirige ao Profeta; e séculos mais tarde, cerca de 165 a.C., Daniel (Dn 7,13) tem sua visão, na qual um ser semelhante ao “Filho do Homem” surge sobre as nuvens do céu. O psiquismo humano, expressando-se neste caso pelas Escrituras, começa a preparar-se inconscientemente ao longo dos séculos para receber Jesus, clamando pela notável convergência entre a natureza divina e toda a experiência humana.
Este é o motivo pelo qual o nascimento de Cristo está acompanhado por manifestações que preenchem requisitos dos adventos dos heróis. Jesus é concebido por uma virgem, nasce em dia de solstício (assim como Mitra, deus Sol dos persas) e, astrologicamente, vem ao mundo durante a conjunção de Júpiter e Saturno no signo de Peixes, compreendida pelos três reis magos como sinal de realeza.
Nada de estranho em se aceitar que Jesus tenha nascido de uma virgem, nem estou aqui para discutir se Maria concebeu carnalmente ou não, isso é meramente um dogma católico, como tantos outros dessa ou de outras religiões. Embora os protestantes façam disso seu cavalo de batalha, sem falar nos judeus que nem aceitam Jesus como messias, cristalizados que restam dentro do drama de Jó, do qual nunca saíram, o fato é que os heróis, deuses e semi-deuses, nascem amiúde motivados por uma compaixão divina, e não pela sexualidade, que só serve mesmo para preservar nossa espécie e sustentar os dogmas da psicanálise, nada mais que outra espécie de “religião”. E sou eu quem falo aqui, não Jung. Observe-se que Buda, por exemplo, nasce do flanco de sua mãe, localizado sobre o chakra cardíaco. O mito não desautoriza que Buda tenha existido e revolucionado os homens à sua maneira, como fez Jesus.
Encarnando um Javé evoluído, não há uma só citação em que Jesus pare para se admirar consigo mesmo. Ao contrário, procura dar aos homens orientação para que o acompanhem humildemente até a Casa de seu Pai. Não parece confrontar-se intimamente de forma explícita senão no Horto das Oliveiras, quando pensa em não aceitar seu cálice, e depois, quando já crucificado, indaga: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” Jung vê aí a natureza humana transformada em divindade no exato instante em que Deus vive a experiência do homem mortal, aceitando sacrificar-Se por meio de seu próprio filho, passando por sofrimentos que nunca compreendeu, vividos anteriormente por seu servo Jó.
Queda dos Anjos Rebeldes - Duc de Berry,1411-1416
Queda dos Anjos Rebeldes - Duc de Berry,1411-1416
Seja o nascimento virginal de Cristo um mito ou não, o fato é que, como diz Jung, nem os mitos são simples ficção, pois neles é que se expressa toda a nossa natureza humana, em seu caráter universal. E não há nada mais real para Jung que a experiência da alma.
Sabemos pelo Velho Testamento, também pelo Livro apócrifo de Henoc, séc. I a.C., que ocorreu a queda dos anjos rebeldes, chefiados por Satanás, que hoje vive banido da corte celeste, reinando no domínio sublunar, aguardando pelo confronto final, o Dia do Juízo. Com a limitação imposta ao demônio, Javé tornou-se um Deus de bondade, um Pai amoroso, diz Jung, reparando a injustiça cometida contra Jó em favor do desenvolvimento espiritual humano. Perdeu seu caráter irascível, bem declarado em Salmos 88, 31-33 do texto hebraico. Improvável que o atual drama cósmico assista a outro episódio semelhante ao de Jó. 
Livro do Apocalispse (ilustr. Gianni de Luca)
Livro do Apocalispse (ilustr. Gianni de Luca)
Entretanto, estamos longe do final desta novela. Embora Cristo deposite confiança ilimitada no amor do Pai, e se sinta Um com Ele, deixa-nos seu sobreaviso nas 6a e 7a imprecações da oração que ele próprio nos ensinou: “Pai, não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos de todo o Mal”.
Subentende-se daí que o Mal continue escondido no cosmos, e Deus Ele próprio o admite, apenas aguardando pela hora.
Uma leitura atenta do Apocalipse de João nos oferece assunto para continuarmos refletindo acerca do fabuloso drama cósmico dos homens e dos deuses. Esta, porém, é uma história para outra oportunidade.
Posted in: Carl G. Jung, Filosofia, Religiões.


JUNG: LIVRO DE JÓ, ALQUIMIA E SINCRONICIDADE

ter, 16 de agosto, 2011
    Yuzo Koshiro - Legend of Magic
Retirado do livro "C. G. Jung: Entrevistas e Encontros", de William McGuire e R.F.C. Hull (Ed. Cultrix)
Entrevista do Prof. Mircea Eliade com Jung, em 1952.
Eliade: Aos 77 anos de idade, o Professor C. G. Jung nada perdeu de sua extraordinária vitalidade, de seu surpreendente espírito juvenil. Ele acabou de publicar, um após outro, três novos livros: sobre o simbolismo de Aion (Tempo), sobre sincronicidade, e "Resposta a Jó", o qual já deu origem a reações sensacionais, especialmente entre os teólogos. Jung: Esse livro sempre esteve em minha mente, mas aguardei 40 anos para escrevê-lo. Fiquei terrivelmente chocado quando, ainda criança, li o Livro de Jó pela primeira vez. Descobri que Javé é injusto, que é mesmo um malvado. Pois permite-se ser persuadido pelo diabo, concorda em torturar Jó por sugestão de Satã. Na onipotência de Javé não existe consideração pelo sofrimento humano. São abundantes os exemplos da injustiça de Javé em certos escritos hebraicos. Mas não é esse o ponto; o ponto que interessa é a reação do crente à injustiça. A questão é a seguinte: Existe na literatura rabínica qualquer prova da existência de reflexão crítica ou de uma reconciliação desse conflito na Deidade? Num texto tardio (Talmud babilônbico), Javé solicita a bênção do sumo sacerdote Ishmael, e Ishmael responde-lhe:
"Seja a Tua vontade que a Tua misericórdia suprima a Tua ira,
 e que a Tua compaixão possa prevalecer sobre os Teus outros atributos..."
O Todo-Poderoso sente que um homem verdadeiramente santificado é superior a Ele. É possível que tudo isso seja uma questão de linguagem. Pode ser que aquilo a que chamamos a "injustiça" e a "crueldade" de Javé sejam apenas fórmulas aproximadas e imperfeitas para expressar a transcendência total de Deus. Javé é "Aquele que é", de modo que está acima e além do bem e do mal. Ele é impossível de ser apreendido, compreendido, formulado; por conseguinte, é misericordioso e injusto simultaneamente. Isto é uma maneira de dizer que nenhuma definição pode circunscrever Deus, nenhum atributo esgota as suas potencialidades. Eu falo como psicólogo e, sobretudo, estou falando do antropomorfismo de Javé e não de sua realidade teológica. Como psicólogo, digo que Javé é contraditório, e também penso que essa contradição pode ser interpretada psicologicamente. A fim de testar a fidelidade de Jó, Javé concede a Satã uma licença quase ilimitada. Ora, esse fato não está isento de conseqüências para a humanidade. Eventos muito importantes são iminentes no futuro por causa do papel que Javé se sentiu obrigado a atribuir a Satã. Diante da crueldade de Javé, Jó está silencioso. Esse silêncio é a mais bela e a mais nobre resposta que o homem pode dar a um Deus onipotente.
O silêncio de Jó é já uma anunciação do Cristo.
 De fato, Deus fez-se homem, tornou-se Cristo, 
a fim de redimir a sua injustiça para com Jó.
Javé errou mas reconheceu o erro. Será Jó sabedor disso? 
De qualquer modo, a posteridade percebeu o conflito doloroso causado pela imoralidade de Javé. Há a história de um sábio muito piedoso e devoto que não suportava ler o Salmo 89. Jó está certamente consciente da injustiça divina e, assim, está mais consciente do que Javé. É a superioridade sutil do progresso do homem em consciência moral, em face de um Deus menos consciente. Essa é a razão para a Encarnação. O grande problema em psicologia é a integração de opostos. Encontramo-lo em toda a parte e em todos os níveis. Em Psicologia e Alquimia tive ocasião de me interessar pela integração de Satã. Pois enquanto Satã não for integrado, não haverá cura para o mundo nem salvação para o homem. Mas Satã representa o mal - e como pode o mal ser integrado? Só existe uma possibilidade: assimilá-lo, ou seja, elevá-lo ao nível da consciência. Isso é feito mediante um processo simbólico muito complicado, o qual é mais ou menos idêntico ao processo psicológico de individuação. Em alquimia, chama-se a conjunção dos dois princípios. De fato, a alquimia assumiu e levou por diante a obra do cristianismo. Na concepção alquimista, o cristianismo salvou o homem, mas não a natureza. O sonho do alquimista era salvar o mundo em sua totalidade; a pedra filosofal foi concebida como o filius macrocosmi, o que salva o mundo, ao passo que o Cristo era o filius microcosmi, o salvador apenas do homem. A finalidade suprema do opus alquímico é a apokatastasis, a salvação cósmica. Estudei alquimia durante 15 anos, mas nunca falei sobre isso a ninguém; não desejava influenciar os meus pacientes ou meus colegas de trabalho por sugestão. Mas, após 15 anos de pesquisa e observação, impuseram-se-me conclusões inelutáveis. As operações alquímicas eram reais, só que essa realidade não era física mas psicológica. A alquimia representa a projeção de um drama cósmico e espiritual em termos de laboratório. O opus magnum tinha duas finalidades: o resgate da alma humana e a salvação do cosmo. Aquilo a que o alquimista chamava "matéria" era, na realidade, o eu (inconsciente).
 A "alma do mundo" (anima mundi), 
que foi identificada com o spiritus mercurius,
 estava aprisionada na "matéria".
 Por essa razão é que o alquimista acreditava na verdade da "matéria", porquanto a "matéria" era, na realidade, a própria vida psíquica do alquimista. Mas era uma questão de libertar essa "matéria", de salvá-la - numa palavra, de descobrir a pedra filosofal, o corpus glorificationis. Esse trabalho é difícil e repleto de obstáculos; o opus alquímico é perigoso. Logo no começo encontramos o "dragão", o espírito ctônico, o "diabo" ou, como os alquimistas lhe chamavam, a "escuridade", o nigredo, e esse encontro produz sofrimento. A "matéria" sofre até ao desaparecimento final da escuridade; em termos psicológicos, a alma encontra-se nas vascas da melancolia e da angústia travando uma luta com a "sombra". O mistério da conjunção (coniunctio), o mistério central da alquimia, visa precisamente a síntese dos opostos, a assimilação da escuridade, a integração do diabo. Para o cristão "despertado" isso constitui uma experiência psíquica muito séria, pois trata-se de um confronto com a sua própria "sombra", com a escuridade, o nigredo, que permanece à parte e nunca pode ser completamente integrado na personalidade humana. Ao interpretar-se o confronto do cristão com sua sombra em termos psicológicos, descobre-se o medo oculto de que o diabo seja mais forte, de que Cristo não tenha conseguido conquistá-lo completamente. Caso contrário, por que se acreditava e ainda se acredita no Anticristo?  Por que se aguardava e continua se aguardando a vinda do Anticristo? Porque só depois do reino do Anticristo e só depois do segundo advento do Cristo o mal será finalmente conquistado no mundo e na alma humana. Em nível psicológico, todos esses símbolos e crenças são interdependentes; é sempre uma questão de lutar com o diabo, com Satã, e de conquistá-lo, ou seja, de assimilá-lo, integrando-o na consciência. Na linguagem dos alquimistas, a matéria sofre até que o nigredo desapareça, quando a aurora será anunciada pela cauda do pavão (cauda pavonis) e um novo dia nascerá, o leukosis ou albedo. Mas nesse estado de "brancura" não se vive, na verdadeira acepção da palavra; é uma espécie de estado ideal, abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve ter "sangue", deve possuir aquilo a que os alquimistas chamam o rubedo, a "vermelhidão" da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal do albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de escuridade é dissolvido, em que o diabo deixa de ter uma existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, o opus magnum está concluído: a alma humana está completamente integrada. Eu sou e continuo sendo um psicólogo. Não estou interessado em qualquer coisa que transcenda o conteúdo psicológico da experiência humana. Nem sequer pergunto a mim mesmo se tal transcendência é possível, visto que, em qualquer caso, o transpsicológico tampouco é de interesse para o psicólogo. Mas no nível psicológico tenho que ocupar-me das experiências religiosas que possuem uma estrutura e um simbolismo que pode ser interpretado. Para mim, a experiência religiosa é real, é verdadeira. Apurei que, através de tais experiências religiosas, a alma pode ser "salva", a sua integração acelerada, e estabelecido o equilíbrio espiritual. Para mim, como psicólogo, o estado de graça existe: é a perfeita serenidade da alma, um equilíbrio criativo, a fonte de energia espiritual. Falando sempre como psicólogo, afirmo que a presença de Deus é manifesta, na experiência profunda da psique, como uma coincidentia oppositorum, e toda a história da religião, todas as teologias, dão testemunho do fato de que a coincidentia oppositorum é uma das mais comuns e mais arcaicas fórmulas para expressar a realidade de Deus. A experiência religiosa é numinosa, como Rudolf Otto a designa, e, para mim, como psicólogo, essa experiência difere de todas as outras de um modo que transcende as categorias ordinárias de espaço, tempo e causalidade. Recentemente, empenhei-me no estudo da sincronicidade (em poucas palavras, a "ruptura do tempo"), e estabeleci que se assemelha estreitamente às experiências numinosas em que espaço, tempo e causalidade são abolidas. Não aplico qualquer juízo de valor à experiência religiosa. Afirmo que um conflito interno é sempre a fonte de profundas e perigosas crises psicológicas, tão perigosas que podem destruir a integridade de um homem. Esse conflito interno manifesta-se psicologicamente nas mesmas imagens e no mesmo simbolismo testemunhados por toda e qualquer religião no mundo, e utilizados também pelos alquimistas. Por isso me interessei pela religião, por Javé, Satã, Cristo, pela Virgem. Entendo muito bem que um crente veja algo muito diferente nessas imagens do que eu, como psicólogo, tenho o direito de ver. A fé de um crente é uma grande força espiritual, é a garantia de sua integridade psíquica. Mas eu sou médico e estou interessado em curar os meus semelhantes. A fé e somente a fé já não tem poder - infelizmente! - para curar certas pessoas. O mundo moderno está dessacralizado; por isso está em crise.
O homem moderno deve redescobrir
 uma fonte mais profunda de sua própria vida espiritual. 
Para tanto, é obrigado a lutar com o diabo, a enfrentar sua própria sombra, a integrar o diabo. Não há outra escolha. É por isso que Javé, Jó, Satã, representam situações psicologicamente exemplares; eles são como paradigmas do eterno drama humano. Eliade: Jung descobriu o inconsciente coletivo - quer dizer, tudo o que precede a história pessoal do ser humano - e aplicou-se a decifrar as suas estruturas e a sua "dialética", com vistas a facilitar a reconciliação do homem com a parte inconsciente de sua vida psíquica e a conduzi-lo no sentido da integração de sua personalidade. Ao invés de Freud, Jung toma em consideração a história: os arquétipos, essas estruturas do inconsciente coletivo, estão carregados de história. Já não é uma questão, como quer Freud, de uma "espontaneidade natural" do inconsciente de cada indivíduo, mas de um imenso reservatório de lembranças históricas, uma memória coletiva na qual é preservada, em essência, a história de toda a humanidade. Jung acredita que o homem deve fazer maior uso desse reservatório; o seu método analítico dedica-se, precisamente, a encontrar os meios adequados para usá-lo. Jung: O inconsciente coletivo é mais perigoso do que dinamite, mas existem métodos para manipulá-lo sem maiores riscos. Depois, quando se desencadeia uma crise psicológica, estamos em melhor posição do que qualquer outro para resolvê-la. Temos sonhos e devaneios; tratemos de os observar. Poderíamos quase dizer que todo o sonho, à sua própria maneira, contém uma mensagem. Ela não só nos diz que algo está errado nas profundidades do nosso ser, mas também nos oferece uma solução para sair da crise. Pois o inconsciente coletivo que nos envia esses sonhos já possui a solução: nada se perdeu da toda a experiência imemorial da humanidade, toda a situação imaginável e toda a solução parecem ter sido previstas pelo inconsciente coletivo. Basta apenas que observemos cuidadosamente. A análise ajuda a ler corretamente essas mensagens. Eliade: Foi observando seus próprios sonhos - que ele tentou em vão interpretar nos termos da psicanálise freudiana - que Jung foi levado a pressupor a existência do inconsciente coletivo. Isso aconteceu em 1909. Dois anos depois, começou a dar-se conta da importância de sua descoberta. Finalmente, em 1914, ainda em conseqüência de uma série de sonhos e devaneios, ele compreendeu que as manifestações do inconsciente coletivo são, em parte, independentes das leis do tempo e da causalidade. Como o Professor Jung amavelmente me permitiu que falasse desses sonhos e devaneios, os quais desempenharam um papel capital em sua carreira científica, eis um resumo deles. Jung: Em outubro de 1913, enquanto viajava de trem de Zurique para Schaffhausen, ocorreu-me um estranho incidente. Ao atravessar um túnel, perdi a consciência de tempo e lugar, e só fui acordado uma hora depois, quando o condutor anunciou a chegada a Schaffhausen. Durante todo esse tempo fui vítima de uma alucinação, de um devaneio. Estava olhando para o mapa da Europa e vi como, país por país, começando com a França e a Alemanha, a Europa era tragada pelo mar, até ficar submersa. Pouco depois, todo o continente era um lençol de água, com exceção da Suíça; a Suíça era como uma alta montanha que as ondas não podiam alcançar. Vi-me sentado na montanha. Mas então, olhando mais atentamente à minha volta, percebi que o mar não era de água, mas de sangue. Flutuando sobre as ondas havia cadáveres, telhados de casas, madeiras calcinadas. Três meses mais tarde, em dezembro de 1913, e novamente no trem que me levava a Schaffhausen, repetiu-se o mesmo devaneio, de novo ao entrar no túnel (Dei-me conta, subseqüentemente, de que era como uma imersão no inconsciente coletivo). Como psiquiatra, fiquei preocupado, imaginando se eu não estaria a caminho de "fazer uma esquizofrenia", como dizíamos na linguagem desses tempos. Finalmente, alguns meses mais tarde, tive o seguinte sonho: Vi-me nos mares do sul, perto de Sumatra, no verão, acompanhado de um amigo. Mas soubemos pelos jornais que uma terrível onda de frio tinha varrido a Europa, como não havia notícia de que tivesse ocorrido antes. Decidi ir até Batávia e embarcar num navio de volta à Europa. O meu amigo disse-me que pegaria um veleiro de Sumatra para Hadramaut, e daí continuaria sua viagem através da Arábia e Turquia. Cheguei à Suíça. Em meu redor só via neve e mais neve. Uma vinha enorme estava crescendo algures; tinha muitos cachos de uvas. Acerquei-me e comecei apanhando as uvas, distribuindo-as por um magote de gente que me rodeava mas que eu não podia ver. Três vezes esse sonho se repetiu e, finalmente, fiquei deveras intranqüilo. Eu estava justamente nessa época preparando uma conferência sobre esquizofrenia, para ser lida num congresso em Aberdeen, e não me cansava de repetir para mim mesmo: "Estarei falando de mim mesmo! Muito provavelmente enlouquecerei depois de ler a conferência". O congresso teria lugar em julho de 1914 - exatamente o período em que, nos meus três sonhos, via-me viajando pelos mares do sul. A 31 de julho, imediatamente após a minha conferência, soube pelos jornais que eclodira a guerra. Finalmente entendi tudo. E quando desembarquei na Holanda, no dia seguinte, ninguém era mais feliz do que eu. Agora tinha a certeza de que nenhuma esquizofrenia me ameaçava. Compreendi que os meus sonhos e as minhas visões me chegavam do subsolo do inconsciente coletivo. O que me restava agora fazer era aprofundar e validar essa descoberta. E isso é o que estou tentando fazer há 40 anos. Eliade: Jung ficou satisfeito ao receber uma segunda explicação desse sonho pouco depois. Os jornais não tardaram em noticiar que um capitão da Marinha alemã, de nome von Mücke, que tinha cruzado os mares do sul num veleiro, de Sumatra para Hadramaut, se refugiara na Arábia e daí alcançara a Turquia.



Publicado em 12/02/2013 - Licença padrão do YouTube
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 http://www.saindodamatrix.com.br/archives/2011/08/jung_livro_de_jo.html
 http://aacademiadoconhecimento.blogspot.com.br/2012/06/resposta-jo.html
 

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