sábado, 12 de junho de 2010

A INTUIÇÃO COMO MÉTODO DA FILOSOFIA - Manuel Morente


Fundamentos de Filosofia

de Manuel Morente


18.   Método discursivo e método intuitivo.
 
Em nossa lição anterior havíamos tomado como tema o método da filosofia, e havíamos chegado ao ponto em que a intuição se nos apresentava insistentemente na história do pensamento filosófico como o método fundamental, principal, da filosofia moderna.

Descartes foi, na filosofia moderna, o primeiro que, decompondo em seus elementos as atitudes com que nos situamos ante o mundo exterior e ante as opiniões transmitidas dos filósofos, chega a lima Intuição primordial, primária, da qual logo parte para reconstruir todo o sistema da filosofia. Descartes faz, pois, da intuição o método primordial da filosofia.

Mais tarde, depois de Descartes, o método da intuição continua a florescer entre os filósofos modernos. Empregam-no principalmente os filósofos idealistas alemães (Fichte, Schelling, Hegel, Schopenhauer), e na atualidade o método da intuição é também geralmente aplicado nas disciplinas filosóficas.

Assim, pois, pensei que seria conveniente dedicar toda uma lição ao estudo demorado daquilo que é a intuição, de quais são suas fórmulas principais, de como atualmente, na filosofia do presente, ás distintas formas de intuição estão representadas por diferentes filósofos e diversas escolas e tirar logo as conclusões desse estudo para fixar em linhas gerais o uso que nós mesmos vamos fazer aqui da Intuição como método filosófico.

A primeira coisa que nos perguntaremos é: que é a intuição? Em que consiste a intuição?

A intuição se nos oferece, em primeiro lugar, como um meio de chegar ao conhecimento de algo, e se contrapõe ao conhecimento discursivo. Para compreender bem o que seja o método intuitivo convém, por conseguinte, que o exponhamos em contraposição ao método discursivo. Será mais fácil começar pelo método discursivo.

Como a palavra "discursivo" indica, este método tem relação com a palavra "discorrer" e com a palavra "discurso". Discorrer e discurso dão a idéia, não de um único ato encaminhado para o objeto, mas de uma série de atos, de uma série de esforços sucessivos para captar a essência ou realidade do objeto.

Discurso, discorrer, conhecimento discursivo é, pois, um. conhecimento que chega ao fim proposto mediante uma série de esforços sucessivos que consistem em ir fixando, por aproximações sucessivas, umas teses que logo são contraditas, discutidas cada qual consigo mesma, melhoradas, substituídas por outras novas teses ou afirmações e assim até chegar a abranger por completo a realidade do objeto, e, por conseguinte, obter dessa maneira o conceito.

O método discursivo é, pois, essencialmente um método indireto. Em lugar de ir o espírito direto ao objeto, passeia, por assim dizer, ao redor do objeto, considera-o e contempla-o de múltiplos pontos de vista: vai sitiando-o cada vez mais de perto, até que por fim consegue forjar um conceito que se aplica perfeitamente a ele.

Frente a este método discursivo está o método intuitivo. A intuição consiste exatamente no contrário. Consiste num único ato do espírito que, de repente, subitamente, lança-se sobre o objeto, apreende-o, fixa-o, determina-o com uma só visão da alma. Por isso a palavra "intuição" tem relação com a palavra "intuir", a qual, por sua vez, significa em latim "ver". Intuição vale tanto como visão, como contemplação.

O caráter mais evidente do método da intuição é ser direto, enquanto que o método discursivo é indireto. A intuição vai diretamente ao objeto. Por meio da intuição obtém-se um conhecimento imediato, enquanto por meio do discurso, do discorrer ou do raciocinar, obtém—se um conhecimento mediato, ao final de certas operações sucessivas.

19.   A intuição sensível
Existem na realidade intuições? Existem; e o primeiro exemplo, e mais característico, da intuição, é a intuição sensível, que todos praticamos a cada instante. Quando com um só olhar percebemos um objeto, um copo, uma árvore, uma mesa, um homem, uma paisagem, com um só ato conseguimos ter, captar esse objeto. Esta intuição é imediata, é uma comunicação direta entre mim e o objeto.

Por conseguinte, fica claro e evidente que existem intuições, embora não fosse mais que esta intuição sensível; porém, esta intuição sensível não pode ser a intuição de que se vale o filósofo para fazer o seu sistema filosófico. E não pode ser a intuição de que se vale o filósofo por duas razões fundamentais. A primeira é que a intuição sensível não se aplica senão a objetos que se oferecem aos sentidos, e, por conseguinte, só é aplicável e válida para aqueles casos que, por  meio   das   sensações,   nos   são   imediatamente   dados. Em vez disto, o filósofo necessita tomar, como base do seu estudo, objetos que não se apresentam imediatamente na sensação e na percepção sensível; tem que tomar como termo do seu esforço objetos não sensíveis. Não pode servir-lhe por conseguinte a intuição sensível.

Mas, além disto, há outra razão que impediria ao filósofo usar a intuição sensível, e é porque esta, em rigor, não nos proporciona conhecimento, pois como não se dirige mais que a um objeto singular, a este que está diante de mim, que efetivamente está aí, a intuição sensível tem o caráter da individualidade, não é válida mais que para esse objeto particular que está diante de mim. Em vez disso, a filosofia tem por objeto não o singular que está aí, diante de mim, mas objetos gerais, universais. Por conseguinte, a intuição sensível, que está, pela sua essência, atada à singularidade do objeto, não pode servir em filosofia, a qual, pela sua essência, se encaminha à universalidade ou generalidade dos objetos.

20.   A intuição espiritual.
Se não houvesse mais intuição que a intuição sensível, a filosofia ficaria muito mal servida.

Mas é o caso que há na nossa vida psíquica outra intuição além da intuição sensível. Existe, digo, outra intuição que, desde já, antes de trocar-lhe o nome, vamos denominar "intuição espiritual". Assim, por exemplo, quando eu aplico o meu espírito a pensar este objeto: "Que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo", vejo sem necessidade de demonstração (a demonstração é discurso e conhecimento discursivo), com uma só visão do espírito, com uma evidência imediata, direta e sem necessidade de demonstração, que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo. O princípio de contradição, como o chamam os lógicos, é, pois, intuído por uma visão direta do espírito, é uma intuição.

Quando eu digo que a cor vermelha é distinta da cor azul, esta diferença entre o vermelho e o azul, vejo-a também com os olhos do espírito mediante uma visão direta e imediata. Eis um segundo exemplo de uma intuição que já não é sensível. É sensível a intuição do vermelho, é sensível a intuição do azul, porém a intuição da relação de diferença — a intuição de que o vermelho é diferente do azul — essa já não é uma intuição sensível, porque seu objeto, que é a diferença, não é um objeto sensível, como o azul e o vermelho.

Quando eu digo que a distância de um metro é menor do que a distância de dois metros, esta diferença, esta relação, é o objeto de uma intuição e não é um objeto sensível.

Por conseguinte a intuição, que estes exemplos nos descobrem, não é uma intuição sensível. Existe, pois, uma intuição espiritual, que se diferencia da intuição sensível em que seu objeto não ó um objeto sensível. Esta intuição tampouco se faz por meio dos sentidos, mas por meio do espírito.

Até agora vou falando do espírito em geral, sem maior precisão. Mas agora é preciso ir depurando, purificando, esclarecendo mais esta noção que já temos da intuição.

Se considerarmos os exemplos com que ilustramos esta intuição espiritual, dar-nos-emos conta imediatamente de que eles nos colocam diante de um gênero de objetos que são sempre relações, e estas relações são de caráter formal. Referem-se à forma dos objetos. Não ao seu conteúdo, mas a esse caráter, por assim dizer, exterior, que todos os objetos têm de comum: a dimensão, o tamanho etc. Então, por meio da intuição espiritual, no sentido em que a empregamos até agora, percebemos diretamente, intuímos diretamente formas dos objetos: ser maior ou ser menor; ser grande ou ser pequeno em relação a um módulo; poder ser ou não ao mesmo tempo. Mas todas estas são formalidades.

A intuição espiritual nos exemplos que acabo de oferecer é, pois, uma intuição puramente formal. Se não houvesse outra na -vida do filósofo, mal andaria ele. Se não pudesse ter mais intuições que intuições formais, também não poderia construir a sua filosofia porque com simples formalismos não se pode penetrar na essência, na realidade roesma das coisas, como o filósofo pretende mais do que nenhum outro pensador.

Porém, há na vida do filósofo outra intuição que não é puramente formal, há outra intuição que, para contrapô-la a intuição formal, chamaremos "intuição real". Há outra intuição que penetra no fundo mesmo da coisa, que chega a captar sua essência, sua existência, sua consistência. Esta intuição que vai diretamente ao fundo da coisa é a que aplicam os filósofos. Não uma simples intuição espiritual, mas uma intuição espiritual de caráter real, por contraposição à intuição de caráter formal a que antes me referia. E esta intuição de caráter real, esta saída do espírito, que vai tomai contacto com a íntima realidade essencial e existencial dos objetos, esta intuição real, podemos, por sua vez, dividi-la em três classes, segundo predomine nela, ao verificá-la, por parte do filósofo, a atitude espiritual, ou a atitude emotiva, ou a atitude volitiva.

21.   A intuição intelectual, emotiva e volitiva.

Quando na atitude da intuição o filósofo põe principalmente em jogo suas faculdades intelectuais, então temos a intuição intelectual. Esta intuição intelectual tem no objeto seu correlato exato. Já sabemos que todo ato do sujeito, todo ato do espírito na sua integridade, se encaminha para os objetos, e o ato do sujeito tem então sempre seu correlato objetivo, consistente, para tal intuição, na essência do objeto. A intuição intelectual é um esforço para captar diretamente mediante um ato direto do espírito, a essência, ou seja, aquilo que o objeto é.

Mas existe, além. disso, outra atitude intuitiva do sujeito em que atuam predominantemente motivos de caráter emocional. Esta segunda espécie de intuição, que chamamos intuição emotiva, tem também seu correlato no objeto. O correlato a que se refere intencionalmente a intuição emotiva já não é a essência do objeto, já não é aquilo que o objeto é, mas o valor do objeto, aquilo que o objeto vale.

No primeiro caso a intuição nos permite captar o éidos, como se diz em grego, a essência ou a consistência do objeto. No segundo caso, ao contrário, o que captamos não é aquilo que o objeto é, mas aquilo que o objeto vale, ou seja, se o objeto é bom ou mau, agradável ou desagradável, belo ou feio, magnífico ou mísero.

Todos estes valores que estão no objeto são captados por uma intuição predominantemente emotiva.

E existe uma terceira intuição na qual as motivações internas do sujeito, que se coloca nessa atitude, são predominantemente volitivas. Esta terceira intuição em que os motivos que se entrechocam são derivados da vontade, derivados do querer, tem também seu correlato no objeto. Não se refere nem â essência, como a intuição intelectual, nem ao valor, como a intuição emotiva. Refere-se à existência, à realidade existencial do objeto.

Por meio da intuição intelectual propende o pensador filosófico a desentranhar aquilo que o objeto é. Por meio da intuição emotiva propende a desentranhar aquilo que o objeto vale, o valor do objeto. Por meio da intuição volitiva desentranha, não aquilo que é, senão que é, que existe, que está aí, que é algo distinto de mim. A existência do ser manifesta-se ao homem mediante um tipo de intuição predominantemente volitiva.

22.   Representantes filosóficos de cada uma.
Estes três tipos de intuição estão representados amplamente na história do pensamento humano.

A intuição intelectual pura encontramo-la na Antigüidade, em Platão; na época moderna, em Descartes e nos filósofos idealistas alemães, sobretudo em Schelling e Schopenhauer.

A intuição emocional ou emotiva também está amplamente representada na história do pensamento humano. Na antigüidade encontramo-la no filósofo Plotino; mais tarde, em alto grau, levada a um dos mais sublimes níveis da história do pensamento, encontramo-la em Santo Agostinho. Na filosofia de Santo Agostinho, a intuição emotiva chega a refinamentos e resultados extraordinários. Depois de Santo Agostinho, durante toda a Idade Média, combatem e lutam ‘uns contra outros os partidários da intuição intelectual e da intuição emotiva. As escolas, principalmente dos franciscanos, de caráter místico, contrapõem-se ao racionalismo de S. Tomás. Corre por toda a Idade Média este duplo fluir dos partidários de uma e de outra intuição.

Por último, a intuição emotiva, que em alguns casos não deixa de estar tingida de um elemento religioso, encontra-se em dois pensadores modernos, nos quais quase não foi notada até agora. Um ó Espinosa. Em muitíssimos livros de filosofia se diz que Espinosa não faz uso da intuição; que Espinosa demonstra suas proposições more geométrico, como puras demonstrações de teoremas de geometria, onde o elemento discursivo abafa por completo toda intuição. Todavia, isto é mera aparência. Na realidade, no fundo da filosofia de Espinosa, existe como que uma intuição mística; chega um momento, no último livro da Ética de Espinosa, em que, sob a forma de uma demonstração geométrica, aparece a intuição emotiva, que rompe os moldes lógicos da demonstração e se faz patente ao leitor, não sem uma comoção verdadeiramente tremenda da alma; é quando Espinosa, ao chegar quase ao término de seu livro, sente-se elevado, sente-se sublimado no propósito filosófico que desde o começo o anima, e escreve esta frase como o enunciado de um de seus teoremas: "Sentimus experimurque nos esse aeternos", que quer dizer: "Nós sentimos e experimentamos que somos eternos". Aí se vê bem até que ponto toda esta crosta de teoremas e de demonstrações estava recobrindo uma intuição palpitante de emoção, uma intuição quase mística da identidade do finito com o infinito e da eternidade no próprio presente.

Outro que, por estranho que pareça, pretende também esta intuição emotiva é nada menos que o filósofo inglês Hume. Para Hume a existência do mundo exterior e a existência do nosso próprio eu não podem ser objeto de intuição intelectual; não podem ser objeto nem de intuição intelectual nem de demonstração racional. Não se pode demonstrar a ninguém que o mundo exterior existe ou que o eu existe. A única coisa que se pode fazer é convidar alguém a dizer se acredita que existe o mundo exterior ou se crê que existe o eu, porque a idéia que temos do mundo exterior não é mais que um belief, uma crença. Cremos, temos fé; nossa crença no mundo exterior e na realidade de nosso eu é um ato de fé.

Quanto à intuição volitiva, tem na história da filosofia porta-vozes e representantes bem autorizados, dentre os quais aquele que talvez mais profundamente chegou a sentir esta intuição de caráter volitivo é o filósofo alemão Fichte. Fichte faz depender a realidade do universo e a própria realidade do eu de uma afirmação voluntária do eu. O eu voluntariamente se afirma a si mesmo; cria-se, por assim dizer, a si mesmo; põe-se a si mesmo. E ao pôr-se a si mesmo, põe-se exclusivamente como vontade, não como pensamento; como uma necessidade de ação, como algo que necessita realizar-se na ação, na execução de algo querido e desejado. E para que algo seja querido e desejado, o eu, ao pôr-se a si mesmo, põe-se, melhor dito, propõe a si obstáculos para seu próprio desenvolvimento, com o objetivo de poder transformar-se em solucionador de problemas, em ator de ações, em algo que rompe esses obstáculos. A realização de uma vida, que consiste era dominar obstáculos, é para Fichte a origem de todo o sistema filosófico. Aqui temos na sua maior plenitude uma intuição de caráter volitivo.

De modo que na história da filosofia moderna os três tipos principais de intuição estão ampla e magnificamente representados.

Na filosofia contemporânea, a dos filósofos que vivem ainda ou desapareceram faz pouco tempo, a intuição constitui também a forma fundamental do método filosófico. Em uma ou outra modalidade, a intuição constitui, em toda a filosofia contemporânea, o instrumento principal de que o filósofo se vale para lograr as aquisições de seus sistemas.

As modalidades em que esta intuição se apresenta na filosofia contemporânea são muito variadas. Seja dito de passagem, existe na filosofia contemporânea um imoderado afã de originalidade. Cada filosofo pretende ter um sistema. Se nós quiséssemos seguir em todos os seus variados matizes as divergências que há entre este, esse e aquele, essas pequenas divergências que há entre um e outro, com suas preocupações de originalidade e de dizer o que ninguém disse, perder-nos-íamos numa selva de minúcias, muitas vezes pouco significativas.

Fazendo uma classificação geral e tomando as principais figuras do pensamento contemporâneo, podemos encontrar até três modalidades no uso do método da intuição.

Estas três modalidades vamos expô-las com os nomes dos filósofos que melhor as representam.

Temos primeiramente a intuição como a emprega e pratica Bergson. A segunda modalidade está representada principalmente por Dilthey. A terceira modalidade está representada por Husserl, que formou uma escola bastante extensa pelo número de seus seguidores e que costumava levar o nome de "escola fenomenológica".

Vamos tentar caracterizar brevemente a classe de intuição que cada um desses três pensadores preconiza como o método da filosofia.

 Fonte
CONSCIENCIA.ORG 
http://www.consciencia.org/fundamentosfilosofiamorente3.shtml

Fundamentos de Filosofia de Manuel Morente

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