domingo, 22 de agosto de 2010

ESSÊNCIA E VERDADE. em Heidegger



ESSÊNCIA E VERDADE. UMA INTERPRETAÇÃO HEIDEGGERIANA DA TÉCNICA MODERNA.
Por Marcos Paulo L. Vieira

O que se realiza no presente texto é uma interpretação ontológica do fenômeno da técnica moderna a partir do pensamento de Martin Heidegger. Tal esforço encontra seu impulso primordial e sua sustentação basilar na análise de sua conferência intitulada A questão da técnica. Através de uma cuidadosa análise dessa conferência, procuramos inicialmente mostrar que a essência da técnica não poderia ser apreendida tecnicamente, ou seja, por meio da análise das práticas e dos usos técnicos em sua imensa diversidade. De fato, a essência da técnica só se deixa pensar por meio de um saber que a compreenda em sua essência, isto é, um saber filosófico.

O presente texto desdobra-se em cinco movimentos. 1º delimitação e refutação dos modos ordinários de compreensão da técnica moderna; 2º compreensão originária da essência da técnica como um modo peculiar de desencobrimento; 3º determinação da essência da ciência moderna desde seu caráter existencial; 4 ºelucidação dos nexos ontológicos travados entre a essência mesma da técnica moderna e a essência existencial da ciência moderna e, por fim, 5 º a elucidação da necessidade de se manter a vigília do questionar filosófico face a essência da técnica moderna enquanto um modo de desencobrimento suprêmo.
Eis os movimentos constitutivos do texto devidamente elencados. 

Começaremos agora mostrando em que situação hermenêutica eles precisam figurar. A expressão situação hermenêutica quer ser entendida aqui no mesmo sentido expresso por Heidegger nestas palavras em Ser e Tempo:
Uma investigação ontológica é um modo possível de interpretação. Esta é a elaboração e apropriação de uma compreensão. Toda interpretação possui sua posição prévia, visão prévia e conceptualidade prévia. No momento em que, enquanto interpretação, se torna tarefa explícita de uma pesquisa, então o conjunto dessas “pressuposições”, que denominamos de situação hermenêutica, necessita de um esclarecimento prévio que, numa experiência fundamental, assegure para si o “ objeto” a ser explicitado. Uma interpretação ontológica deve liberar o ente na constituição de seu próprio ser. Para isso, vê-se obrigada, numa primeira caracterização fenomenal, a conduzir o ente tematizado a uma posição prévia pela qual se deverão ajustar todos os demais passos da análise. Estes, porém, devem ser orientados por uma possível visão prévia do modo de ser dos entes considerados. Posição prévia, visão prévia, portanto, já delineiam, simultaneamente, a conceptualidade prévia para a qual se devem dirigir todas as estruturas ontológicas”.[1]
 
Pois bem, em que situação hermenêutica os movimentos constitutivos de nosso texto precisam aparecer. Que posição, visão e conceituação prévias seriam adequadas para que pudéssemos iniciar uma interpretação ontológica da técnica moderna? Poderíamos aproximar um pouco mais o foco do âmbito do perguntar e aí então teríamos: onde precisamos existencialmente nos situar para que a técnica moderna se nos afigure como algo questionável em sua essência? Onde exatamente precisamos nos encontrar dispostos, com que tonalidade afetiva e qual seria a compreensão e o tratamento conceitual adequados que fariam com que a técnica moderna se nos apresentasse, hoje, como algo de questionável em sua essência?

Que ela possa vir a ser questionada, isso significa inicialmente: insinou-se faticamente uma estranheza fundamental entre a nossa compreensão e a coisa que se tornou questionável. Para que algo adquira o modo de ser de algo questionável é necessário, portanto, que entre o nosso estar-aí existencialmente situado e a coisa que se nos mostra como questionável tenha havido um certo abalo no que diz respeito a estabilidade de uma relação compreensiva clara de uma determinada conjuntura. Se pudermos seguir com esse modo de entender as coisas é preciso conceder que: à medida que a técnica moderna se nos mostra como aquilo por cuja essência se pode perguntar, compreendemos então que a conjuntura, na qual a nossa relação com a técnica se configurava, sofreu um abalo.

Mas como semelhante abalo teria sido possível, se hoje não conseguiríamos nem ir nem vir em nossas grandes cidades sem uma eficiente técnica de controle de tráfego ? Como, se o empenho de nossas atividades profissionais está atrelado à potência e velocidade cada vez mais formidáveis dos processadores dos nossos computadores pessoais? Como, se a indústria de alimentos dispõem em nossos refrigeradores alimentos que de segundo a segundo sobrepotenciam mais e mais a nossa capacidade vital? Como teria sido possível que uma conjuntura tão adequada e favorável como essa, do ponto de vista existenciário, pudesse ter sido, mesmo que por alguns segundos, posta como questionável em sua essência? E é precisamente isso que se dá quando perguntamos pela essência da técnica. A pergunta pressupõe tacitamente um abalo radical entre o nosso ser-aí e a essência da técnica. Eis aí a posição prévia mais adequada para começar um questionamento ontológico-existencial concreto da essência da técnica. Tal questionamento deve partir também da visão prévia adequada que nos permita ver livremente que a satisfatória, pacífica e familiar conjuntura que se configura na nossa relação com os produtos da técnica encobre uma radical indigência no que diz respeito ao saber de sua essência. 

Assumir uma tal indigência significa ganhar o âmbito a partir do qual uma conceptualidade prévia precisa ser articulada com vistas a uma interpretação ontológica adequada do ser mesmo da técnica moderna. Assumir, portanto, o abalo de nossa relação existencial com a técnica, a estranheza de sua conjuntura e a indigência de uma clara compreensão da essência da técnica significa muito perfeitamente conquistar a situação hermenêutica, a mais adequada, desde a qual podemos então, efetivamente, dar início a uma investigação ontológica no que diz respeito a essência da técnica moderna.

Em conseqüência disso, precisamos compreender inicialmente que uma investigação, uma interpretação ontológica da essência da técnica deve guardar a seguinte advertência metodológica preliminar, qual seja: a essência da técnica não se deixa apreender tecnicamente, isto é, por meio de meras análises das práticas e dos usos técnicos ou mesmo de um relatório completo e total a respeito dos avanços dos produtos técnicos em sua imensa multiplicidade. Uma interpretação ontológica da essência da técnica, que se entende bem a si mesma, precisa, além de conquistar uma adequada situação hermenêutica, definir-se como um saber que compreende a essência do ser-técnico enquanto um tema constante de demonstração explícita, isto é, ela precisa ser estritamente filosófica.

Em virtude dessa advertência preliminar abandonamos, pois, uma concepção exclusivamente antropológico-utilitária da técnica moderna e efetuamos, com isso, o primeiro passo para um modo possível de ganhar também esse espaço a partir do qual a técnica e sua “amigável” conjuntura se tornem inteiramente questionáveis em sua essência. Desse modo, a tonalidade afeitva, o encontra-se disposto e a compreensão fundamental, ou em outros termos a situação hermenêutico-existencial que abrirá a técnica em sua questionabilidade essencial é justamente a de uma indigência compreensiva radical face ao caráter ontológico da técnica moderna. É precisamente daqui que precisamos partir. 

Em contrapartida, a aparente riqueza, o ilusório sentimento de seguraça e a suposta sobrepotenciação de poder que a técnica moderna insúfla e irradia por todas as partes do globo, encobrem, em verdade, um estado de coisas muito mais originário e anterior, qual seja: a absoluta indigência do nosso ser-aí hodierno no que diz respeito ao saber da essência da técnica moderna. E é justamente neste horizonte hermenêutico que pretendemos nos situar em nossa interpretação da essência da técnica consoante aos impulsos indispensáveis da obra de Martin Heidegger.

Fiéis, pois, à nossa situação hermeneutica de uma certa suspensão dos conhecimentos ordinários à respeito da técnica, recebemos de Heidegger uma indicação positiva no interior do texto A Questão da Técnica. Heidegger afirma ali que é uma peculiar forma de desencobrimento que rege a vigência da técnica moderna. Esse peculiar desencobrimento se opera como um provocar explorador que provoca a natureza, explorando-a para que esta venha a fornecer a sua energia. Tal energia seria, então, beneficiada e armazenada. O termo desencobrimento precisa ser entendido como um apelo envolvente que se dirige à nossa existência e no qual, em resposta, nós nos inserimos de um modo radical e irremissível, existindo. Ou seja: todos os nossos movimentos existenciários e existenciais pertencem essencialmente a este desencobrimento que apela envolvendo. 

O envolvimento deste envolver designa-se círculo de desencobrimento. Pois bem, segundo a compreensão heideggeriana a técnica moderna é um modo específico deste desencobrimento que apela envolvendo e no qual nos inserimos existindo. Nós só existimos porque respondemos ao apelo envolvente do desencobrimento, nunca ao contrário. Na época da técnica essa resposta é agressiva, exploradora e provocativa.

Um exemplo: suponhamos que pudéssemos estar neste momento em uma região da Terra, em um lugar em que plantas e animais, homens como nós e rochas formam um todo e instalam um mundo. Neste lugar “descobre-se”, por uma série de sondagens geológicas, petróleo. Descobre-se que em um ponto específico daquele lugar há uma exsudação e afloramento de petróleo. Mapea-se a área e perfura-se, então, poços neste local. A prospecção científica apodera-se desta região e a converte em um ponto a partir do qual os geólogos começarão a mapear as características terrestres indicadoras de sítios favoráveis à perfuração em busca do precioso líquido oleoso betuminoso de origem natural composto por diferentes substâncias orgânicas que se encontra por si subsistente e simplesmente dado naquele ponto do planeta. O homem respondeu ao apelo daquele todo envolvente na forma de uma furiosa exploração provocadora. Os caminhos daquela região foram de maneira eficaz convertidos em reserva petrolífera. As semente não brotam mais de acordo com a dádiva do seu possível, porquanto não há mais cultivo, cuidado, espera. Em contrapartida, uma laboriosa equipe de geofísicos já se encarregou de por em obra a instalação de torres de perfuração. 

Prontamente, uma torre sustenta a corrente de perfuração, formada por uma série de tubos acoplados. A corrente gira unida ao banco giratório situado na base da torre. A broca de perfuração situada no final da corrente é formada por três rodas cônicas com dentes de aço endurecido. Em conseqüência , a rocha é levada à superfície por um sistema contínuo de fluído circulante impulsionado por uma bomba. Quando esse poço é perfurado, o gás que compõe uma solução com o petróleo é liberado e começa a se expandir. Essa expansão, junto com a diluição da coluna de petróleo pelo gás, menos denso, faz com que o petróleo aflore à superfície. 

Creio que agora certamente possamos compreender em que medida o desencobrimento que rege a vigência da técnica moderna é um apelo envolvente provocador e explorador ao qual o homem responde provocando, explorando e dessa forma se inserindo no ente na totalidade. A partir do exemplo pode-se muito claramente entender que para o sentimento de nossa época, inserir-se no ente na totalidade significa primordialmente: ouvir e ver sempre e necessariamente a constância e a uniformidade daquilo que está disposto para uma exploração e situar a compreensão exclusivamente na cobiça e na sanha do domínio integral do ente disponível para as diversas formas de exploração.

Em consonância ao que vimos, todos os modos possíveis de resposta ao apelo do desencobrimento estão integralmente comprometidos com um comportamento existencial de exploração de algo que se encontra inteiramente disponível. O processo de reposta ao apelo provocador é, com efeito, unidimensional. Dito melhor: exploração, extração, transformação, estocagem, distribuição, consumo, reprocessamento e nova exploração. O exemplo da extração de petróleo em uma dada região mostrou-nos que o todo do ente é compreendido como reservatório energético preparado e mantido pelos esforços iniciais de objetivação ôntica das ciências positivas ( nesse caso: a geologia e a sismologia). A Gestell enquanto composição se constitui precisamente deste encontro. É justamente, portanto, no âmbito dessa dinâmica que a ciência se subordina à Composição à medida que uma referência originária ao ser mesmo, enquanto o desencoberto, é simplesmente dispensada. Em conseqüência, começa a se perfilar a conversão do real, não mais em objetidade cientificamente determinada, mas em disponibilidade constante mantida pela ciência tecnicizada e custodiada pela Composição.

Pois, na essência mesma da técnica como aquele poder que conduz o homem, num conjunto de comportamentos, a explorar e desafiar o ente na totalidade e a compreender o todo do ente enquanto o disponível não resta mais nenhuma referência essencial ao ser mesmo e, nem sequer algo como uma elaboração autônoma de uma compreensão do ser além do ser-disponível de uma constante disponibilidade
No âmbito da disponibilidade, então, a produção do disponível, o uso do disponível, o abuso do disponível, o consumo do disponível, a usura do disponível e a nova volúpia da produção do sempre disponível perfazem o círculo organizado tecnicamente de um permanente e violento saque de um mundo que deixou de ser mundo humano.

A técnica em seu empenho histórico, em sua vigência, é um modo de responder ao apelo do desencoberto como Composição , que em seu empenho total provoca o ente em sua totalidade , para que este entregue as suas energias para uma extração e acumulação posteriores e contínuas. A Composição se define como o poder de um tal apelo que reúne o homem para uma semelhante provocação. Uma provocação que, em verdade, se expressa em um conjunto de comportamentos que reúnem em si os diversos modos de um “pôr à disposição” a natureza nos modos de objetivação do ente na totalidade para um representar seguro deste.
Quando a humanidade, tomada pelo poder da Composição, desvela a entidade como fundo de recursos, passa a requerer também a manutenção constante desse fundo. 

O exemplo do petróleo ilustra bem isso. A certeza, pois, de que o real, o ente em sua totalidade estará “posto” como fundo de recursos sempre disponíveis deve ser assegurada de uma maneira permanente com o auxílio dos procedimentos científicos, isto é, técnicos. Para um tal fim, é necessário fechar qualquer outra possibilidade de desvelamento que não seja aquele em que o real esteja desencoberto como disponibilidade constante, fundo de recursos para diversas formas de utilização e exploração eficazes.
Eis onde se situa o extremo e o maior perigo: o desencoberto (o círculo de consumação existencial) não ser mais compreendido enquanto tal pelo homem. Em consonância com isto temos uma forma do desencoberto, transmutada em disponibilidade constante, pretendendo impor-se como a hegemônica, trancando desse modo qualquer outra possibilidade de desvelar que não seja, precedentemente, o apelo que desafia o homem para uma provocação que se movimenta no sentido de uma exploração organizada do ente na totalidade. Em conseqüência disso, dá-se como que um “trancamento” da realidade existencial fática na “forma armada” da disponibilidade constante, enquanto fundo de recursos energéticos em permanente manutenção. Isso significa, muito claramente, um impedimento para o surgimento de um desencobrimento mais originário e essencial. Significa também, para Heidegger, um impedimento à verdade compreendida como abertura da consumação existencial e “des-trancamento” de mundo em sua mostração fenomenal.

Enfrentar um tal perigo tentando solucioná-lo, porém, não significa estruturar um movimento discursivo e prático que intentaria uma espécie de “demonização” da técnica e dos seus produtos. Significa, antes disso, tentar manter desperta e viva a necessidade de uma vigília do questionar pela essência desta época histórica que já vem sendo preparada bem antes da mera operacionalização de máquinas e utensílios técnicos.
A Composição é a ameaça suprema, ao passo que tenta subtrair do ente na totalidade o seu caráter de desencoberto e ao homem o seu lugar de realização existencial própria. A essência da técnica passa realmente a ser o maior perigo para a essência do Ser-aí humano à medida que ela pretende fazer submergir todas as possibilidades de desencobrimento em uma única requisição, a saber, aquela que requisita o real e o próprio homem como uma constante apresentação de fundos de reservas energéticas sempre disponíveis.

A partir da nossa análise da compreensão heideggeriana da essência da técnica entendemos que a única possibilidade de salvação diante dessa perigosa conjuntura é a vigília do questionar da essência, isto é, o pôr em curso o filosofar autêntico. Isto é: é somente a partir da vigília do questionar filosófico da essência que o perigo de a natureza (a natureza humana, sobretudo) se tornar um vasto fundo disponível – um reservatório de energia gigante onde bebem a técnica e a indústria cientificizada modernas -, pode ser abolido.
É, então, com a vigília pensante que podemos reconhecer um caminho diverso de desvelamento que possa abrir ao homem uma relação criadora mais originária, e não mais exploradora, com o real. Pensando, nós entramos em uma relação compreensiva com a essência da técnica como Composição e a reconhecemos como o poder que conduz a uma resposta humana para um apelo que provoca o homem a desenvolver uma particular maneira de lidar com o ente em sua totalidade. Este estado de vigilância filosófica talvez não nos liberte imediatamente do perigo que habita no domínio planetário da essência da técnica, mas certamente nos coloca em face desse perigo de uma forma mais atenta, desperta e comprometidamente livres.

Comprometer nosso ser-livre no âmbito de uma vigília questionadora, pensando acerca daquilo que constitui, de uma maneira crescente, a nossa época: eis no que teria consistido o empenho primordial e único desse texto. Um semelhante intento também pode se expressar nos seguintes termos: procurar ter tornado visível a compreensão, segundo a qual, uma resposta verdadeira a uma questão essencial é sempre um ressoar mais audível e penetrante dessa mesma questão. Isto significa mantê-la viva em meio à vigília do questionar da essência.
 Fonte:
CONSCIENCIA:.ORG 
http://www.consciencia.org/heidegger_essencia_verdade-marcos.shtml

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