domingo, 22 de agosto de 2010

IDENTIDADE E DIFERENÇA em Heidegger

 

Sobre identidade e diferença em Heidegger

Roberto S. Kahlmeyer-Mertens {1}
Resumo: A proposta do ensaio é pensar a implicação ontológica entre ser e identidade na filosofia de Heidegger. Temos o objetivo de abordar o conceito de identidade, buscando acenar como esta estaria relacionada com a diferença ontológica entre ser e ente, atrelado ao ser-aí e sua compreensão de ser (estes entendidos como experiências constitutivas da existência). Presumimos que a identidade pode ser pensada, neste contexto, como a co-originariedade do ser-aí com o ser, bem como a co-originariedade do ser em geral. O exercício empreendido aqui busca estofo na conferência O princípio de identidade  (1957), partindo da interpretação de diversas passagens de texto, buscando aproximações às temáticas da obra Ser e tempo (1927).

Palavras-chave: Heidegger, Ser e tempo, principio de identidade, diferença ontológica.
Nosso exercício de interpretação começa a partir da seguinte proposição de Heidegger:
O apelo da identidade fala desde o ser do ente. Onde porém, o ser do ente no pensamento ocidental chega propriamente à palavra, à saber, em Parmênides (…) “O mesmo, pois, tanto é apreender (pensar) como também ser”. Neste caso, coisas diferentes, pensar e ser são pensados como o mesmo. Que quer isso dizer? Algo absolutamente diverso em comparação com aquilo que ordinariamente conhecemos como a doutrina da metafísica, que a identidade faz parte do ser. Parmênides diz: “O ser faz parte da identidade” (HEIDEGGER, 1973, p. 378).

O ser vem à luz no ente. Ente que podemos apontar como aquilo que é. Nesse modo de enunciação, delineia-se o que os gregos vêm apontar com “o mesmo”(tó autó). Assim, o ente é à medida que ele mesmo é. Nessa proposição, não vemos mais que a apresentação de um ente que se confirma como ente (Seindes) ao ser (Sein). Essa formulação indica não só uma mesmidade, quando a lemos inteira, mas redunda numa indicação quando analisamos essa oração por partes. Daí dizermos: um ente que, uma vez sendo… Compreendemos, assim, o ente como um modo de o ser se dar. Destarte, podemos afirmar que todo ente é ao ser, ou, apenas, que todo ente é.

Em outra parte da proposição grifada, dizemos que esse ente: (…) confirma-se como ente ao ser. Confirmar-se ou “co-afirmar-se” é grifar o caráter de mesmo que há no ente que é. É também firmar que ente é o que se desdobrou à superfície do fenômeno. É o ser que se geminou em ente mediante um apelo, mediante uma evocação. Daí Heidegger afirmar que: “O apelo da identidade fala desde o ser do ente” (HEIDEGGER, 1973). Perguntamos: não seria este desdobrar, esse geminar, isso que Heidegger chama de identidade? Não teríamos, a partir da identidade, a possibilidade de olhar para essas duas partes geminadas e apontar o mesmo? Isto é, não poderíamos olhar para essas “coisas diferentes” e reconhecer nelas uma co-pertinência, a ponto de, mesmo manifestando-se diferentemente, apontarmos a mesmidade? Certamente, sim; nossa certeza legitima-se na proposição de Parmênides quando este traz à palavra tal experiência originária: “O mesmo, pois, tanto é pensar como também ser” (PARMÊNIDES apud HEIDEGGER, 1973).

Dois modos de interpretação são possíveis e próprios a essa sentença:

O primeiro privilegia o aspecto de unidade expresso pela identidade que vimos tematizando. Por esse pensamento, como também em Tales de Mileto, o múltiplo torna a ser pensado como unidade; assim, coisas tidas como diferentes são pensadas como o mesmo. Essa interpretação permite que transponhamos tais proposições para a linguagem abstrata da lógica, sem, com isso, reduzi-la a um princípio formal de identidade, mas apenas valendo-nos do recurso de visualização que ela nos proporciona. Assim, teríamos: O mesmo, pois, é A como também B, onde os dois objetos estão subordinados a uma idéia de igualdade através do termo “o mesmo”. Mas seria isso apenas igualdade? Não, pois ela acaba sendo lida como identidade, fazendo que apreendamos que A é o mesmo que B. Donde, em última instância, conclui-se que o A, que também é B, é o mesmo que A; ou que A é A (ou que B é B). Assim, mesmo essa expressão formal, aqui demonstrada, remonta a identidade, podendo ser interpretada como a relação entre ser e ente tratada no parágrafo acima.

O segundo modo de interpretar a sentença busca investigar a relação de conteúdo que Parmênides propõe. Explicaremos: naquela, vemos o pensar (noein) ser apresentado como o mesmo que ser. Aqui, mais que a relação de identidade entre duas coisas supostamente distintas, vê-se outra de co-pertinência. Isso tornou possível interpretações problemáticas como as que vemos na modernidade. Dizem-se problemáticas, por apontar o ser como aquilo que é determinado pelo pensamento, ou o pensamento como lugar do ser. Ocorre que a modernidade, quando vai à questão, já lê na sentença de Parmênides o pensar com uma anterioridade sobre o ser, de “quem pensa” sobre o ser que “é pensado”. Assim, o foco do questionamento da identidade desviou-se para investigações das estruturas transcendentais de um sujeito que seria responsável por esse pensar que promoveria o ser. Desde modo, fica claro que a modernidade interpreta o fenômeno da identidade não como uma co-pertinência, mas como uma relação de causalidade. Pode-se, assim, observar que, nos modos conceituais dessa doutrina metafísica, a identidade de que falamos não ocupou outro lugar, senão o de uma categoria. Entretanto, esse momento na história da filosofia deu a colaborar com questões que ecoam até hoje, e, em boa medida, preparou o solo para a abordagem da questão da identidade tal qual se vê hoje, no pensamento de Heidegger.

Dizendo de maneira radical, o problema da identidade, tal como vemos expresso na experiência do pensamento antigo, é “algo absolutamente diverso daquilo que ordinariamente conhecemos como a doutrina da metafísica, na qual a identidade faz parte do ser” (HEIDEGGER, 1973). Com essa menção à modernidade, remetemo-nos ainda à primeira citação de nosso texto. Nessa podemos encontrar a distinção fundamental entre as duas formas de interpretar a relação entre identidade e ser. Para os modernos (e leia-se aqui toda a porção final da metafísica ocidental até Hegel) “a identidade faz parte do ser”. Isto é, a identidade seria uma propriedade do ser, uma fração ou categoria desse ser, capaz de ser determinada, predicada e “re-arranjada” ao sabor das conveniências da ontologia. 

Em contrapartida, ainda na citação, vemos o pensamento grego antigo dizer “o ser faz parte da identidade”. Tal disparidade parece sugerir que a forma de lidar com a experiência da identidade poderia passar ora pela condição de sujeito ora pela de predicado. Ou melhor: ora, seria aquilo que promove o ser; ora, o que seria promovido por ele. Esse desacordo, que nasce de uma leitura dicotômica do problema, parece sugerir-nos que devemos nos enveredar para uma das duas propostas. Parece que nos é cobrada a definição por uma opção entre uma das partes desse problema. Mas será que uma investigação sobre a questão da identidade se resolve com uma “tomada de partido”? Seria a atitude mais própria deixarmo-nos seduzir pelo conforto de adotar a primeira ou a segunda alternativa?

Essas duas perguntas podem ser respondidas com facilidade se rememorarmos que, embora o exame que empreendamos nos ponha diante de uma encruzilhada nitidamente marcada por uma petição de princípios, a experiência do ser dá-se como unidade e, deste modo, a identidade é também uma; daí Heidegger afirmar: “(…) a unidade da identidade constitui um traço fundamental do ser do ente. Em toda parte, onde quer que mantenhamos relação com qualquer tipo de ente, somos interpelados pela identidade” (HEIDEGGER, 1973). Constituir um traço fundamental não significa dizer que identidade é parte do ser do ente. Antes, é afirmar que é o modo com o que esse ente é, ou seja, é enquanto ser na identidade.

Ademais, como diz a citação, desde sempre na lida com o ser do ente (que somente através de uma relação de identidade é possível) somos interpelados, abordados, tomados por uma experiência que, em seu modo constitutivo, não exprime anterioridades. Daí afirmar-se que o ser apenas se confirma como ente através da identidade.
 
Em resposta às perguntas que ficaram pendentes acima, podemos afirmar que, certamente, a questão não se resolve com uma opção arbitrária. Não nos cabe aqui estabelecer um primado de um termo sobre o outro (talvez nem nos seja possível); resta-nos apontar, num e noutro o modo de formular, a co-pertinência que lhe é determinante. Com isso, reiteramos a unidade da experiência da identidade e do ser. Assim, também respondemos à segunda pergunta pendente. Deste modo, demonstramos a unidade do ser e da identidade, além de ministrar conceitos como o de diferença ontológica.

Um breve balanço de nosso argumento até então vem demonstrar a necessidade de uma maior explicitação de alguns aspectos que podem, num primeiro instante, parecer inconsistentes. Afirmamos, inicialmente, que o ser teria geminado em ente mediante um apelo. Asseveramos também que a relação de identidade é una, pois o ser é uno. Assim, proporemos algumas perguntas:

1.      Como poderia o ser ter se duplicado e ainda assim ser uno?

2.      Sabemos que uma co-pertinência é uma relação entre duas ou mais coisas. Como, então, poderíamos afirmar a unidade da identidade já que ela é co-pertinência?;

3.      Como seria possível manter a idéia de diferença sem comprometer a interpretação da unidade entre identidade e ser? (artifício que visa a afastar a leitura eivada dos caracteres metafísicos da tradição, que já enxerga, nessa relação, uma causalidade) e, finalmente,

4.      O que poderíamos entender, aqui, como “apelo”, “chamado”, “fala” e outros tantos termos que se referem à identidade, mas que permanecem enigmáticos?

As três primeiras perguntas denotam uma preocupação lógica com o nosso discurso; requerem o rigor e a coerência de uma não-contradição, operando num registro binário, buscando ler formalmente a questão e desprezando assim seu caráter fenomenal. Podem ser respondidas numa única manobra, que consiste no esclarecimento do sentido da terminologia aplicada. Assim, o que apontamos como “geminação” são dois modos do mesmo mostrar-se. A saber, ser e ente desde os quais se infere uma dimensão de “ser-identidade”. Isso é o que podemos apontar como co-pertinência, sendo ela no seu âmbito ontológico o modo dessa geminação ou, na esfera ôntica, a expressão de dois modos possíveis do mesmo mostrar-se. Portanto, isso que chamamos de “diferença ontológica” entre ser e ente é, no fundo, o que torna possível a experiência da identidade e o que possibilita a asserção desse fenômeno e sua afirmação como unidade. A confirmação disso vem com a seguinte citação do texto de Heidegger:

Interpretamos a mesmidade como comum-pertencer (co-pertinência). Facilmente se representa este comum-pertencer no sentido da identidade, pensada mais tarde e universalmente conhecida (…) O ser é determinado a partir de uma identidade, como traço dessa identidade(…) A mesmidade do pensar e ser, que fala na proposição de Parmênides, vem mais longe que a identidade metafísica, que emerge do ser e é determinada como traço dele (HEIDEGGER, 1973, p. 379).

Tendo esclarecido as três primeiras perguntas, partamos agora para a quarta, que tem seu interesse voltado ao conteúdo conceitual da questão tratada. Ela pergunta pelo significado de termos como apelo, chamado, fala que reincidem na citação do autor e no nosso trabalho.

Heidegger (1973) diz: “o apelo da identidade fala desde o ser do ente”. O que poderíamos entender por apelo? Todo apelo é um chamado, uma invocação. Tal invocar é um modo de agir, uma ação com a voz. Essa voz que age se dirigindo a algo que é alvo da evocação, algo do qual se espera reação, reposta. Assim, podemos dizer que o apelo à identidade requer uma resposta, que se caracteriza como aquilo que chamamos desdobramento ou deslocamento, precisamente, o deslocamento do ser em sua condição de em-si e para-si à sua condição de para-o-outro, como o ente. O que, ainda utilizando uma terminologia hegeliana, poderíamos entender como o deslocamento do ser (sein) para o ser-aí (Dasein),[2] ser-aí que, distintamente da conceituação heideggeriana, qualquer ente efetivamente é. O “aí” (Da) do termo ser-aí é um indicativo desse deslocamento, desse “deslocare”. Entretanto, o “aí” faz mais que definir uma dimensão espacio-locativa, aponta para uma dimensão mundana desse ser. Para a determinação de um ser situado por um arcabouço existencial, no qual entre existenciais como “mundanidade”, “facticidade” e a “linguagem”, como existencial que reúne o ser em um “ethos” desde o qual é possível a compreensão deste ser enquanto um ser-situado-aí em um mundo. Destarte, dizer que “o ser fala”, ou que a identidade é apelada, é o mesmo que fazer referência a esse “local” desde o qual é possível não só uma compreensão de ser, mas uma de identidade.

O ser (sein) enquanto ser-aí (Dasein) tem compreensão de si e dos outros entes que lhe vêm ao encontro, é capaz de compreender o que é enquanto ente efetivo e mesmo o que significa “ser” em sua compreensão mais abstrata. O ser-aí reconhece, através desse processo, a identidade das coisas que são à medida que são o que são, ou: “consigo mesmo é cada A (ente) ele mesmo o mesmo” (HEIDEGGER, 1973). O aspecto existencial que marca o tom desse argumento sobre a identidade encontra legitimação na seguinte passagem do texto heideggeriano: “Em toda parte, onde quer que mantenhamos qualquer tipo de relação com qualquer tipo de ente, somos interpelados pela identidade” (HEIDEGGER, 1973), pois só somos interpelados pela identidade; por sermos capazes de ter uma compreensão do ser e, logo, da própria identidade. Donde se conclui que esta interpelação já é, sempre, desde uma compreensão, a de ser que, à medida que existe, é tomada pelo sentido disso que se faz como ser-identidade.

Essa indicação é o que temos por meio do próprio termo “interpelar” ou “interpelação”. Uma análise mais detida na etimologia deste no alemão nos passa a idéia de identidade como aquilo que é conjugado entre o ser e a sua compreensão. Assim, em “auffordern” (termo utilizado pelo nosso autor para referir-se a essa interpretação),“auf” é a preposição que nos aponta um para, um em direção à…, donde presume-se que lidamos com um ponto desde o qual a compreensão do ser tem lugar; deste, parte em direção a outro ponto que, tomando por referência, infere a identidade. Destarte, identidade nasce nessa relação entre dois pólos.

O verbo “fordern” expressa bem o caráter dessa relação. É uma manifestação de exigência, de reclamação, de requerimento ou, finalmente, utilizando um termo que já nos é conhecido, apelação. É importante observar que, mesmo no termo da língua portuguesa, “interpelar” (adotado como tradução para “auffordern”), essa interpretação etimológica vigora. Vejamos: o prefixo latino “inter”, corresponde à preposição alemã “auf”. Entretanto, esse em vez de referir-se ao deslocamento de um pólo ao outro, menciona a relação que se dá no intervalo desses dois pólos. O outro termo que compõe interpelar, correspondente à palavra alemã “fordern”, é também um verbo, o verbo apelar. O mesmo “apelar”, que, durante toda essa argumentação, esteve em questão, por caracterizar o modo com o qual a identidade é inferida de uma relação entre ser e sua compreensão, mediante o ente. É isso que chamamos de conjugação entre ser e um ente capaz de ter compreensão de ser, entre ser e ser-aí; é nisso que consiste a co-pertinência ou co-originariedade entre ser-identidade.

A interpretação do ser em sua identidade apontou que o ser enquanto ser-aí possui compreensão do seu ser e dos outros entes que lhe vêm ao encontro. Assim, conclui-se que esta interpelação já é compreensão de ser. A compreensão de um ser que é, à medida que existe, tomado pelo sentido disso que se faz como face conjugada do ser compreendido. Duas conseqüências são avistadas desde as presentes afirmações: a) A possibilidade de pensarmos ser e identidade como o mesmo; b) A revelação do modo com que a identidade (ou diferença) ontológica é capaz de apontar a co-originariedade de que tratamos. O corpo do argumento subseqüente compor-se-á do exercício de demonstração desses três pontos, tendo por intuito primordial indicar o modo com o que essa co-originariedade se dá.

Acima, deparamo-nos com a seguinte citação de Heidegger (1973): “Em toda parte, onde quer que mantenhamos qualquer tipo de relação com qualquer tipo de ente, somos interpelados pela identidade”. O período marca, a idéia de totalidade, ele diz, “em toda parte”, “qualquer tipo de relação”, “qualquer tipo de ente”. A idéia de totalidade aqui nos é importante, pois abarca tudo que de algum modo é, dizendo respeito a qualquer parte, ente ou relação que se manifeste em uma dimensão de ser. Diz, pois, respeito ao ser que se abre como totalidade. 

Do ponto de vista dos entes, teríamos que esse ser estaria vigente na totalidade. Por outro lado, do ponto de vista do ser, este seria unidade absoluta incapaz de dissociar-se em partes. Daí a totalidade expressa na citação analisada pode ser perfeitamente lida como unidade. Aquela oração diz: “Em toda parte (…) somos interpelados pela identidade”. Entretanto, podemos afirmar (com base na reflexão acima): na totalidade, ou, onde quer que haja totalidade, somos interpelados pela identidade; ou, mesmo, na unidade, somos interpelados pela identidade. Ora, o ser-aí é um ente; um ente que não poderia deixar de integrar essa totalidade (caso contrário, não poderíamos tratá-la como tal). Ipso facto, a identidade, enquanto relação, é também um ente que integra a mesma totalidade. Assim, podemos afirmar que: o ser-aí, que sempre e a cada vez somos, é sempre interpelado pela identidade nessa unidade.

O aposto, que sempre e a cada vez somos, não apenas grifa que somos, mas que só somos enquanto existimos (isto é, enquanto esforçamo-nos por mantermo-nos no exercício de ser, de “essencializar-nos”). Mas qual seria o propósito dessa ressalva referente ao existir do ser-aí? Ela é importante, pois permite que apontemos que, somente existindo, o ser-aí é; somente sendo, na unidade do ser, pode ser interpelado pela identidade. Assim, o ser-aí se deixa tomar pela apelação da identidade. A formulação a qual chegamos parece deixar nítido que a identidade diz respeito à constituição de todos os fenômenos (HEIDEGGER, 1996). Entretanto, o fenômeno se manifesta a um ente específico, o ente que somos (daí Heidegger afirmar na citação “somos interpelados”).

Dizer respeito à constituição de todos os entes não quer dizer compor uma dimensão essencial desses entes. Não se trata disso, pois isso seria nivelar todos os entes “por baixo”; isto é, compreender o ser-aí, constituinte da experiência homem, como também um ente simplesmente dado, como possuidor do modo de ser de “coisa”, o que nos devolveria para o registro metafísico tradicional. Entendemos essa leitura uma desconsideração do caráter fenomenal do ser-aí tal qual vemos tematizado em Ser e tempo, bem quanto seu modo de existir. Assim, a identidade aponta para o ser que irrompe no ente, em qualquer ente. Entretanto, essa irrupção não se dá fora do registro de compreensão, por isso, compreensão, aqui, deve sempre dizer compreensão de ser, compreensão do ser que se é enquanto ser-aí; compreensão das estruturas e relações que determinam esse ser enquanto ser-aí; compreensão do ser dos entes que são simplesmente dados.

Afirmamos que esta compreensão pertence a um ser que é à medida que existe e que, ao existir, é tomado pelo sentido disso que se faz como ser-identidade. A compreensão do ser é sempre a do ser de um ente. Assim, o ser, enquanto ser-aí, tem compreensão de si e dos outros entes que lhe vêm ao encontro; é capaz de compreender o que é ente e mesmo ser em sentido abstrato. Ter compreensão de si e dos demais entes integrantes da totalidade é compreender o ser em sua unidade. Unidade marcada pelo ser desse ser-aí, desse ente que tem compreensão de ser. Heidegger nos certifica dessa proposição na seguinte passagem: “Phýsis e lógos são a mesma coisa. Lógos caracteriza o ser de um ponto de vista novo e antigo, ao mesmo tempo: o que é ente, o que é consistente e estável, acha-se reunido em si mesmo por si mesmo e se mantêm nessa reunião” (HEIDEGGER, 1973). 

Cremos que não há porque discordar de que o que Heidegger descreve na citação é a co-pertinência do ser da totalidade (phýsis) e do ser-aí, como o ente dotado de compreensão de ser. Pois não ficaria aqui explícito o que vimos tratando durante todo este trabalho como co-originariedade? Não ficaria claro nessa citação que o papel do ser como identidade frente ao ser-aí, à medida que esse enquanto unidade como o ser, é interpelado pelo ser ser-identidade? Ora, não seria exatamente isso que Heidegger (1973) diz com: “o ente que é (…) acha-se reunido em si mesmo e por si mesmo e se mantêm nessa reunião”?

Por enquanto, podemos afirmar que a identidade revela a co-originariedade na forma da co-pertinência ao ser da totalidade com o ser-aí quando torna possível pensar ser e ser-aí como o mesmo. Já vimos Heidegger interpretar essa mesmidade da identidade como co-pertinência. Para esse autor, essa é a mesmidade do ser e do pensar. Na citação imediatamente acima, temos a mesmidade ligada ao ente que se acha reunido em si mesmo, por si mesmo, e se mantêm nessa reunião. Essa mesmidade é pensada como reunião, como o conjunto de uma totalidade, como unidade; em última análise, a própria unidade originária de ser e pensar. 

Encontramos a legitimação dessas afirmações na análise do seguinte documento:
Se pensarmos o comum-pertencer (co-pertinência) como de costume, então como já se mostra a ênfase dada à primeira parte da expressão, o sentido do pertencer é determinado a partir da comunidade, quer dizer, a partir da sua unidade. Nesse caso “pertencer”(pertinência) significa integrado, inserido na ordem de uma comunidade, instalado na unidade de algo “múltiplo”, reunido para a unidade do sistema mediado pelo centro unificador de uma adequada síntese: a filosofia representa esse comum-pertencer como nexus e connexio, como a necessária junção de um com o outro (HEIDEGGER, 1973, p. 380).

 A análise da citação privilegiará a noção de comum da co-pertinência. Foi dito que o ente é e acha-se reunido em si mesmo, por si mesmo, e se mantém nessa reunião. Isso pode também ser dito da seguinte forma: o ente é, se acha unido em si mesmo, por si mesmo, e se mantém nessa unidade. Co-pertinência diz pertinência do ente com si mesmo, por si mesmo, na unidade em que é com seu ser. Assim, como nos diz a citação, o sentido desse pertencer do ente é marcado por essa unidade. Co-pertinência diz respeito à comunidade (ou a uma “comum-unidade”) a algo que pode ser pensado como-um; é comunhão, “co-originariedade”.

Isto posto, a demonstração da co-originariedade desde a identidade consiste em um argumento muito simples, que pode ser sintetizado assim: a) o ser que se abre na identidade é unidade, b) o ser-aí é (e só pode ser na medida em que é ser), portanto, c) o ser-aí é com o ser que se abre na unidade.
A co-originariedade pode também ser pensada desde o pertencer dessa co-pertinência. Do ponto de vista do pertencer, Heidegger parece ser mais explícito, como vemos nessa outra citação:
Se compreendermos o pensar como a característica do homem então refletimos sobre um comum-pertencer que se refere ao homem e ser. No mesmo instante nos surge a questão: que significa ser? Quem ou o que é o Homem? 

Qualquer um vê facilmente que, sem a suficiente resposta a essas perguntas falta-nos o chão em que possamos decidir algo seguro sobre o comum-pertencer de homem e ser. Contudo, enquanto questionamos desta maneira ficamos presos à tentativa de representar a comunidade do homem e ser como uma integração e de dispor esta ou a partir do homem ou a partir do ser e assim explicitá-la. Nisto os conceitos tradicionais de homem e ser formam pontos para a integração de ambos (HEIDEGGER, 1973, p. 380).

Ao propor o pensar como característica do homem (ser-aí), Heidegger faz referência ao homem e ao ser, algo que ele chama de co-pertinência, grifando o caráter de pertinência entre ambos. Interpretar o pensar como característica do homem não significa falar de uma atividade discursiva promovida por uma faculdade intelectual. Antes, é o modo de ser de algo que pensa. Nosso autor alude a certa tendência a representar a “comunidade de homem como uma integração e de dispor desta ou a partir de homem ou a partir do ser” (HEIDEGGER, 1973). Entretanto, o pensar ou a co-pertinência não oscila entre dois pólos, pois, pelo menos do modo com que Heidegger se refere aqui, pensar não é uma característica de um sujeito, nem o integrar do homem no ser da totalidade, mas a co-pertinência originária do modo de ser do homem (na condição existencial de ser-aí) com o ser. 

Explicando: pensar não é introduzir um particular que estava “de fora” no interior de um universal que o comportaria, mas o conceber que esse suposto particular pertence, e sempre pertenceu, a esse universal. Assim, podemos afirmar a co-pertinência como a co-originariedade de “ser-pensar”.

O ensaio buscou pensar as noções de identidade e diferença tais quais tratadas no universo conceitual do pensamento de Heidegger. Teve como propósito uma apresentação dos termos da questão e suas implicações mútuas, assumindo por objetivo mostrar como a identidade se apresenta ao homem através de um apelo mediado por uma compreensão de ser. Especificamente, objetivou-se apontar o homem como o único ente possuidor do privilégio ontológico de compreender o ser em seu sentido, podendo, inclusive, pensar a natureza desta apelação e estabelecendo a diferença ontológica entre ser e ente. Diferença que também aponta indiretamente à identidade do ser consigo próprio e à co-pertinência entre o homem ser-aí e o ser de todas as coisas. A hipótese que se buscou validar é a de que a identidade viria suprir a falta de um chão em que pudéssemos decidir algo sobre a co-pertinência entre ser-aí e ser, tarefa que se norteou em todo momento pelo problema: “Em que constelação de homem e ser estamos nós?” (HEIDEGGER, 1973), tal qual formulada por nosso autor.

 Roberto S. Kahlmeyer-Mertens
 [1] Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, Professor na Faculdade de Formação de Professores da UERJ e da Professor da Universidade Cândido Mendes/UCAM. Autor de Filosofia Primeira – Estudos sobre Heidegger e outros autores.

Discurso de posse do Prof. Kahlmeyer-Mertens no IHGN 

http://www.youtube.com/watch?v=OIyDKCxhy8Y&feature=related 

Fonte:
CONSCIÊNCIA:.ORG
http://www.consciencia.org/heidegger_identidaderoberto.shtml

2 comentários:

  1. Excelente texto! Quem é este autor? Parabéns pelo alto nível do Blog!

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  2. Olá "Anônimo", que elogia o texto realmente excelente.

    Heidegger é um dos meus Filósofos favoritos e "IDENTIDADE E DIFERENÇA" prima pela clareza, simplicidade só encontrada nos grandes pensadores e Roberto S. Kahlmeyer-Mertens é um dos nossos homens de gênio que elevam o Brasil diante do mundo e para nosso orgulho, Professor na Faculdade de Formação de Professores da UERJ.

    Não é mesmo uma beleza saber que ele é um Educador Brasileiro?

    Ah, copiei da postagem a citação do Autor - Sugiro procurar outros textos dele ,eu vou também garimpar seus tesouros.vamos estudá-lo juntos?

    Identifique-se,se for possivel .Eis meus endereços diretos:
    rradeir@gmail.com e radeir@ymail.com
    Com carinho, meu abraço
    Radeir

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