sexta-feira, 8 de outubro de 2010

O RACIONALISMO -Fundamento de Filosofia

Manuel GarciaMorente
Lições Preliminares
Lição XV
Se quiséssemos resumir numa só expressão breve o mais essencial no ponto de vista adotado pelo empirismo, teríamos que dizer que o empirismo é o esforço maior que se conhece na história do pensamento humano para reduzir o pensamento a pura vivência.

Dito assim, parece que não se faz senão a comprovação de um fato histórico; porém não é difícil advertir o que tal fato significa.

Significa em primeiro lugar o desconjuntamento que a filosofia inglesa leva a efeito dos elementos articulados na unidade do conhecimento.

A descrição fenomenológica que fizemos do conhecimento nos revela que o conhecimento é uma correlação entre um sujeito e um objeto mediante um pensamento. Os elementos essenciais do conhecimento são o sujeito cognoscente e o objeto conhecido; ambos em relação indissolúvel, e essa correlação se sustenta sobre o gonzo do pensamento. Pois bem: o que faz o empirismo inglês é, em primeiro lugar, desarticular entre si esses três elementos; tomar o elemento pensamento e despojá-lo de toda relação com os outros dois. Essa relação com os outros dois consiste principalmente em que o sujeito dá ao pensamento um sentido; enuncia, acerca do objeto, uma tese.

O caráter enunciativo, o caráter de menção, plena de sentido, que tem o pensamento, desaparece para os ingleses, e resta o pensamento somente como pura vivência. Esta é, a meu entender, a mais exata e mais profunda operação que os ingleses levaram a efeito numa análise do conhecimento. Mas ao desarticular desta forma o pensamento, do sujeito por um lado e do objeto pelo outro; ao prescindir daquilo que todo pensamento tem de enunciativo, de tático, de tese (afirmação ou negação acerca de algo); ao prescindir, pois, do caráter lógico e da referência ontológica ao objeto, os ingleses tomam o pensamento como um puro fato; como um puro fato da consciência; como algo dado aí; como um fato que está aí. E se propõem, ao modo dos naturalistas, explicar como esse fato advém e se produz em virtude de outros fatos anteriores.
Em suma, se se me permitir o emprego de um neologismo que cada dia vai-se tornando mais indispensável na filosofia atual, direi que os ingleses, convertendo o pensamento em pura vivência, o tomam com seu caráter puramente "fático", fazem dele um puro fato. A conseqüência desta atitude — que é clara desde Locke, embora este não a leve a suas últimas conseqüências, mas Hume, sim — é primeiramente, a eliminação do objeto como coisa. Esta eliminação do objeto como coisa leva-a a efeito Berkeley. Em segundo lugar a eliminação do próprio sujeito como coisa. Esta eliminação leva-a a efeito Hume. De modo que, de um lado, a noção de objeto se desvanece visto que o pensamento é uma pura vivência, é um fato, e esse fato não é mais referido a nenhum objeto fora dele, nem a nenhum sujeito que o forje ou que o crie. Apresenta-se o pensamento como um puro fato psicológico.

Que se propõem com isto os ingleses? 
Propõem-se algo de suma importância: propõem-se a acabar com a noção de coisa em si mesma Com efeito, a raiz profunda do idealismo, desde o próprio Descartes, é eliminar do tabuleiro filosófico essa noção de coisa em si mesma.

Não há coisas em si mesmas.
Aquilo que chamamos as coisas são os termos de nossas vivências, são os objetos intencionais de nossas vivências. Assim é que nisto os ingleses deram um passo de extraordinária importância para toda a história do pensamento moderno insistindo sobre a impossibilidade, sobre o absurdo de pensar uma coisa em si mesma. O absurdo o expõe em duas palavras e com uma precisão matemática Berkeley quando adverte que pensar uma coisa em si mesma é uma contradição, porque é pensar uma coisa enquanto que não é pensada. Segundo os idealistas, coisa em si é coisa não pensada por ninguém; e pensar a coisa não pensada por ninguém é uma contradição.

Por conseguinte, o empirismo inglês chega a ser a forma mais plena, mais completa do idealismo psicológico. Este idealismo psicológico consiste: primeiro, em desconjuntar o ato do conhecimento que compreende estes três termos: sujeito, pensamento, objeto, e não tomar como termo de pesquisa filosófica mais que o pensamento mesmo; segundo, em negar toda realidade "em si" ao objeto e no sujeito. Não resta, pois, como realidade "em si" nada mais que o pensamento, nada mais que a idéia, nada mais que a impressão, segundo a terminologia de Hume. E daqui a resposta à pergunta metafísica: quem existe? Se não existe o sujeito, se não existe o objeto, não existe mais que o pensamento como vivência; o pensamento desligado daquilo a que se refere e daquele que o refere a isso.

Por conseguinte, o que chamamos "realidade" é uma mera crença, forjada pela combinação ou associação dos pensamentos, das idéias: é outro fato que se deduz dos fatos chamados pensamentos. E aquilo que chamamos o eu ou a alma é também uma mera hipótese, na qual acreditamos pelas mesmas razões de hábito e de costume pelas quais acreditamos na existência do mundo exterior. Resta somente como última realidade, a resposta suprema à pergunta metafísica: quem existe? seria, pois, esta: as vivências e mais nada.

Encontramo-nos aqui com um positivismo, com um fenomenalismo, com um sensualismo — como queira chamar-se — que ao que mais se parece é a posição positivista de alguns filósofos alemães moderações. Esses objetos são as realidades físicas. Com essas sensações mais nada. Segundo isto, há somente duas ciências universais: uma ciência das sensações para cá (a psicologia); outra ciência das sensações para lá (a física). Com as sensações, aliando-se umas às outras, em combinações e associações sintéticas várias, compomos isso que chamamos os objetos que não são mais do que sínteses de sensações. Esses objetos são as realidades físicas. Com essas sensações fazemos ao mesmo tempo o sujeito; e essas sensações, olhando para a composição sintética que chamamos sujeito, produzem a psicologia. A psicologia é, pois, (como o é, com efeito, para Ernestc Mach), a face que olha para cá desta realidade que são as verdade? puras; enquanto que a face que olha para lá é a composição objetivadora disso que se chama a física.

116.   Crítica do empirismo inglês; a vivência como veículo do pensamento.
 Este é o balanço que podemos fazer em linhas gerais do empirismo inglês. Que juízo podemos nós agora emitir sobre esta teoria? Que devemos pensar sobre esta teoria do empirismo inglês? Adverte-se de início que o empirismo inglês arruina por completo o essencial do conhecimento. O empirismo inglês priva ao conhecimento de base e de sentido. Com efeito, o empirismo elimina do pensamento aquilo que tem de lógico.

E que é aquilo que o pensamento tem de lógico?
Aquilo que o pensamento tem de lógico é o que tem de enunciativo, ou, como se pode dizer também, de tético, de tese, de afirmação ou negação de algo. Todo pensamento é, com efeito, uma vivência; mas, além de uma vivência, todo pensamento é uma vivência que diz, que põe, que afirma ou que nega algo do objeto; e o afirma ou o nega do objeto com sentido. Que significa "com sentido"? Significa que esta enunciação, esta tese, esta afirmação que faz o pensamento, tem um valor objetivo; quer dizer, que aquilo de que o diz, tem um ser; que esse ser "é", e que esse ser constitui o termo natural do conhecimento.

Os ingleses acham que o pensamento tem duas faces, dois rostos: uma que é a da vivência pura e outra que é a enunciativa de algo; uma em que o pensamento é modificação puramente psicológica na consciência; a outra em que o pensamento assinala e afirma ou nega algo de algo, a parte enunciativa. E por que prescindem da parte enunciativa? Porque os cega o caráter vivencial do pensamento e não percebem que no conhecimento a vivência não é, para o sujeito, senão um trampolim, uma espécie de base, por meio da qual o sujeito, apoiando-se na vivência, quer enunciar algo acerca de algo.

Tomemos, por exemplo, a crítica clássica que Berkeley faz do conceito geral, Berkeley diz: os conceitos gerais não existem; o triângulo não existe; o triângulo é unicamente um nome, fia-lus voeis; com o qual o empirismo renova o nominalismo da Idade Média. Pois bem; como mostra, como demonstra, como explica Berkeley o que ele quer dizer? Demonstra-o com uma argumentação que parece muito convincente. Diz: "A prova de que o triângulo não existe é esta: tentem — convida aos leitores — realizar a idéia do triângulo; tentem imaginar esse triângulo e não poderão, porque imaginarão um triângulo que será isósceles ou escaleno necessariamente; porque ao mesmo tempo não pode ser ambas as coisas; e todavia, a palavra, o nome, o nome de triângulo refere-se a algo que teria que ser ao mesmo tempo isósceles e escaleno. Pois bem: não o podem realizar, não o podem imaginar, não o podem desenhar; não é possível que se dê na natureza nenhum triângulo ao mesmo tempo isósceles e escaleno. Logo triângulo é um simples nome."

Que acontece aqui? 
Simplesmente que, hipnotizado pela vivência pura, esqueceu Berkeley que essa imagem que nos convida a realizar não é o pensamento mas a vivência, e que por cima dessa vivência, o que realmente chamamos pensamento é aquilo que a vivência enuncia. É claro que não podemos imaginar um triângulo que não seja nem escaleno nem isósceles; terá que ser uma das duas coisas. Mas é que o triângulo que imaginamos não é o triângulo que pensamos, antes o triângulo que imaginamos serve-nos de trampolim sobre o qual necessariamente fazemos a enunciação lógica, a enunciação racional.

O pensamento racional não é a imagem com a qual pensamos racionalmente. A imagem ou a vivência com a qual pensamos, ou seja enunciamos, não pode confundir-se de modo algum com a própria enunciação. A imagem ou a vivência é uma coisa, e o mencionado, o indicado, o aludido pela imagem ou vivência é outra muito distinta.

O pensamento é o aludido, o mencionado pela imagem e a vivência; aquilo, para exprimir o qual, a imagem e a vivência necessariamente servem. Isto que a imagem e a vivência querem dizer é o aspecto enunciativo, racional, lógico, puro, do pensamento, que os ingleses não viam porque estavam hipnotizados pelo caráter vivencial mesmo.

O caráter vivencial mesmo é um fato psicológico, concreto, determinado. Eu, com efeito, se me proponho realizar imaginativamente o triângulo, não posso realizá-lo mais que ou isósceles ou escaleno. Mas é que aquilo que eu chamo pensamento não é somente a vivência, mas a vivência enquanto que serve de sinal para designar além dela mesma uma enunciação intelectual, que não poderia ser designada mais que pelos meios limitados, psicológicos, de uma vivência. Porém a vivência não está aí mais que como representante daquilo a que se refere: a enunciação pura.

Havendo eliminado, pois, o empirismo este caráter enunciativo, lógico, do pensamento, suprimiu a objetividade do conhecimento. Suprimiu de um golpe a objetividade do conhecimento porque suprimiu toda referência ao objeto. Aqui os empiristas cometem exatamente o mesmo erro, porém em outro plano. Eles querem anular o ser em si, anular a coisa em si, e com isso a pretensão de que as coisas existem independentemente de que sejam ou possam ser conhecidas por ninguém, pretensão sem sentido se tratasse de instalar como tal coisa em si um objeto impensável, visto como, somente dizer objeto impensável é já pensá-lo de certo modo.

Porém ao querer anular o ser em si das coisas, resulta que anulam todo o ser das coisas; como se não houvesse entre ser em si e não ser um termo médio. Eles acreditam que ou a coisa é em si ou não ó em absoluto. Porém há um modo de ser que não é o ser somente em si. O "em si" ó aqui o importante.

Há um modo de ser que precisamente é o ser no conhecimento e para o conhecimento, na correlação do conhecimento; um ser que não é o ser somente em si, mas que não é zero de ser, antes é um ser posto, proposto; melhor dito, o ser do conhecimento.

Os ingleses cometem este erro e se não o reconhecem é porque no fundo conservam um resíduo de realismo. No fundo não conseguiram afastar-se por completo do realismo aristotélico. E qual ó esse resíduo de realismo que levam dentro do corpo sem perceber que o levam? Pois muito simplesmente: acreditar que não há mais do que o ser em si. Mas então, como continuam pensando o ser sob a espécie realista do ser em si; como continuam’ conservando, como resíduo do realismo, o "em si", não encontram, no objeto, naturalmente, nenhum "em si"; e então tiram-lhe todo ser, sem compreender que isto não é possível. O mesmo se passa no sujeito.

Hume faz análise; encontra que não há impressão que corresponda ao eu e que não há eu "em si", e tira a conclusão: então não o há em absoluto. E agora, que fazem? Conservam o "em si" no pensamento, nas vivências. As vivências são para eles coisas em si mesmas. Por isso Berkeley e Hume dizem: nós não estamos em contradição com o ponto de vista ingênuo de todo mundo; dizemos que esta lâmpada existe, dizemos que este papel existe, porque existir é ser percebido. E é que injetaram na vivência o caráter da coisa realista que tem em Aristóteles a coisa.

Em Aristóteles o "em si" tínham-no as coisas, e eles puseram-no na vivência e tiraram-no do objeto e do sujeito. Porém isto é um resíduo de realismo.
Então, que vai acontecer aqui? Pois acontece que vai ser preciso que venha_ alguém que advirta, que veja que há uma modalidade do ser que não é nem o ser em si nem o nada, mas uma modalidade do ser que consiste em ser objeto para um sujeito. Na correlação irrompível do conhecimento o ser do objeto não ó um ser em si. Mas uma coisa é que não seja um puro ser em si e outra coisa é que não seja.

Qual será este ser? 
Será um ser lógico, um ser posto para ser conhecido, um ser proposto, um ser problema. Por isso podemos acentuar o dito de Berkeley, de que ser é ser percebido. Mas uma vez que o ser é percebido, uma vez que esta lâmpada é o termo de minha percepção desta lâmpada, que é esta lâmpada como objeto de conhecimento? Está aqui como ser percebido, mas ser conhecido é outra coisa; e o ser do conhecido é um ser conhecido. Esse ser conhecido, que não é em si, mas que é mais e distinto do ser percebido, isso é o que haverá que esperar que chegue Kant para que nos explique bem o que é.

117.      Leibniz.
     
Mas antes que chegue Kant tem que se lhe abrir, tem que se lhe preparar o caminho, tem que se lhe dar os elementos para solução deste problema difícil. Estes elementos para a solução estão em parte aí: as análises destrutivas de Hume. Mas faltam outros elementos; falta uma acentuação nova, uma explicação clara dos elementos racionais puros, puramente intelectuais que há no pensamento e no conhecimento. Essa explicitação, essa "elaboração do racional no pensamento será necessária para que Kant possa trabalhar; e vai ser Leibniz quem vai proporcionar as bases para Kant.

Leibniz é um grande espírito. É um dos filósofos mais consideráveis que conheceu a humanidade. É um dos homens de quem com maior razão se pode dizer que são cabeças enciclopédicas. Está realmente à altura de um Aristóteles ou de um Descartes. No seu tempo teve uma autoridade científica indiscutida, não somente em filosofia, mas também em física, em matemática, em jurisprudência em teologia. Em tudo aquilo em que ele pôs a mão alcançou os mais altos cumes do saber, da meditação, da percepção lógica no desenvolvimento do seu pensamento.
 
Pois bem: Leibniz, que viveu na segunda metade do século XVII, teve a percepção claríssima de onde se encontrava a falha, ou defeito, o ponto fraco do empirismo inglês; e isso apesar de não conhecer do empirismo inglês nada mais que a obra de Locke. Todavia, bastou-lhe o conhecimento da obra de Locke para chegar logo logo ao ponto central onde estava a originalidade, mas ao mesmo tempo a falha, o perigo do empirismo inglês. Viu imediatamente que o erro do empirismo consistia no seu intento de reduzir o racional a fático; a razão a puro fato.

Porque há uma contradição fundamental nisso: se a razão se reduz a puro fato, deixa de ser razão; se o racional se converte em fático, deixa de ser racional, porque o fático é aquilo que é sem razão de ser, enquanto que o racional é aquilo que é razoavelmente; quer dizer, não podendo ser de outra maneira. Por conseguinte, viu imediatamente, com uma grande clareza, que o defeito fundamental de todo psicologismo, ao considerar o pensamento como vivência pura, é que o racional se convertia em puro fato, quer dizer, deixava cair sua racionalidade como um adminículo inútil. Porém não existe nada mais contraditório que isso: que o racional deixe cair sua racionalidade, porque então o que resta é o irracional.

118.      Verdades de fato e verdades de razão.
Assim, pois, o ponto de partida de Leibniz é este ponto central, desde as primeiras linhas do livro que consagra a refutar a Locke. Locke tinha escrito Ensaios sobre o entendimento humano; Leibniz leu esse livro, estudou-o a fundo e depois redigiu umas notas que se publicaram com o título de Novos ensaios sobre o entendimento humano, após a morte de Locke. As primeiras linhas deste livro começam, desde logo, levantando o problema no seu ponto central: distinguindo verdades de razão e verdades de fato.

O conhecimento humano compõe-se de umas verdades que chamamos "de razão" e de outras verdades que chamamos "de fato", vérités de fait; vérités de raison. Em que se distinguem umas das outras? As verdades de razão são aquelas que enunciam que algo é de tal modo, que não pode ser mais que desse modo; ao contrário, as verdades de fato são aquelas que enunciam que algo é de certa maneira, mas que poderiam ser de outra. Em suma: as verdades de razão são aquelas verdades que enunciam um ser ou um consistir necessário, enquanto que as verdades de fato são aquelas verdades que enunciam um ser ou um consistir contingente.

O ser ou o consistir necessário é aquele ser que é aquilo que é, sem que seja possível conceber-se sequer que seja de outro modo. Assim o triângulo tem três ângulos e é impossível conceber que não os tenha; assim todos os pontos da circunferência estão igualmente afastados do centro e é impossível conceber que seja de outro modo. Pelo contrário, se dizemos que o calor dilata os corpos, é assim: o calor dilata os corpos; mas poderia ocorrer que o calor não dilatasse os corpos. As verdades matemáticas, as verdades de lógica pura, são verdades de razão; as verdades da experiência física são verdades de fato; as verdades históricas são verdades de fato.

Corresponde nitidamente esta divisão à divisão que fazem os lógicos entre os juízos apodícticos e os juízos assertórios. Juízos apodícticos são aqueles juízos em que o predicado não pode ser outra coisa que predicado do sujeito; ou, dito de outro modo, em que o predicado pertence necessariamente ao sujeito, como quando dizemos que o quadrado tem quatro lados.

Todas as proposições matemáticas são deste tipo. Juízos assertórios, ao contrário, são aqueles juízos em que o predicado pertence ao sujeito; porém o pertencer ao sujeito não é de direito, mas de fato. Pertence ao sujeito, com efeito, mas poderia não pertencer, como quando dizemos que esta lâmpada é verde. Que esta lâmpada é verde, é algo que está certo; porém é uma verdade de fato, porque poderia ser igualmente rosa.

O problema que se propusera Locke era o problema da .origem das idéias, da origem das vivências complexas. Esse problema se propõe também Leibniz, mas partindo desta distinção: verdades de fato, verdades de razão. E em primeiro lugar as verdades de razão. As verdades de razão, podem ser oriundas da experiência? De maneira nenhuma. Como vão ser as verdades de razão oriundas da experiência! Se as verdades de razão fossem oriundas da experiência, seriam oriundas de fatos, porque a experiência são fatos. E se fossem oriundas de fatos, as verdades de razão seriam verdades de fato; quer dizer, não seriam razão, não seriam verdades de razão, seriam tão contingentes, tão casuais, tão acidentais como são as mesmas verdades de fato. Por conseguinte, é inútil pensar-se que as verdades de razão possam origínar-se na experiência.

119.   Gênese das verdades.
Então conclui-se que são inatas. Inatas? Por que não? Explicaremos o que queremos dizer quando dizemos que as verdades de razão são inatas. Por inatas não queremos dizer que as crianças nascem no mundo sabendo geometria analítica. Não; isto não. Inato não quer dizer que estejam totalmente impressas no nosso intelecto, no nosso , espírito, na nossa alma, estas verdades; quer dizer que estão virtualmente impressas. Inato quer dizer, pois, germinativamente, seminalmente; como numa semente ou num germe encontram-se estas idéias no espírito, constituem o próprio espírito.

No curso da vida, do espírito, essas idéias se desenvolvem, se explicitam, se formulam, se separam umas das outras; estabelecem-se e formam-se em sua relação. A matemática surge, a matemática se aprende. Mas, que é aprender matemática? Aprender matemática não é algo que se pareça em nada à comunicação que um homem possa fazer a outro de uma verdade de fato. Se alguém vem e me diz: "O roseiral do seu jardim floresceu", este é um novo conhecimento de fato que entra em mim. Porém, não se aprende assim matemáticas.

Aprender matemáticas consiste em que as matemáticas latentes que estão em cada um saiam à superfície, que cada um descubra as matemáticas. E o próprio Leibniz, nos seus Novos ensaios, lembra a teoria da reminiscência, de Platão, aquele diálogo em que Sócrates chama a um escravo jovem, Mênon, para demonstrar a seus ouvintes que esse rapaz também sabia matemáticas sem as ter aprendido, porque as matemáticas surgem, nascem no espírito por puro desenvolvimento dos germes racionais que estão nele.

Neste sentido seminal, genético, germinativo, pode dizer-se que as verdades de razão são inatas. Mas, naturalmente, não no sentido ridículo de pensar que um ignorante, que um menino já sabe geometria. Porém, qualquer homem pode vir a conhecê-la e não precisa para isso da experiência, mas somente do desenvolvimento desses germes já exi:i tentes. Expressa isto Leibniz de uma maneira perfeita, clara, quando propõe que ao lema fundamental dos empiristas, ao velho adágio latino, aristotélico de Nihil est in intellectu quod non prius fuerit in sensu (ou seja: "nada há no entendimento que não tenha estado antort nos sentidos"), se acrescente: Nisi inteilectus ipse. Nada há no intelecto que não tenha estado antes nos sentidos, a não ser o próprio intelecto com suas leis, com seus germes, com todas essas possibilidades de desenvolvimento que não necessitam mais que desenvolver-se no contacto com a experiência.

Em suma: a teoria de Leibniz sobre a origem da verdade de razão descobre aquilo que, a partir dele, e sobretudo em Kant, vamos chamar a priori.

A priori é um termo latino que quer dizer, nesses arrazoados filosóficos, independente da experiência. Diremos, pois, que as verdades de razão são a priori, independentes da experiência, são prévias à experiência, ou, melhor dito, alheias a elas, se desenvolvem florescendo dos germes que há em nosso espírito, sem necessidade de ter sido impressas em nós pela experiência, a qual não poderia imprimi-las, porque aquilo que imprime em nós são os fatos, e os fatos são sempre contingentes, nunca necessários.
 
Depois das verdades de razão vem o estudo das verdades de fato. As verdades de fato sim, são oriundas da experiência; não têm outra origem; são, com efeito, produzidas pelas experiências; estão impressas em nós por meio da percepção sensível. São verdades como essas que dizíamos antes: essa lâmpada é verde. Essas verdades, porém, que são, com efeito, contingentes, que não são necessárias, nem por isso carecem de certa objetividade; são objetivas, enunciam também aquilo que o objeto é, dizem-nos a consistência do objeto. Porém isso que o objeto é, essa consistência do objeto, que é, com efeito, o conteúdo das verdades de fato, constitui um conhecimento de segunda ordem, um conhecimento inferior.

O ideal do conhecimento é o conhecimento necessário, o conhecimento que nos fornecem as verdades de razão. Mas as de fato não deixam de ter certa objetividade, porque, com efeito, assim são as coisas. Esta lâmpada é com efeito, verde; há, pois, certa objetividade nesse conhecimento. Donde vem a objetividade a este conhecimento das verdades de fato? Vem-lhe de que todas as verdades de fato se sustentam em um princípio de razão. As verdades de fato têm uma base no princípio de razão suficiente.

Uma verdade de fato está fundada enquanto podemos procurar e dar razão de por que é assim. Esta lâmpada é verde, mas poderia ser rosa. Se é verde, é por algo; é porque quem a fez, a fez verde; e a fez verde por algo: porque lho mandaram; e lho mandaram por algo: porque o freguês o pedira; e o freguês o pedira por algo, e assim sucessivamente. De modo que se considerarmos que cada uma das verdades de fato está fundada em um princípio de razão suficiente, e se prolongarmos a série de razões suficientes a cada uma das causas das verdades de fato até bastante longe, cada prolongamento será mais uma garantia da objetividade dessas verdades de fato.

O ideal seria chegar a uma causa que não necessitasse por seu turno da aplicação do princípio de razão suficiente, mas que fosse uma causa que constituísse já, dentro de si, a necessidade; quer dizer^ que fosse ao mesmo tempo um fato e uma verdade de razão.

Tal causa é Deus. Por conseguinte, em Deus não há verdades de razão e verdades de fato: todas são verdades de razão. Em Deus desapareceria a distinção entre verdades de fato e verdades de razão, porque como Deus conhece atualmente toda a série infinita de razões suficientes que fizeram que cada coisa seja aquilo que é, como Deus conhece toda essa série de razões de ser como são as coisas, nenhum juízo é nele assertórico e puramente contingente, mas é necessário. Como ele conhece toda a série infinita atualmente, para ele o contingente deixa de sê-lo e se transforma em necessário.

A verdade de fato deixa de ser verdade de fato e se transforma em verdade de razão. Então surge diante de nós um conhecimento real, puro, um ideal de conhecimento, que consiste em aproximar-nos o mais possível desse conhecimento divino, que consiste em cumular tal quantidade de séries de conhecimentos nos princípios de razão suficiente de cada coisa, que a coisa esteja apoiada cada vez mais em razões suficientes e vá devindo cada vez mais uma verdade necessária, uma verdade de razão, em lugar de ser uma verdade de fato.

120.   Racionalidade da realidade.
Há, pois, para Leibniz um, ideal de conhecimento que é o ideal da pura racionalidade; e entre esse ideal de conhecimento plenamente realizado na lógica e nas matemáticas e o conhecimento um pouco inferior das verdades de fato que estão na física; entre esse ideal e essa inferior realidade do conhecimento humano, não há um abismo, mas, pelo contrário, uma série de transições contínuas, uma continuidade de transições de tal sorte que o esforço do conhecimento há de consistir em tornar cada vez mais vastos territórios de verdades de fato em verdades de razão.

Como? 
Introduzindo as matemáticas na realidade.

O conhecimento será cada vez mais profundamente racional quanto mais for matemático. E Leibniz o comprova inventando o cálculo infinitesimal, que faz dar um salto formidável ao conhecimento de fato da natureza e converte grandes setores da física em conhecimento racional puro. Leibniz descobre precisamente o cálculo infinitesimal por aplicação desse princípio da continuidade entre o real e o ideal; da continuidade entre a verdade de fato, levada uma atrás da outra, e a verdade de razão. A relação que existe entre a verdade de fato, com todos os antecedentes de razão suficiente que a sustentam, e a verdade d;> razão, é exatamente a mesma que há entre uma reta e a curva.

Não existe tampouco um abismo entre a reta e a curva, porque, que é uma reta senão uma curva de raio infinito?

E que é um ponto, senão uma circunferência de raio infinitamente pequeno? 

Vemos como entre o ponto, a curva e a reta não existem abismos de diferença, mas, de um certo ponto de vista especial, que consiste em considerar tudo como gerado, como gerando-se na pura racionalidade dos germes lógicos que há em nosso espírito, existo um trânsito contínuo entre o ponto, a curva e a reta. Daí que possa esse trânsito escrever-se numa função matemática; numa função de cálculo integral e diferencial, de cálculo infinitesimal, sendo o ponto simplesmente uma circunferência de raio mínimo, tão pequeno quanto se queira, de raio infinitamente pequeno; sendo a curva um pedaço de circunferência de raio finito, constante, e sendo a reta um pedaço de circunferência de raio infinitamente longo, infinitamente extenso.

Estas considerações foram as que levaram Leibniz a pensar que um mesmo ponto, quer se considere pertencente à curva, quer se considere pertencente à tangente dessa curva, esse ponto, um e o mesmo ponto, tem definições geométricas diferentes segundo seja considerado como ponto da curva ou como ponto da tangente à curva. E então só faltará encontrar a fórmula que defina cada ponto em função do todo. E foi precisamente a procura dessa fórmula que levou Leibniz à descoberta do cálculo infinitesimal, com o qual uma enorme zona de verdades físicas, de fato, ingressam de pronto no corpo das verdades matemáticas, de razão.

Veja-se como ele próprio aplica aqui as conseqüências de suas convicções e mostra, pelo fato, que, com efeito, o ideal da racionalidade do conhecimento é um ideal do qual vai-se aproximando a ciência concreta dos fatos físicos, cuja assíntota mais ou menos longínqua é converter-se em ciência racional pura. Pois bem: esta realidade deste conhecimento racional, o objeto deste pensamento racional, a realidade pensada racionalmente por Leibniz, qual é? Depois da teoria do conhecimento que acabamos de examinar, qual é a metafísica que Leibniz tira desta teoria do conhecimento? É a resposta que Leibniz dá à nossa pergunta metafísica primordial: quem. existe? resposta que examinaremos na lição seguinte.

 Fonte:
CONSCIENCIA:ORG
 http://www.consciencia.org/fundamentosfilosofiamorente15.shtml

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Que tal comentar agora?