domingo, 21 de novembro de 2010

HIPERTEXTO E SUBJETIVIDADE - Celso Cândido

 
1 INTRODUÇÃO 

A arte de construir um problema é muito importante: inventamos um problema, uma posição de problema, antes de encontrar uma solução. Gilles Deleuze A emergência das redes cibernéticas interativas de comunicação e informação é um acontecimento relativamente recente na história da humanidade. Algo em torno de duas décadas, tomando a Internet como referência. Trata-se, em verdade, de um movimento tecno-social de grandes dimensões, constituído hoje por centenas de milhões de pessoas interconectadas no mundo todo. Esta interação humano-maquínica está atravessando importantes domínios da existência social e individual, produzindo diferentes formas de ação e pensamento, sob certos aspectos revolucionárias, mas, em todo caso, certamente, imprevisíveis e de importância crescente. 

O campo problemático o qual, então, a presente pesquisa procura investigar é o da produção da subjetividade contemporânea e suas mutações, atuais e virtuais, a partir da “emergência do ciberespaço”, em especial de sua dimensão comunicativa Web. Este teleespaço de interação comunicativa atravessa o campo social em diferentes direções do mundo da cultura, mas também da economia e do trabalho, da política e da ética, da ciência e do conhecimento. As implicações deste novo “espaço-informação” são de tal grandeza e complexidade que, sob certos aspectos, parecem extraordinárias. Em uma medida, se for considerado o conjunto dessas afetações humano-maquínicas emergentes, é a própria paidéia que é colocada em questão.

Este ciberespaço agora faz parte do mundo contemporâneo. É quase como o ar que se respira; sua presença é cada vez mais unívoca e imprescindível para a vida em sociedade; nas atividades profissionais, nos escritórios e laboratórios de pesquisa, nas instituições, empresas, bancos, universidades; nas comunicações pessoais, nas programações culturais, no universo das “diversões eletrônicas”, nas compras on line e movimentações bancárias, apenas para dar alguns exemplos. Nesse universo, os agenciamentos de enunciação estão implicados em uma produtividade ativa e criativa e em uma interatividade crescente de comunicação. 

Em maior ou menor escala, trata-se de uma comunicação autocriativa do tipo “todos com todos”, significando que os participantes da grande teia digital são agora virtualmente “agenciamentos coletivos de enunciação” de criação e resistência comunicativo reais. Diferentemente das “metanarrativas” precedentes encarnadas nos mass media eletrônicos como o rádio, o cinema e a televisão e impressos, como o livro e o jornal, o que estes novos agenciamentos anunciam são narrativas polifônicas encarnadas. Uma espécie de autonarrativa generalizada. Os agenciamentos humano-maquínicos cibernéticos formatam, fomentam, virtualizam subjetividades políticas, literárias, filosóficas, comunicativas, inauditas no contexto da cultura industrial precedente e seu modo de produção específico, serial de massas, e da hegemonia ‘tecnopedagógica’ de grandes meios de comunicação que predominaram no cenário político e cultural do recente século passado. 

Não há, evidentemente, um único modo de as subjetividades contemporâneas agirem e reagirem, produzirem-se e constituirem-se diante da nova mídia. De um lado, uma geração que, diante do computador, “totem e tabu”, se coloca na defensiva – mesmo quando é ofensiva – negando-o em todas as suas letras. Existe mesmo, no extremo desta visão, um movimento deliberado para “literalmente destruir” os tais “monstros diabólicos”. 

Em todo caso, no interior deste “campo defensivo”, a maioria simplesmente se sente intimidada e continua com seus velhos e bons métodos de agir, pensar, educar e interagir. Trata-se de uma geração que, tendo vivido a maior parte de suas vidas sem este atravessamento cibernético, pode, de certa forma, continuar sua vida “independentemente dos computadores e da Web”. O telefone, a televisão, o rádio, o cinema, as cartas, os livros constituem já, por
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si mesmos, um mundo rico de interações comunicativas para o espírito. E, apesar da Web e junto com ela, não vão perder em nada seu encanto específico. De outro lado, porém, uma geração, sobretudo a que agora está nascendo e crescendo, que já está, desde o início de seus dias, mergulhada nos ambientes digitais eletrônicos. Para essa geração, um computador conectado à Web faz parte do seu design educativo e doméstico; ele é, como o rádio ou a televisão, uma interface eletrônica a mais em seu meio ambiente. Entre essas duas, uma outra, como aquela que deve ser capaz de semear o campo, uma geração de passagem, tentando, de modo nem sempre satisfatório, entender-se e inventar-se neste novo ambiente cognitivo. 

A tentativa de uma apreensão total e conclusiva dessa relação seria inglória e não está definitivamente no horizonte deste trabalho. O que interessa, sobretudo, é inventariar e problematizar os processos de subjetivação atravessados pelo acontecimento cibernético, sem pretensão de esgotá-los em si ou em alguma totalidade teórica ou programática. Antes, situar probabilidades teóricas, tendências virtuais, pragmáticas ecosóficas possíveis. Trata-se, então, sobretudo, de abrir pistas de investigação do acontecimento, antes de carimbar, enquadrar em formas muito delimitadas. 

Tenta-se captar antes o devir o qual em si é irrecuperável por uma teoria qualquer; pensar as implicações, não apenas decorrentes da emergência das tecnologias da inteligência, mas também as recorrências, as desestabilizações e os deslocamentos do social instituído e dos diferentes modos como se processa as interações humano-maquínicas aí; perceber as potencialidades e as “dobras” éticas, estéticas e políticas abertas por esta emergência, quer dizer, como tais tecnologias estão sendo e podem ser apropriadas pelas subjetividades contemporâneas. Problematizar, no entanto, as “subjetividades Web” é pensar um campo extremamente vasto e de grande complexidade, onde se cruza uma diversidade infinita de personagens reais e conceituais. Além disso, o esforço
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de compreensão precisa ser capaz de circunscrever a análise ao caráter autoconstitutivo permanente e aberto da rede mundial. Uma das peculiaridades da análise das questões suscitadas pela emergência das novas tecnologias de comunicação é que, precisamente, sua auto-instituição social está “em construção”, porque faz parte do seu próprio modo de ser o caráter autopoiético processual heterogenético. Isso confere à análise uma recorrência permanente às tendências e sintomas, muitas vezes, distantes do grande público do mundo letrado contemporâneo; processos muitas vezes minúsculos, parciais, limitados que podem ou não desembocar em movimentos generalizados da subjetividade e do social contemporâneo. Os efeitos bolas de neve destes processos e movimentos sociais minúsculos, como diria Gabriel Tarde, são os verdadeiros agentes formadores do social. Em todo caso, interessa aqui, principalmente, cartografar e desenhar os devires das subjetividades contemporâneas em direção a práticas sociais ecosóficas inovadoras. Trata-se, portanto, de uma pesquisa-invenção. Por essa razão, mais que nunca, se reconhece o recorte necessariamente parcial da análise. 

Por mais extensa que ela possa ser, no contexto do pensamento eletrônico, ela nunca poderá deixar de ser um recorte transversal. Desse modo, a fim de problematizar as questões suscitadas neste contexto problemático, apresenta-se, a seguir, um ensaio teórico dividido em duas partes, composto, o primeiro, de um conjunto de três seções e o segundo, de seis seções; e uma conclusão como encerramento. Na primeira parte, visa-se ao desenvolvimento de uma elaboração mais propriamente conceitual de contextualização, cercamento e fundamentação das idéias elaboradas a partir da segunda parte. Assim, inicialmente procura-se apresentar o “lugar”, bem como a “sensação do presente” a partir dos quais se está falando. Em seguida, esboça-se a idéia da Web como um novo espaço antropológico. Por fim, procura-se elucidar a idéia de subjetividade e suas relações com a tecnologia.
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Dessa maneira, na primeira seção da primeira parte, intitulada Heterogênese conceitual, procura-se, em grandes linhas, elaborar a “situação epistêmica” teórica e prática do lógos contemporâneo, a partir da problematização, primeiramente, do contexto epistemológico, situado em um referencial crítico-dialético e trágico-dionisíaco, na era do “fim das certezas” e, em seguida, do contexto ético-estético-político, situado em coordenadas e paradigmas ecosóficos. 

Na seção seguinte, A admirável Web humana, procura-se elucidar o nascimento e o lugar da Web na sociedade contemporânea, bem como suas características essenciais; e, na seção Uma subjetividade polifônica, elabora-se, primeiramente, o conceito de subjetividade e suas mutações, destacando, em seguida, a discussão em torno do problema do determinismo tecnológico. Na segunda parte, por sua vez, procura-se analisar um conjunto de importantes vetores de subjetivação contemporâneos. Elaboram-se esses vetores e seus deslocamentos fundamentais nos processos de comunicação, de relações cotidianas, de produção cultural, do trabalho humano, da dimensão política e, por fim, do próprio do pensamento.

Desse modo, na primeira seção da segunda parte, A trofolaxe digital, discute-se o papel fundamental da linguagem e da comunicação na psique e no mundo humano e, então, debatem-se as diferentes interfaces de comunicação constituídas historicamente, atentando, por fim, para a grande mutação operada no vetor de subjetivação comunicativo. Na seção seguinte, O cotidiano on line, problematiza-se a arquitetura do novo espaço cotidiano virtual e das vivências e interações humanas, constituídas no interior deste espaço. 

Na seção, A Alexandria digital, discutem-se a cultura na idade do computador e a emergência de um novo modo de produção, registro, consumo, distribuição e transação dos bens culturais; argumenta-se, ainda, em torno do papel estratégico político e ecológico desta hipercultura digital. Na seção, Adeus ao proletariado industrial, partindo-se do papel central do trabalho na existência humana, reflete-se sobre as transformações no modo de produção e no conceito de trabalho e intenta-se perceber o pano de fundo econômico e as relações de produção e reprodução entre capital e trabalho. 5

Nas duas últimas seções, respectivamente, O nascimento da Ágora virtual, trabalham-se a questão da liberdade como aspiração humana fundamental e da tecnologia como questão própria da civilização e da sociedade, elabora-se o surgimento de um novo espaço público eletrônico do agonismo e da colaboração humanas e, em O pensamento eletrônico, procura-se refletir a respeito do trabalho do pensamento neste ambiente emergente das novas redes neuro-eletrônicas interativas de comunicação, na medida em que o suporte, sobre o qual ele se movimenta e se constitui, encontra-se transformado de modo irreversível. Por fim, como conclusão, procura-se debater os destinos da geração WWW diante de seus grandes desafios éticos e políticos contemporâneos em vistas de uma estética ecosófica, bem como apontar algumas questões que ficaram em aberto no debate aqui proposto.

Além deste ensaio, dois estudos teóricos são apresentados entre os apêndices deste trabalho. No primeiro, Atualizando o virtual, visa-se elaborar o conceito de virtual e, no segundo, Os mitos de Hermes e Prometeu, procura-se, a partir da elucidação destes importantes mitos gregos antigos, abordar as grandes mutações antropológicas em curso contemporaneamente. Apresenta-se também, como ilustração e fundamentação deste trabalho teórico, sua versão digital na Web, que se encontra on line no seguinte endereço << http://www.agoravirtual.net/hipertexto/ >>. 

Cabe observar ainda o contexto a partir do qual este trabalho ganhou corpo. Ele atravessa quase uma década pelo menos de experimentações técnicas e sociais, teóricas e conceituais desde as cada vez mais frágeis fronteiras geopolíticas de um país como o Brasil, com suas centenárias contradições. Em todo caso, inúmeros são os contextos de uma narrativa possível, muito está acontecendo e ainda pode acontecer. Transformações e avanços tecnológicos e sociais inesperados a qualquer momento poderão surgir e, em questão de pouco tempo, mudar o panorama sobre o qual, por ora, se desenham estas outlines digitais.
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Seja como for, diante de tais questões, é preciso, muitas vezes, reinventar o próprio pensamento, porque o certo é que o “dilúvio” não vai parar. O perigo de se afogar é real. O perigo de ficar à deriva é real. Mas não existe navegação sem perigos.

Fonte:
http://www.agoravirtual.net/hipertexto/

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