por Roberto Machado
…portanto, o antagonismo de princípios marca toda a reflexão moderna sobre a tragédia, a originalidade de Nietzsche é formular essa oposição como sendo a do apolíneo e do dionisíaco considerados como princípios de uma estética metafísica.
O apolíneo é o princípio de individuação, um processo de criação do indivíduo, que se realiza como uma experiência da medida e da consciência de si. E se Nietzsche dá a esse processo o nome de apolíneo é porque, para ele, Apolo — deus da beleza, cujos lemas são “Conhece-te a ti mesmo” e “Nada em demasia” — é a imagem divina do princípio de individuação. O que se pode compreender pelas duas propriedades que ele encontra em Apolo: o brilho e a aparência.
Apolo é o brilhante,
o resplandecente, o solar;
Apolo
ao mesmo tempo, conceber o mundo apolíneo como brilhante significa criar um tipo específico de proteção contra o sombrio, o tenebroso da vida: a proteção pela aparência. A bela aparência apolínea é uma ocultação.
Os deuses e heróis apolíneos
são aparências artísticas
que tornam a vida desejável,
encobrindo o sofrimento
pela criação de uma ilusão.
Essa ilusão é o princípio de individuação. Assim, o indivíduo, essa criação luminosa e aparente, é o modo apolíneo de triunfar do sofrimento pela ocultação de seus traços.
Já o dionisíaco,
tal como se dá no culto das bacantes
— cortejos orgiásticos de mulheres, vindas da Ásia,
que, em transe coletivo, dançando,
cantando e tocando tamborins, nas montanhas, à noite,
em honra de Dioniso, invadiram a Grécia
Dionísio e Apolo
—, em vez de um processo de individuação,
é uma experiência de reconciliação das pessoas
umas com as outras e com a natureza,
uma harmonia universal
e um sentimento místico de unidade.
A experiência dionisíaca é a possibilidade de escapar da divisão, da individualidade, e se fundir ao uno, ao ser; é a possibilidade de integração da parte à totalidade. Ao mesmo tempo, o dionisíaco significa o abandono dos preceitos apolíneos da medida e da consciência de si. Em vez de medida, delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade apolíneas, o que se manifesta na experiência dionisíaca é a hybris, a desmesura, a desmedida.
Do mesmo modo, em vez da consciência de si apolínea, o dionisíaco produz a desintegração do eu, a abolição da subjetividade, o entusiasmo, o enfeitiçamento, o abandono ao êxtase divino, à loucura mística do deus da possessão.
Entretanto, a última palavra de Nietzsche a respeito do nascimento da tragédia não é o antagonismo entre o apolíneo e o dionisíaco: é a aliança entre os dois princípios metafísicos, a reconciliação entre as duas pulsões estéticas da natureza. E, nesse sentido, um dos pontos mais importantes da interpretação é a ligação entre o culto dionisíaco e a arte trágica, ou a hipótese de que a tragédia nasce dessa multidão encantada que se sente transformada em sátiros e silenos — como se vê no culto das bacantes —, ao imitar, simbolizar o fenômeno da embriaguez dionisíaca, responsável pelo desaparecimento dos princípios apolíneos criadores da individuação: a medida e a consciência de si.
E, para que essa hipótese se revele em toda sua força e originalidade, é preciso salientar os dois principais componentes dessa teoria da tragédia.
Em primeiro lugar, o que torna a arte trágica possível é a música: a tragédia nasce do espírito da música, a origem da tragédia é a possessão causada pela música. Inspirado em Schopenhauer e em Wagner, que interpretaram a música como expressão imediata e universal da vontade entendida não como vontade individual, mas como essência do mundo, Nietzsche pensará a música como uma arte essencialmente dionisíaca e, portanto, o meio mais importante de se desfazer da individualidade.
Entretanto, ele acrescenta à música — componente dionisíaco da tragédia — seus componentes apolíneos: a palavra e a cena. O que o leva a definir a tragédia como um coro dionisíaco que se descarrega em um mundo apolíneo de imagens. Esse mundo de imagens criado pelo coro é o mito trágico, que apresenta a sabedoria dionisíaca através do aniquilamento do indivíduo heróico e de sua união com o ser primordial, o Uno originário.
Com que finalidade a tragédia apresenta apolineamente a sabedoria dionisíaca? Para fazer o espectador aceitar o sofrimento com alegria, como parte integrante da vida, porque seu próprio aniquilamento como indivíduo em nada afeta a essência da vida, o mais íntimo do mundo.
Assim, fundada na música, a tragédia,
expressão das pulsões artísticas apolínea e dionisíaca,
é a atividade que dá acesso
às questões fundamentais da existência.
Sinfonia N*40 de Mozart
- Smalin
- Smalin
Nietzsche ressalta a idéia de música como força, “demônio surgido de profundezas inexauríveis”, “único espírito de fogo limpo, puro e purificador”.
O nascimento da tragédia estabelece a origem musical da tragédia grega, e sua importância como metafísica artística, para legitimar a arte wagneriana, fazendo com que o renascimento do espírito dionisíaco tenha, para Nietzsche, como expressão mais forte, o drama musical wagneriano.
Se O nascimento da tragédia é um centauro nascido do cruzamento da arte, da ciência e da filosofia, como disse o seu autor, é em uma de suas passagens mais poéticas que se revela de modo mais veemente o tom militante em favor do renascimento do trágico pela força criadora do dionisíaco musical…, é inspirado nas Bacantes de Eurípides que Nietzsche sugere a seus amigos leitores:
“Coroai-vos de hera,
tomai o tirso na mão e não vos admireis
se tigres e panteras se deitarem,
acariciantes, a vossos pés.
Ousai ser homens trágicos:
pois sereis redimidos.
Acompanhareis, da Índia até a Grécia,
a procissão festiva de Dioniso!
Armai-vos
mas crede nas maravilhas de vosso deus!”
Roberto Machado
Professor Titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Fonte:
Da Matéria dos Sonhos
http://damateriadosonhos.wordpress.com/2011/06/20/apolineo-e-dionisiaco-o-nascimento-da-tragedia-nietzsche/
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.
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