UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
Servidão e Liberdade:
o exterior e o interior do poder
EDF 206 - Sociologia da Educação
(Sociedade, Política e Educação)
Educação e Atualidade:
Sujeito e identidade nas novas configurações do poder
Prof. Dra. Flávia Schilling
Gustavo Montanari Gitti (gustavodrums@uol.com.br)
N° USP: 3327747 - Vespertino
São Paulo, 26 de Novembro de 2003
Apresentação
No primeiro semestre de 2000, quando ainda freqüentava o curso de Filosofia, realizei uma análise, sob a orientação da Prof. Dra. Olgária Chain Matos, do Discurso da Servidão Voluntária, de Etienne La Boétie. Em minha análise, busquei relacionar servidão e liberdade, assinalando a importância da amizade e caracterizando como a tirania se sustenta.
Para o presente trabalho, retomarei as principais idéias dessa análise, reinterpretando-as e refazendo tais percursos com novas perspectivas trazidas pelas leituras dos textos propostos e pelos debates em aula. Tentarei articular o conceito foucaultiano de poder com as idéias seminais presentes no Discurso, expandindo tal argumentação para abarcar outros temas abordados no curso. Concluirei explicitando minhas próprias idéias, como penso ser o ideal para qualquer trabalho sincero de graduação.
Reconheço, contudo, que tal proposta transcende os propósitos deste pequeno texto, requerendo um longo levantamento bibliográfico e uma orientação acadêmica. Contento-me, então, a oferecer um possível traçado, um projeto de esperança.
A expressão do título, "o interior e o exterior do poder", deve-se ao fato de que a questão axial que desejo apontar, e na qual todo o meu percurso intelectual se baseia, é que as estruturas que produzem a servidão, a alienação, a prisão (o aspecto negativo do poder) são as mesmas que engendram a liberdade, a emancipação, a liberação (o aspecto positivo do poder). Se o poder for visto no escuro, de um ponto supostamente exterior, ele aparecerá como servidão. Se o poder for iluminado, agarrado em suas entranhas, aparecerá como liberdade.
Espero que este seja um exercício de redescoberta da Educação, a grande arte pela qual nós nos aproximamos e para a qual nos destinamos.
Servidão Voluntária?
"É da natureza do homem ser livre e querer sê-lo."
(Etienne La Boétie)
(Etienne La Boétie)
"Ser livre e desejar a liberdade são uma só e mesma coisa."
(Claude Lefort)
(Claude Lefort)
Para o meu propósito neste trabalho, farei um breve recorte de algumas idéias presentes na obra de La Boétie e em dois ensaios que acompanham a edição brasileira, de Claude Lefort e Marilena Chauí.
La Boétie considera a amizade como algo sacrossanto. Fomos feitos "todos na mesma forma e na mesma fôrma, [a natureza] figurou-nos todos no mesmo padrão, para que cada um pudesse mirar-se e quase reconhecer-se um no outro". A natureza possibilitou-nos os dons da fala e comunicação para que pudéssemos nos confraternizar, ser fraternos, amigos uns dos outros. A Philia (Amizade), contém em sua essência o logos: palavras manifestadas provenientes da razão, aplicando o dom natural em função da comunicação e entreconhecimento dos seres assim dotados. Para tanto, só pode ocorrer na semelhança de seres virtuosos, na mais perfeita eqüidade entre indivíduos - na pluralidade - legitimando-os todos em suas existências e modos de ser. Assim, a amizade permite que um sirva de espelho ao outro no que se refere à revisão de si para se autoconhecer e aperfeiçoar em relação à conduta demonstrada na virtude alheia.
Somos, portanto, naturalmente livres:
"Decidi não mais servir e sereis livres"
(La Boetie, p. 79).
A liberdade encontrada na amizade, porém, tem como seu simétrico oposto a servidão. Entre amigos, quando um eventualmente destaca-se por sua virtude e, conseqüentemente, passa a ser admirado. “Admirar” segundo a etimologia pode ser entendido como “olhar de veneração”. Ora, o próprio ato de venerar já ocasiona um enaltecer, mudança de patamar entre venerado e aquele que venera. Uma vez perdida a eqüidade - característica fundamental da Amizade - a relação entre os indivíduos se modifica. No caso, ao virtuoso é confiada responsabilidade frente aos admiradores pois dele esperam apenas ações sábias. Isso representa um abdicar de liberdade e confere a este expoente a possibilidade de fazer qualquer coisa com o poder a ele atribuído, segundo seu arbítrio, inclusive o mal.
Todo aquele que decide o que será feito com o que lhe foi confiado através da própria vontade e não pela razão e justiça pode ser intitulado de tirano. Ele decide por seus governados.
A transferência de poder para as mãos de um significa que as pessoas de quem se transferiu não tenham mais poder algum, que elas abdiquem de respectivas autonomias, dando-nos agora elementos para evidenciar dominantes e não-dominantes, os dominados. Os Todos-uns que se submetem ao tirano passam a ser Todos-um. Essa entidade ilusória impede o entre-espelhamento entre seus componentes, que agora são Outro em relação ao tirano (Um).
A Amizade, então, torna-se impossível em dois pontos: entre os componentes do Todos-um (pois são indistintos entre si) e entre eles e o tirano (pois não são semelhantes). Por estar em um patamar distinto, ele é ímpar, não tendo companheiros ou semelhantes que possam ser seus amigos.
Sozinho sobre a sociedade encontramos o tirano, cuja arbitrariedade acarreta a injustiça. Não há limite entre sua vontade e seus atos. Nada impede que ele crie as leis e que, tampouco, fique alheio a elas; porém, precisa se desdobrar para mascarar suas atitudes com a aparência de justiça e, assim, manter seu povo adormecido. Palavras doces, ofertas de prazeres e presentes (devolução parcial daquilo que pertencia ao próprio povo) são artifícios de manipulação empregados pelo tirano para conservar sua aparência, talvez até melhorá-la frente aos olhos do Todos-um. A exemplo de pão e circo entre os romanos, o entretenimento estimula o torpor do povo, cujos indivíduos sentem-se agradecidos pela benevolência do soberano.
Os tiranos, ainda, utilizam-se de qualquer oportunidade e mecanismo conveniente para justificar suas atitudes injustas: "de bom grado, cobriam-se com o manto da religião e às vezes se fantasiavam com os atributos da divindade, para dar mais autoridade a suas más ações" (La Boétie, p. 97). A obediência e a servidão são assim intensificadas. Tal devoção é mágica e ilusória pois se remete a um ser abstrato que não se encontra no corpo do tirano: um ser nunca visto, desconhecido. Mesmo que o tirano seja substituído, o hábito de servir garante que tal relação não se encerre.
O destaque nem sempre representa o bem. Normalmente, quem se destaca em uma sociedade carrega delas suas características de forma marcante; o tirano (e o tiranete) só é possível em uma sociedade tirânica, na qual a tirania transpassa toda a sociedade e cada um de seus membros. Todos trazem um tiranete em potencial dentro de si, que nos virtuosos - autárquicos, racionais e prudentes - é controlado enquanto nos não-virtuosos manifesta-se prestando contas a seus imediatos superiores e dominando seus diretos inferiores. Observando a sociedade como um todo por este ângulo, a vemos como uma pirâmide (hierarquia) de relações dominantes/dominados cujo ápice e base se espelham. Perde-se a paridade em cada nível e ela passa a se identificar consigo mesma.
“A servidão de todos
está ligada ao desejo de cada um portar
o nome de Um perante o outro”
(Lefort, p. 166).
O indivíduo obedece porque quer dominar.
Depois de evidenciar o quão infeliz é a vida sob este enfoque, resta-nos abordar por um outro lado como é possível que a servidão seja voluntária. Se a tirania é mantida por aqueles que servem, por que estes não deixam de servir? La Boétie aponta o desejo de liberdade como a própria liberdade, pois
"assim que a liberdade é desejada, eles a possuem"
(Lefort, p. 131).
Mas apesar de todos possuirmos tal desejo, o feitiço ocasionado pelo (desejo de portar o) nome do Um e nossa segunda natureza (servil) são responsáveis pelo imprimir diferenciado do que é a liberdade - passa-se a ter uma liberdade imaginária no lugar da real. Esta, portanto, segundo Chauí, é uma busca da liberdade na servidão, o que apenas serve como retroalimentação desta última, uma vez que há confusão entre ser livre e poder de mando e posse. Desejando a liberdade acabam por servir também; desejam servir ao buscar esta liberdade ilusória.
O desejo de servidão - servir para comandar - nunca será saciado pois a tirania se sustenta na proibição de algo indestrutível, a liberdade natural, que, independente de quão adormecida está, impede o servo de ser inteiramente servo. Por outro lado, nem o tirano pode ser inteiramente tirano, como explica Lefort, pois não consegue abarcar o nome do Um na totalidade.
Dessa truncada exposição, chegamos aos pontos essenciais para nossa análise:
1. Não é o tirano que cria uma sociedade tirânica, mas é a sociedade tirânica (a sociedade onde homens desejam a servidão) que produz o tirano, o seu espelho.
2. Como a liberdade é a própria amizade, o mútuo reconhecimento entre os homens, a saudável constituição da identidade pela alteridade, a servidão surge quando os homens não mais se definem pelo tecido social, mas precisam de uma figura imaginária para se formarem por identificação: o tirano.
3. Há uma inextricável relação entre liberdade, saber, conhecimento, "entreconhecimento" e amizade.
4. E, finalmente: "nem coragem e força do tirano, nem covardia e falta de fibra dos tiranizados engendram a servidão voluntária, mas apenas o esquecimento da liberdade pelo abandono da amizade" (Chauí, p. 208).
Com esse mínimo esclarecimento, poderemos avançar em nosso percurso sobre as duas faces do poder.
O Poder
"O exercício do poder consiste em 'conduzir condutas'
e em ordenar a probabilidade."
e em ordenar a probabilidade."
(Foucault, 1982, p. 244)
Logo no início de "O Sujeito e o Poder", Foucault afirma que o tema de sua pesquisa é o sujeito, e não o poder. Portanto, o poder só é relevante quando ele se refere ao tecido de ações multidimensionais dos sujeitos. As relações de poder interessam na medida em que são o cenário no qual e as forças pelas quais os sujeitos interagem e convivem.
Se tomarmos uma situação cotidiana, notaremos a especificidade das relações de poder: em um restaurante, estão o segurança, o motorista do estacionamento, o garçom, um cliente e um gourmet conferencista. As relações de governamentalidade entre esses cinco sujeitos são modulares, hierarquizadas, não equivalentes. Se "governar é estruturar o eventual campo de ação dos outros" (Foucault, 1982, p. 244), absolutamente todos governam todos em maior ou menor grau: o segurança impõe certas posturas ao cliente, o gourmet faz exigências implícitas para o garçom, o motorista fica calado diante do cliente...
Poderíamos ainda notar as instituições, os cenários, as técnicas, o contexto que produz identidades e define modos de ser: o restaurante, a cultura do local, o modo com que são dispostas as mesas, o modo com que os garçons agem, a relação entre o restaurante e a comunidade circundante...
Agindo sobre a ação do outro, cada sujeito forma-se em incontáveis nós de significações, dispositivos, técnicas, teorias e padrões sociais que poderão limitar ou expandir a ação de cada um dos outros sujeitos envolvidos. Eis o poder foucaultiano: imanente, imbricado, molecular, rizomático, caleidoscópico, replicante, incessante, dinâmico, recursivo, fractal, todo-presente mas inacessível em si mesmo.
Entretanto, se estamos imersos em um poder imanente a tudo, que é sustentado por todos os lados, onde se encontra atualmente o tirano do Discurso da Servidão Voluntária?
Em várias obras, Foucault insiste em desvincular o estudo do poder das teorias jurídicas, e de sua ligação exclusiva com o Estado. Ainda "não cortaram a cabeça do rei" (Foucault, 1979b, p. 86). O tirano é uma projeção ilusória daqueles homens que não abraçaram seu próprio papel constituinte do poder. Vejamos como isso se dá.
Ninguém detém o poder, apenas participa de relações de poder. A dicotomia dominante/dominado não mais se sustenta:
"Temos, em suma, que admitir que esse poder se exerce mais do que se possui, que não é 'privilégio' adquirido ou conservado da classe dominante, mas o efeito conjunto de suas posições estratégicas - efeito manifestado e às vezes reconduzido pela posição dos que são dominados" (Foucault, 1977, p. 29).
O Estado não detém a prerrogativa de ser o centro constituidor das relações
de poder. O curioso é que é justamente esse o senso comum, a visão mais disseminada na sociedade em geral. De forma ideológica, somos acometidos de uma ilusão de ótica: o poder que surge de todos os lugares, produzido por cada um de nós, é visto "lá fora", "lá em cima", como que vindo de um órgão mágico. La Boétie estava certo: eis novamente a servidão voluntária! A reprodução dessa ideologia impede a iluminação das relações moleculares presentes ao nosso redor. Recusamos nossa liberdade:
de poder. O curioso é que é justamente esse o senso comum, a visão mais disseminada na sociedade em geral. De forma ideológica, somos acometidos de uma ilusão de ótica: o poder que surge de todos os lugares, produzido por cada um de nós, é visto "lá fora", "lá em cima", como que vindo de um órgão mágico. La Boétie estava certo: eis novamente a servidão voluntária! A reprodução dessa ideologia impede a iluminação das relações moleculares presentes ao nosso redor. Recusamos nossa liberdade:
"Isto não se dá porque elas [as relações de poder] se derivam do Estado; mas porque as relações de poder vem sendo paulatinamente colocadas sob o controle do Estado" [grifo meu] (Foucault, 1982, p. 247).
Esse Estado age do mesmo modo que o tirano denunciado por La Boétie. O povo empresta-lhe seus corpos, abdicando de sua responsabilidade, e entra no jogo do poder (em suas infinitas censuras, manipulações, usurpações) sem autonomia.
Até aqui apontamos alguns problemas que surgem quando o poder é visto de fora, em seu suposto exterior, de forma heterônima; quando se esquece de sua imanência e as relações de poder ganham contornos transcendentais, para além do acesso dos homens. E se, num movimento oposto, contemplássemos o poder de dentro, entrando e agindo do vórtice criador, como sujeitos autônomos que assumem a responsabilidade pela infinidade de teias de poder que são a própria nervura do social?
O Interior
"O exterior é negatividade para a positividade interior."
(Bauman, 1999, p.62).
A principal característica da era pós-moderna é a ausência de chão, a falta de um fundamento último, a dissolução de qualquer grande Outro (religião, nacionalidade, etnia, filosofia consensual, cultura hegemônica, instituições) no qual podemos nos apoiar e constituir nossa identidade. Descobrimos que a "cabine do piloto está vazia" (Bauman, 2000, p. 148).
Nessa perspectiva, poderíamos dizer que as relações de poder tendiam a ser vistas em seu exterior, nos moldes do tirano do Discurso. Este modo de ser gerava uma aparência de segurança, e a atribuição do poder a uma instância transcendente. Monarquia, colonialismo, imperialismo, Auschwitz... estamos impregnados de exemplos desse tipo de alienação de nossa liberdade.
No entanto, essa mesma condição pós-moderna que dissolve qualquer apoio seguro manifesta-se também como uma liberdade nunca antes acessível à humanidade. A ausência de fundação surge pelo fato de que não há mais exterior, ponto de fuga, local seguro regido por algum grande Outro. E então somos, talvez pela primeira vez, obrigados a incorporar as relações de poder que havíamos expulsado para o exterior transcendente.
Presos em um interior labiríntico, somos confrontados com nossa própria liberdade. Não há saída, a não ser agir, constituir-se como sujeitos autônomos. Fazer de qualquer outro o grande Outro, eis o fundamento da amizade, do mútuo reconhecimento. Somente no interior do poder podemos resgatar as rédeas dos processos que nos subjetivam. E não é este o convite que Foucault nos faz? "Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos". Sim, é preciso transcender o que fizeram de nós, e nos reinvertamos de dentro para fora.
Sem exterior absoluto, a sociedade cria exteriores relativos em seu seio. Ela curva-se sobre si mesma e produz limites efêmeros, separações momentâneas. Novamente, é por não iluminarmos esse processo que continuamos a pensar na dualidade interior e exterior, dentro fora, e incluídos e excluídos:
"A idéia de exclusão pressupõe uma sociedade acabada cujo acabamento não é por inteiro acessível a todos. Os que sofrem essa privação seriam os 'excluídos'. No entanto, essa sociedade acabada não existe em princípio. A sociedade é um processo de estruturação e desestruturação." (Martins, 2002, p. 46)
A Liberdade
"Temos de deixar de descrever sempre os efeitos de poder em
termos negativos: ele 'exclui', 'reprime', 'recalca', 'censura',
'abstrai', 'mascara', 'esconde'. Na verdade, o poder produz;
ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais
da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se
pode ter se originam nessa produção."
(Foucault,1977, p. 172)
termos negativos: ele 'exclui', 'reprime', 'recalca', 'censura',
'abstrai', 'mascara', 'esconde'. Na verdade, o poder produz;
ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais
da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se
pode ter se originam nessa produção."
(Foucault,1977, p. 172)
Com Foucault, priorizei o aspecto positivo do poder, afirmando ser esta uma visão de seu interior. A mesma relação de subjetivação, de imposição de identidade, que uma modelo famosa faz com as meninas adolescentes, transpassa a sala de aula na qual discutimos o tema do poder durante esse semestre. A emancipação só pode surgir do poder, que é a fonte mesma da servidão. Eis a ironia suprema de nossa condição.
Agora podemos constatar como a liberdade de La Boétie só encontra espaço imersa nas relações de poder de Foucault. Como em La Boétie, o poder só surge entre sujeitos livres - sujeitos que dispõe de um leque de possíveis ações, a serem conduzidas, limitadas, expandidas.
Como em La Boétie, a servidão surge de uma cegueira que apaga nossa liberdade sempre presente, fazendo-nos renunciar ao poder, renunciar ao governo de nós mesmos e dos seres que nos cercam. Como em La Boétie, o exterior do poder é uma ilusão criada por nós mesmos de dentro de seu interior.
Retomando o poder, podemos nos transformar em sujeitos que se configuram a si mesmos, e governam uns aos outros. Se governar é conduzir ações, cada um de nós pode agir de forma a aumentar a liberdade dos demais. O poder encarnado nos dá a certeza de que temos força, temos autoridade para sermos ouvidos e para movimentar a trama social. Com o fim das autoridades transcendentais, todos tornam-se pequenas autoridades em seus domínios, levando cada homem a legitimar a existência, a subjetividade, o modo de existir, do outro. Sem fundamentação metafísica, sem grande Outro, fica mais fácil reconhecer a validade e importância de cada uma das instâncias de autoridade e poder, dos incontáveis pequenos Outros, que promovem a subjetivação de um grupo de seres.
Um mundo povoado de micro-autoridades é a condição de impossibilidade da violência. Um mundo em que todas os modos de ser são legitimados (desde que, por sua vez, também legitimem os outros) é um mundo fincado na Philia, na amizade, no entre-espelhamento. Tal cenário é, em si mesmo, um dispositivo de poder que "instiga os indivíduos a assumir responsabilidade por sua responsabilidade"(Bauman, 2000, p. 153).
O biólogo Humberto Maturana nos ensina a relação entre o fim pós-moderno da objetividade absolutista, a legitimação do outro, e a reinvenção do mundo:
"Se sabemos que nosso mundo é sempre o mundo que construímos com outros, toda vez que nos encontramos em contradição ou oposição a outro ser humano com que desejamos conviver, nossa atitude não poderá ser a de reafirmar o que vemos do nosso próprio ponto de vista e, sim, a de considerar que nosso ponto de vista é resultado de um acoplamento estrutural dentro de um domínio experiencial tão válido como o de nosso oponente, ainda que o dele nos pareça menos desejável. Caberá, portanto, buscar uma perspectiva mais abrangente, de um domínio experiencial em que o outro também tenha lugar e no qual possamos, com ele, construir um mundo". [grifos meus] (Maturana e Varela, 1995, p. 262).
Trata-se de aprender a viver num mundo não-definido, reconstruindo-o a cada dia de nossa existência. Retomo a análise de Lefort, sobre o Discurso: "o desejo de liberdade exige que a natureza do sujeito nunca seja determinada" (Lefort, p. 145).
No Interior do Poder
"nem coragem e força do tirano, nem covardia e falta de fibra dos
tiranizados engendram a servidão voluntária, mas apenas
o esquecimento da liberdade pelo abandono da amizade."
tiranizados engendram a servidão voluntária, mas apenas
o esquecimento da liberdade pelo abandono da amizade."
(Chauí, p. 208)
A condição de possibilidade da servidão é o não reconhecimento entre humanos. Quando um ser não legitima a existência de outro, quando não mantém nenhuma identificação com o outro, quando se aliena do campo intersubjetivo que o liga ao outro, a servidão torna-se possível.
Da psicanálise, aprendemos que é impossível se constituir como identidade sem atravessar os reinos da alteridade. A boa educação possibilita esse descentramento: no confronto com o não-eu, com o outro, eu me vejo outro (auto-reflexão), e só então me torno eu. Quando isso não chega a acontecer, temos uma espécie de autismo: uma fusão indiferenciada em que, por não haver surgido um Eu diferente do Outro, nenhum contato subjetivo é possível. É no meio desse entrelaçamento existencial que se pode construir uma educação humanista.
Em uma sociedade tirânica, regida por uma ideologia totalitária, a relação entre identidade e alteridade é deturpada justamente para que a cegueira possa se alastrar. Inserido em tal sociedade, o homem molda-se de acordo com os outros e não existe como outro para si mesmo. Diante do espelho, não vê rosto algum, apenas os rostos de outros. Subjetividade objetivada, consciência coisificada, o homem não-reflexivo, por não ser um sujeito para si mesmo, vê todos os outros homens como objetos, incapazes de autonomia, coisas mortas, mercadorias.
Nas palavras de Adorno: "Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa". Incapaz de se identificar com outros sujeitos, os seres voltam-se à violência.
Daí a insistência do filósofo: devemos fazer uma "ontologia crítica de nós mesmos", trazendo à luz da consciência como nos tornamos o que somos, qual mecanismos engendraram essa composição, em que contexto semântico-teórico-ideológico isso se deu, quais os nossos limites, e como isso tudo pode ser superado, abrindo caminho para novas formas de ser.
No espelho desta auto-reflexão, vejo a mim mesmo como um outro, e reconheço os outros homens como outros-eu. Eis o fundamento da não-violência, a condição primordial que impossibilita qualquer holocausto.
Por um lado, a sociedade, através do educador, deve impor a cultura para que o sujeito se descentre e reconheça-se como outro, mas um excesso de imposição esmagará o sujeito e não lhe dará espaço para se reconstruir como um eu; por outro lado, deve-se estimular o interior do sujeito para que ele se concentre e torne-se um sujeito, sem, contudo, apagar a alteridade e permitir que o sujeito construa seu eu desligado de qualquer outro. O resultado dessa implicação ontológica deve ser, por assim dizer, um empate.
Educar-se é entrar em um mundo reconhecido intersubjetivamente, e construir-se como um sujeito nesse novo mundo, olhando para além dos antigos horizontes. Entrar em um domínio e tornar-se nele um sujeito criador, eis duas radicais transformações: a transfiguração subjetiva e a reestruturação objetiva. O caminho educativo que nos propõe Foucault leva à cultura, pelo exterior, e à existência autêntica, pelo interior. O esclarecimento, como um processo de expansão de identidade, talvez seja um dos principais modos pelos quais a humanidade se curva sobre si mesma e ressignifica tudo ao seu redor. Iniciando os seres à cultura, a natureza humana amplia suas conexões consigo mesma, e produz cada vez mais novos olhares, novos modos de ser, novas paisagens.
Em outras palavras, educar é aumentar, por expansão de identidade, o mundo vivido. A expansão e transformação da identidade do aluno implicam a expansão e transformação do mundo do aluno, que, quando compartilhado intersubjetivamente, é a própria expansão e transformação do Mundo como o conhecemos.
Cada novo homem deve praticar a abertura, inacabamento perpétuo, esforço para fora e busca daquilo que nos transcende. Aprender é entrar no mundo do outro, abarcar o outro, e ampliar nosso espaço interno. Quanto mais rica nossa relação com a alteridade, mais rica será nossa identidade. Além disso, o processo de aceitação e reconhecimento do estrangeiro é um constante conhecer a si mesmo.
Afinal, só podemos nos conhecer
no outro, pelo outro e para o outro.
Outro que, como celebrava o povo maia
em seu cumprimento
("In Lak'ech"),
é sempre um outro-eu.
BIBLIOGRAFIA
ADORNO, Theodor. "Educação após Auschwitz". In: ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Tradutor: Maar, Wolfgang Leo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 119-138
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
__________________. Em Busca da Política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
CHAUÍ, Marilena "Amizade, Recusa do Servir" In: Discurso da Servidão Voluntária. Editora Brasiliense: São Paulo, 1999.
FOUCAULT, Michel. (1977) Vigiar e Punir. São Paulo: Vozes, 1984.
FOUCAULT, Michel. (1982) "Sujeito e Poder". In: RABINOW, P.; DREYFUS, H., Michel Foucault: Uma trajetória filosófica. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995.
_________________ . (1979a) Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Ed. Graal.
_________________ . (1979b) A vontade de saber. 2ª edição. Rio de Janeiro, Ed. Graal.
__________________. (2000) Arqueologia das ciências e História dos Sistemas de Pensamento. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Coleção Ditos e Escritos, vol. II.
LA BOÉTIE, Etienne. Discurso da Servidão Voluntária. Editora Brasiliense: São Paulo, 1999.
LEFORT, Claude. "O nome do Um" In: Discurso da Servidão Voluntária. Editora Brasiliense: São Paulo, 1999.
MARTINS, José de Souza. A Sociedade Vista do Abismo. Petrópolis: Vozes, 2002.
MATURANA, H. R.; VARELA, F. A árvore do conhecimento: as bases biológicas do entendimento humano. Campinas: PSY II, 1995.
P.Picasso
Fonte:
Gustavo Montanari Gitti (gustavodrums@uol.com.br)
N° USP: 3327747 - Vespertino
Sejam felizes todos os seres Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Que tal comentar agora?