terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

JUNG E O DESCONHECIDO O DISCURSO DE FU DAISHI




JUNG E O DESCONHECIDO
O DISCURSO DE FU DAISHI

Rogério Malaquias
91/Nova Friburgo


A palavra "Inconsciente", tanto e tão descuidadamente usada, banalizou-se a tal ponto que leva a crer que quem a usa sabe perfeitamente do que está falando. O Inconsciente, então, parece ter se tornado conhecido, parece que sabemos o que é, onde está, o que tem dentro, como se divide e subdivide... ledo engano.
Carl Gustav Jung não cansou de chamar a atenção para o importantíssimo fato de o Inconsciente ser precisamente Inconsciente, isto é, Desconhecido. Chega a causar surpresa que algo tão óbvio merecesse um tal cuidado.
Mas há uma explicação: é que as "coisas", quando são batizadas com um nome qualquer, só por causa disso, imediatamente parecem tornar-se conhecidas. Mesmo que aquele nome pretenda referir-se ao Desconhecido.
Nascemos todos com uma grande ânsia de conhecer, situarmo-nos no mundo, estabelecer pontos de referência, cercar um território, e quando julgarmos conhecer o bastante para que nossa ânsia se acalme, quando acreditamos poder descansar, dormir em paz, então começamos a temer que o nosso precioso conhecimento desapareça num repente.
Passamos a ansiar por não-conhecer! O Novo pode roubar-nos alguma coisa antiga, alguma certeza fundamental. Antes só tínhamos a ganhar, agora temos o que perder. E apesar de quase sufocados, viciados, presos à velhas tramas do passado (teias que uma vez tecemos e agora nos capturam), apesar mesmo dos sonhos de renovação que ainda persistem e estimulam o caminhar, tornamo-nos hostis ao Desconhecido.
Mantemo-Lo à distância para que não venha e nos assuste, ou transforme. Queremos que Ele retorne ao Caos, de onde saiu. Quando não podemos ignorá-Lo, fingir que não O vimos, lançamos mão de nossos carimbos apressadamente e, aliviados, acreditamos te-Lo paralisado dentro de alguma palavra altissoante. Em seguida só nos restará a infinita e triste tarefa de colecionador de nomes.
Se desejamos avançar sobre o Desconhecido, conhecendo-O mais e mais, então precisamos saber que nos tornamos sujeitos à muitas e incríveis armadilhas, e a primeira delas é esta: a ilusão de que já conhecemos o Desconhecido, só porque arranjamos para Ele uma nova palavra, ou algum novo conceito da moda.
Vivemos numa espécie de ilha, ou bolha, de luz entretidos com as mil coisas do dia-a-dia. Conhecemos muitas coisas, temos muitos amigos, objetos, claros desejos. Sabemos o caminho de casa, o nome das ruas, já viajamos por tantos lugares, aprendemos palavras, teorias, comportamentos, artimanhas de toda a espécie. Dominamos uma língua, moramos num país, desenvolvemos critérios para julgar as pessoas.
Podemos, talvez, viver uma vida inteira só às voltas com o conhecido sem ligar muita atenção às nossas dúvidas mais íntimas, e às contradições e ambiguidades do que fazemos. Podemos não dar importância aos nossos sonhos e delírios, podemos acender todas as lâmpadas e tentar ignorar a noite, as trevas e o vazio.
Podemos jamais perceber que esta zona de luz está cercada por um abismo infinito, estranho e desconhecido.
Não estamos apenas cercados, mas penetrados. E ainda muito mais do que apenas penetrados, estamos quase completamente à mercê do que não sabemos.
Se paramos um pouco e lançamos em torno uma mirada honesta, podemos não reconhecer o que nos parecia óbvio, podemos nos sentir traídos. Ficaríamos admirados com nossa capacidade de nos iludir, levaríamos um susto ao ver trevas onde parecia haver luz.
Cada coisa que imaginamos conhecer carrega consigo o seu quinhão de sombras, seu mistério, seu infinito. O Desconhecido está em toda em toda parte: bem diante de nós, atrás, à esquerda e à direita. Está abaixo e acima de todos e cada um de nós. O Desconhecido está dentro e fora de nós. Entre nós. E se houver um Centro de tudo o que existe, Ele estará lá e será Ele o Centro.
Estas considerações nos remetem diretamente às questões da Psicologia Analítica, elaboradas por Jung e seus discípulos. Poderemos, talvez, compreender como a consciente convivência com o Desconhecido pode abrir novas e importantes perspectivas para o Ego, desde as origens apavorado ante o abismo de si mesmo.
Caminhando juntos por essa região intermediária, verdadeira terra-de-ninguém, entre o Eu e o Outro, entre o Ser e o Não-Ser, o Alto e o Baixo, o Espírito e a Matéria, a Vida e a Morte, entre a Sabedoria e a Loucura, vamos acostumando os nossos olhos à uma meia-luz, à uma meia verdade, aos povos da fronteira. Vamos aprendendo pouco a pouco o dialeto e esquisito diálogo com os personagens do sonho e dos mitos, a intimidade com as metáforas poéticas.
Acompanhando com cuidado, para não perde-lo, o profundo sentido da palavra "Inconsciente" que significa tão simplesmente "O Desconhecido", abordemos os conceitos básicos da Psicologia Junguiana. As noções de Símbolo, Arquétipo e Complexo, a Dissociação Psíquica e o Processo de Integração da Personalidade.
O Desconhecido é o fascinante e assombroso, é completamente presente, real e próximo. É o que nos faz dormir e acordar, apagar e acender, o que nos traz prazer e dor, amor e ódio. Pode nos parecer terrível e apavorante como um dragão, a ponto de não nos animarmos a olhar em volta e ve-Lo nas faces, mas é em sua direção que devemos olhar se buscamos o sentido do Sagrado, um sentido para a Vida.
O discurso de Fu Daishi
Se agora, neste exato momento em que começamos nosso pequeno curso sobre o Desconhecido, depois de algum silencio, eu me levantasse e fosse embora sem dizer qualquer palavra, e não voltasse mais aqui, o que vocês sentiriam? Certamente ficariam muito surpresos e, por alguns segundos não entenderiam nada. Logo começariam a se perguntar o que tinha acontecido e achariam uma resposta qualquer. Tenho certeza que pensariam que eu sou um maluco e pediriam o dinheiro de volta. Comentariam indignados, uns com os outros, o tempo que eu lhes teria feito perder e os mais bem humorados fariam piadas debochando de mim.
Eu não vou fazer isso. Mas foi isso exatamente o que fez um grande mestre budista há 1400 anos atrás, com o agravante de ter como platéia nada menos que o poderoso Imperador Wu, da dinastia Liang, no sul da antiga China, cercado por todos os seus ministros e nobres. O monge era o Mestre Fu (Fu Daishi).
Conta o Hekigan Shu, uma coleção de pequenas histórias sobre os mestres Zen na China, que o tal monge fora convidado a falar sobre o Sutra do Diamante no salão principal do seu palácio. O Imperador convertera-se recentemente ao budismo e demonstrava grande interesse no estudo da doutrina.
Logo após ser anunciado, Fu Daishi, diante de todos, ficou algum tempo a observar atentamente a platéia, até que de repente, ergue o seu cajado de andarilho e dá uma violenta batida no chão. E vai embora.
Outra versão diz que ele apenas sentou-se em seu lugar, como se já tivesse terminado a sua preleção. Sem dizer palavra.
Alguém perguntou ao Imperador se ele tinha entendido.
-- Ué !? Entendido o quê ? Espantou-se o Imperador, por que ele não começa logo a falar ?
-- Porque a palestra do Daishi já terminou, Majestade.
Só podemos imaginar o que teria acontecido. Estivéssemos lá, talvez uma grande emoção fizesse com que jamais esquecêssemos aquele estranho sermão. A audácia daquele monge rompeu a série interminável das coisas esperadas, evitou que os ensinamentos do Sutra se transformassem em mero entretenimento intelectual. Fu Daishi não falou do Diamante, mostrou-O.
Não se sabe se alguém, naquele momento, compreendeu a mensagem do Mestre, mas alguma coisa aconteceu, ou sua história não teria atravessado tantos séculos e nem estaríamos nós, hoje, a recontá-la. É uma grande história, e muito importante porque nos chama a atenção para a Atenção. Podemos intuir a estranheza do momento único que estamos vivendo juntos, agora! Fu Daishi sublinhou esta estranheza ao invocar o Desconhecido. Chamou o Inesperado e mostrou-O à corte.
Vajra, em sânscrito, é o Diamante, mas significa também o Raio. Não foi um raio, um relâmpago, o que se desencadeou naquele dia ?
Diante do Desconhecido, por um momento ficamos sem palavras, atônitos, boquiabertos, e depois, no momento seguinte, ao tentar descreve-Lo, todas as palavras do mundo parecem insuficientes. Às vezes, mesmo assim, passamos talvez o resto da vida a faze-lo.
Fu Daishi chamou o Dragão e exibiu-O no grande palácio de Liau.
Abriu-se ali o Grande Abismo, o Vazio Sagrado de onde nascem todas as coisas. O instante mesmo da Criação.
Citações
O Inconsciente como Desconhecido
"Tudo o que conhecemos a respeito do inconsciente foi-nos transmitido pelo próprio consciente. A psique inconsciente, cuja natureza é completamente desconhecida, sempre se exprime através de elementos conscientes e em termos de consciência, sendo esse o único elemento fornecedor de dados para a nossa ação. Não se pode ir além desse ponto, e não devemos esquecer que tais elementos são o único fator de aferição crítica de nossos julgamentos."
Carl Jung
Fundamentos de Psicologia Analítica. Ed. Vozes / 1983, pg 3.
"A consciência é como uma superfície ou película cobrindo a vasta área inconsciente, cuja extensão é desconhecida. Ignoramos a extensão do domínio inconsciente pela simples razão de desconhecermos tudo a seu respeito. Não se pode dizer coisa alguma a respeito daquilo sobre o qual nada se sabe... Quando dizemos 'inconsciente' o que queremos sugerir é uma idéia a respeito de alguma coisa , mas o que conseguimos é apenas exprimir nossa ignorância a respeito de sua natureza... Há apenas provas indiretas sobre a existência de uma esfera mental de ordem sublime. Temos muito pouca justificação científica que prove em última instância sua existência. A partir dos produtos desse "eu" inconsciente podemos tirar determinadas conclusões quando quanto a sua possível existência. Entretanto, todo cuidado será pouco para não cairmos num antropomorfismo exagerado, pois os fatos, em sua realidade, podem ser bastante diferentes da imagem que a nossa consciência forma deles."
Ibid. pg 4. Jung.
"Se, por exemplo, tomarmos o mundo físico e o compararmos à imagem que dele é formada pelo consciente, descobriremos todo tipo de idealizações mentais, que não existem como fatos objetivos; assim, essa crítica deverá nortear todo ponto de vista e a afirmação que eu fizer ao longo das conferências, quando tratar do inconsciente. Tudo será COMO SE, e vocês nunca deverão esquecer tal restrição."
Ibid. pg 5. Jung.

"A psicologia não é magia negra; é uma ciência: a ciência da consciência e deus dados; é, também, a ciência do inconsciente, mas só em segundo lugar, pois o inconsciente não é diretamente acessível, precisamente porque é inconsciente. É certo que existem pessoas que não temem afirmar: 'O inconsciente carece de segredos para mim; eu o conheço como a palma da minha mão'. Eu lhes respondo então: 'Você talvez tenha vasculhado toda a sua consciência, mas seu inconsciente você o desconhece completamente, pois o inconsciente é, na verdade, inconsciente; é, precisamente, aquilo sobre o qual não temos qualquer informação. Não esqueçamos este preâmbulo; pois o termo 'inconsciente' é utilizado com demasiada despreocupação, falando-se, por exemplo, em informações ,idéias, imagens, fantasias inconscientes, etc. Este é um deplorável costume verbal. (...) Com todo rigor deveríamos dizer: uma representação imaginativa que foi inconsciente; pois o inconsciente deposita nas praias da consciência uma multiplicidade de coisas, e quando as chamamos 'inconscientes' não se faz nada além de designar a sua origem. (...) A psique inconsciente é de natureza inteiramente desconhecida; seus produtos são expressos sempre pela consciência em termos de consciência, isto é tudo o que podemos fazer; Não podemos passar daqui e devemos ter sempre presentes estas circunstâncias em nossa mente como último critério de nosso juízo, quando tratamos de inferir, a partir da qualidade particular dos produtos do inconsciente, a natureza daquilo de onde devem ter saído."
Carl Jung
"L'homme à la decouverte de son ãme".
Traduzido de "Los Complejos y el Incosciente ".
Alianza Editorial / Madrid, 1970. pg 85, 86.

"Teoricamente é impossível fixar limites no campo da consciência, uma vez que ela pode estender-se indefinidamente. Empiricamente, porém, ele sempre atinge seus limites, ao atingir o desconhecido. Este último é constituído por tudo aquilo que ignoramos, por aquilo que não tem qualquer relação com o eu, centro dos campos da consciência".
Carl Jung
Memórias, Sonhos e Reflexões.
Editora Nova Fronteira / Rio de Janeiro, 1975. pg 354.


A consciência ante o Desconhecido

"Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado, quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como totalidade."
Carl Jung
Memórias, Sonhos e Reflexões.
Editora Nova Fronteira / Rio de Janeiro, 1975. pg 19.

"Cada vida é um desencadeamento psíquico que não se pode dominar a não ser parcialmente. Por conseguinte, é muito difícil estabelecer um julgamento definitivo sobre si mesmo ou sobre a própria vida. Caso contrário, conheceríamos tudo sobre o assunto, o que é totalmente impossível. Em última análise: nunca se sabe como as coisas acontecem. A história de uma vida começa num dado lugar, num ponto qualquer de que se guardou lembrança e já, então, tudo era extremamente complicado. O que se tornará essa vida, ninguém sabe. Por isso a história é sem começo e o fim é apenas aproximado indicado."
Ibid. pg. 19. Jung.
"A vida sempre se me afigurou uma planta que extrai sua vitalidade do rizoma; a vida, propriamente dita, não é visível, pois jaz na rizoma. O que se torna visível sobre a terra dura só um verão, depois fenece... Aparição efêmera. Quando se pensa no futuro e no desaparecimento infinito da vida e das culturas, não podemos nos furtar a uma impressão de total futilidade; mas nunca perdi o sentimento da perenidade da vida sob a eterna mudança. O que vemos é a floração, e ela desaparece. Mas o rizoma persiste."
Ibid. pg. 20. Jung.

"Sinto-me contente de que minha vida tenha sido aquilo que foi: rica e frutífera. Como poderia esperar mais? Ocorreram muitas coisas, impossíveis de serem canceladas. Algumas poderiam ter sido diferentes, se eu mesmo tivesse sido diferente. Assim, pois, as coisas foram o que tinham de ser; pois foram o que foram porque eu sou como sou. Muitas coisas, muitas circunstâncias foram provocadas intencionalmente, mas nem sempre representaram uma vantagem para mim. Em sua maioria dependeram do destino. Lamento muitas tolices, resultantes de minha teimosia, mas se não fossem elas não teria chegado à minha meta. Assim, pois, eu me sinto ao mesmo tempo satisfeito e decepcionado. Decepcionado com os homens, e comigo mesmo. Em contato com os homens vivi ocasiões maravilhosas e trabalhei mais do que eu mesmo esperava de mim. Desisto de chegar a um julgamento definitivo, pois o fenômeno homem e o fenômeno vida são demasiadamente grandes. À medida em que envelhecia, menos me compreendia e me reconhecia, e menos sabia sobre mim mesmo.
Sinto-me espantado, decepcionado e satisfeito comigo. Sinto-me triste, acabrunhado, entusiasta. Sou tudo isso e não posso chegar a uma soma, a um resultado final. É para mim impossível constatar um valor ou um não-valor definitivos; não posso julgar a vida ou a mim mesmo. Não estou certo de nada. Não tenho mesmo, para dizer a verdade, nenhuma convicção definitiva, a respeito do que quer que seja. Sei apenas que nasci e que existo; experimento o sentimento de ser levado pelas coisas. Existo à base de algo que não conheço. Apesar de toda a incerteza, sinto a solidez do que existe e a continuidade do meu ser, tal como sou.
O mundo no qual penetramos pelo nascimento é brutal, cruel e, ao mesmo tempo, de uma beleza divina. Achar que a vida tem ou não tem sentido ´e uma questão de temperamento. Se o não-sentido prevalecesse de maneira absoluta, o aspecto racional da vida desapareceria gradualmente com a evolução. Não parece ser isto o que acontece. Como em toda questão metafísica, as duas alternativas são provavelmente verdadeiras: a vida tem e não tem sentido, ou então possui e não possui significado. Espero ansiosamente que o sentido prevaleça e ganhe a batalha.
Quando Lao-Tse diz: 'Todos os seres são claros, só eu sou turvo', exprime o que sinto em minha idade avançada. Lao-Tse é o exemplo do homem de sabedoria superior que viu e fez a experiência do valor e do não-valor, e que no fim da vida deseja voltar a seu próprio ser, no sentido eterno e incognoscível. O arquétipo do homem idoso que contemplou suficientemente a vida é eternamente verdadeiro; em todos os níveis da inteligência, esse tipo aparece e é idêntico, quer se trate de um velho camponês ou de um grande filósofo como Lao-Tse.
Assim, a idade avançada é... uma limitação, um estreitamento. E no entanto acrescentou em mim tantas coisas: as plantas, os animais, as nuvens, o dia e a noite e o eterno no homem. Quanto mais se acentuou a incerteza em relação a mim mesmo, mais aumentou meu sentimento de parentesco com as coisas. Sim, é como se essa estranheza que há tanto tempo me separava do mundo tivesse agora se interiorizado, revelando-me uma dimensão desconhecida e inesperada de mim mesmo.
Carl Jung
Ibid. pg. 309,310.

"Quanto mais profundas forem as 'camadas' da psique, mais perdem sua originalidade individual. Quanto mais profundas, mais se aproximam dos sistemas funcionais autônomos. mais coletivos se tornam, e acabam por universalizar-se e extinguir-se na materialidade do corpo, isto é, nos corpos químicos. O carbono do corpo humano é simplesmente carbono; no mais profundo de si mesma, a psique é o Universo."
Carl Jung
Ibid. pg. 355.

"Duas almas vivem aqui no meu peito,
uma querendo separar-se da outra:
uma se agarra, em sensual enleio
e com seus órgãos feito âncoras, ao mundo;
a outra se ergue do pó às alturas antiquíssimas."
Fausto / Noite, I. Wolfgang Goethe.

"Não sei Quem, ou o Quê, fez a pergunta. Não sei quando a fizeram. Nem mesmo me lembro de tê-la respondido. Mas em algum momento eu disse Sim a Alguém, ou Algo, e dessa hora em diante tive a certeza de que a existência era significativa e, portanto, minha vida possuía, na auto-entrega, um objetivo."
Dag Hammerskjold
Citado em
"A Gnose de Jung e os Sete Sermões aos Mortos",
de Stephan Hoeller.
Cultrix / São Paulo, 1995. pg 168.

"Em Alguma parte, alguma vez, houve uma Flor, uma Pedra. um Cristal; uma Rainha, um Rei, um Palácio; um Amado e uma Amada, há muito tempo, no Mar, numa Ilha, há cinco mil anos... É o Amor, é a Flor Mística da Alma, é o Centro, é o Si-Mesmo... Ninguém entende isso, a não ser alguns poetas, somente eles me compreenderão..."
Carl Jung
O Círculo Hermético, Hermann Hesse a C.G. Jung.
Editora Brasiliense / São Paulo. 1970. pg.77. Miguel Serrano.

XI
"Trinta raios convergem para o centro da roda
mas é o vazio entre eles que faz o veículo andar.

Modela-se a argila para fabricar o jarro
mas é do vazio no centro que depende a sua utilidade.

Uma casa é perfurada por portas e janelas
e é ainda o vazio que nos permite habitá-la.

O Ser dá as possibilidades
mas é pelo Não-Ser que as realizamos.
Tao Te Ching..Lao-Tse.

"O Mostrengo"
O Mostrengo que está no fim do mar
na noite de breu ergueu-se a voar;
à roda da nau voou três vezes,
voou três vezes a chiar,
e disse, "Quem é que ousou entrar
nas minhas cavernas que não desvendo,
meus tetos negros do fim do mundo?"
E o homem do leme disse, tremendo,
"El-Rei D. João Segundo!"
"De quem são as velas onde me roço?
de quem as quilhas que vejo e ouço?"
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
três vezes rodou imundo e grosso,
"Quem vem poder o que só eu posso,
que moro onde nunca ninguém me visse
e escorro os medos do mar sem fundo?"
E o homem do leme tremeu, e disse,
"El-Rei D. João Segundo!"
Três vezes do leme as mãos ergueu,
três vezes ao leme as reprendeu,
e disse no fim de tremer três vezes,
"Aqui ao leme sou mais do que eu:
sou um Povo que quer o mar que é teu;
e mais que o mostrengo, que me a alma teme
e roda nas trevas do fim do mundo,
manda a vontade que me ata ao leme,
de El-Rei D. João Segundo!"
Mensagem. II. Parte IV. Fernando Pessoa.

Hino da Criação
1
Então o não-ser não existia
nem tampouco existia o ser.
Não existia o espaço etéreo
nem, mais além, a abóboda celeste.
Havia algo que se agitasse?
Onde?
Sob a proteção de quem?
Existia a água,
esse profundo e insondável abismo?
2
Não existia a morte,
nem existia a imortalidade,
nem sinal que distinguisse a noite do dia.
Somente o Uno respirava,
sem ar, por sua própria força.
À parte dele
não existia coisa alguma.

3
No começo só existia
treva envolta em treva.
Tudo era água indiferenciada.
Princípio do vir-a-ser
rodeado pelo vazio,
o Uno surgiu
pelo poder de seu próprio ardor interno.
4
No começo
brotou nele o desejo,
que foi a primeira semente da alma.
Buscando em seus corações,
graças a sua sabedoria,
os sábios encontraram
o vínculo que une o ser e o não-ser.
5
Transversalmente estenderam seu cordel.
Existia um embaixo?
Existia um encima?
Existiam fecundadores,
existiam energias.
Embaixo estava o poder,
encima estava o motivo.

6
Quem sabe a verdade?
Quem pode dizer-nos
de onde nasceu esta criação?
Os deuses nasceram depois
e graças à criação do universo.
Quem pode, portanto, saber
de onde surgiu?
7
Aquele que é o guardião do céu supremo,
somente aquele, sabe
de onde surgiu esta criação,
tendo ele a criado, ou não.
Ou talvez nem mesmo ele o saiba.
Rig Veda X, 129 (Cerca de 1200 aC.).
Traduzido de Himnos del Rig Veda.
Editorial Sudamericana / Buenos Aires. 1968. Fernando Tola.


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