quinta-feira, 15 de abril de 2010

O PAPA, , a razão e o Islão

O Papa, a razão e o Islão


O que é que se passou para que o discurso mais académico de Bento XVI na sua visita à Baviera, pronunciado na Universidade de Ratisbona, tenha despertado uma inesperada chuva de críticas dos porta-vozes muçulmanos? Como costuma acontecer nestes casos, as primeiras críticas costumam transmitir uma ideia simplificada - o Papa teria dito que o Islão é uma religião violenta - e os que vêm a seguir limitam-se já a atacar quem pronunciou tal «ofensa», sem se preocupar em conhecer o texto e o contexto original.

O discurso pronunciado por Bento XVI a 12 de Setembro não trata das relações entre o cristianismo e o Islão, mas sobre a «Fé, razão e universidade». O tema central é uma questão muito querida na reflexão do teólogo Ratzinger: a racionalidade da fé, o interrogar-se sobre Deus por meio da razão, a convergência entre a fé bíblica e a filosofia grega.

Neste contexto, e com o estilo habitual de um académico que faz uma citação a propósito do desenvolvimento do seu tema, menciona o diálogo entre o imperador bizantino Manuel II Paleólogo (1350-1425) e um erudito persa sobre o cristianismo e o Islão. Manuel II Paleólogo, filho do imperador, tinha sido refém na corte otomana, sofreu a constante pressão turca sobre Constantinopla e foi um erudito, autor de obras teológicas e retóricas. 
Os parágrafos incriminados dizem assim: «No sétimo colóquio editado pelo professor Khoury, o imperador toca o tema da "jihad" (guerra santa). Seguramente o imperador sabia que na sura 2, 256 se lê: "Nenhuma constrição nas coisas da fé". É uma das suras do período inicial no qual o próprioMaomé ainda não tinha poder e estava ameaçado. Mas, naturalmente, o Imperador conhecia também as disposições, desenvolvidas sucessivamente e fixadas no Corão, acerca da guerra santa. Sem se deter no particular, como a diferença de tratamento entre aqueles que possuem o "Livro" e os "incrédulos", ele, de modo surpreendentemente brusco, dirige-se ao seu interlocutor simplesmente com a pergunta central sobre a relação entre religião e violência, em geral, dizendo: "Mostra-me também aquilo que Maomé trouxe de novo, e encontrarás somente coisas malvadas e desumanas, como a sua ordem de difundir por meio da espada a fé que ele pregava". O Imperador explica assim minuciosamente as razões pelas quais a difusão da fé mediante a violência é uma coisa irracional. A violência está em contraste com a natureza de Deus e a natureza da alma. "Deus não se alegra com o sangue; não actuar segundo a razão é contrário à natureza de Deus. A fé é fruto da alma, não do corpo. Quem portanto quer conduzir outro à fé necessita de capacidade de falar bem e de raciocinar correctamente, não de violência nem de ameaça». 


O que Bento XVI quer destacar aqui não é o «brusco» juízo do imperador sobre a acção de Maomé, mas sim a concepção cristã do modo de actuar de Deus. «A afirmação decisiva - prossegue Bento XVI - nesta argumentação contra a conversão mediante a violência é: não actuar segundo a razão é contrário à natureza de Deus (...). Para a doutrina muçulmana, pelo contrário, Deus é absolutamente transcendente. A sua vontade não está ligada a nenhuma das nossas categorias, inclusivamente à da racionalidade». 

Aquilo de que o Papa está a falar é «do encontro entre fé e razão, entre autêntico Iluminismo e religião. Partindo verdadeiramente da íntima natureza da fé cristã e, ao mesmo tempo, da natureza do pensamento helénico unido já com a fé, Manuel II podia dizer: Não actuar "com o logos" é contrário à natureza de Deus». Deus não actua de modo arbitrário, mas sim de acordo com a razão criadora; e o homem, para cumprir o projecto divino, deve actuar conforme a razão. 

Dois modos de conceber Deus
Bento XVI contrapõe aqui dois modos de conceber a transcendência divina. Num caso, «a transcendência e a diversidade de Deus são acentuadas de um modo tão exagerado, que também a nossa razão, o nosso sentido do verdadeiro e do bem não são já um verdadeiro reflexo de Deus, cujas possibilidades abissais permanecem para nós eternamente inalcançáveis e escondidas pelas suas decisões efectivas. Em contraste com isso, a fé da Igreja sempre teve a convicção de que entre Deus e nós, entre o seu eterno Espírito criador e a nossa razão criada, existe uma verdadeira analogia».

O Secretário de Estado do Vaticano, cardeal Bertone, declarou num comunicado que ao citar o juízo do imperador Manuel II Paleólogo, o Santo Padre não pretendia assumi-lo, mas sim utilizá-lo para desenvolver num contexto académico «algumas reflexões sobre o tema da relação entre religião e violência em geral e concluir com um claro e radical repúdio da motivação religiosa da violência, independentemente da sua proveniência».

Não se trata de um problema de choque de civilizações. O mesmo comunicado recorda a advertência, dirigida noutro discurso de Bento XVI à cultura secularizada, para que se evite «o desprezo de Deus e o cinismo que considera a troça do sagrado como um direito da liberdade». 

No mesmo discurso na Universidade de Ratisbona o Papa afirmou que a dimensão religiosa é essencial para um frutuoso diálogo entre culturas: «As culturas profundamente religiosas do mundo vêem a exclusão do divino da universalidade da razão como um ataque às suas convicções mais íntimas. Uma razão que é surda perante o divino e que relega a religião para o âmbito das subculturas é incapaz de participar no diálogo entre as culturas».

Os porta-vozes islâmicos deveriam compreender que Bento XVI, ao defender a abertura da modernidade a Deus, está abrindo também espaço para todas as religiões. E deveriam pensar se as dificuldades do Islão para encontrar o seu lugar no mundo moderno provêm, não dos inimigos exteriores sempre invocados (os novos «cruzados», o Ocidente agressor, os colonialistas), mas sim de um problema por resolver entre a razão e a fé corânica. 

Fonte:Assinado por Aceprensa   
Data: 20 Março 2010
Aceprensa

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Que tal comentar agora?