sexta-feira, 6 de maio de 2011

A AMIZADE FILOSÓFICA :GILLES DELEUZE E CLAUDIO ULPIANO

A amizade filosófica – o encontro de Gilles Deleuze com Claudio Ulpiano

Gilles Deleuze
 
Claudio Ulpiano foi um grande amigo de Deleuze, mesmo que nunca o tenha encontrado. Durante muitos anos, de 1980 a 1999, um grupo de pessoas das mais variadas formações se reuniam em seus cursos na casa de algum aluno ou na universidade onde ensinava. Era o traço mais potente e original do ensino de Claudio: a heterogeneidade de seus estudantes e a informalidade de seus cursos. Ele era professor universitário, mas a instituição era apenas um complemento de seu ensino, pois não partia do cânone universitário nem para preparar suas aulas nem para avaliar seus alunos, e muito menos para escolher o que iria falar.

A informalidade… Quando esta palavra é empregada pensamos em uma conversa livre e não no ensino filosófico no que ele tem de mais rigoroso. Mas não faltava rigor aos cursos de Claudio. A informalidade vinha do fato de que ele buscava escapar das obrigações impostas pela instituição universitária. Não para fugir de uma imposição de rigor, mas para procurar o que torna o pensamento possível. 

A universidade sabe muito bem como aprisionar o pensamento com suas divisões disciplinares e suas exigências de fidelidade a certas correntes filosóficas. 

Mas nos cursos de Claudio a filosofia estava ao alcance de todos, não por ser facilitada, como acontece em inumeráveis experiências atuais de pura glória pessoal. Seus cursos não eram fáceis de se seguir, os conceitos neles eram apresentados em toda sua complexidade. Mas a fidelidade à terminologia técnica não tinha como finalidade a exclusão dos não – iniciados. Na medida em que um termo criado por um filósofo se fazia necessário, ele era introduzido a partir do problema que o tornava indispensável.

A linguagem técnica também não era empregada como súmula, por uma preguiça típica de certos «  clubes filosóficos » (caso flagrante de Heidegger, da filosofia analítica e até mesmo da maioria dos deleuzianos). O cuidado com a terminologia tinha o sentido de um cuidado com o pensamento estudado.

Deleuze muitas vezes mostrou que o objetivo da filosofia é criar conceitos e que esta criação se dá a partir de problemas. É impossível compreender um novo conceito, sobretudo se ele é expresso por uma nova palavra, se não o inserimos no universo problemático que o torna necessário.

Para ficarmos no universo deleuziano, o emprego da palavra «  rizoma  » não passa de uma facilitação estéril se sua utilização não é forçada por uma tensão com as divisões binárias que caracterizam a constituição das raizes. De fato, o que se vê hoje em dia na filosofia é um estranho confronto: de um lado, a extrema especialização das faculdades de filosofia, e de outro, uma profusão de conceitos filosóficos de usos múltiplos que acabam por fazer parte dos fenômenos da moda, perdendo assim toda sua potência.

Se a informalidade dos cursos de Claudio nos protegia do primeiro perigo, também evitava o segundo por sua dedicação ao rigor. Eis uma palavra que frequentemente é mal entendida. Diz – se que um raciocínio é rigoroso se ele segue um encadeamento lógico, se é rico em referências e se estas referências são justas. Mas, na verdade, é muito mais do que isto. O rigor é o que, em um pensamento, o faz se manter de pé. O que o impede de se desfazer diante das menores ameaças do relativismo. 

O relativismo é um dos maiores perigos do mundo atual porque, para seus pretensos defensores, que se acham mais livres do que as outras pessoas, tudo o que é dito se equivale.

É da falta de rigor que deriva tudo o que é repetido pelo sentido comum a propósito da « relatividade » do conhecimento. Só o rigor atinge uma espécie de absoluto.

Um pensamento se sustenta na medida em que é tão necessário para nos mostrar a solução de um problema quanto o ar que respiramos. Se um pensamento rigoroso não aparecer em nosso socorro seremos tomados para sempre pelo ordinário e o banal. 

Deste ponto de vista, o rigor é o que nos salva do ordinário: a singularidade, a própria diferença. Para Claudio Ulpiano, esta aliança da invenção com o rigor foi o meio mais digno de construir sua amizade com Deleuze, filósofo da diferença.

Ao invés de opor as duas noções, Claudio nos ensinou que a invenção e o rigor são inseparáveis. Filosofar consiste em inverter a direção habitual do trabalho do pensamento, já diziam Ulpiano e Deleuze seguindo Bergson. Tomando as palavras deste último, podemos dizer que o que afasta o pensamento de sua origem criativa, é que « a intuição, uma vez apreendida, deve encontrar um modo de expressão e de aplicação que esteja em conformidade com os hábitos de nosso pensamento e que nos forneça, conceitos bem seguros, pontos de apoio sólidos de que tanto precisamos.

Esta é a condição do que chamamos de rigor, precisão  » . Mas este trabalho de aperfeiçoamento lógico prossegue, enquanto seu ato gerador, a intuição, a invenção de alguma coisa nova, não dura mais que um instante. É por isso que tomamos com tanta frequência o aparelho lógico do pensamento pelo próprio pensamento.

A filosofia na França sofre frequentemente desta confusão entre o pensamento e suas condições. Para filosofar, é preciso conhecer « a Filosofia  ». Acreditamos que é absolutamente necessário ter digerido toda a história da filosofia, assim como seus comentadores, e os ter compreendido, o que significa, na maior parte das vezes, saber citá – los. O rigor se confunde com erudição e técnica.

O pensamento se perde em discussões intermináveis em torno dos autores e dos modos ideais de enunciação. Não obstante, quando conseguiu liberar – se deste jugo, a filosofia francesa produziu os exemplos mais admiráveis, e sobretudo os mais potentes, do casamento entre precisão, erudição e invenção.

No Brasil, ao contrário, diz – se coisas muito inspiradas, muito inventivas, que se engole sem digerir. A informalidade existe, entre outras coisas, para poupar o trabalho propriamente dito, a transpiração que o pensamento exige (além da inspiração). Produz – se enunciados, muitas vezes inspirados, mas não se sabe defendê – los adequadamente. Talvez seja por essa razão que tememos discussões intelectuais muito longas ou muito profundas. « É chato  ! ». É como se avançar na precisão acabasse por destruir nossa alegria de viver. No entanto, a exigência de uma filosofia que celebra a vida é a de um pensamento que respira, que possui a ligeireza e a flexibilidade necessárias para transformar os modos de existência.

Não importa o que se diga dos «  meios  » respectivos, Gilles Deleuze permanece francês e Claudio Ulpiano, brasileiro. Ao se ler um livro de Deleuze algumas vezes nos assustamos diante da riqueza das referências. Passeamos através de toda a história da filosofia (das ciências e das artes). Mesmo que estas referências não se dêem sempre da maneira tradicional, a erudição e o cuidado com a precisão lá estão. Mas isso não é essencial. Para criar conceitos, para constituir um pensamento que tenha importância, é preciso ultrapassá – las.

O texto de Deleuze é constituido por muitos planos superpostos e o das referências é apenas um. O encadeamento lógico se torna encadeamento afetivo entre os planos, sem prejudicar o rigor. Do país das formalidades emerge uma nova concepção de rigor, que parece tender para a informalidade.
No que diz respeito a Claudio Ulpiano, ele concebia como uma de suas maiores tarefas, enquanto professor de filosofia, dar – nos as referências escondidas nos textos de Deleuze. Nenhuma lhe escapava, tinha todas elas, conhecia todas de cor. Só chegava à originalidade do pensamento de Deleuze no fim dos cursos, quando essas referências eram compreendidas.

Mas ele não se deixava aprisionar por elas. Compreendia – se ao final o que ele buscava por detrás destas referências: o sentido do pensamento e suas ligações com a vida.

Um pensamento é rigoroso se é necessário. Se ele nos atinge, é por duas características ao mesmo tempo: a evidência («  sempre pensei assim  ! ») e a inevitabilidade («  como era possível que eu não pensasse assim  ?»). Depois de assistir a um curso de Ulpiano, experimentávamos essa sensação – de que a vida acabava de mudar para sempre. Eis o que se chama de informalidade na filosofia.

O rigor não é uma formalidade, e a informalidade não é ausência de rigor. Estes são os dois ingredientes sem os quais um pensamento desmorona, por falta de sentido ou por falta de interesse. Rigor e informalidade. Uma amizade filosófica.


Tatiana Roque
professora do Instituto de Matemática da UFRJ.

Fonte:
Centro de Estudos Claudio Ulpiano
http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/?p=555
quinta-feira, março 11, 2010 @ 06:03 AM
Este artigo foi publicado em Les Cahiers Purple, Numéro 1 – 2010, ISSN 2102 – 6645, pp.72 – 74.
postado por: Editoria
Sejam felizes todos os seres  Vivam em paz todos os seres
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