sexta-feira, 5 de agosto de 2011

ECCE HOMO: UM ITINERÁRIO DO HOMEM A DEUS (III) - Andreas Lind



Pensadores como Nietzsche e Camus 
pedem-nos para permanecermos numa vida niilista, 
carregando inutilmente a pedra que sempre cai
da montanha sem fim. Teilhard acredita, verdadeiramente,
no triunfo da Vida e do Homem que a Evolução criou.

Por Andreas Lind*

Neste momento, começamos a compreender algo que separa claramente os dois autores em análise: enquanto que, para Nietzsche, a Evolução é dominada por forças cegas, arbitrárias e caóticas (1), Teilhard vê uma convergência na Árvore da Vida (2). 

A Vida constitui, então, um processo que se direcciona para a maior complexificação da consciência; caminha, portanto, em direcção ao ser humano. Depois, seguindo as características que se detectam nesse mesmo processo evolutivo – nomeadamente, a unificação e a personalização – Teilhard irá concluir a necessidade do Ponto Ómega [o próprio Deus] como condição de possibilidade do triunfo final de todo esse processo [já iniciado] (3).

1) A questão da Vida
Tanto na obra de Teilhard como nos escritos nietzschianos encontramos uma certa primazia pela
Vida. Ambos os autores procuram seguir o dinamismo interno à própria vida, aceitando a Evolução biológica, por um lado, e um certo conatus (4) indelével aos organismos vivos, por outro.
(a) A Vida em Nietzsche

Em Nietzsche, a integração do evolucionismo explicita-se em passagens tais como: “o homem é algo que deve ser superado”; “o que é o macaco para o homem? Uma irrisão ou uma dolorosa vergonha. Tal será o homem para o Super-homem. Percorrestes o caminho que vai do verme ao homem, e ainda em vós resta muito de verme. Outrora fostes macacos” (5).

Para o autor germânico, não se trata de uma mera superação do homem. Tem de ser uma superação em favor da Vida, cuja apologia se faz presente em toda a obra nietzschiana: logo em
O Nascimento da Tragédia, o jovem Nietzsche não só lamenta o triunfo da filosofia socrático-platónica que abafou a vontade de viver própria do homem (6), como se mostra esperançoso no percurso artístico que torna a ópera de Wagner herdeira das rupturas de Beethoven (7); em O Anticristo, obra marcante da última fase do seu pensamento, o autor germânico volta a criticar o cristianismo, a moral kantiana e toda a filosofia pós-socrática, por contrariarem a Vida, a vida real e concreta dos instintos vitais, que submetem a ideais tão abstractos quanto irreais (8). Por isso, diz-nos que “o homem é (…) o animal mais falhado, o mais doente, o mais perigosamente desviado dos seus instintos” (9).

Deste modo, concluímos que a noção nietzschiana de Vida comporta duas ideias fundamentais: (i) em primeiro lugar, funda-se numa notória dicotomia entre
razão e instinto; (i) em segundo lugar, a Vida deve ser, para Nietzsche, exclusivamente dominada por forças activas (10).

Em relação à primeira ideia, trata-se do apelo nietzschiano à aceitação da verdadeira, da autêntica natureza. Na perspectiva de Nietzsche, o problema do ser humano consiste em não acreditar, não confiar na sua própria natureza, no seu
corpo, nos seus instintos. Nesse sentido, o autor germânico considera que Descartes procedeu danosamente, não pela sua concepção ex machina do corpo humano, mas por ter permanecido à procura da alma inexistente (11). Ou seja, para Nietzsche, só existe [no sentido de ser real] o corpo. Por isso, é a razão do corpo que deve ser tida em conta.

A moral abstracta, a filosofia conceptual e teorizante são frutos da necessidade que os fracos têm de fugir à realidade. É nesse sentido que o filósofo prussiano nos diz que a racionalidade se move “contra o instinto”; com efeito, para Nietzsche, a racionalidade constitui uma força perigosa que mina a Vida, própria de um décadent como Sócrates (12).

Quanto à segunda ideia, fundamental para a compreensão do pensamento nietzschiano segundo Deleuze, podemos concluir que, para Nietzsche, o indivíduo deve ser capaz de afirmar, ele próprio, a Vida a partir de si. Vejamos o argumento de Nietzsche. Adoptando a metodologia genealógica, o autor germânico compreende a razão pela qual surgiu a moral judaico-cristã. A princípio, só os instintos vitais vigoravam. Contudo, como alguns indivíduos se sobrepunham a outros, por serem naturalmente mais
fortes, os fracos, por puro ressentimento, inventaram as noções de pecado, de culpa, criando, desse modo, o sentimento de falta, e os remorsos

Assim, os fracos, não por amor à verdade 
mas por necessidade de sobrevivência, 
acabaram por condenar o orgulho
recalcando, dessa forma,
a Vida emergente nos fortes (13).

Por isso, Nietzsche apela a uma
transmutação dos valores no sentido do indivíduo se libertar da moral imposta pelo rebanho exterior. Ou seja, trata-se de dar lugar a uma Vida onde as forças do ressentimento não imperam, em detrimento das forças [plenamente] activas. Deste modo, compreendemos que, para Nietzsche, o indivíduo deve realizar a Vida a partir de si mesmo, não se deixando condicionar por elementos exteriores [isto é, por forças reactivas] (14).

Dessa forma, parece-nos legítimo inferir o seguinte: ao procurar uma Vida puramente marcada por
forças activas, Nietzsche considera que o homem, mais concretamente o Übermensch que o supera, deve libertar-se do processo evolutivo [no sentido darwinista (ou lamarkiano)]. Com efeito, Richardson argúi que Nietzsche condena o darwinismo por considerar que a Evolução se dá por condicionantes extrínsecos ao indivíduo: ou seja, segundo o darwinismo, é o ambiente exterior ao indivíduo que determina, contra o anseio da vida nietzschiana, não só a sua sobrevivência, mas também o género de indivíduos que existirá no futuro. 

Com o conceito de vontade de poder [Wille zur Macht], Nietzsche procura uma evolução, não no sentido de preservação nem de sobrevivência, mas no sentido de poder de crescimento individual. (15) Para isso, o indivíduo tem de se libertar dos condicionantes exteriores, que impedem o crescimento da Vida que habita no seu interior. 

Nesse sentido, enquanto Nietzsche considera que o darwinismo diminui o homem singular – propondo a superação do indivíduo face ao esquema evolutivo que o domina –, Teilhard deixa-se maravilhar pelo mesmo processo evolutivo que, segundo a sua visão, assegura a dignidade do Homem enquanto indivíduo pertencente a uma colectividade cada vez melhor organizada.

(b) A resposta de Teilhard

Teilhard responde opondo-se veemente a esta dicotomia, introduzida por Nietzsche, entre
racionalidade e instinto. Como vimos no capítulo precedente, a Evolução mostra que o universo caminhou, em função da lei da crescente complexificação de consciência, em direcção ao intelecto humano. Nesse sentido, a racionalidade, enquanto produto do mesmo intelecto, não constitui uma realidade completamente antagónica a qualquer instinto

Em certa medida, poder-se-á dizer que a
razão corresponde a um instinto pertencente a organismos situados em estádios superiores de Evolução. Realmente, Teilhard expressa explicitamente esta ideia quando termina com a dicotomia entre natural e artificial: o jesuíta francês mostra, com base no processo evolutivo que atravessa toda a realidade, como “na sua essência (…), o artificial, o moral e o jurídico” são “pura e simplesmente o natural, o físico e o orgânico, hominizados” (16). Por isso, não devemos considerar a racionalidade humana oposta aos seus instintos.

Por outro lado, há que aprofundar a questão das
forças activas e reactivas. Na secção precedente, vimos como Nietzsche procura uma vida que emirja apenas de forças activas, internas ao próprio indivíduo. No entanto, Teilhard, suportando-se no processo evolutivo [que vê e que se verifica], sustenta a impossibilidade do indivíduo criar a sua Vida exclusivamente a partir de si próprio. A Evolução mostra que a Vida é todo um processo que nos ultrapassa, enquanto espécie, e, sobretudo, enquanto indivíduos.

O homem, enquanto indivíduo, herda toda uma Vida que foi acumulada ao longo de um processo que dura desde a origem do Universo. Nessa medida, Teilhard sustenta que a Vida se recebe e se acolhe como um dom: pois o homem, em vez de se criar a si próprio, entra na corrente da Vida, seguindo a dinâmica própria da Evolução que perpassa, não só todas as formas de vida, como o Universo inteiro. 

Entramos, então, na relação entre as
passividades e as actividades. Tal como Nietzsche, Teilhard reconhece tanto a presença de forças activas, as actividades, que dependem do próprio indivíduo; como a presença de forças reactivas, as passividades, que condicionam externamente a sua acção. No entanto, o jesuíta francês considera que as passividades, as forças externas, não são necessariamente nefastas ao indivíduo, nem diminuem a importância do esforço individual (17).

Mais uma vez, encontramos a presença de uma duplicidade no pensamento teilhardiano. Pela relação entre passividades e actividades, Teilhard mostra que o ser humano, enquanto indivíduo, pode, em certa medida, fazer-se a si próprio, mas não o faz a partir do nada, a partir de si mesmo, mas da herança de um processo que o ultrapassa: “o Homem não progride senão elaborando lentamente, através das idades, a essência e a totalidade de um Universo depositado em si próprio” (18).

Em suma, a Evolução constitui um processo em que os indivíduos se metamorfoseiam em função de forças externas: o homem “tem mais a receber do que a dar. E encontra-se preso por aquilo que julgava poder prender e dominar”; no entanto, “está sujeito (…) a essa comoção psicológica que transforma, em toda a criatura inteligente, a alegria de actuar em desejo de ser actuado” (19). 

Assim, Teilhard não considera que as forças externas sejam necessariamente nocivas à vida do indivíduo. Pelo contrário, permitem, no caso das passividades de crescimento, o desenvolvimento do próprio organismo singular. 

Qual é, então, o argumento presente na visão teilhardiana? Olhando para o processo da Evolução da Vida, Teilhard constata, como já dissemos, a presença da
lei de crescente complexificação de consciência. Ou seja, o jesuíta francês repara que o Universo começa a partir de uma imensa pluralidade de átomos que, por se situarem em espaços limitados [isto é, por forças externas], se vão aglomerando, associando-se entre si. 

Dessa unificação de átomos vem a surgir a molécula;
assim como a célula brota, posteriormente, 
da respectiva organização de moléculas. 
Trata-se, então, de um processo de socialização 
que se acentua quando do surgimento da Vida. 

Realmente, a Vida multiplica-se a si própria – facto verificado desde a primeira célula. Assim, como as células se multiplicam em espaços sempre finitos e limitados, essa propagação e a multiplicação da Vida cria a necessidade das células se associarem e se combinarem entre si. Dessa mesma associação resultam os organismos vivos que se vão desenvolvendo mediante semelhantes processos de socialização (20). 

A constatação desta dinâmica evolutiva leva Teilhard a concluir algo muito distante da perspectiva nietzschiana: não só o ambiente exterior influi no desenvolvimento do indivíduo, como a associação com outros indivíduos é fundamental para o seu próprio desenvolvimento. Desta forma, para Teilhard, a aparente violência que o aglomerado parece exercer sobre elementos individuais, anulando-os na passagem para estádios evolutivos ulteriores, é realmente benéfica. 

Ou seja, o paleontólogo francês assume que o processo evolutivo absorve certos indivíduos: considera que existe uma certa “indiferença para com os indivíduos” no sentido em que, “pelo fenómeno de associação, a partícula viva é arrancada a si mesma. Presa num conjunto mais vasto do que ela, torna-se parcialmente escrava deste. Deixa de pertencer a si própria” (21).

Estas afirmações podiam ser colocadas na boca de Nietzsche. De facto, o autor prussiano critica a vida dominada por
forças reactivas. No entanto, para Teilhard é a incorporação orgânica do individual no colectivo, que permite à vida progredir, mesmo que a Evolução chegue a implicar a perda – isto é, a eliminação – de alguns organismos vivos [singulares] (22). Sob este prisma, a morte, o aniquilamento no sentido de passividade, deixa de ser entendido como simples desaparecimento. 

A visão de Teilhard, que vê a partir do dentro das coisas, enche-nos, portanto, de esperança: a morte, como passividade, em lugar de significar um desaparecimento [ou um retorno], torna-se na possibilidade real de transformação, isto é, de evolução qualitativa da própria Vida (23).

Além disso, apesar das passividades, as de crescimento, desempenharem um papel decisivo no desenvolvimento da vida, Teilhard reconhece, não só a possibilidade de
passividades de diminuição [forças reactivas contrárias à vida como Nietzsche], mas também, como já vimos, a importância capital do esforço humano para o sucesso da Evolução. 

O argumento é simples, além de já ter sido indirectamente referido: como já concluímos e repetimos por inúmeras vezes, a Evolução direcciona-se segundo a
lei da crescente complexificação da consciência em direcção ao homem; assim, a partir do momento crítico da Reflexão [isto é, quando surge o Homem], a Evolução prossegue segundo o eixo privilegiado do Pensamento; nesse sentido, o futuro da Evolução da Vida passa a depender da acção do próprio ser humano, enquanto espécie e enquanto indivíduo (24). Nesse contexto, Teilhard refere a angústia, a inquietação, que o Homem sente quanto à saída da Evolução, a partir do momento em que ganha consciência de que o seu sucesso depende de si próprio (25).

Em suma, podemos concluir que Teilhard não nega a importância da Vida a partir de
forças activas. No entanto, contrariamente a Nietzsche, compreende que essas forças só emergem a partir do aparecimento do elemento humano, que, além de receber toda uma Vida acumulada durante um longo processo evolutivo, continua a associar-se a outros indivíduos e a depender do ambiente exterior, sem que esses factores externos lhe impeçam ou limitem o crescimento individual. 

Além disso, como o ser humano se sabe finito, compreende que o triunfo da Evolução não depende inteiramente de si. Nessa medida, só empreenderá qualquer
esforço com base na crença de que aquilo que realizar não perecerá no futuro (26): isto é, com base na crença de que outras forças, exteriores a si, assegurarão o triunfo de tal empreendimento.
2) A dimensão colectiva da humanidade
(a) O egoísmo como forma inferior de vida

Ao defender o primado das forças activas, compreendemos que, para Nietzsche, o homem, enquanto indivíduo, vive autenticamente na medida em que for capaz de se libertar de qualquer condicionamento externo. Nesse sentido, quando Nietzsche nos propõe o
Übermensch, como forma de nos elevarmos sobre o homem [e sobre a Humanidade], não se está a referir à criação de uma nova espécie (27). Trata-se de uma superação do homem por si mesmo, enquanto indivíduo, como o primado das forças activas assim o exige.
Realmente, logo numa das suas obras de juventude –
A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos –, Nietzsche fundamenta o seu apreço pelos pré-socráticos, nomeadamente por Heraclito, por “estes homens viverem numa solidão orgulhosa” (28), própria de sábios.

O sábio, contrariamente ao santo, rejeita o mundo exterior; impõe o seu próprio mundo; segue a sua própria vontade; o seu instinto; a sua própria vida; nunca se deixa condicionar pela vontade alheia. Deste modo, entrevemos, na proposta nietzschiana, um notório elitismo, incompatível com uma visão colectiva da Humanidade que integra os indivíduos num todo coerentemente unificado (29).

O
elitismo de Nietzsche mostra-se, assim, incompatível com a catolicidade de Teilhard. Nesse sentido, se, para Nietzsche, “o homem é uma corda estendida entre o animal e o Super-humano” (30); na visão teilhardiana, esse modo nietzschiano de superar a humanidade conduz a uma forma de vida inferior. Com efeito, para o jesuíta francês, uma das implicações inerentes à Evolução resulta na necessidade de processos de associação e de socialização, cada vez mais complexos, como condição indispensável ao progresso da Vida. Desse modo, Teilhard sustenta que o egoísmo – bem como o individualismo – constituem formas inferiores de vida. 

Assim, Teilhard vê que a Evolução se efectua, não por regras completamente arbitrárias, mas no sentido da
crescente complexificação da consciência. Desse modo, ao olhar para a Árvore da Vida, não pode deixar de reparar como a Evolução vai escolhendo eixos privilegiados sobre os quais transita qualitativamente de grau: ou seja, do filo dos peixes transitámos para o dos anfíbios, depois para o dos répteis e, por fim, para o dos mamíferos ao qual pertencemos. 

Ao longo deste decurso evolutivo, ao longo destas sucessivas transições, a consciência (o dentro) foi crescendo gradualmente, sempre acompanhada pelo desenvolvimento das estruturas anatómico-biológicas (o fora) (31).

A passagem para estádios evolutivos superiores realiza-se, não só a partir de um verticilo “seleccionado” [dentro do filo em causa], mas também por processos de associação entre os indivíduos situados nesse mesmo verticilo (32). Desta forma, Teilhard deduz duas características que caracterizam a direcção do processo evolutivo: (i) em primeiro lugar, temos a
universalização, na medida em que a Evolução se efectua pela socialização de indivíduos; (ii) em segundo lugar, temos a personalização, visto que, a Evolução ruma para a consciência reflexa (33).

Então, como todos os
saltos evolutivos [de uma forma de vida para outra mais desenvolvida] se deram respeitando estes dois princípios, Teilhard infere a sua necessidade para o desenvolvimento da vida ulterior. Por isso, quando se chega à consciência – isto é, quando a Evolução atinge o ponto crítico da Reflexão –, a Evolução continua a prosseguir segundo os mesmos princípios, evoluindo a partir de um eixo privilegiado definido. 

No momento crítico da Reflexão, a Evolução, em vez de permanecer no eixo dos primatas, foca-se num verticilo mais específico: o ser humano, aquele que detém a capacidade reflexiva em maior grau, pois além de ser capaz de adquirir conhecimento, ele “sabe que sabe” [é o único ser com consciência reflexa] (34).

Nesse sentido, se houver alguma superação do Homem, como Nietzsche pretende, ela terá de continuar a respeitar os dois princípios anteriormente referidos, pois caso contrário as passagens qualitativas entre os diferentes estádios evolutivos perdem a inteligibilidade que os dois princípios anteriormente mencionados conferem. Portanto, o homem nunca poderá evoluir apenas a partir do individual. 

O seu crescimento, do qual depende a Evolução da Vida, efectua-se, necessariamente, por processos de socialização sempre crescentes. Por isso, a “humanidade deve ser tomada em bloco”, isto é, se um indivíduo se libertar do todo, em vez de viver mais, de ser-mais, perder-se-á da corrente da Vida. 

Deste modo, Teilhard destrói, no nosso entendimento, o mito rousseauniano de
contrato social, segundo o qual existe um estado original do ser humano enquanto indivíduo, independente das relações que o mesmo tece a posteriori da sociedade. No fundo, para Rousseau, o indivíduo é anterior à sociedade, isto é, às relações com outros indivíduos e ao meio exterior. 

No nosso entendimento, quando Nietzsche apela à libertação do indivíduo face ao todo que o envolve e o aprisiona, acaba, não só por fazer o apelo a uma Vida mais autêntica [no sentido de brotar exclusivamente de
forças activas detidas pelo próprio indivíduo] (35), como acaba também por aceitar, pelo menos implicitamente, este mito rousseauniano de contrato social.

Com efeito, para Nietzsche, a sociedade não faz parte do indivíduo, pois este deve ser capaz de se autonomizar do todo social que o envolve: o rebanho impede o indivíduo de viver a partir de si próprio, isto é, para o autor germânico, a sociedade bloqueia as forças activas internas ao indivíduo. Assim, parece-nos ser legítimo inferir que a natureza mais funda do ser humano é [para Nietzsche] anterior e independente da sociedade. 

No entanto, a Evolução mostra como a verdadeira natureza não está no princípio mas no fim. Assim, o homem, mesmo enquanto indivíduo, é o resultado de sucessivas associações entre indivíduos diferentes que se moldaram pelo ambiente externo. Além disso, a partir do ser humano – isto é, a partir do ponto crítico da
Reflexão – a Evolução prossegue desde o eixo privilegiado do homem, cuja dependência em relação aos instintos, e aos genes, é menor (36).

Desta forma, o ser humano torna-se o animal menos determinado à nascença, aquele que mais depende da cultura envolvente. Realmente, encontramos, no cérebro humano, a presença de elementos epigenéticos, isto é, codificações genéticas que foram determinadas pela cultura (37). 

Por isso, parece-nos que devemos concluir, como Teilhard: o indivíduo humano não existe independentemente da sociedade que o caracteriza, nem faz sentido, no homem, procurar um estado original sem a mácula da cultura envolvente; isto é, um estado da pessoa humana que seja independente dos processos de socialização. Devemos proceder como Teilhard: a humanidade deve, efectivamente, ser “tomada em bloco.”

Com efeito, se a Vida evolui por processos de associação e de socialização até ao ser humano, o seu crescimento ulterior não deve prescindir dessa mesma dinâmica: ou seja, a partir do Homem, a Vida continuará a progredir mediante processos de socialização, embora já não tanto ao nível biológico, mas sobretudo ao nível cultural [como é próprio de níveis superiores de consciência]. 

Assim, o estádio seguinte ao Homem, não será o Super-homem nietzschiano: quanto muito será uma Super-humanidade, onde todos os homens se unificam cada vez mais uns com os outros. Para Teilhard, só o Amor Cristão poderá estabelecer essa unificação personalizante.

(b)
Amor Universal e a necessidade do Ponto Ómega

Depois de compreendermos que o processo evolutivo se caracteriza pelos princípios da
universalização e da personalização, podemos inferir, com Teilhard, que a tomada em bloco, isto é, a formação do colectivo não pode eliminar os centros reflexivos individuais criados durante o percurso evolutivo. 

Ou seja, apesar da Evolução caminhar em função de aglomerados de partículas e de associações cada vez mais complexas de indivíduos, não podemos esquecer que a própria Evolução se direccionou para a consciência individual, para a pessoa. Portanto, para ter sucesso, a Evolução tem de encontrar uma forma de combinar a universalização, isto é, a associação colectiva de vários indivíduos, com a personalização. Ou seja, tem de associar diferentes indivíduos sem diluir a sua personalidade no todo colectivo. 

Nesse sentido, Teilhard fundamenta que o
Amor Cristão [a utopia do Amor Universal] constitui um salto qualitativo na Evolução da Vida: o amor representa, efectivamente, um estado de consciência superior; é o ponto crítico desejado para a Vida continuar a crescer [no sentido de elevar o grau qualitativo]. 

De facto, para Teilhard, assim como o intelecto, por emergir da Evolução, não nos pode enganar quanto à realidade; também o Amor Universal será possível na medida em que o homem tem o instinto de o desejar (38).

O jesuíta francês está ciente de que são muitos os que não acreditam no
Amor: “a muitos parece impossível”, diz-nos (39). Com efeito, assim como Camus considera, pelas palavras do seu Calígula, que “o amor (…) é nada” (40), Nietzsche considera-o uma ilusão, uma dissimulação originada pelo ressentimento em relação à Vida [por isso mesmo, Ricoeur nomeia-o de mestre da suspeita]. 

De facto, para o autor germânico, como os fracos – criadores da moral judaico-cristã – se sentiram inferiorizados em relação à Vida que emergia dos fortes, apelaram [por puro ressentimento] à caridade, à fraternidade, e ao amor: condição de possibilidade da união dos homens num rebanho controlador, e recalcador, da Vida existente nos fortes (41). 

Em suma, para Nietzsche, 
o amor corresponde a um conceito abstracto,
criado em oposição à Vida, que, por isso mesmo,
não tem qualquer correspondência com a realidade 
da verdadeira natureza.

No entanto, Teilhard diz-nos que o
Amor Cristão não é apenas teorizado, trata-se de um amor autenticamente incarnado na vida de muitos homens e mulheres, os “místicos”, que o experimentaram verdadeiramente: esses [diz-nos Teilhard] sabem bem como o Amor Universal constitui, não só uma possibilidade, mas um estado superior de consciência (42).

Realmente, para o jesuíta francês, o Amor Cristão, não só é possível, como constitui um novo ponto crítico a partir da Reflexão [derradeiro e fundamental para o término do processo evolutivo na pleromização] (43). 

O argumento é relativamente simples: seguindo a lógica da Evolução da Vida, que se direcciona, respectivamente, em função dos princípios de
unificação e personalização, o Amor Cristão aparece como uma consumação plena desses dois elementos [Universalismo e Personalismo]. 

Dessa forma, o argumento de Teilhard procura mostrar como o Cristianismo se torna numa condição de possibilidade da Evolução poder triunfar. Teilhard está-nos a mostrar como, do ponto de vista meramente naturalista, se vê o Cristianismo como a única corrente de pensamento disponível que abarca a possibilidade da Evolução ter uma saída gloriosa: porque 

“só ele, absolutamente só ele
sobre a Terra moderna, se mostra capaz de sintetizar 
num único acto vital o Todo e a Pessoa” (44).

Nesse sentido, Teilhard vê, no movimento cristão, como que um novo filo, que se direcciona, em função da
lei da crescente complexificação da consciência, sempre presente ao longo o decurso evolutivo, para um pólo Espiritual e Transcendente. 

Trata-se de um filo capaz de integrar
toda a Humanidade em direcção a esse ponto que a completa, 
coroando, desse modo, a Evolução da Vida 
com o sucesso devido. 

Teilhard oferece-nos, como argumento, a
razão de amor: ou seja, para aliar os dois princípios verificáveis, da unificação e da personalização, a Evolução, para ter sucesso, deve ser capaz de unificar e manter, depois do aparecimento da pessoa humana, a unanimidade das partículas reflexivas [dos vários centros reflexivos criados]. Então, só o Amor poderá completar este processo evolutivo; só ele é capaz de unir os seres sem diminuir a sua personalização (45).

Com a
razão de amor antevemos a necessidade do Ponto Ómega. Realmente, só o Amor permite a união sem diluição dos vários centros reflexivos [isto é, a simultaneidade de crescimento tanto ao nível da unificação como da personalização]. Dessa forma, o Amor Cristão torna-se no sinal, claro e necessário, da convergência de todos os elementos psíquicos para um Centro polarizador. 

Ou seja, se a Vida evolui segundo uma determinada direcção, marcada pelos dois princípios já enunciados, é porque se sente atraída por um pólo existente. Com efeito, se esse pólo não existir, a Evolução torna-se absurda [ininteligível], porque não se completa nem se realiza, segundo os princípios que nela operam. 

Nesse sentido, como a Evolução caminha no sentido da crescente personalização, terá, para não falhar, de caminhar para Alguém, e não para algo [só a união com Alguém poderá ser personalizante]. Essa é, a primeira, característica do Ponto Ómega: terá de ser verdadeiramente Pessoal (46).

Além disso, a mesma
razão de amor implica a imanência do Ponto Ómega. Realmente, o Ómega só pode atrair partículas reflexivas se for, já no presente, amante e amável. Com efeito, assim como não há amor ao Impessoal, ao anónimo, também não pode haver amor a algo longínquo no tempo: para amar é essencial coexistir. Por isso, para ser atractivo, o Ómega tem de se fazer desde já presente.

No entanto, para Teilhard, a imanência do
Ómega não é panteísta, no sentido em que o Ómega não se confunde, nem se pode confundir, com o próprio Universo. De facto, o Ponto Ómega terá de ser transcendente por duas razões fundamentais: (i) em primeiro lugar, o Centro atraente das consciências só as pode atrair se se situar fora do Universo donde as consciências brotaram [ou seja, no fundo, trata-se de dizer que o Universo é incapaz de produzir o princípio que anima a sua própria Evolução]; (ii) em segundo lugar, se o panteísmo for tomado em sentido estrito [isto é, se correspondermos Deus com o Universo], cairemos inevitavelmente num monismo, o que impossibilita a união personalizante, pois a redução de tudo ao mesmo implica a necessária diluição das particularidades [neste caso, pessoas conscientes], quando estas são unificadas no todo (47).

A visão teilhardiana ainda nos oferece um argumento final, e derradeiro no nosso entendimento, em favor da existência do
Ómega transcendente. Realmente, como só se pode assegurar o fim da Entropia com a sua existência, o Ómega, assim como a efectiva realização do Amor Universal, tornam-se como que condições de possibilidade da inteligibilidade do todo que o Universo constitui. 

Nietzsche postula a inexistência de qualquer
além, isto é, de alguma entidade transcendente que age sobre a Evolução do Universo e da Vida. 

Dessa forma, acaba por conceber – e absolutizar – o fim do processo como Entropia. Com efeito, diz-nos que “eternidades houve em que ele [o ser humano] não existia, e quando ele tiver desaparecido nada terá sido alterado” (48). Ou seja, para o autor germânico, não existe uma verdadeira evolução qualitativa para graus superiores; a Evolução é dominada, na sua perspectiva, por uma arbitrariedade de forças cósmicas, inerentes à natureza, que o homem deve ser capaz de aceitar, evitando fugir à realidade.

É nesse sentido que Nietzsche, segundo Chaix-Ruy, aplica o evolucionismo à biologia: a noção de eterno retorno está ligada ao facto da energia contida no Universo, por se gastar progressivamente ao longo do decurso evolutivo, acabar por conduzir o Universo a um eterno – e repetitivo – colapso natural (49).

No fundo, é como se o universo crescesse
até um colapso, a partir do qual reinicia 
um crescimento desprovido de finalidade.

Teilhard refuta esta e qualquer visão catastrofista. Efectivamente, ao olhar para o processo evolutivo, o jesuíta francês não vê apenas o Pensamento a emergir da matéria. 

Como se conclui a partir dos dados mais recentes oriundos da física quântica, a Entropia é realmente um dado no Universo. No entanto, para Teilhard, a Entropia opera ao nível do tangencial [isto é, do fora]. Realmente, o processo evolutivo mostra que, sob o tangencial, emerge uma energia radial, que se vai libertando progressivamente da dependência do domínio físico: só assim compreendemos a passagem da geologia para a biologia, e da biologia para a consciência psíquica caracterizadora do ser humano (50). 

No fundo, Teilhard obriga-nos a ver como, 
a partir do surgimento do Pensamento, 
a energia psíquica [radial], em vez de se consumir
e se esgotar, como acontece com a energia tangencial,
se alimenta a si própria.

Ou seja, Teilhard limita-se a verificar – na Evolução da Vida operada a partir do ser humano, sobretudo ao nível dos progressos sociais e culturais – que quanto mais se consome Pensamento, mais ele cresce (51). Por isso, o jesuíta francês sente-se com legitimidade de recusar a Entropia como o final do processo.
Além disso, se o Universo colapsasse, a Evolução tornar-se-ia absurda, isto é, não inteligível (52).

Com efeito, como o Universo cresce rumo à crescente complexificação da consciência segundo os princípios da unificação e da personalização, se não chegar ao termo ao qual se dirige, não se limita a morrer: torna-se absurdo aos olhos do nosso intelecto. No entanto, como poderá o Universo ser absurdo aos olhos da inteligência que ele próprio criou? De facto, um dos pontos centrais da argumentação teilhardiana consiste em mostrar que o intelecto humano constitui a própria Evolução a tornar-se consciente de si. Nesse sentido, o pensamento pensa a realidade

Com o mesmo argumento, se compreende a importância da religião cristã. Como vimos anteriormente, a Evolução caminha em direcção à consciência humana; e, a partir do seu surgimento, passa a depender, em parte, do
esforço humano. No entanto, esse esforço só será empreendido se o Homem confiar no sucesso da Evolução. 

Conceber uma entropia universal, não só torna ininteligível o processo evolutivo, como inviabiliza o sucesso do esforço humano, frustrando-o desde logo à partida. Assim, o apelo de Nietzsche – pela opção de uma Vida onde só emirjam forças activas provenientes apenas do indivíduo – entra em contradição com o seu apelo no que concerne à aceitação da arbitrariedade e do não-sentido inerente à natureza.

Com efeito, Teilhard não só nos diz, como também verifica, que o ser humano só empreende o seu
esforço, quer individual quer comunitário, visível nos progressos tecnológicos, científicos, artísticos e culturais, com base na crença que esse mesmo esforço terá um sentido real e efectivo: ou seja, o indivíduo só apostará nas suas forças activas [utilizando a terminologia nietzschiana] se esse esforço valer a pena.

Assim, como só vale a pena realizar tais empreendimentos se o processo evolutivo, a que temos vindo a assistir, for irreversível; então, a crença nessa mesma irreversibilidade, isto é, no Ponto Ómega e no Amor Universal torna-se, não só uma condição necessária às actividades [forças activas], como ao triunfo do próprio processo evolutivo. 

Nesse sentido, a visão teilhardiana mostra como só poderemos agir autenticamente por nós próprios, se tivermos a consciência [efectivamente superior] de que a Vida não começa nem acaba em nós, mas que caminha na direcção de um Centro com as características do
Ómega teilhardiano, para o qual nos dirigimos conjunta e colectivamente, no sentido da nossa própria realização individual.
Conclusão
Com este trabalho, esperamos ter mostrado que o anúncio nietzschiano da morte de Deus não é definitivo, à luz da contemporaneidade à qual pertencemos (53). Realmente, a partir da visão de Teilhard, podemos descer à realidade concreta, e acabar com os dualismos do passado, com o intuito de vermos o Homem e o Universo tal como se apresentam aos olhos da nossa consciência. 

A visão teilhardiana, 
integrando a ideia revolucionária desembocada por Darwin, 
não vê um futuro sem Deus. 

A sua existência, além de constituir uma condição de possibilidade para a consumação da própria Vida, faz-se presente pela atracção que verificamos, e sentimos, ao longo do decurso evolutivo. 

Em
Ecce Homo, Nietzsche apresenta-nos um homem autónomo, alguém que procura fazer-se a si mesmo, a partir de si próprio. Com efeito, Nietzsche considera que tudo superou, que se autonomizou plenamente dos outros e do mundo envolvente. 

A obra de Teilhard afasta-se
notoriamente desta abordagem.
Em O Fenómeno Humano, o jesuíta francês também 
nos apresenta o Homem, mas, nele, vê alguém 
absolutamente diferente: aí, dizer Ecce Homo 
– eis o Homem! – leva-nos a ver uma pessoa 
que não se constrói a si própria a partir de si mesma.

Esse é, aliás, o principal problema 
do individualismo contemporâneo: 
concebe a sociedade como um somatório de ilhas 
isoladas de seres humanos. 

No xadrez evitam-se as chamadas
ilhas de peão. Um peão isolado, sem outros peões à sua volta, torna-se demasiado frágil, não tem valor, é como se não existisse. Esta constitui, a nosso ver, uma bela metáfora da natureza humana que Teilhard, na sua visão, nos mostra. Não podemos isolar os homens do meio envolvente. Não faz sentido pensar na essência do indivíduo particular, nos seus interesses particulares, na medida em que as outras pessoas, as outras peças, constituem parte da sua própria essência [numa terminologia escolástica].

Creio que a abordagem nietzschiana tende a ver-nos cada vez mais como peões isolados num jogo sem equipa. A época em que vivemos tende a levar as pessoas a existirem autónoma e independentemente umas das outras: cada indivíduo deve jogar o seu próprio jogo; e assim é a vida... Este é, em nosso entender, o drama dos tempos hodiernos: as pessoas vivem exclusivamente para o seu próprio jogo; reduzem toda a existência aos limites do seu tabuleiro. 

No entanto, a visão teilhardiana mostra-nos que, na Vida, não somos nós, enquanto indivíduos autónomos, que criamos as regras do jogo em que nos situamos: “mais do que senhores do Universo somos seus servos” (54). Realmente, não jogamos sozinhos.

Estamos inseridos numa equipe que procura vencer o jogo da Vida. Teilhard mostra que essa vitória não depende nem só do indivíduo, nem apenas do colectivo que a humanidade constitui: para a Vida triunfar verdadeiramente, necessitamos de Deus. Sem Ele, a Vida perder-se-á como que num deserto.

Nesse sentido, parece-nos ter legitimidade para apresentar a visão teilhardiana como uma teodiceia dos tempos modernos (55). Não se define, como nas teodiceias tradicionais, o que o homem deve ser a partir da essência divina. Com Teilhard descemos, tal como Nietzsche, às
coisas mesmas, ao homem concreto. 

No entanto, quando anunciamos Ecce Homo 
– eis o Homem! – não vemos um indivíduo autónomo 
e isolado que vive por si mesmo a partir de si próprio. 

Vislumbramos toda uma Humanidade que,
colectivamente, caminha para Deus e Nele se realiza,
no sentido de completar e realizar plenamente 
todo o ser que habita no interior de cada pessoa humana. 

Com efeito, a proposta de Nietzsche, além de não satisfazer as exigências que a consciência da Evolução implica, não garante um futuro sadio, nem à Vida, nem ao Homem enquanto indivíduo. 

A proposta de superação do homem ao modo nietzschiano, mediante a vitalidade de um Übermensch, capaz de tudo deixar para trás, recomeçando sempre autonomamente a partir de si próprio, corre o risco de nos tornar semelhantes a Sísifo, o “trabalhador inútil dos infernos” (56). 

Esta personagem da mitologia grega carrega, todos os dias da sua inútil vida, por castigo divino, uma gigantesca pedra, num esforço desmedido. Nunca é capaz de chegar ao termo da montanha que sobe esforçadamente, uma montanha com a aparência de uma serrania infindável, onde, ao final de cada dia, a pedra cai repetidamente, regressando sempre ao ponto de partida. Sísifo vive portanto um eterno retorno sem sentido nem progresso.

Será que acontece o mesmo com o processo evolutivo? A visão de Teilhard enche-nos de esperança. Devemos continuar com empenho na prossecução da Vida, até porque até nós a sua Evolução tem triunfado magistralmente: realmente, verificamos que as formas de vida evoluíram, desde o passado mais remoto, para estádios de uma consciência cada vez mais aperfeiçoada. 

Enquanto Nietzsche diz 
que “o problema que (…) apresento não é qual o lugar
que a humanidade deve ocupar na sequência dos seres (…)
mas que tipo de homem se deve ser (…) 

como o de mais alto valor, mais digno de viver, mais seguro de futuro” (57); Teilhard sustenta que não poderemos vislumbrar mais e melhor futuro se não seguirmos essa mesma sequência evolutiva, capaz de conduzir a Humanidade para o Ómega que Deus constitui. 

Nesse sentido, se acreditarmos que vale a pena esforçarmo-nos por carregar a pedra de Sísifo, então é porque não nos sentimos condenados, como o célebre personagem da mitologia grega: a pedra que carregamos, não só não volta para trás, como um dia chegará ao término da montanha. Só assim a Vida poderá ter sentido. No fundo, Teilhard só nos mostra como a crença no término da montanha, no Deus que nos espera e atrai, constitui a aposta mais razoável em favor da Vida.

Kierkegaard toca no cerne desta aposta, quando nos apresenta a parábola do Rei poderoso que oferece a mão de sua filha em casamento a um pobre e miserável camponês. Das duas, uma: o camponês, ou aceita a dádiva, correndo o risco do Rei estar a troçar dele, ou rejeita a oferta, perdendo, por orgulho, a possibilidade de se elevar na sua vida (58).

Teilhard admite a possibilidade de rejeitarmos a Vida que vemos florescer no decurso da Evolução, quando considera a existência de um pólo, na Nooesfera, que não se direcciona ao Ómega (59): é o camponês que recusa a dádiva do Rei. Por isso, se quisermos completar a Vida que herdámos, temos de prosseguir a Evolução conjuntamente, acreditando na presença do Ómega que atrai e completa auspiciosamente o desfecho final de todo o processo evolutivo. 

Pensadores como Nietzsche e Camus pedem-nos para permanecermos numa vida niilista, carregando inutilmente a pedra que sempre cai da montanha sem fim. Teilhard acredita, verdadeiramente, no triunfo da Vida e do Homem que a Evolução criou.

Andreas Lind
 
Andreas Lind 
nasceu em Lisboa, em 1981.
Licenciado em Economia pela Universidade Nova de Lisboa,
é finalista do curso de Filosofia na Universidade 
Católica Portuguesa. É membro da Companhia de Jesus.

 
Notas
  • Depois de insistir, repetidamente, que a evolução é desprovida de qualquer ordem ou finalidade – «ao contrário do que hoje se crê, a humanidade não representa uma evolução para algo melhor, de mais forte ou ais elevado» (NIETSZSCHE, O Anticristo, p. 17) – Nietzsche, na sua última obra, diz-nos: «estive sempre à altura do acaso» (NIETZSCHE, Friedrich – Ecce Homo. Tradução de Artur Morão. In: Colecção Grandes Filósofos: Nietzsche. Lisboa: edições 70, 2008, p. 634).
  • Cf. CHARDIN, O Fenómeno Humano, pp. 185-186.
Cristo e a Cidade
Um sítio ecuménico que não representa nenhuma Igreja cristã particular; sítio de cristãos empenhados em contribuir, de modo sereno mas eficaz, para tornar presente no espaço público a voz da Igreja de que são membros, na fidelidade ao seu Magistério, propondo-se fazê-lo sem renunciar às exigências da razão nem às da fé cristã.
Fonte:
Cristo e a Cidade
http://www.cristoeacidade.com/styled-11/styled-10/page155/page158/page158.html
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

Um comentário:

  1. Fantástico este confronto e proximidade entre Nietzsche e Teilhard

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