A SABEDORIA TRÁGICA DIONISÍACA 
               Ivan Maia de Mello 
Resumo: 
               Esse texto apresenta a noção de                sabedoria trágica desenvolvida por Nietzsche ao longo de sua obra                relacionando-a à visão dionisíaca do mundo expressa em O                nascimento da tragédia , assim como à selvagem sabedoria de                Zaratustra, expressa de modo poetico-dramatico em Assim falou                Zaratustra, a qual esta intimamente ligada ao pensamento do                eterno retorno, e finalmente, ao amor fati nietzschiano e                seu imperativo pindarico para tornar-se o que se e, apresentados                no Ecce homo como formulações do supremo pensamento                afirmativo que caracteriza a sabedoria trágica dionisíaca. 
               A SABEDORIA TRÁGICA DIONISÍACA 
Ivan Maia de Mello
-UERJ/EBMSP 
A suprema afirmação da vida em seu                vir a ser é expressa por Nietzsche no Crepúsculo dos Ídolos                e , conclusivamente, em sua autobiografia Ecce                homo como a formulação de uma sabedoria trágica dionisíaca,                que afirma corajosamente até mesmo o sofrimento e tudo o que é                estranho e questionável na existência, seus problemas mais duros,                as maiores dificuldades. 
Esta afirmação se dá a partir de uma                perspectiva nascida da abundância de vida e aceita a realidade da                existência na mesma medida em que sua força ousa conhecer a                verdade. É uma afirmação que se alegra com a própria                inesgotabilidade das forças vitais de sua vontade para ser em si                mesma o “eterno prazer do vir a ser”. 
A sabedoria trágica é então                apresentada por Nietzsche – que nisso reivindica ser pioneiro –                como a transposição do dionisíaco num pathos filosófico.                Entretanto, Nietzsche reconhece em Heráclito um precursor quanto                ao que considera decisivo numa filosofia trágica: a afirmação do                vir a ser e a concepção do eterno retorno. 
Esta afirmação é entendida por                Nietzsche de modo ativo como aquilo que impulsiona na direção do                prazer de que se faça o devir enquanto força plasmadora e                dissolutora. 
O caráter dissolutor do devir é                pensado por Nietzsche já no Nascimento da tragédia                através da metáfora do abismo que esconde o pessimismo                terrível do sábio Sileno, que sabe ser o sofrimento inerente à                condição humana. 
A arte é pensada 
então como transfiguração                simbolizadora
em beleza apolínea que esconde 
o abismal sofrimento                humano. 
Diz Nietzsche: “Temos pois nesse quadro que se oferece aos                nossos olhos, incomparavelmente simbolizados por meio da arte, o                mundo da beleza apolínea, e o abismo que ele oculta, a sabedoria                terrível de Sileno”.1
A sabedoria trágica dionisíaca                aparece então como uma afirmação da realidade da vida capaz de                conhecê-la e aceitá-la em seu sofrimento, que é transfigurado pela                arte a qual lhe dá beleza e medida. Como diz Nietzsche, ao expor a                condição existencial do homem grego: “toda a sua existência, com                tal beleza e medida, estava sobre o abismo escondido do sofrimento                e do conhecimento, e o espírito dionisíaco vinha agora mostrar-lhe                o fundo do abismo”2.
Nietzsche apresenta então o arauto                da sabedoria e da arte dionisíacas através da figura do sátiro do                seguinte modo: “Assim vai nascendo esta figura tão fantástica e a                princípio tão estranha, do sátiro cheio de entusiasmo e ao mesmo                tempo de sabedoria (...) imagem da natureza e dos seus instintos                mais poderosos, sim, símbolo desta natureza e ao mesmo tempo                arauto da sua sabedoria e da sua arte: músico, poeta, dançarino,                visionário numa só pessoa” 3. 
               A sabedoria trágica dionisíaca                concebida no Nascimento da tragédia , enquanto conjugação                de impulsos apolíneos e dionisíacos, foi então considerada por                Nietzsche como “uma concepção incomparavelmente mais profunda e                mais séria dos problemas éticos e estéticos, concepção que com                toda a segurança podemos definir por ‘sabedoria dionisíaca'                expressa em idéias” 4. 
Ele concebe essa                sabedoria a partir da caracterização do impulso dionisíaco como a                matriz de onde nasceu a arte trágica. Diz ele: “o instinto                dionisíaco, com a sua alegria primordial até mesmo perante a dor,                é a matriz comum de onde nasceram tanto a música como o mito                trágico” 5. 
A concepção da sabedoria trágica                dionisíaca nessa obra aproxima-se do pensamento do eterno retorno                na medida em que pensa o valor de uma pessoa ou de um povo pela                capacidade de eternizar os momentos de sua vida, como diz                Nietzsche:
 “E o valor de um povo 
– como, aliás, o de um homem 
–                mede-se precisamente por esta só faculdade 
de poder imprimir o                selo da eternidade 
nos acontecimentos de sua existência” 6. 
À medida que o alegre impulso                dionisíaco supera a dor do abismal sofrimento humano criando a                arte trágica, ele é avaliado em sua potência de eternização dos                momentos. O conhecimento da realidade do sofrimento humano que o                espírito dionisíaco tornou possível é transmutado em criação                artística e afirmado como transfiguração entusiasmada da profunda                dor inerente à condição humana, a dor de saber-se mortal,                sofredor, transitório. 
O impulso de eternização dos                acontecimentos da existência que era para Nietzsche, já no                Nascimento da Tragédia, o critério de valor mais decisivo, gera um                nexo com a concepção da sabedoria trágica dionisíaca presente em                sua última obra, a qual formula o pensamento do eterno retorno de                modo independente da estética metafísica de sua primeira obra. Em                sua formulação final, a afirmação da existência em seu devir já                não se faz unicamente como transfiguração artística e portanto a                vida já não depende de uma justificação estética, mas é criada                como uma obra de arte, encontrando nesta apenas uma metáfora para                inspirar sua autopoiesis. 
Essa mudança de perspectiva já se                mostra em Gaia ciência quando Nietzsche disse:                “precisamos aprender com os artistas e, no demais, sermos mais                sábios que eles. Pois entre eles essa força sutil que lhes é                própria cessa geralmente onde termina a arte e começa a vida; nós,                entretanto, nós queremos ser os poetas de nossa vida e isso diante                das pequenas coisas do cotidiano” 7.                
               Vê-se, portanto, que se opera em                Nietzsche uma ampliação do sentido trágico, da criação artística                para a criação do próprio modo de vida como uma obra de arte, um                poema. 
A visão trágica da vida é apresentada nessa obra como a que                se desenvolve a partir de uma abundância de vitalidade e torna                possível uma arte dionisíaca, constituindo ainda o supremo                critério de valor desta, numa avaliação fisiológica da arte, como                expressa Nietzsche: “existem dois tipos de sofredores, aqueles que                sofrem de superabundância de vida, que desejam uma arte dionisíaca                e também uma visão trágica da vida interior e exterior e a seguir                aqueles que sofrem de apauperamento vital”, e indica seu critério                de apreciação estética: 
“Quanto a todas as valorações estéticas, 
sirvo-me agora desta distinção capital, 
pergunto em cada caso:
 “a                fome ou a abundância o criaram?” 8. 
Em Assim falou Zaratustra ,                a sabedoria trágica dionisíaca é pensada por Nietzsche como uma                selvagem sabedoria que oferece uma imagem da vida muito próxima de                como ela se mostra, embora Zaratustra afirme que, do fundo do seu                ser, seu amor dirige-se propriamente à vida e à sabedoria apenas                quando ela fala da vida. Diz ele: 
“E, quando conversei a sós
 com a                minha selvagem sabedoria,
 disse-me esta, zangada: 
‘Tu queres,                desejas, amas; 
e somente por isso louvas a vida! 
Isso leva                Zaratustra a comentar sua relação com a sabedoria e com a vida                dizendo: Do fundo do meu ser, amo somente a vida [...] Que, porém,                eu seja condescendente com a sabedoria, e muitas vezes                condescendente demais: isto provém de que ela me lembra demasiado                a vida! [...] Tem-se sede dela e não se fica saciado, olha-se para                ela através de véus [...] mutável, é ela, e voluntariosa” 9. 
A sabedoria trágica dionisíaca                apresenta-se então como uma sabedoria selvagem porque é animada                pelos impulsos dionisíacos; mutável, porque afirma o devir;                voluntariosa pois sabe que é só por querer que ama a vida, esta à                qual Zaratustra atribuiu a vontade de potência como característica                principal por ter sempre que superar a si mesma. Olha-se para a                sabedoria através dos véus da arte trágica, com sua aparência                apolínea, e vê-se que ela “lembra demasiado a vida”. 
Assim, a sabedoria trágica                dionisíaca pode ser considerada como a que conduz a criar a                própria vida como uma obra de arte trágica. E Nietzsche vai ainda                mais longe na afirmação da íntima relação entre a vida e a                sabedoria quando escreve em O outro canto de dança – no                qual Zaratustra aparece como quem acompanha a vida em sua dança                desenfreada, seguindo-lhe as menores pegadas – o que a vida diz a                Zaratustra sobre sua sabedoria: “Se algum dia a tua sabedoria te                abandonasse, ah, então, logo te abandonaria, também, o meu amor”                10. 
Aqui se evidencia que, nessa íntima                ligação entre a sabedoria trágica dionisíaca e a vida, a vida ama                apenas aquele que com sua sabedoria ama a vida. 
Para entendermos melhor em que                constitui este sentimento trágico de amor à vida, devemos                considerar o exposto no Crepúsculo dos ídolos e                reproduzido no Ecce homo , onde se encontra a formulação                definitiva de sua sabedoria trágica dionisíaca. 
No Crepúsculo dos ídolos ,                Nietzsche escreve: “A psicologia do orgiasmo enquanto uma                psicologia de um sentimento de vida e de força transbordante, no                interior do qual mesmo o sofrimento atua enquanto um estimulante,                me deu a chave para o conceito do sentimento trágico” 11. 
Isso significa que a partir de uma                abundância de forças vitais se encara até mesmo o sofrimento como                um estimulante que desafia o ser humano em seu processo vital de                auto-superação criadora da existência enquanto modo próprio de                viver. 
Eis porque, em seguida,Nietzsche                chamou então dionisíaco “O dizer-sim à vida mesma ainda em seus                problemas mais estranhos e mais duros; a vontade de vida                tornando-se alegre de sua própria inesgotabilidade”, pois ele                considera que a vontade que move o impulso trágico dionisíaco é o                de “ser por si mesmo o eterno prazer do vir a ser”. 
Isto também se apresenta num dos                fragmentos póstumos em que Nietzsche diz: “Com o nome de Dionisos                é batizado o devir entendido de um modo ativo, em empatia                subjetiva”. Este impulso dionisíaco é pensado como uma tendência                que “empurra na direção do devir, do prazer de que se faça o                devir, isto é, do construir e do destruir”. 
O impulso apolíneo,                por outro lado, é pensado assim: “com o nome ‘apolíneo' passa aser                designada a comovida fixação diante de um mundo inventado e                sonhado, diante do mundo da bela aparência como uma salvação                frente ao devir”, ou ainda como uma tendência que “quer eterna a                aparição”. A arte trágica, definida então como sendo “rica em                ambas as experiências, passa a ser caracterizada como conjunção e                reconciliação entre Apolo e Dionisos” 12. 
Por isso, no Ecce homo,                Nietzsche considerou-se pioneiro na formulação dessa                sabedoria trágica dionisíaca, o que expressou dizendo: “Antes de                mim, não há essa transposição do dionisíaco num pathos                filosófico: falta a sabedoria trágica” 13. 
Assim, pode-se considerar a                sabedoria trágica dionisíaca como um pathos filosófico                afirmativo, que Nietzsche caracterizou como o “ pathos                afirmativo par excellence ” ou “ pathos                trágico”. 
Isto coincide com a apresentação que                Nietzsche faz do pensamento do eterno retorno no Ecce homo                como “a mais elevada forma de afirmação que se pode em                absoluto alcançar” 14. 
Esta                consideração se encontra em meio ao comentário que faz ao                Assim falou Zaratustra , a respeito do qual ele diz: “Meu                conceito de ‘dionisíaco' tornou-se ali ato supremo” 15. Em seguida ele diz ser Zaratustra o “mais                afirmativo dos espíritos” em quem “todos os opostos se fundem numa                nova unidade” e que “se sente como a forma suprema de tudo o que                é”. 
E acrescenta ainda uma descrição de Zaratustra como uma                figuração de Dionisos: “Zaratustra é um dançarino -: como aquele                que tem a mais dura e terrível percepção da realidade, que pensou                o ‘mais abismal pensamento', não encontra nisso objeção alguma ao                existir, sequer ao seu eterno retorno – antes uma razão a mais                para ser ele mesmo o eterno Sim a todas as coisas, ‘o imenso                ilimitado Sim e Amém” 16. 
               A sabedoria trágica dionisíaca, como                expressão da vontade que afirma a vida em seu vir a ser, encontra                no imperativo que o poeta Píndaro estabeleceu – o “tornar-se o que                se é” – o sentido maior de seu impulso trágico de autocriação.                Isto se evidencia no comentário que Nietzsche faz no Ecce homo                ao significado do subtítulo do livro.
 Diz ele: “com isso,                toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo – do amor                de si [...] Que alguém se torne o que é pressupõe que não suspeite                sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e                valor próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e                vias secundárias” 17. 
Isso conduz a uma                compreensão da sabedoria trágica dionisíaca em sintonia com                afórmula do amor fati nietzschiano, a qual é descrita                assim no Ecce homo : 
“Minha fórmula para a grandeza no                homem 
é amor fati : nada querer diferente, 
seja para                trás, seja para a frente, 
seja em toda eternidade. 
Não apenas                suportar o necessário 
Abstract: 
                 This text presents the notion of                tragic wisdom developed by Nietzsche through his works, making the                relation with the dionysian vision of the world as expressed in                The borning of tragedy , also related to the wild wisdom                of Zarathustra, expressed in a poetic-dramatic way in Thus                spoke Zarathustra, which is connected to the thought of the                eternal return, and finally discussing the relation with the                nietzschian's amor fati and its pindaric imperative to                become what one is, presented in Ecce homo as                formulations of the supreme affirmative though that is in itself                the dionysian tragic wisdom. -Palavras-chave: afirmação – trágico                – dionisíaco . 
Ivan Maia de Mello  
Mestrando em Filosofia do Instituto                de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade do Estado do Rio                de Janeiro 
                Professor da Escola Bahiana de                Medicina e Saude Publica 
                EnderecoEletrônico: mailto:corpoema@ig.com.br,
Fonte:
Revista Eletrônoca Morpheus
http://www.unirio.br/morpheusonline/ivan%20maia.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
Sejam abençoados todos os seres.

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