Gilda Naécia Maciel de Barros
FEUSP
Na Grécia antiga, o século VI a. C. chegava ao fim e Clístenes estabelecia em Atenas a democracia, uma forma de governo destinada a tornar-se célebre no mundo inteiro, até os nossos dias.
Ameaçada de fora, a liberdade grega passou a ser garantida por Atenas, império marítimo vigoroso, sustentado pelo tesouro de Delos, amealhado em troca da proteção militar contra os persas às cidades confederadas sob sua liderança.
Detendo na política externa a hegemonia marítima e militar, dessa supremacia Atenas soube tirar todas as vantagens, alcançando, no século 5, sob a direção de Péricles, seu grande líder, a mais alta glória.
Enquanto Esparta, na idade arcaica (VII a.C.) a capital da cultura grega, agora se retesava e encolhia, presa do imobilismo e de um militarismo global, Atenas se consolidava como sociedade ágil e aberta, receptiva às mudanças, às novidades, ao estrangeiro. Por ela pareciam cruzar todas as rotas, ao seu porto, o Pireu, chegavam produtos de muitos lugares.
Aos poucos, ela se foi tornando também o celeiro cultural de toda a Grécia.
Essa, a Atenas que Sócrates irá conhecer, desde que nasceu, em 470 a.C., e onde irá viver, até morrer, em 399 a.C. Escola da Grécia, orgulhosa de sua língua livre (parrhesia), um grande viveiro de homens sábios, naturalistas, poetas, retóricos, sofistas, filósofos, artistas de toda espécie.
Em 427 a.C. nasce Platão e Sócrates estava tempo ao meio; quando seus caminhos se cruzam, na juventude daquele, a Grécia vivia os difíceis dias da Guerra do Peloponeso, que opôs as duas maiores potências daquele tempo: Esparta e seus aliados, de um lado, e Atenas e seus aliados, de outro. Quando seus caminhos se separam, em 399 a.C., Platão, um jovem de 28 anos aproximadamente, pelo nascimento e educação destinado a tomar parte no futuro da cidade, estava já desiludido com a política. Daí por diante, por mais de 50 anos Platão caminharia só, sob a inapagável impressão da figura do mestre.
Inconformado com a ordem democrática, que julgava, na verdade, uma grande desordem, impressionado com os desmandos da tirania dos Trinta (404 a.C,), o jovem Platão, profundamente arrasado com a morte do mestre, tomou a decisão de afastar-se da vida pública, sem, com isso, ter se desinteressado dos temas políticos, e, muito menos, de intervir em política. De fato, Platão não apenas iria desenvolver amplas reflexões sobre os grandes problemas do Estado, como também, convencido de que o poder deve estar sempre aliado ao saber, procurar converter à filosofia o tirano de Siracusa, Dioniso.
Em sua trajetória espiritual, a figura de Sócrates o marcará para sempre. Mas se ela foi o grande impacto em sua formação, não foi o único.
Platão importa-se com os destinos políticos de Atenas. Como Aristóteles, considera que a cidade-estado é, preferencialmente, o lugar em que o homem deverá desenvolver e aperfeiçoar a sua natureza e realizar seus últimos fins. Mas supõe que à ordem da vida na polis deve corresponder uma ordem interior, na alma. E não julga o regime democrático de seu tempo apto a favorecer isso. Nem por si próprio, nem pelo papel que nele exerceram e exerciam certos intelectuais que se dizem sábios, produtores de saber, sofistas. Assim, considerando que a decadência moral e política de Atenas muito devia a certo tipo de gente, mercadores de saber, hábeis no uso da palavra (logos), levantar-se-á também contra esses disputares, amantes de chicanas, maus guias da cidade, e corruptores da juventude. E fará de Sócrates, seu mestre, o principal interlocutor de seus diálogos e um inimigo incansável dos sofistas.
Se, ao que parece, a freqüência a Sócrates, levara Platão a ocupar-se atentamente dos temas da ética, não menos instigantes lhe eram as grandes questões levantadas pelos pensadores que, na esteira de Tales, Anaximandro, Anaxímenes, investigavam a physis do universo e queriam saber de que é feito tudo, afinal.
Platão tinha também diante de si toda tradição poética e literária da épica e da lírica, que, de Homero e Hesíodo, passando por Arquíloco, Tirteu, Álcman, Sólon, Theógnis, Semônides, Mimnermo, Safo, Alceu, Simônides, Píndaro formava, ao lado dos autores de comédia e tragédia do nível de Aristófanes, Ésquilo, Sófocles e Eurípides, um verdadeiro currículo para a educação dos jovens de seu tempo. Ora, parte dessa tradição dava explicações confiantes sobre a origem dos deuses e do mundo, estabelecia pareneticamente normas de convivência, ideais de vida; dela provinham os valores básicos para todo homem grego culto e, sob certos aspectos e em alguns pontos, também para o homem comum.
De fato, dos sábios legisladores e dos poetas, os gregos receberam lições das coisas e do mundo. Sob o peso de toda essa herança e enfrentando os desafios intelectuais de seu tempo, Platão vai tomar suas posições e iniciar uma busca. Toda filosofia de Platão é essa busca, a busca do sistema [1] , incansavelmente criticado e revisto. Dessa busca, por vezes torturante, resultou uma visão do mundo, do lugar do homem no mundo e de seu destino.
Então é preciso ressaltar a importância que têm no pensamento de Platão os avanços e recuos, as formulações sistematicamente refeitas, por vezes restabelecidas ou ampliadas, ou parcialmente modificadas de temas de que tratou. Não raro Platão recolhe a tradição cosmogônica e mitológica e a submete ao seu crivo crítico, para repensá-la conforme os fundamentos de sua filosofia. No caso de Eros não é diferente.
Na tradição mitológica grega, a figura de Eros, deus do Amor, passa por uma evolução que vai da idade arcaica até a época alexandrina e romana. [2] De acordo com as velhas teogonias, Eros nasceu ao mesmo tempo da Terra e diretamente do Caos primitivo. Também nasce do ovo primordial, engendrado pela Noite, que, em duas metades, faz a Terra e o Céu. É uma força vital que garante a continuidade das espécies e a coesão íntima do Cosmos.
Sendo um deus, Eros recebe genealogias diferentes. Ora ele é filho de Ilitia, ou de Iris, ou de Hermes e Artemis ctônica. A tradição preponderante o faz filho de Hermes e de Afrodite.
Mas os mitólogos, que distinguem várias Afrodites, também distinguem vários amores: Eros, filho de Hermes e de Afrodite Urânia, Eros Antéros [Amor Contrário ou Recíproco], filho de Ares e Afrodite, filha de Zeus com Dione, Eros, filho de Hermes e de Ártemis, filha de Zeus e de Perséfone.
Sob a influência dos poetas, Eros muda de fisionomia. É representado como uma criança alada ou sem asas, que se diverte perturbando corações, que queima com suas tochas ou fere com suas setas. Os poetas alexandrinos gostam de mostrá-lo brincando com crianças divinas. Nas cenas infantis, ora é punido, ora posto de castigo pela mãe, ora ferido por espinhos de rosas que colheu etc. As pinturas de Pompéia tornaram esse tipo muito popular. Mas o que é constante é o fato de, sob a aparência de inocente, ser um deus de grande poder, capaz de ferir cruelmente.
Mas, quanto a Platão, que postura assumiu em relação à tradição que recebeu?
Na República, faz Eros interferir no funcionamento da parte apetitiva da alma. Sua atuação é destacada como negativa, pois vem associada à tirania dos sentidos.
No Banquete, de que é o tema central, Eros é objeto de vários elogios, mas o elogio propriamente filosófico vem de Sócrates pela boca da mulher de Mantinéia., a sábia Diotima.
No Fedro há dois discursos sobre o amor, tratado aí como uma forma de delírio. No primeiro discurso, o Amor é um mal, um jogo ímpio, no segundo, um jogo sagrado, uma possessão divina pela qual nos elevamos acima de nós mesmos (265 e et seqs) Nesse diálogo Platão faz a crítica à retórica de seu tempo, que considera mera rotina, e que deseja substituir pela retórica filosófica, isto é, pela dialética (265 b-c). Se a retórica é uma forma de conduzir a alma de quem ouve o discurso, uma psicagogia, o retórico verdadeiro deve ter como objeto a alma, a qual deverá persuadir. Então, deve saber o que ela é e como se compõe. Ora, a alma humana busca a soberana beleza, que contemplara antes da encarnação. Seu bem é atingir esse ideal, é pelo Amor que ela encontra seu caminho. A educação do homem livre é retórica na medida que o ensina a proferir um discurso belo, não porque agrada aos sentidos, mas belo porque verdadeiro e justo.
O paralelismo com o Banquete, como se verá, está nessa idéia de que o amor é um agente educativo, e que a aspiração à verdade e ao ser é impulsionada pelo amor e por ele ativada (cf. Banquete 209 a-e; cf. Fedro 277 b-c)
Se o Bem, o Belo e o Justo são o nosso destino (277e, 278a), o Amor nos inspira um élan eternamente voltado para eles. E o filósofo vive amoroso delírio nessa caça ao Bem, ao Belo e ao Justo. Não é outro o sentido das palavras de Diotima, no Banquete (210 a-d; 211 c)
Vejamos o que se passa com Eros na República. Nesta, a alma humana é dividida em três partes (436 a et sqs): a racional, a irascível e a irracional ou apetitiva. Cada uma deve exercer a atividade que lhe é própria. À parte racional, que é superior, cabe comandar e sua qualidade específica é a sabedoria. À parte irascível compete auxiliar a parte racional, de tal forma que suas ordens sejam sempre obedecidas; a qualidade que a distingue é a coragem. À parte apetitiva cabe obedecer aos comandos da parte racional e a qualidade que lhe cabe é a temperança. Se cada parte exerce sua função, a alma está em harmonia, é justa e saudável. Quando ocorre de alguma parte desviar-se de sua tarefa, a alma adoece: a desordem impera e, com ela, a injustiça.
No livro VIII da República Platão apresenta as etapas de decadência da alma e da cidade. Ora, para compreender como ocorre a desordem na alma, é preciso lembrar que os homens não são iguais: uns têm ouro na alma - estes são os que podem comandar a cidade, pois neles predomina a parte racional; outros têm prata na alma - estes serão os auxiliares dos chefes, pois estão aptos a desenvolver a coragem no mais alto ponto e a defender a cidade, de seus inimigos internos e externos; em sua alma predomina a parte irascível, mas são extremamente úteis e saudáveis quando se aliam ao elemento superior, na cidade, o filósofo, na alma, a razão. Outros, ainda, têm bronze e ferro na alma e a eles cabe obedecer às ordens dos chefes, na cidade, e submetem os apetites à razão.
Não sendo iguais, o efeito da educacão sobre eles não pode ser o mesmo, como também a própria educação deve compor-se com programas em parte diferentes.
O homem é um ser de desejos. Destes, alguns, por natureza, são necessários e úteis; a maioria, não. No caso dos desejos ligados à parte apetitiva, que são os da nutrição e procriação, a saúde da alma exige que se satisfaçam apenas os que garantem a manutenção e continuação da vida. Ora, nem sempre isso acontece. Aliás, quase nunca. O ser humano se entrega à bebida, às comidas extravagantes, cheias de molhos e temperos desnecessários, ao sexo pelo sexo e, não, pela procriação e passam dos limites. Não cuidam do corpo praticando regularmente a ginástica, pelo que se tornam fracos. Nem cuidam da alma, cultivando a música. Faltam-lhes as melhores sentinelas, guardiões da razão, vazios que são de ciência, de hábitos nobres e de princípios verdadeiros (Rep. 560b). A boa educação propiciará um equilíbrio entre os desejos, o império certo dos prazeres certos.
Tratando da superioridade do filósofo, Platão lembra que, à cada uma das três partes da alma corresponde uma espécie de prazer (Rep. 580d et seqs). Aquela pela qual o homem aprende, o da ciência, aquela pela qual ele se irrita, o da honra; aquela pela qual ele deseja comida, bebida, amor e congêneres, o lucro. Dessa correlação derivam três tipos humanos: o filósofo, o ambicioso e o interesseiro. Apenas o homem no qual o comando da alma estiver entregue à parte racional conhecerá de forma adequada todos os prazeres, pois somente a ele é dado conhecer o prazer da ciência, que procede da contemplação do ser. (Rep. 5810d-582d)
A má educação é responsável pela degenerescência da alma (Rep. 558d et sqs), pois os jovens deveriam ter aprendido que prazeres cultivar e honrar, buscando apenas os que procedem de desejos nobres e bons (Rep. 561b-c).
Mas é na descrição do homem tirano que Platão nos dá a conhecer amplamente o desvio da alma e é aí que ele introduz o império nefasto de Eros (Rep. IX571 a et sqs). Vejamos como nasce um tirano. Ou melhor, como se chega a ter a alma de tirano.
Com a hipertrofia da parte concupiscente, pela qual florescem desejos desejos terríveis, selvagens e sem leis, que temos o hábito de reprimir. Eles fazem parte do cortejo de Eros e, soltos, levam a alma à loucura (573a-b; 574d-575a).
O estado de extrema desordem a que chega a alma do tirano pode ser aclarado com a ilustração das três formas da alma, que se encontra no livro IX da República (588 b et sqs). Nesse passo, Sócrates retoma a discussão principal de todo o diálogo e, com ela, a tese, que combate, segundo a qual é útil a injustiça a quem for completamente injusto, desde que passe por justo. Chega-se aqui ao ponto alto de toda a investigação pois a valorização da justiça e do homem justo se desvencilha de uma ética de resultados abrindo caminho para a autonomia e o dever.
Platão imagina uma figura monstruosa e de muitas cabeças para representar a parte irracional da alma; sugere o leão para a parte irascível e a figura de um homem para a parte racional, predominando, na alma do tirano, sobre todas as outras, a concupiscência, figura monstruosa e de muitas faces.
O desvio da alma explica-se, então, pelos desmandos dessas formas selvagens e pela atrofia da parte racional, que representa o homem propriamente dito. O que nos é familiar na alma é o que nos aproxima de nós mesmos, o homem. Ou melhor, o que nos afasta da animalidade e ressalta nossa humanidade, que aos olhos de Platão tem parentesco com os deuses (599c-d).
A vitória do homem superior, na cidade, corresponde à vitória, no homem, da parte superior da alma. Aqueles em quem é fraca a parte racional e, portanto, correm o risco de serem desgovernados pelas outras partes, ensina Platão, devem obedecer ao filósofo e à lei da cidade (590e-591a).
Mas quem pode dizer-se capaz de vencer os seus demônios? Como conhecer o verdadeiro prazer, a que desejos satisfazer, que desejos evitar? Como fugir desses monstros polimórficos e funestos, como fazer do leão um aliado e garantir dentro de nós o império da razão?
Cabe, aqui, uma referência à alegoria da caverna, que bem ilustra, na República, a condição existencial do homem relativamente ao nível de educação em que se encontra.
Somos prisioneiros vivendo em uma caverna, com as costas voltadas para a abertura por onde entra a luz.O que vemos no fundo da caverna são sombras, que correspondem aos objetos que estão por detrás. Ora, por trás de nós há um caminho para a saída da caverna, ascendente. Nesse caminho há um muro por trás do qual uma fogueira ilumina os seres e objetos que se apresentam acima do muro e deles projeta imagens no fundo da caverna. Nós não sabemos disso e pensamos que as sombras são os objetos; terrível engano, os verdadeiros objetos estão acima, atrás de nós e não podemos vê-los.
Se acontecer de algum de nós se libertar e voltar-se para o caminho ascendente em direção à abertura, vai sofrer o impacto da luz, mas aos poucos se acostumará com a sua nova condição e quererá chegar até a saída. Transposta a entrada da caverna, ficará admirado com o que verá lá fora. Iluminado pela luz do sol, que brilha, todo o mundo se lhe revelará e ele perceberá a triste condição de seus companheiros, amarrados, lá dentro, e vivendo uma ilusão. Se voltar, sofrerá o impacto da adaptação à condição anterior, sempre mais comprometida com as sombras e a ausência de luz.
Aplicando essa alegoria para compreender o mundo e nossa forma de conhecê-lo, Platão separará os objetos em dois planos, um, referente às coisas visíveis, que alcançamos pelos órgãos sensórios e sobre o qual chegamos a estabelecer uma crença, fundada sempre em opiniões, que podem ser verdadeiras ou falsas. O outro plano corresponde às coisas inteligíveis, que alcançamos pela razão e pela inteligência. No último grau desse plano podemos chegar ao conhecimento verdadeiro e à realidade na sua forma primeira e imutável.
Ora, cada um desses planos pode ser dividido em dois outros, sendo que, ao primeiro plano do visível se segue um segundo; ao primeiro do inteligível se segue outro. De todos, o plano mais afastado da verdade e do ser é o primeiro das coisas visíveis; o mais próximo, é o último das coisas inteligíveis. Neste, uma forma superior, a do Bem, a tudo ilumina, garantido às essências, às Formas, ser e conhecimento.
Poucos são os que têm uma boa natureza, apta ao exercício de ascensão do visível ao inteligível; poucos são os que conseguem fugir da caverna e ver a luz do sol.
Voltando ao nosso tema e considerando a questão de como o homem pode conhecer o prazer verdadeiro e satisfazer corretamente aos desejos, temos que o prazer verdadeiro, ligado ao espírito, é tanto mais legítimo quanto mais aproxima o homem do Ser; o prazer ligado à carne, que satisfaz aos desejos eróticos e tirânicos, é o que se mostra mais distanciado dele (585e-586b).
Então o problema pedagógico maior de Platão é garantir na alma a monarquia do prazer verdadeiro e, na cidade, a conduta certa, conforme à tábua de valores oferecida pela reta razão. Para tanto, é necessário colocar o homem no rumo certo, em direção ao Bem, ao Belo e ao Verdadeiro. E nutrir nele o Amor do Bem.
Nesse ponto, consideremos o elogio do Amor feito por Diotima e referido por Sócrates no Banquete. Veremos que, aí, relativamente ao significado e o papel de Eros muda de figura.
O que é o amor? O amor, ensina Diotima, nem é belo, nem feio, nem pobre nem rico, nem sábio, nem ignorante, nem mortal, nem imortal, nem homem, nem deus. O amor é um daimon, um gênio que serve de mediador entre os homens e os deuses. Sempre acompanha Afrodite porque foi concebido na festa divina em honra a essa deusa. É filho de Poros (Recurso) e Penia (Pobreza), pelo lado paterno é astuto, sofista, filósofo e caçador; pelo lado da mãe de tudo carece. Longe de ser um deus poderoso é uma "força perpetuamente insatisfeita e inquieta" (Grimal).
Apesar de não ser um deus, o Amor pode ser para nós de grande auxílio.
De fato, o homem é um ser no exílio. Exílio de si próprio, de seu verdadeiro eu, de suas origens. Essa, a lição do Fédon, do Fedro, da República.
Diz o mito no Fedro que de alguma forma estivemos perto do Ser, das Formas, das Realidades, eternas, imutáveis, primordiais. Éramos almas aladas, embora não perfeitas como a alma dos deuses imortais, entre os quais vivíamos. Nosso alimento era a contemplação das essências puras, eternas e imutáveis, do Belo, do Bem, da Verdade. Periodicamente saíamos em evoluções ascendentes rumo à abóbada celeste, almejando alcançar a planície da Verdade e, embora com dificuldade, mirávamos as Formas, mal ou bem. Mas, o homem perdeu-se em razão de sua própria natureza, que se assemelha a um carro, com cocheiro e dois cavalos. Um cavalo branco e bom, outro preto e mau, que podem movimentar-se em direções opostas. A indisciplina do cavalo preto arrastou a alma para a vida terrena; ela perdeu as asas e se esqueceu do Ser que contemplara. Nesse nosso mundo, mergulhada no corpo, ainda aprecia a beleza, mas em suas múltiplas aparências, não se lembrando de que vira a beleza em si, na sua única forma.
Devidamente orientada, ela pode lembrar-se do que antes vira, e aproximar-se de seu estado primordial, desde que não reduza a atração pelo Belo à sua manifestação sensível, mutável e precária. Nessa trajetória, a atração de um homem pela beleza de outro pode e pode transformar-se no caminho amoroso de redenção pelo cultivo do espírito.
Então, a alma que estiver no caminho certo, poderá ganhar novamente as suas asas e alçar vôo para o alto, rumo àquela condição de plenitude original.
Diz Platão nas Leis que o homem é uma planta celeste: participa do mundo sensível pelo corpo e do mundo inteligível pela alma. Mas a sua verdadeira natureza só se satisfaz quando ele se esforça por superar essa condição e realizar plenamente sua essência. Ora, isso supõe, para usar a linguagem da alegoria da caverna, um processo de ascensão das sombras para a luz, o trânsito das imagens do fundo da caverna para a contemplação dos objetos reais no mundo fora da caverna.
Na verdade, Platão pensou o homem como um ser de transcendências e toda nossa vida como uma rota de superações, um exercício de transposição de obstáculos. O difícil caminho que leva cada um do plano das sombras para o plano das realidades parece guardar alguma semelhança com a rota das iniciações, com todos aqueles degraus que levam o profano em direção ao objeto de seu culto e ao deslumbramento.
Nessa transposição de uma condição de servo para a condição de espírito livre, o homem superior é o paradigma, é ele quem transpõe a saída da caverna e vê a luz. E os demais? Vão ficando pelo caminho, cada qual avançando até o limite de sua natureza e de seu esforço.
Platão está firmemente convencido de que todo homem quer o Bem, ainda que por vezes se engane na compreensão do que é o Bem. Nesse movimento para o Bem - porque é isso mesmo o que nos motiva, o Bem - o Amor atua como uma força propulsora, fecunda, que sempre nos estimula a caminhar em direção a nós próprios, à nossa verdadeira natureza, sedenta do belo, do bem e da verdade.
É o Amor que nos impede de esquecer, porque nos arrastando para a beleza, vivifica nossa alma, alimenta-a do que é adequado à sua natureza divina. Por ele, passamos do culto a um belo corpo ao culto dos corpos belos, daí ao culto aos belos discursos e leis, ao culto das ciências e, finalmente, ao encontro com a Beleza em si.
O Amor platônico, como vemos, está distante de Eros tirano, que nos escraviza às paixões dos sentidos e nos mergulha no abismo da desordem. Não é repressor, não tem que ver com a sublimação de instintos. É o mais precioso auxiliar daquele que quer atingir a perfeição, pois o movimenta em direção a ela. É úmido, nutriz e poderoso; faz-nos procurar o que nos falta e nos diminui. É nele e por ele que geramos o conhecimento e, por este, nos aproximamos de nós mesmos. O Amor platônico é filósofo porque nos faz ver que a verdade de nossa natureza é procurar. Procurar o saber.
O Eros platônico é libertador.
Essa a lição do Banquete. Nesse diálogo, é muito significativo o que ocorre no último ato. Numa reviravolta teatral, Platão muda o rumo do discurso, que se iniciara e se desenvolvera com o elogio do amor, concluindo-o com o elogio de Sócrates. Como? Por que?
Num dado momento, o bem nascido Alcibíades, aquele jovem ambicioso, de grande talento e rara beleza, aparece em cena de forma repentina. Viera coroar o vitorioso poeta Agatão, mas acabará por falar de Sócrates, um homem feio como os sátiros e silenos, que escondendo dentro de si imagens divinas, falava como os deuses.
A entrada de Alcibíades encaminha o movimento dramático do diálogo em direção a um desfecho surpreendente. Introduz-se, então, com ela, uma aproximação entre a representação filosófica do Amor e a sua encarnação, na figura de Sócrates. E onde está esta afinidade? Pois não é o Amor filho de Poros e Penia? E o próprio Sócrates, que dizia nada saber, não era farto de recursos para tudo procurar, capaz de fazer nascer no espírito de seu interlocutor aquele sentimento de carência, companheiro do espanto, sem o qual não sentimos necessidade de saber e, muitomenos, aprendemos a ver?
No desfecho do Banquete as imagens poderosas de Eros e Sophia encontram-se e se sobrepõem num paradigma, a figura viva e única de Sócrates.
(notas da conferência
proferida na I Semana de Estudos Clássicos &
Educação da Fac. de Educação
Educação da Fac. de Educação
da Univ. de São Paulo, 25-4-02)
Fonte:
FEUSP
http://www.hottopos.com/videtur18/gilda.htm
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