quarta-feira, 3 de novembro de 2010

TEORIA DA ALMA E DA VIDA VIRTUOSA - ÉTICA EM PLATÃO


TEORIA DA ALMA (PSICOLOGIA) 
E DA VIDA VIRTUOSA (ÉTICA) EM PLATÃO

- Marilena Chauí -

A separação entre o sensível e o inteligível é metafísica (há dois mundos ou duas realidades diferentes) e é lógica (seus objetos são conhecidos de maneiras diferentes). Esta separação reaparece na teoria platônica da alma, psykhé.

Psykhé possui três sentidos principais:

· Vida ou princípio vital, o que anima um ser, o que lhe dá vida, e porque a vida é movimento ou mudança, psykhé é o princípio da autoatividade e da autoconservação de um ser; dá e conserva a vida. Neste sentido, todos os seres vivos (plantas, animais, astros ou seres celestes, os humanos) são dotados de psykhé,; o Kósmos é um ser vivo, animado pela Alma do Mundo.

· Consciência ou princípio da vida mental e espiritual. A psykhé ou alma é o princípio cognoscente ou o que, em nós, conhece e permite conhecer. Neste sentido, somente os homens são dotados de alma e a alma é diferente do corpo, sendo imaterial e princípio intelectual.

· A pessoa individualizada cujo espírito sobrevive após a morte. A psykhé é imortal, permanecendo após a morte do corpo. Neste sentido, a alma é o que "é semelhante ao divino" no homem, não só pela imortalidade, mas também pela racionalidade.

· Vida e atividade sensorial e motriz, consciência e atividade mental, imortalidade e racionalidade pessoal são os principais sentidos da psykhé. A alma humana possui uma origem supraterrestre e sua vocação ou destinação é o conhecimento da verdade e do bem, estando orientada para o divino, como seu fim (télos) ou finalidade. A alma, morada de Eros, deseja o divino e tende para ele; é nossa melhor parte e o corpo é para ela prisão, túmulo, risco de perdição nas coisas corporais que a afastam das coisas espirituais. Amar alguém ou alguma coisa é amar sua alma e não o envoltório grosseiro e mortal que é seu corpo. A alma ama as formas ou idéias. Ela deseja a formosura, diz Platão no Banquete, ama a perfeição.

No livro IV da República, Platão oferece a exposição mais completa de sua teoria da alma ou psicologia. Nossa alma, por suas relações com o corpo, não é uma unidade simples, mas é múltipla, conforme a função que realize. Seguindo a tradição médica, Platão irá situar cada função da alma numa região do corpo:

· A alma apetitiva ou concupiscente, que busca comidas, bebidas, sexo, prazeres, isto é, tudo o que é necessário para a conservação do corpo e para a geração de outros corpos; trata-se da faculdade apetitiva ou concupiscente, irracional, situada "entre o diafragma e o umbigo", ou no baixo-ventre. Esta alma ou faculdade termina com a morte do corpo, sendo, portanto, mortal; é nossa parte passional, sempre sequiosa e insatisfeita, sempre à procura de novos objetos de prazer.

· A alma colérica ou irascível, que se irrita contra tudo quanto possa ameaçar a segurança do corpo e da vida, tudo quanto cause dor e sofrimento; porque incita a combater perigos contra a vida, é a faculdade combativa, situada "acima do diafragma na cavidade do peito", isto é , no coração; também é mortal, pois existe para defender o corpo contra agressões á vida corporal e, como a alma concupiscente, é irracional.

· A alma racional, faculdade do conhecimento, parte espiritual e imortal, sede do pensamento e situada na cabeça; é a faculdade ativa e superior, o princípio divino em nós. Conhece o Bem e o Mal, a Verdade e as Idéias.

A relação entre a psicologia e a ética é exposta em dois diálogos: no livro IV da República e no Mito do Cocheiro, no Fedro.

Após apresentar, na República, a divisão da psykhé em dois princípios ou faculdades passionais, irracionais e mortais e um princípio ou faculdade ativo, racional e imortal, Platão indaga se é possível um homem ser virtuoso, isto e´, praticar o bem e as virtudes, se for comandado pela concupiscência ou pela cólera. Responde negativamente, uma vez que as paixões além de nos arrastarem para direções opostas, fazem com que os desejos e impulsos violentos de nosso corpo obscureçam nossa inteligência, impedindo-nos de conhecer e de exercer nossa atividade mais nobre, o conhecimento racional. E, como já dissera Sócrates, o vício é ignorância; portanto, quem não exerce a razão não conhece a virtude e não pode ser virtuoso. Assim sendo, a vida ética ou virtuosa dependerá exclusivamente da alma racional.

Qual a tarefa ética ou moral da alma racional? Dominar as outras duas faculdades, e harmonizá-las com a razão. O domínio da razão sobre a concupiscência é uma virtude e seu nome é temperança (sophrosýne) - a moderação. A alma temperante é aquela que não cede a todos os impulsos e prazeres, que modera seus apetites, impondo-lhes a media que lhe é oferecida pela razão. 

O domínio da razão sobre a alma irascível ou colérica é decisivo. De fato, a alma racional não age diretamente sobre a alma concupiscente, amas o faz por meio da alma colérica ou irascível. Por isso, sob o domínio da razão, a alma irascível saberá discernir o que é bom e mau para a vida de seu corpo, não só deixará de lançar-se indiscriminadamente a todo e qualquer combate que imagine importante para sua vida corporal (saberá quando e por que um combate deve ser travado e quando deve ser evitado), como ainda guiará a alma apetitiva ou concupiscente na escolha do que é bom para a vida. A virtude própria da alma irascível guiada pela razão é a coragem (thymós) ou prudência (phrónesis).

Finalmente, a alma racional será virtuosa se for mais forte e mais dominadora do que as outras duas, se não sucumbir aso apelos do apetite e da cólera, isto é, se não ceder aos apelos irracionais das paixões. Sua virtude própria é o conhecimento (nóesis, theoría).
Assim, um homem é virtuoso ou justo quando a alma racional domina a irascível e a faz corajosa, e quando a alma corajosa domina a concupiscente a faz temperante. A imoralidade, injustiça ou vício existem quando esta hierarquia de comandos não for obedecida.

No Fedro, essas idéias são retomadas no mito do cocheiro, cuja narrativa é suscitada pelo desacordo entre Sócrates e Fedro a propósito do discurso do sofista Lísias contra Eros. O desejo é louco e delirante, pontificara Lísias, acusando Eros pela desmedida das paixões e dos vícios.
Seria o delírio um mal?, indaga Sócrates. Existe apenas uma forma de delírio ou várias?
A loucura é delírio - em grego: manía. Ora, há delírios inspirados pelos deuses: o delírio profético, inspirado por Apolo Delfo, "que suplanta em perfeição e dignidade a arte humana dos augúrios"; o delírio purificador, inspirado por Dionisos, "que oferece remédios e refúgio contra o sofrimento"; o delírio poético, inspirado pelas musas, "que transporta a alma jovem e inocente a um mundo novo" oferecendo-lhe a dádiva da poesia; e há o delírio erótico, inspirado por Eros, "o deus alado", enviado pelos deuses "ao amante e ao amado, não para alguma utilidade material, mas para a felicidade de ambos", porque é o amor da sabedoria, a filosofia.

Pelos delírios, podemos conhecer a natureza da alma e, para compreendê-la, Platão recorre ao Mito do Cocheiro.

"A alma é como uma força ativa que unisse um carro puxado por uma parelha alada e conduzido por um cocheiro (...) pois, outrora, a alma possuía asas", assim inicia-se o mito.
Ser alado significa ter em si mesmo o princípio do movimento, isto é , da vida e por isso, alada, psykhé é imortal, pois é vida e causa de vida. Ser alado é participar da natureza imortal do divino, e a Natureza dotou as asas do poder de elevar o que é pesado rumo às alturas, onde habita o divino, que "é belo, sábio e bom", alimentando, desenvolvendo e fortalecendo os alados. Por isso a alma é atraída pelo delírio erótico: deseja alçar-se às alturas da verdade, porque somente ali encontra alimento para suas asas.

Qual a diferença entre a alma imortal dos deuses e a alma imortal dos homens:
"Os cavalos e cocheiros das almas divinas são bons e de boa raça. Os das almas humanas, mestiços. O cocheiro que os governa, conduz uma parelha na qual um dos cavalos é bom e de boa raça, enquanto o outro é de má raça e natureza contrária. Assim, conduzir o nosso carro é ofício difícil e penoso."

Qual a diferença entre a essência imortal dos deuses e a natureza mortal dos homens?

"Quando a alma é perfeita, governa a matéria inanimada, plana livre nos céus e dirige o Kósmos. Porém, quando perde as asas, rola pelos espaços infinitos até cair num sólido qualquer e aí pousar. Quando reveste a forma de um corpo terrestre, este começa mover-se, graças á força e vida que lhe comunica a alma. A este conjunto de alma e corpo damos o nome de mortal."

Somos mortais (embora a alma seja imortal) porque perdemos as asa. Como a perdemos?
No afã de elevar-se, o carro alado é puxado para cima por um dos corcéis, mas puxado para baixo pelo outros. A luta da parelha força o cocheiro a olhar os cavalos e não a região celeste onde habitam a Beleza e a Verdade. A parelha se machuca, o cocheiro tem as mãos feridas pelas rédeas que puxam em direções contrárias, carros alados chocam-se com outros e as asas vão perdendo a força, caindo, até que o carro, pesado, caia sobre a terra, deixando no cocheiro apenas a nostalgia e a saudade do vôo, a vaga lembrança do que vira e o desejo insaciável de retornar aos céus. O cocheiro é a alma racional, o corcel que sobe, a alma valorosa da coragem, o que puxa o carro para baixo, a alma concupiscente que, pelo prazer, troca a Verdade pela Opinião.

Por que o cocheiro se recorda do vôo e porque um dos cavalos deseja subir, nem tudo está perdido. O delírio erótico - desejo de filosofia - pode fortalecer o amante - a alma racional - na busca do amado - a Beleza e a Verdade -, auxiliando-a a dominar o cavalo do apetite e dos prazeres para que não impeça o novo vôo.

O Mito do Cocheiro reúne, numa nova versão, O Mito da Caverna e O Mito de Er ou da Reminiscência,
expondo com maior clareza a unidade entre conhecimento, psicologia e ética.
De fato, o cocheiro, como o prisioneiro da caverna, parte em busca da luz da verdade e, como no Mito de Er, realiza a viagem porque se lembra do que, uma vez, contemplou.(eu,Aurigae-Capella?)

A força da razão sobre a cólera - fazendo surgir a moderação e a temperança - é a mesma na República e no Fedro. Neste, porém uma nova idéia articula mais profundamente ética e filosofia: a alegoria do delírio erótico ou o amor da Beleza, quando amante e amado fundem-se na felicidade perfeita. Lembrando-se, vagamente, da beleza outrora contemplada, o filósofo a reconhece nas coisas belas (isto é, elevando-se da multiplicidade sensível à unidade perfeita das idéias )e, dela se lembrando cada vez mais vivamente, seu espírito recupera as asas.

Por que a filosofia é delírio?
Por que, à medida que aumenta em sabedoria e em virtude, o espírito do filósofo torna-se alado, mas, preso a um corpo (imagens e opiniões, apetites e paixões), não pode voar; por isso dirige o olhar para o alto, "esquecendo os negócios terrenos e dando a impressão de delirante".
Na República, a idéia de justiça (hierarquia de comando entre as almas) preside a exposição da psicologia e da ética. No Fedro , este lugar é ocupado pela idéia da beleza, sob o governo do desejo ou de Eros. A presença de Eros faz com que, no Fédon, Platão afirme que as três almas (ou três faculdades) são desejosas e desejantes.

A diferença entre elas encontra-se no objeto de seus desejos e no modo como desejam. A alma concupiscente deseja coisas perecíveis, que podem destruí-la sem que ela o perceba; e seu modo de desejar é o desejo de posse, imaginando que ficará saciada se possuir o objeto desejado, acabando, afinal, possuída por ele. A alma irascível deseja a fama, a honra e a glória, que também podem ser perecíveis e destruir a vida, se procuradas sem medida e sem conhecimento; seu modo de desejar é o desejo da boa opinião dos outros a nosso respeito, a alma irascível correndo o risco de, para obter a boa opinião alheia, perder seus próprios objetivos, caindo na infâmia, na desonra e na vangloria. 

A alma racional deseja o bem e a verdade, os bens imperecíveis; seu modo de desejar não é a posse (como na concupiscência) nem a busca da opinião alheia (como na cólera), mas é o desejo de participar da natureza ou da essência do objeto amado, as idéias, Por isso somente ela é capaz de oferecer e impor limites e medidas aos desejos das outras duas, tornando-as virtuosas. A moderação deve ser imposta aos desejos para que haja virtude e, agora, sophrosýne ocupe então o lugar que a Justiça tivera na República e a, Beleza, no Fedro.

Que significa dizer que todas as almas ou que todas as funções da alma são desejantes? Siginifica:

· afirmar que Eros (o amor ou o desejo) é o motor das almas, da vida apetecente, da vida corajosa e da vida intelectual (a filosofia não é amor à sabedoria?);

· afirmar que a virtude depende da qualidade dos objetos com os quais desejamos nos unir por amor, uma escolha entre os objetos perecíveis da paixão e os imperecíveis da razão;

· afirmar que a liberdade ou a autarcia reside no poder da razão para afastar as paixões ou dominá-las, dando às faculdades apetitiva e irascível bons objetos de desejo, enquanto o vício e a servidão residem no poder das paixões sobre a razão.

Embora a psicologia e a ética recebam exposições diversas, em todas elas Platão estabelece urna relação precisa entre areté, dýnamis, epistéme e téchne. A areté, vimos, é a excelência ética, o "ser bom". os mitos platônicos evidenciam que a areté é uma dýnamis, uma possibilidade ou potencialidade da alma que precisa ser atualizada. A atualização é feita pela téchne como terapia e paideía. Estas pressupõem a ciência, a epistéme, que indica qual é a areté de cada função da alma - qual a excelência de cada uma delas - e qual a hierarquia entre essas funções. A téchne, isto é, a paideía dialética desfaz os conflitos entre as funções da psykhé (sua desordem), fazendo com que cada uma realize sua função própria.

Platão afirma que a alma racional é imortal. As provas da imortalidade da alma variam de diálogo para diálogo, à medida que a influência de Sócrates vai diminuindo e a dos pitagóricos órficos vai aumentando sobre sua filosofia. Por isso, na Apologia, a questão de saber se há uma vida após a morte e que tipo de vida será, fica em suspenso. Sócrates não parece muito empenhado em discutir o assunto. Ao contrário, nos diálogos da velhice, Platão discute em profundidade essa questão, aceitando a teoria órfico-pitagórica da reencarnação ou transmigração das almas e a da filosofia como purificação ou ascese espiritual para vencer a "roda dos nascimentos"
As principais provas da imortalidade da alma são oferecidas no Mênon, no Fédon, no Fedro, na República e nas Leis, podendo ser assim resumidas:

1) prova pela reminiscência: vimos que, tanto no Mênon quanto na República e no Fedro, a alma pode conhecer a verdade porque se recorda ou se lembra dela, e a reminiscência da verdade pressupõe que esta tenha sido contemplada numa outra vida;

2) prova Pela simplicidade: o que é composto por natureza tende a separar-se, as partes dividindo-se e distanciando-se, de sorte que o composto morre ou desaparece; ora, a alma racional é imaterial e simples como as idéia s e,, por sua simplicidade, não pode desfazer-se, separar-se, desaparecer ou morrer;

3) prova pela participação da alma na idéia de vida: a alma é o sopro vital, o princípio de vida de todas as Coisas e, portanto, não pode receber nem Participar do que é contrário à sua idéia ou à sua essência, isto é, a morte.

4) prova pelo princípio do movimento daquilo que move a si mesmo' aquilo que é movido por outro deixa de se mover quando a causa do movimento cessa; a alma não é movida por nada, mas move todas as coisas e move a si mesma; o que move a si mesmo é inengendrado e o que é inengendrado é imortal;

5) prova pela imutabilidade do incorpóreo: somente os corpos aumentam ou diminuem, mudam-se nos seus contrários e podem ser destruídos pela ação de outros corpos, mas o que é imaterial ou incorpóreo não aumenta nem diminui e nada há que possa destruí-lo de fora; a alma, sendo imaterial, não sofre transformações em sua essência e por isso permanece, sempre; sendo eterna, é imortal.

Aparentemente, as provas da imortalidade da alma estariam em contradição com a teoria da transmigração ou da reencarnação, pois esta pressupõe que a alma seja afetada pelos vícios do corpo, pelas paixões da concupiscência da cólera, não sendo portanto imutável nem simples e não podendo ser imortal. Na verdade, porém, o peso do corpo e das paixões sobre a alma, que leva Platão a dizer que o corpo é prisão da alma, não destrói sua imortalidade. A essência da alma não é transformada pelo corpo, mas prejudicada por ele, isto é, o corpo pode criar obstáculos para que a alma realize plenamente sua natureza e é por este motivo que está submetida à "roda dos nascimentos", destinada a libertar-se cada vez mais dos elementos corpóreos para, finalmente, não mais precisar nascer.

 Fonte:
Área de Sociedade e Cultura 
http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/chauialmaplatao.html
(Do Livro: Introdução à História da Filosofia 
- dos pré-socráticos Aristóteles, 
Editora Brasiliense, 1994, SP,
pág. 21-219)

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