Jonas Gonçalves Coelho1
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O artigo apresenta a concepção bergsoniana de duração.
Pretende-se mostrar que, segundo Bergson, o tempo dos
Pretende-se mostrar que, segundo Bergson, o tempo dos
filósofos e cientistas é um tempo fictício, um esquema espacial que oculta a natureza do tempo real, o qual não
pode ser separado dos acontecimentos físicos e psicológicos. Para Bergson, o tempo real é sucessão, continuidade,
mudança, memória e criação.
Voltamos, pois, sempre ao mesmo ponto: há só um Tempo real e os
outros são fictícios. Que é em efeito um Tempo real senão um
Tempo vivido ou que poderia o ser? Que é um Tempo irreal, auxiliar,
fictício, senão aquele que não poderia ser vivido efetivamente por
nada nem por ninguém? (Bergson, 1972, p.130)
Introdução
Por definição, o passado é o que não é mais, o futuro, o que ainda não é, e o
presente é o que é. Mas o instante presente, quando percebido, já passou.
Como compreender a relação entre passado, presente e futuro? O que é o
tempo? Trataremos dessas questões a partir do pensamento do filósofo
francês Henri Bergson (1859-1941).
O tempo constitui tema fundamental do pensamento desse autor. Sua
filosofia é uma filosofia do tempo. Bergson critica o pensamento filosófico e
científico por desconsiderar o tempo real, cuja natureza se propõe a
explicitar ao longo de suas obras. O tempo dos filósofos e cientistas seria um
tempo esquemático e espacial, incompatível com o tempo que é o próprio
tecido do real, ou seja, o tempo que Bergson define como sucessão,
continuidade, mudança, memória e criação.
Para tratar desses aspectos do pensamento de Bergson, dividiremos nossa
exposição em duas partes. Na primeira, apresentaremos a crítica bergsoniana
à concepção dominante do tempo, daquilo que, para ele, o tempo não é. A
seguir, trataremos da concepção bergsoniana do tempo real.
Tempo fictício
Parte I
Consideremos, inicialmente, o tempo fictício, “aquele que não poderia ser
vivido efetivamente por nada, nem por ninguém”. Referindo-se no início da
introdução de O Pensamento e o movente ao seu percurso filosófico,
Bergson diz ter procurado, desde o começo de suas investigações, algo que
constatou estar ausente na filosofia: a precisão.
Contra os sistemas
filosóficos, cujas concepções seriam abstratas e vastas, Bergson procurava
uma explicação “que aderisse ao seu objeto”, que não deixasse “nenhum
vazio, nenhum interstício onde uma outra explicação se pudesse alojar”,
enfim, uma explicação que “conviesse somente àquele objeto”, que se
prestasse “apenas àquela explicação”. Relata, ainda, que se ligou em sua
juventude à filosofia de Spencer, pois ela lhe pareceu ser uma exceção, já que
“visava a modelar-se sobre as coisas, sobre o detalhe dos fatos”. Mas havia no
pensamento de Spencer um ponto fraco, o conhecimento insuficiente de
mecânica, cujos conceitos fundamentais Bergson pretendia estudar em seu
doutorado com o objetivo de completar e consolidar a obra de Spencer.
Como afirmava Bergson em uma correspondência de 1903, foi esse interesse
pela mecânica que o levou a se “ocupar da idéia de tempo”, surpreendendo-
se ao constatar que tanto a física quanto a matemática não se ocupavam do
“tempo real”, da “duração real” (1972, p.604), que o tempo de que elas
tratavam era um tempo que “não servia para nada (...) não fazia nada”2
(Bergson, 1993a, p.102).
2 Conforme um ensaio
de 1930, “Le possible
et le réel”
2
O que significa a tese bergsoniana segundo a qual a física e a matemática
tratavam de um tempo que não fazia nada, que não servia para nada? Se a
física e a matemática não se ocupavam do tempo real, de que tempo se
ocupavam?
Primeiro, a idéia de que o tempo dos físicos não faz nada, não serve para
nada, está implicada na crença de que, se houvesse uma inteligência sobre-
humana, ela seria capaz de calcular o futuro e o passado a partir dos
elementos do presente. Em sua obra A evolução criadora, Bergson cita três
grandes representantes dessa hipótese: Laplace, Du Bois e Huxley.
Laplace já a formulara com precisão: ‘Uma inteligência que, em
dado instante, conhecesse todas as forças de que é animada a
natureza e a situação respectiva dos seres que a compõem, se
fosse bastante grande para submeter esses dados à análise,
abrangeria na mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos
do universo bem como os do átomo mais leve: nada seria incerto
para essa inteligência, e tanto o futuro como o passado estariam
diante de seus olhos.’ E Du Bois-Reymond: ‘Pode-se imaginar o
conhecimento da natureza chegado a um ponto em que o
processo universal do mundo fosse representado por uma
fórmula matemática única, por um único imenso sistema de
equações diferenciais simultâneas, donde se deduzisse, para cada
momento, a posição, a direção e a velocidade de cada átomo do
mundo.’ Huxley, por sua vez, exprimiu sob forma ainda mais
concreta a mesma idéia: ‘Se a proposição fundamental da
evolução for verdadeira, a saber, que o mundo inteiro, animado e
inanimado, é o resultado da interação mútua, segundo leis
definidas, das forças possuídas pelas moléculas de que a
nebulosidade primitiva do universo era composta, então também
é certo que o mundo atual repouse potencialmente no vapor
cósmico, e que uma inteligência suficiente poderia, conhecendo as
propriedades das moléculas desse vapor, predizer, por exemplo, o
estado da fauna da Inglaterra em 1868, com tanta certeza
quanto se diz do que acontecerá ao vapor da respiração num dia
frio de inverno’. (Bergson, 1991, p.38)
Esses são exemplares de uma concepção abstrata do tempo, de acordo com a
qual os fenômenos que se sucedem no mundo físico seguem uma ordem
imutável e intemporal, em que a distinção entre passado, presente e futuro
parece ilusória, considerando-se que passado e futuro poderiam, pelo menos
em princípio, ser apreendidos no presente, estar diante dos olhos de um
“superfísico”. Trata-se de um tempo no qual a mesma causa sempre produz
o mesmo efeito e é isso que torna possível o estabelecimento de leis que
permitem a previsão, o cálculo antecipado dos fenômenos futuros que
preexistiriam de certa forma à sua realização.
Além do mais, o tempo dos físicos e matemáticos é reversível, ou seja, as
equações que descrevem os acontecimentos passados e futuros
permaneceriam as mesmas ainda que os invertêssemos.
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As leis da dinâmica newtoniana não impõem nenhuma direção
privilegiada ao tempo: as equações que levam em consideração,
por exemplo, os movimentos dos planetas em torno do Sol
continuariam absolutamente imutáveis se o sentido do
movimento dos planetas se invertesse. (Piettre, 1997, p.60)
Esse tempo está dissociado do conteúdo dos sistemas considerados, que são
como o abrir e o fechar de um leque: “O leque que se desdobra poderá
abrir-se cada vez mais depressa e mesmo instantaneamente: ele mostrará
sempre o mesmo desenho já inscrito na seda” (Bergson, 1993a, p.11).
Assemelha-se ao desenrolar de um filme cinematográfico, já que a velocidade
com que este é passado não modifica as imagens: “se ele se desenvolvesse a
uma velocidade infinita, se o desenrolar (desta vez fora do aparelho) se
tornasse instantâneo, seriam ainda as mesmas imagens” (Bergson,
1993a, p.9).
Para Bergson, o tempo dos físicos e matemáticos é um tempo
espacializado, compreendido como uma linha imóvel, com o qual se
pretende medir a duração das coisas. Utiliza-se essa linha imóvel para
representar a sucessão múltipla de eventos. Tal representação do tempo
envolve a idéia de multiplicidade e sua íntima relação com o espaço. Vejamos
como se dá essa articulação entre multiplicidade e espaço.
A idéia de multiplicidade remete imediatamente à idéia de número.
Trata-se de uma multiplicidade numérica. A idéia de número articula-se
profundamente aos objetos materiais. Nós nos referimos a esses objetos
como passíveis de ver e tocar e, para contá-los, precisamos representá-los ao
mesmo tempo, reter a imagem de todos simultaneamente, e isso só se
torna possível no espaço. Bergson admite que se possa, por meio de
algarismos ou palavras, imaginar ou pensar o número sem remeter à
extensão, o que não é possível em uma representação intelectual, em que a
imagem de extensão entra necessariamente. O número é o
componente de uma multiplicidade que se pode contar
isoladamente, uma coleção dessas unidades.
Mas essas mesmas
unidades que entram na composição da multiplicidade distinta
pressupõem uma visão no espaço. Esta unidade corresponde a um
ato simples do espírito que consiste em unir, e tal união só é
possível se alguma multiplicidade lhe serve de matéria. As
unidades são consideradas enquanto tais apenas provisoriamente,
para compor-se com outras. Mas, ao considerá-las em si mesmas,
elas poderiam ser divididas, possuindo, portanto, extensão:
é necessário distinguir entre a unidade em que se pensa e a
unidade que coisificamos após nela termos pensado, assim como
entre o número em vias de formação e o número uma vez
formado. A unidade é irredutível enquanto nela se pensa, e o
número é descontínuo enquanto se constrói; mas, quando se
considera o número em estado de acabamento, objetiva-se: e é
precisamente por isso que aparece, então, como indefinidamente
divisível. (Bergson, 1988, p.62)
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Em decorrência da associação entre a idéia de número e os objetos materiais
que se apresentam no espaço, nós podemos contá-los diretamente,
pensando-os separadamente, de início, e simultaneamente, em seguida.
Mas,
quando se trata da sucessão múltipla dos eventos do mundo, só podemos
contá-los por um processo de figuração simbólica, na qual intervém,
necessariamente, o espaço. Tal figuração, que aparece inicialmente como
uma representação da sucessão temporal, é, em última instância, espacial,
ou seja, trata-se de uma temporalidade profundamente impregnada de
espaço: ao falarmos do tempo, pensamos quase sempre em um meio
homogêneo no qual os fatos se alinham, se justapõem, como no espaço,
formando uma multiplicidade distinta.
Parte II
Essa espacialização do tempo pode ser constatada na representação da
vida interior. Procurando saber o que é efetivamente a duração, como ela
“apareceria a uma consciência que desejaria apenas vê-la sem medi-la,
que a agarrasse sem imobilizá-la, que se tomaria a si mesma por objeto”,
Bergson (1993a, p.4) volta-se para o “domínio da vida interior” - metafísica
e psicologia - que antes não lhe interessava. Assim, abandona seu projeto
inicial de doutoramento, ou seja, o estudo dos conceitos fundamentais de
mecânica, e se volta ao estudo da duração interior à qual ele se propõe a
aplicar seu ideal de conhecimento preciso e imediato.
Ao voltar-se para a investigação do psicológico, Bergson diz3 ter-se
deparado com uma certa concepção da personalidade em sintonia com a
temporalidade abstrata dos físicos e matemáticos. É a mesma sucessão
temporal impregnada da homogeneidade espacial que envolve o
estabelecimento de intervalos e a fixação de contornos dos objetos
materiais, representada quando contamos os estados de consciência que se
sucedem temporalmente e estabelecemos intervalos entre eles, fixando seus
contornos. Ou seja, a partir da consideração do tempo como um meio
homogêneo (característica de nossa representação espacial), acabamos por
tratar os estados de consciência como coisas materiais que ocupam lugar no
espaço, isto é, como se eles fossem exteriores uns aos outros. Assim
considerado, o tempo psicológico é também representado como “um espaço
ideal, onde supomos alinhados todos os acontecimentos passados,
presentes e futuros ...” (Bergson, 1993a, p.9). Desse modo, ao introduzir a
idéia de espaço em nossas representações da sucessão psicológica,
justapondo nossos estados de consciência de maneira a percebê-los
simultaneamente um ao lado do outro, concebemos a sucessão,
apreendemos nossas modificações internas, sob a forma de uma linha
espacial contínua ou de uma cadeia cujas partes se tocam sem se penetrar.
Essa representação espacial da temporalidade psíquica ou, conforme as
palavras de Bergson em Introduction à la métaphysique (1993a, p.208)
“uma multiplicidade de momentos ligados uns aos outros por uma
unidade que os atravessa como um fio”, ou seja, uma representação que
exprime simultaneamente a multiplicidade e a unidade, coloca-nos diante de
concepções antagônicas cuja diferença está na ênfase em um ou outro
desses aspectos. Do ponto de vista da multiplicidade, por menor que seja o
3 Em uma conferência
proferida em 1911, “La
perception du
changement”.
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espaço temporal considerado, ele será composto por um número ilimitado de
momentos, o que significa que nenhum momento dura, cada um é
“instantâneo”, o tempo pulveriza-se e o psíquico começaria e recomeçaria a
cada instante. Em conseqüência dessa multiplicidade que anula a duração, a
própria unidade que liga os momentos não pode durar mais que eles. Essa
unidade passa a ser entendida, então, enquanto eternidade, ou seja, uma
“essência intemporal do tempo”, uma eternidade “abstrata”, pois é “vazia”;
daí não se compreender como seria possível “que coexistisse com ela uma
multiplicidade indefinida de momentos” (Bergson, 1993a, p.209). São duas
concepções que misturam “duas abstrações” as quais fixam o fluir do tempo,
o escoamento do rio “numa imensa cascata sólida, ou numa infinidade de
pontos cristalizados, sempre numa coisa que participa necessariamente da
imobilidade de um ponto de vista” (Bergson, 1993a, p.209).
Em decorrência da representação da personalidade como “uma série de
estados psicológicos distintos, cada um invariável, que produziriam
variações do eu por sua própria sucessão, e por outro lado um eu, não
menos invariável, que lhe serviria de suporte” (Bergson, 1993a, p.165),
teria surgido o problema de se compreender a união dessa multiplicidade e
dessa unidade e a dificuldade de se explicar a constituição de um “eu que
dura”, já que nenhum desses dois pretensos componentes da personalidade
duram: “a mudança é alguma coisa que se acrescenta” ao primeiro,
enquanto que o segundo é feito de “elementos que não mudam” (Bergson,
1993a, p.165). Bergson critica essa caracterização da vida interior, refutando
a existência de um “substrato rígido imutável” e de “estados distintos que
nele passam como atores em uma cena” (Bergson, 1993a, p.165).
Daí resulta que toda tentativa de recomposição da sucessão psicológica pela
inteligência é artificial e isso porque, por meio da abstração e da análise, o
máximo que se consegue é constituir estados psíquicos mais ou menos
independentes, como se eles fossem partes da consciência, como se ela tivesse
partes. Seria como tentar reconstituir um poema a partir das letras que
entram em sua composição e estão misturadas ao acaso.
Tempo real
Parte I
Consideremos agora o tempo real, “o tempo vivido ou que poderia o ser”.
O tempo de Bergson não é o tempo espacial, esse “vazio” no qual os
acontecimentos se sucederiam. O filósofo propõe que desviemos nosso olhar e
consideremos os próprios acontecimentos, sejam eles psíquicos ou físicos. É aí
que descobriremos o tempo real, cujas propriedades fundamentais são a
sucessão, a continuidade, a mudança, a memória e a criação. Embora esses
aspectos da duração estejam intimamente relacionados, trataremos cada um
deles em separado.
Primeiro, temos como propriedade fundamental do tempo real a sucessão.
Ou seja, as vivências interiores, assim como os acontecimentos no mundo
físico, embora possam ser simultâneos ou contemporâneos uns dos outros,
são também sucessivos, ou seja, ocorrem uns após os outros, constituem uma
história. Pensamos no tempo em termos da sucessão passado, presente e
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futuro. Consideramos como acontecimentos passados aqueles que antecederam os acontecimentos presentes, não estando mais se realizando; como acontecimentos presentes os que substituem os passados, precedem os futuros e estão ainda se realizando; e como acontecimentos futuros aqueles que substituirão os presentes, que ainda se realizarão.
Segundo, essa sucessão é uma continuidade, ou seja, o tempo é um processo
contínuo. Isso significa que os acontecimentos psíquicos ou físicos acontecem
uns após os outros, mas não de uma maneira que se assemelhe a uma série
numérica espacial. Diferentemente do espaço no qual as partes das coisas podem ser divididas por existirem simultaneamente – pensemos na representação espacial do tempo, uma linha cujos pontos representativos dos instantes são dados simultaneamente - não se pode separar, efetivamente, no real, o presente do passado, isso porque quando focamos um instante presente ele já é passado.Daí não ser possível a medição, considerando-se que a medida implica sobreposição espacial.
Que o deixemos em nós ou que o coloquemos fora de nós, o tempo
que dura não é mensurável. A medida que não é puramente
convencional implica em efeito divisão e superposição. Ora não se
poderia superpor durações sucessivas para verificar se elas são iguais
ou desiguais; por hipótese, uma não é mais quando a outra aparece; a
idéia de igualdade constatável perde aqui toda significação. Por outro
lado, se a duração real torna-se divisível como veremos, pela
solidariedade que se estabelece entre ela e a linha que a simboliza, ela
consiste ela própria em um progresso indivisível e global. (Bergson,
1972, p.102)
Para compreender essa característica da duração, ou seja, de uma sucessão sem separação, Bergson propõe que pensemos numa melodia ouvida, não na melodia representada espacialmente, retendo a continuação do que precede no que se segue, a transição ininterrupta.
Escute a melodia de olhos fechados, pensando apenas nela, não
justapondo mais sobre um papel ou sobre um teclado imaginário as
notas que concebeis assim uma pela outra, que aceitam então tornar
simultâneas e renunciam à sua continuidade de fluidez no tempo para
se congelar no espaço: encontrareis individida, indivisível, a melodia ou
a porção da melodia que tiveres recolocado na duração pura. Ora,
nossa duração interior, encarada do primeiro ao último momento da
vida consciente, é alguma coisa como essa melodia. Nossa atenção
pode se desviar dela e conseqüentemente de sua indivisibilidade; mas,
quando tentamos a separar, é como se passássemos bruscamente uma
lâmina através de uma chama: dividimos apenas o espaço ocupado por
ela. Quando assistimos a um movimento muito rápido, como o de
uma estrela cadente, distinguimos muito nitidamente a linha de fogo,
divisível à vontade, da indivisível mobilidade que ela subentende: é
esta mobilidade que é pura duração. (Bergson, 1972, p.102)
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Terceiro, essa continuidade, como o próprio exemplo da melodia indica, é
uma continuidade de mudança. Bergson, algumas vezes, define o tempo
como uma “continuidade indivisa de mudança heterogênea”. A sucessão
temporal é uma mudança ou fluxo contínuo incessante, uma transformação
ininterrupta.
Tanto na vida psíquica quanto no mundo físico, não há
estabilidade. Os acontecimentos não são os mesmos, ainda que houvesse
repetição, que eu pronunciasse as mesmas palavras de ontem, que resolvesse
o mesmo problema da mesma forma, seria a segunda vez e não a primeira,
e, a rigor, não posso dizer que sou o mesmo ou que o mundo é o mesmo,
que haja dois momentos idênticos. A mudança é constitutiva do real, não
havendo, assim, uma essência que permaneceria inalterada, uma identidade
permanente por trás das mudanças. Segundo Bergson, trata-se
de um escoamento ou de uma passagem, mas de um escoamento
e de uma passagem que se bastam por si mesmos, o escoamento
não implicando uma coisa que corre e a passagem não
pressupondo estados pelos quais se passa: a coisa e o estado são
apenas instantâneos artificialmente tomados sobre a transição; e
esta transição, a única naturalmente experimentada é a própria
duração. (Bergson, 1972, p.102)
O que acontece é que, freqüentemente, em função das necessidades de
nossa existência e da ação, do caráter seletivo de nossa percepão,
privilegiamos os aspectos superficiais dos fenômenos observados, as
repetições. O que significa afirmar diante do espelho que sou a mesma
pessoa de dez anos atrás, ou de ontem ou mesmo de há dez minutos?
Segundo Bergson, estamos fechando os olhos à incessante variação
constitutiva do real.
Quarto, ao definir a duração como essencialmente uma continuação do
que não é mais no que é, Bergson estabelece que a sucessão contínua de
mudança heterogênea é memória. A memória é fundamental para a
compreensão da relação entre continuidade e mudança.
No âmbito pessoal Bergson destaca dois tipos de memória. Uma é a
memória automática ou corporal, ou seja, os hábitos corporais adquiridos
pela repetição, como no caso de um verso que aprendemos de cor ou de uma
música habilmente tocada em um instrumento, cujos desempenhos
independem da atenção consciente. A outra é a memória por imagens, a
lembrança consciente de tudo o que vivemos anteriormente e que
permanece arquivado em nosso inconsciente.
Mas tanto a memória-hábito
quanto a memória por imagens, exterior àquilo que ela retém, distinta do
passado que ela conserva, são modos de ser da memória bergsoniana que
pode ser definida em termos mais gerais como marca do passado no
presente, “uma memória interior à própria mudança, memória que
prolonga o antes no depois e os impede de serem puros instantâneos
aparecendo e desaparecendo em um presente que renasceria
incessantemente” (Bergson, 1972, p.101). Em relação a este aspecto,
Bergson afirma da duração psicológica o que pode ser estendido às outras
durações, ou seja, à história evolutiva dos seres vivos e do próprio universo.
A duração interior é a vida contínua de uma memória que
prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra
distintamente a imagem incessantemente crescente do passado,
seja, mais ainda, porque testemunha a carga sempre mais pesada
que arrastamos atrás de nós à medida que envelhecemos. Sem
essa sobrevivência do passado no presente, não haveria duração,
mas somente instantaneidade. (Bergson, 1993b, p.200)
O presente psicológico e físico de uma pessoa, de um grupo social, dos seres
vivos e do próprio universo traz a marca dos acontecimentos que lhes
precederam, o que permite fazer inferências sobre esses acontecimentos,
ainda que em alguns casos remonte a milhões de anos e a rigor não se
repitam justamente em função dessas marcas. Só poderia haver repetição, e
mesmo assim em termos relativos, se fosse possível abolir a memória, e com
isso a história que precede os acontecimentos presentes.
Quinto, o tempo real é criação. A irreversibilidade do tempo, dos
acontecimentos, sua riqueza e maior complexidade relacionam-se à
memória, mas sua imprevisibilidade deve-se tanto à memória quanto a um
dinamismo interno e criador. A memória é importante pois explica, em
parte, a relação entre tempo decorrido e aumento de complexidade
propiciadora de imprevisibilidade e novidade. Supõe-se, assim, que no
âmbito pessoal, por exemplo, quanto mais experiência acumulada maior a
possibilidade de criação de novidade. Para Bergson essa relação nem sempre
é confirmada pelo fato de a maioria das pessoas terem sua ação regulada
pelos hábitos adquiridos e pelas exigências da vida prática.
Para explicar o aspecto dinâmico e criador encontrado em toda parte
Bergson acrescenta uma outra noção importante: a noção de élan vital.
Embora esta nos remeta imediatamente ao processo evolutivo dos seres
vivos tomados individual ou coletivamente, ela pode ser estendida ao
universo como um todo. Para Bergson, criação não é escolha entre possíveis
pré-estabelecidos, mas é invenção do novo, do que não preexistia a sua
realização. Essa dinâmica criadora pode ser observada tanto na história do
universo que envolve o percurso de uma estrutura aparentemente simples
de matéria condensada ao número gigantesco de diferentes mundos com
suas estruturas e modo de funcionamento altamente complexos, quanto na
história evolutiva dos seres vivos com suas extraordinárias formas e
competências cognitivas e comportamentais, e, ainda, na história humana,
com as impressionantes realizações no campo das ciências, das técnicas e das
artes.
Daí porque contra toda forma de determinismo, incluindo aí os
finalismos – determinismo dos fins -, Bergson entende que o futuro tanto
de um sujeito psicológico, quanto das várias formas de vida e, ainda, do
universo como um todo, não poderia ser previsto, não porque nos faltem os
meios e conhecimentos intelectuais para tanto, porque não sejamos
oniscientes, mas porque em virtude desse dinamismo interno criador ele é
em si mesmo indeterminado. Embora a indeterminação possa também estar
relacionada à relação entre os seres psíquicos, biológicos e inorgânicos, essa
por si só não explicaria a imprevisibilidade, considerando-se que, se fosse o
caso, as leis dessa relação poderiam, pelo menos em princípio, ser
estabelecidas.
Parte II
Como Bergson estabelece as propriedades do tempo real a partir da vida
interior, ou seja, segundo o modelo da duração psicológica, escolhemos um
caso que envolve perturbações psicológicas, embora a causalidade seja
orgânica, para ilustrar alguns aspectos da duração bergsoniana. Trata-se da
extraordinária história de Jimmie G., narrada pelo neurologista e escritor
Oliver Sacks em seu livro O homem que confundiu sua mulher com um
chapéu, uma coletânea de casos de doenças neurológicas que afetam
principalmente as funções mentais.
Jimmie era portador da síndrome de Korsakov, causada pela destruição
alcoólica dos neurônios dos corpos mamilares do cérebro. Tratava-se,
portanto, de uma doença cuja causa é física. Sua patologia caracterizava-se
por uma devastação grave e permanente da memória, o que incluía a
amnésia retrógrada e a perda da memória recente. Korsakov escreveu em
1887:
A perturbação ocorre quase exclusivamente na memória dos
eventos recentes; as impressões recentes, ao que parece,
extinguem-se mais rápido, enquanto as impressões de muito
tempo atrás são relembradas adequadamente, de modo que a
engenhosidade do paciente, sua perspicácia e habilidade
permanecem em grande medida intactas. (Sachs, 2000, p. 45)
Segundo relato de seu irmão, Jimmie passou a beber demais por volta de
1965, quando saiu da marinha, e ainda mais em 1970, quando, por tornar-
se excitado e confuso, foi internado no Hospital de Bellevue. Em 1975, com
49 anos de idade, Jimmie não se recordava do que aconteceu após 1945,
época em que tinha dezenove anos. Ou seja, a doença apagou trinta anos de
sua história.
Desse modo, Jimmie, aos 49 anos, lembrava-se com uma riqueza de
detalhes do que vivenciou até os 19 anos, conservando, além dos
conhecimentos, as habilidades até então adquiridas. Por exemplo, nos testes
de inteligência, demonstrava grande capacidade, era perspicaz, observador e
lógico, resolvendo sem dificuldades problemas complexos e quebra-cabeças.
Sabia ler, escrever, jogar damas e xadrez. Era excelente em cálculos
aritméticos e algébricos. Conhecia os elementos químicos da tabela
periódica. Recordava-se de seu irmão.
Tudo a partir dessa idade foi apagado da memória de Jimmie. Ao ver seu
irmão, embora o reconhecesse, não entendia porque parecia tão velho. Não
reconhecia uma fotografia da Terra tirada da Lua, surpreendendo-se ao ser
informado de que o homem havia ido à Lua. Não se lembrava de ter visto
um porta-aviões, embora tivesse servido na marinha até 1965 em perfeitas
condições de saúde. Jimmie afirmava estar em 1945 e ao ser colocado diante
de um espelho empalidecia, dizia não saber o que estava acontecendo, se era
pesadelo ou loucura, entrando em pânico. Não entendia por que não tinha
aparência de 19 anos e sim de uma pessoa idosa.
Além dessa forma de amnésia retrógrada, Jimmie sofria uma perda severa
da memória recente. Tudo o que lhe era dito ou mostrado tendia a ser
esquecido em poucos segundos. Por exemplo, após chocar-se com sua
aparência no espelho, bastava levá-lo até a janela para que ele se esquecesse
do ocorrido e ficasse tranqüilo. Mas esquecia-se também do médico,
demonstrando não conhecê-lo cada vez que o encontrava. Embora
convivesse todos os dias com as mesmas pessoas no asilo onde estava
internado, parecia não conhecê-las. Resolvia problemas e quebra-cabeças que
não exigissem muito tempo, pois esquecia o que estava fazendo. Tinha
facilidade nos cálculos, se pudessem ser feitos em velocidade relâmpago, pois
se houvesse muitas etapas, tempo demais no processo, ele esquecia onde
estava e qual era a questão. Por isso tinha dificuldades para jogar xadrez.
O que essa trágica história de Jimmie nos revela sobre a temporalidade
psicológica?
A amnésia retrógrada de Jimmie mostra a vida como uma sucessão de
eventos físicos e psíquicos, uns interferindo com os outros. A sucessão tal
como apresentada destaca alguns momentos, ou seja, representa a vida de
Jimmie como se fosse uma sucessão numérica na qual os momentos estão
separados uns dos outros. Mas, de fato, a sucessão das vivências de Jimmie é
contínua, aliás como toda sucessão de acontecimentos físicos e psquícos, e
só em pensamento podemos privilegiar e fixar um ou outro dos momentos
de sua história. A partir da doença e do conseqüente déficit da memória, as
vivências presentes de Jimmie continuam mudando - um fluxo contínuo de
mudança heterogênea - umas substituindo as outras, sem que se possa
estabelecer o limite entre elas, embora não haja novos aprendizados,
enriquecimento de sua vida psicológica.
A história de Jimmie mostra ainda que o que somos a cada momento de
nossas vidas relaciona-se a essa sucessão de eventos antecedentes. Podemos
ir além do que o caso de Jimmie ilustra e relacionar a história presente e
pessoal de qualquer ser humano não apenas aos eventos de sua história
pessoal, mas também do que a antecede, ou seja, a história da cultura na
qual ele se insere, da evolução biológica e do próprio universo da qual é
herdeiro.
É nesse sentido que Bergson define a duração psicológica como memória.
O que vivenciamos desde o nascimento é preservado sob a forma de
lembranças e de características adquiridas. Jimmie, fisicamente um homem
de 49 anos de idade, após seu déficit de memória que apagou o vivenciado
nos trinta anos anteriores, volta a ser psiquicamente o homem que era aos
19 anos. Lembra-se apenas do que aprendeu até essa idade, das pessoas que
conheceu, preservando as habilidades que até então havia adquirido. Sendo
a memória considerada por Bergson como uma marca do passado no
presente, a lembrança é apenas uma dessas marcas, as habilidades
aprendidas, as condições corporais, como o envelhecimento, por exemplo,
seriam outras dessas marcas. É nesse sentido que se pode afirmar que uma
árvore tem memória e que é possível reconstituir sua idade.
A perda da memória recente de Jimmie é também muito sugestiva,
mostrando que sem memória não há história, não há enriquecimento
pessoal. Se Jimmie vivesse noventa anos, embora seu corpo denunciasse sua
idade, memória corporal, psiquicamente ele continuaria sendo o mesmo
homem de 19 anos. Todas as suas novas vivências seriam quase que
imediatamente esquecidas. O que seríamos se a cada momento nos
esquecêssemos de tudo que vivenciamos desde o nosso nascimento? Se não
houvesse alguém ou alguma fonte de onde obtivéssemos informações a
respeito do passado que antecede ao nosso nascimento?
Podemos ainda refletir a partir do caso de Jimmie sobre um outro aspecto
da duração bergsoniana: a criação. Como identificar uma dinâmica criadora,
um élan vital, na vida de Jimmie? O déficit da memória revela um
empobrecimento de sua vida psicológica. Aqui deve-se esclarecer que para
Bergson, embora o processo criador possa revelar-se nos indíviduos, ele faz
parte efetivamente do mundo considerado enquanto totalidade.
O élan vital
pode enfrentar obstáculos e operar mais vagarosamente aqui e ali, mas no
final das contas acaba prevalecendo. Nossa vida pessoal pode revelar de modo
privilegiado essa dinâmica criadora, como a revela num nível mais explícito
as criações de artistas e cientistas. Mas ainda que por uma razão ou por
outra a criação do novo não se produza aqui e ali, segundo Bergson, ela
acabará por se impor, quando se considera o conjunto, seja dos seres
humanos, dos seres vivos ou o próprio universo.
Conclusão
Como vimos, Bergson considera que o tempo não é um vazio homogêneo
no qual os acontecimentos se sucederiam semelhante à idéia do espaço vazio
no qual os objetos estariam colocados simultaneamente. Ao dizer que o
tempo é o tecido do real, Bergson estabelece que o tempo compreendido
como sucessão, continuidade, mudança, memória e criação não pode ser
separado dos acontecimentos, sejam eles psicológicos ou físicos. Nesse
sentido, o tempo é único, ou seja, essa é a natureza da infinidade de fluxos
ou durações temporais contemporâneas.
Esse tempo ao qual Bergson atribui uma realidade objetiva é percebido
subjetivamente. Dentre os seres existentes, alguns têm o privilégio de
perceber conscientemente o tempo, de apreender-se enquanto sujeitos
temporais, de perceber imediatamente a duração interior e a partir daí
atribuir temporalidade aos acontecimentos externos, contar o tempo das
coisas. Consideremos alguns desses aspectos envolvidos em nossa percepção
do tempo.
Primeiro, a percepção consciente da temporalidade é possível graças à
memória. Se a consciência fosse possível sem a memória, o que não é o caso
para Bergson, viveríamos num eterno presente sem as idéias de antes e
depois, sucessão, continuação e mudança. É a memória que nos permite
estabelecer relação entre as vivências presentes e as anteriores, religar dois
instantes um ao outro.
Segundo, é a partir da temporalidade interior que atribuímos
temporalidade aos eventos externos. Isso porque a cada momento de nossa
vida interior podemos estabelecer correspondência com um momento de
nosso corpo e de toda a matéria circundante simultânea e, graças à
memória, estabelecer essa mesma correspondência em relação aos eventos
anteriores.
Por fim, há um componente da experiência psicológica do tempo que
também deve ser considerado: freqüentemente, os acontecimentos externos
e internos parecem ocorrer de maneira mais ou menos veloz. Para Bergson,
a sensação de maior ou menor duração dos eventos físicos ou psíquicos
relaciona-se à nossa inserção pragmática no mundo, a qual rege a relação
entre os eventos internos e os externos.
Os eventos físicos têm um ritmo que lhes é inerente. Por exemplo, a
dissolução do açúcar na água leva um determinado tempo, do mesmo modo
que os movimentos de rotação da Terra em torno dela mesma e de
translação em torno do Sol. Mas a nossa percepção dessa duração como
sendo mais ou menos rápida depende da relação que estabecemos com estes
fenômenos em função de nossos interesses da vida prática. Se estamos
atentos a todos os detalhes de um acontecimento, ele parece ser mais
demorado. Se desviamos nossa atenção, pensando em outra coisa, ele nos
parece ocorrer mais rapidamente.
O ritmo dos processos psicológicos varia também em função de nossa
relação com os fenômenos externos e da atenção que prestamos a eles. Um
exemplo de desatenção mais ampla em relação ao desenrolar dos eventos do
mundo é a situação dos sonhos. Durante um sonho de dois minutos,
podemos experenciar vivências que necessitariam de muito mais tempo para
serem efetivamente experenciadas. Os casos mais extremos de alteração da
relação temporal entre o indivíduo e o mundo externo é o de sufocamento
brusco, por exemplo, sufocamento ou afogamento. Nesses casos, muitos dos
que voltaram à vida declararam “ter visto desfilar diante de si, num tempo
muito curto, todos os acontecimentos esquecidos de sua história, com
suas mais íntimas circunstâncias e na própria ordem em que se
produziram” (Bergson, 1990, p.172).
PALAVRAS-CHAVE: Bergson; duração; tempo; espaço.
Jonas Gonçalves Coelho1
Av. Siqueira Campos, 651, apto.91 A
Bairro Embaré - Santos, SP
11.045-201
234
COELHO, J. G.
Interface - Comunic., Saúde, Educ.,
v.8, n.15, p.233-46, mar/ago 2004
Fonte:
http://74.125.155.132/scholar?q=cache:6zaFMir0G6EJ:scholar.google.com/+Consci%C3%AAncia+em+Bergson&hl=pt-BR&as_sdt=2000&as_vis=1
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