segunda-feira, 16 de maio de 2011

DAS EXPERIÊNCIAS DE ASSOCIAÇÕES À DESCOBERTA DOS COMPLEXOS


Guardiões do saber

C.G. Jung

Nise da Silveira

Experiências de associações
       0 experimentador organizava uma lista de palavras isoladas, desprovidas de quaisquer relação significativa entre si. São as palavras indutoras. 0 indivíduo examinado é solicitado a reagir a cada palavra indutora pronunciando uma única palavra, a primeira que lhe ocorra. Esta palavra é denominada palavra induzida. 0 experimentador mede o tempo decorrido entre uma e outra com um cronômetro que indica quintos de segundo. 0 cronômetro é posto em movimento quando o experimentador pronuncia a última sílaba da palavra indutora e é detido logo que o examinando profere a primeira silaba da palavra induzida.

0 tempo escoado entre uma palavra e outra é o tempo de reação. Em média provoca-se cinqüenta reações, ou pouco mais. Será inconveniente prolongar excessivamente a experiência a fim de evitar cansaço.

       0 experimentador permanece sempre atento aos vários incidentes que possam ocorrer no curso da experiência. Os tempos de reação variam muito, ora são breves, ora longos. 0 examinando em vez de responder por uma só palavra responde com uma frase, ou repete a palavra indutora, hesita, ri, reage pela mesma palavra a diferentes palavras indutoras, enrubesce, transpira, etc.

       Essas diversas perturbações que eram desprezadas pelos experimentadores da psicologia clássica como ocorrências incomodas, sem maior importância, atraíram particularmente a atenção de Jung. 0 jovem psiquiatra havia lido A INTERPRETACÃO DOS SONHOS de Freud, publicada em 1900. Seu espírito estava alerta. Ele descobriu o que acontecia: todas essas perturbações indicariam que a palavra indutora havia atingido um conteúdo emocional, oculto no íntimo do examinando, no inconsciente. Esses conteúdos seriam "complexos de idéias dotadas de forte carga afetiva". Jung denominou-os complexos afetivos ou simplesmente complexos. Ficava assim demonstrada experimentalmente a existência do psiquismo inconsciente.

       Eis, entre muitos, dois exemplos citados por Jung: no primeiro caso trata-se de uma mulher de 30 anos, casada. católica. 0 marido é protestante. Ambos afirmam que a diferença de religião em nada influía sobre o bom entendimento entre o casal. Mas a paz doméstica era perturbada por constantes e violentas cenas de ciúmes por parte da esposa que fazia descabidas acusações de infidelidade ao marido.

A prova das associações, por intermédio das palavras induzidas - rezar, separar, casar, disputar, família, felicidade, falso, beijar, escolher, contente, que se mostraram críticas em meio a numerosas outras palavras indutoras, revelou que a situação daquele lar caminhava para a decomposição.

A diferença de religião criava um clima extremamente tenso. E, sobretudo, ela vivia aguilhoada por desejos eróticos em relação a outros homens, enquanto o marido era um modelo de fidelidade.

       Exemplo trágico é o caso de uma doente que apresentava um quadro clinico grave de depressão. Trata-se de uma mulher de 32 anos, casada, mãe de dois filhos. Depois da morte de sua filha mais velha, de quatro anos, ela adoeceu gravemente. A experiência de associações revelou, pelas reações a certas palavras indutoras, que algo de muito sério, de muito carregado de emoção, que o ego não tinha forças para incorporar, estava por trás daquela condição patológica. Jung vislumbrou a tragédia oculta e isso abriu caminho para que a confissão fosse feita: quando solteira ela havia amado um rapaz rico, de situação social superior a sua e que parecia não lhe dar nenhuma atenção.

Casou-se com outro e teve dois filhos. Recentemente soube que aquele rapaz também a havia amado e sofrera quando ela casou. Isso a perturbou, absorveu seus pensamentos. Aconteceu então o que dando banho na filha, a menina chupou água da esponja embebida. 0 menino mais novo aproximou-se e também bebeu água da banheira onde se banhava a irmã. A mãe nada fez para impedir o gesto das crianças. A água não era potável. A menina morreu de febre tifóide. Depois que Jung ajudou-a a tomar consciência do seu desejo inconsciente de libertar-se das crianças para ir ao encontro do antigo amado, a doente curou-se e dentro de pouco tempo deixava o hospital.

       Mas, quando o psiquismo já se achava com suas funções todas dissociadas (nos psicóticos), as experiências de associações pareciam inteiramente impraticáveis. Jung, entretanto, não se deu por vencido. Recorreu a um estratagema: passou a empregar como palavras indutoras precisamente os neologismos e estereotipias verbais dos doentes. Graças a este hábil recurso e através de labor infinitamente paciente conseguiu descobrir nos dementes precoces (esquizofrênicos) complexos semelhantes aos que são encontrados em neuróticos e mesmo em indivíduos normais.

"Na demência precoce não há sintoma que seja desprovido de base psicológica e significação. Mesmo as mais absurdas de suas manifestações são símbolos de pensamentos que não só podem ser compreendidos em termos humanos mas que também existem dentro de cada homem". Estavam lançadas as bases da psiquiatria interpretativa.

       Jung publicou, em 1906, seu livro Estudos sobre Associações. Em 1907 apareceu Psicologia da Demência Precoce, e a seguir, 1908, 0 Conteúdo das Psicoses, trabalhos que demonstram que todos os sintomas psicóticos encerram significações.

       Os métodos das associações não são utilizados pelos analistas da escola jungueana. Diz Jung:

"pessoalmente não mais os emprego na prática: 
graças a esses métodos adquiri bastante experiência
para não ter necessidade de quintos de segundo 
a fim de constatar certas hesitações 
ou certas perturbações que percebo diretamente". 

Entretanto as experiências de associações constituem excelente procedimento no ensino, para demonstrar de modo experimental a atuação dos complexos, dando ao estudante uma base sólida para a compreensão dos mecanismos psíquicos Inconscientes. Com essa finalidade são ministrados ainda atualmente cursos sobre as experiências de associações, no Instituto C. G. Jung de Zurique.

0 complexo. Sua autonomia
       A palavra complexo, com sua significação psicológica peculiar, foi introduzida por Jung. E fez fortuna, estando hoje incorporada ao vocabulário cotidiano de todos nós, Ouve-se correntemente dizer: eu tenho um complexo mãe, ele tem um complexo de superioridade, ela tem um complexo de inferioridade, e assim por diante. Há algo de incorreto nessas expressões.

A verdade é que não somos nós que temos o complexo, 
o complexo é que nos tem, 
que nos possui. 

Com efeito, o complexo interfere na vida consciente, leva-nos a cometer lapsos e gafes, perturba a memória, envolve-nos em situações contraditórias, arquiteta sonhos e sintomas neuróticos. 0 complexo obriga-nos a perder a ilusão de que somos senhores absolutos em nossa própria casa.

       Os complexos são agrupamentos 
de conteúdos psíquicos carregados de afetividade.

Compõem-se primariamente de um núcleo possuidor de intensa carga afetiva.
Secundariamente estabelecem-se associações com outros elementos afins cuja coesão em torno do núcleo é mantida pelo afeto comum a seus elementos. Formam-se assim verdadeiras unidades vivas, capazes de existência autônoma. Segundo a força de sua carga energética, o complexo torna-se, um imã para todo fenômeno psíquico que ocorra ao alcance de seu campo de atração.

       A autonomia do complexo dependerá das conexões maiores ou menores que mantenha com a totalidade da organização psíquica. Por isso verifica-se em seu comportamento graus muito variados de independência.

"Alguns repousam tranqüilamente mergulhados na profundeza do inconsciente e mal se fazem notar; outros agem como verdadeiros perturbadores da economia psíquica; outros já romperam caminho até o consciente más resistem a deixarem-se assimilar e permanecem mais ou menos independentes, funcionando segundo suas leis próprias" (J. Jacobi).

       Dos complexos depende o mal ou o bem-estar da vida do indivíduo. Eles podem ser comparados, diz Jung, a infecções ou a tumores malignos que se desenvolvem sem qualquer intervenção da consciência. Como demônios soltos infernizam a vida no lar e no trabalho.

Todavia é preciso acentuar que na psicologia jungueana os complexos não são, por essência, elementos patológicos. "Significam que existe algo conflitivo e inassimilado - talvez um obstáculo mas também um estímulo para maiores esforços e assim podem vir a ser uma abertura para novas possibilidades de realização". Portanto, ao lado de seu papel negativo tão proclamado, os complexos poderão desempenhar uma função positiva. Tornam-se patológicos quando sugam para si quantidades excessivas de energia psíquica.

Assimilação dos complexos.
       Um passo dos mais importantes para o conhecimento de si próprio, bem como para o tratamento das neuroses, será trazer à consciência os complexos inconscientes. Mas convém não esquecer que a tomada de consciência do complexo apenas no plano intelectual muito pouco modificará sua influência nociva. Há neuróticos que seriam até capazes de escrever excelentes monografias sobre seus conflitos mas que continuam quase tão antes. Para que se dê a assimilação de um complexo será necessário, junto à sua compreensão em termos intelectuais, que os afetos nele condensados sejam abreagidos, isto é, exteriorizem-se através de descargas emocionais.

Os primitivos davam expressão a choques e traumas emocionais por meio de danças e cantos repetidos inúmeras vezes até que se sentissem purgados desses afetos.

       Nós pretendemos funcionar só com a cabeça. Por isso discorremos inteligentemente sobre nossos complexos, mas eles continuam bem encravados na textura inconsciente-corpo, produzindo sintomas somáticos e psíquicos totalmente irracionais.

Evolução do conceito de complexo.
       Jung escreveu em 1934 um curto trabalho sob o título de Revisão da Teoria dos Complexos (col. works 8), onde amplia suas idéias sobre o assunto. Até então os complexos eram descritos como conteúdos psíquicos originados de conflitos vividos na área da problemática individual. Tinham suas raízes nos conflitos emocionais da primeira infância e também, segundo as experiências de associações provaram, nos conflitos do presente, em qualquer idade. Nesta revisão ele mantém que a causa mais freqüente da origem de complexos é o conflito. Admite também que choques e traumas emocionais podem por si sós, ser responsáveis pela sua formação.

       Neste trabalho Jung define complexo:

"a imagem de situações psíquicas fortemente carregadas de emoção e incompatíveis com a atitude e a atmosfera consciente habituais. Esta imagem é dotada de forte coesão interna, de uma espécie de totalidade própria e de um grau relativamente elevado de autonomia". 

(Entenda-se aqui imagem como "a expressão concentrada da situação psíquica global"). A maior parte dos conteúdos do inconsciente pessoal é constituída por complexos deste tipo. Entretanto Jung admite também a presença de complexos de outra natureza: complexos que seriam "manifestações vitais" da psique, feixes de forças contendo potencialidades evolutivas que, todavia, ainda não alcançaram o limiar da consciência e, irrealizadas, exercem pressão para vir à tona.

       Posteriormente, considerando que os complexos não são variáveis ao infinito, Jung introduziu novos desenvolvimentos na sua teoria. Com efeito, os complexos poderão ser agrupados em categorias definidas (complexo mãe, complexo pai, complexo de poder, complexo de inferioridade, etc.). "A constatação de que existem tipos bem caracterizados e facilmente reconhecíveis de complexos sugere que estes repousem sobre bases igualmente típicas". Tais bases seriam os arquétipos, isto é, os alicerces da vida psíquica comuns a todos os humanos.

Visto nesta perspectiva, por traz de suas características exclusivamente pessoais, o complexo mostraria conexões com os arquétipos, ou seja, haveria sempre uma ligação entre as vivências individuais e as grandes experiências de humanidade. Por exemplo sob a trama do complexo mãe, com suas múltiplas implicações individuais, vislumbra-se o arquétipo mãe.

Desse arquétipo, depositário das mais primordiais experiências do homem, emana o poder fascinante e o mistério que tantas vezes envolve o complexo mãe individual e que tanto dificulta sua assimilação.

       Não se surpreenda o leitor de encontrar através da obra de Jung definições de complexo que não se superponham exatamente. 0 mesmo ocorrerá a outros conceitos seus. Jung nunca pretendeu construir de uma vez por todas um sistema cientifico. Sua obra é um organismo que cresceu e transformou-se enquanto foi vivo seu autor. Fique o leitor alertado desde já e disponha-se a muitas caminhadas em circunvoluções, nessa busca apaixonante de penetração na complexidade da psique que é característica da psicologia de C. G. Jung.

Psicologia complexa.

       A psicologia jungueana é, as vezes, designada pelo nome de Psicologia Complexa. Não se pense que haja aí alusão aos complexos, que tal denominação possa significar que se trate de uma psicologia dos complexos.

Essa expressão pretende indicar orientação psicológica que se ocupa dos fenômenos psíquicos vistos na sua complexidade, ao contrário de outras correntes que visam reduzir o mais possível os fenômenos complexos a seus elementos. A denominação, proposta pela colaboradora de Jung, Toni Wolf, não se difundiu. Somente na Alemanha é ainda usada. Em toda parte a psicologia de C. G. Jung é conhecida como Psicologia Analítica, distinguindo-se assim da Psicanálise de Freud.

Referências Bibliográficas
C.G. Jung - o HOMEM A DESCOBERTA DA SUA ALMA - A segunda parte do livro é dedicada ao estudo dos complexos. Leitura muito acessível.
C. G. Jung - THE PSYCHOGENESIS OF MENTAL DISEASE, Collected Works 3, onde o leitor particularmente interessado em psiquiatria encontrará as obras The Psychology of Dementia Praecox (1907) e The Content of the Psychoses (1908), que constituem pedras angulares da psiquiatria interpretativa. No mesmo volume há outros trabalhos psiquiátricos mais modernos, inclusive um retrospecto e síntese sobre a esquizofrenia (1957). Leitura para especialistas.
C. G. Jung - Psychological Aspects of the Mother Archetype - Collected Works 9, part. I, e The Significance op the Father in the Destiny of the Individual, col. works 4. Leituras para quem deseje aprofundar o estudo das conexões entre complexo e arquétipo.
J. Jacobi - Complex Archetype Symbol - Livro que estuda com clareza esses três elementos fundamentais da psicologia jungueana. Existe também tradução francesa deste livro.
Fonte:
CooJornal-RevistaRioTotal

http://www.riototal.com.br/coojornal/guardiao-jung002.htm


Sejam felizes todos os seres Vivam em paz todos os seres
Sejam abençoados todos os seres

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