Repensando o trágico
Resumo:
O presente trabalho pretende discutir o que vem a ser o trágico, partindo-se de dois elementos da tragédia clássica: o coro e o herói trágico. Ter-se-á como base algumas reflexões instauradas por Nietzsche, presentes em alguns fragmentos publicados postumamente e desenvolvidas principalmente em O Nascimento da Tragédia.
Entendendo a tragédia como a tensão entre Apolo e Dioniso, buscar-se-á pensar o que é e como se dá o apolíneo e o dionisíaco na tragédia clássica, tendo como referência dois elementos imprescindíveis desta: o coro e o herói.
Repensando o trágico
pelo pulsar da veia nietzscheana
Em um dos fragmentos escritos de Nietzsche publicados postumamente, podemos encontrar a seguinte afirmação:
O homem trágico como o homem nomeado para ser professor dos homens.
A formação e a educação não devem tomar como norma o talento mediano para o éthos e o intelecto, mas justamente essas naturezas trágicas.[1]
Em primeiro lugar, cabe notar que a palavra “professor” vem destacada, o que nos faz questionar o sentido corriqueiro do vocábulo. Seria professor aquele que ensina? Digamos que sim. Então, o que caberia a esse “professor dos homens” ensinar? Sendo este o homem trágico por excelência, como podemos interpretar a noção do trágico aí vigente? Vale ressaltar ainda que o homem trágico é nomeado para ser professor dos homens, o que nos remete indiscutivelmente a questão do próprio humano.
Mal começamos e já fomos tomados por diversas perguntas e, se não nos limitamos, é muito provável que não paremos por aí...
Proponho, portanto, que busquemos entender: primeiro, o que Nietzsche está entendendo como o trágico para caracterizar o homem como tal; segundo: o que implica ser professor dos homens; terceiro: por que é o homem trágico quem deve ser nomeado para assumir este lugar. É claro que este entendimento se refere a uma proposta mais geral do trabalho, já que para se alcançá-lo, será necessário galgar vários degraus. Comecemos pela noção do trágico.
Não há como se pensar
o que vem a ser o trágico do nada.
Não há dúvida de que as tragédias, como o nome já indica, manifestam mais diretamente o trágico. Portanto, a opção por se partir de dois elementos imprescindíveis da tragédia clássica: o coro e o herói trágico para se buscar apreender e discutir a noção de trágico. Aventuremo-nos, pois, pelo pulsar da veia nietzscheana.
Nietzsche reconhece na natureza dois impulsos artísticos: o dionisíaco e o apolíneo. A partir daí, ele pensa as obras de arte como “imitação” em maior ou menor grau desses impulsos. Partamos, pois, do próprio filósofo para adentrar a veia trágica:
Examinamos o apolíneo e (...) o dionisíaco, como poderes artísticos que, sem a mediação do artista humano, irrompem da própria natureza (...) Em face desses estados artísticos imediatos da natureza, todo artista é um “imitador”, e isso quer como artista onírico apolíneo, quer como artista extático dionisíaco, ou enfim –como por exemplo na tragédia grega -enquanto artista ao mesmo tempo onírico e extático.[2]
É interessante notar que Nietzsche ressalta o âmbito da criação, do artístico, que se inaugura na própria natureza. Em O Nascimento da Tragédia, as diversas manifestações artísticas serão pensadas sempre a partir das noções do dionisíaco e do apolíneo. Foquemos, pois, a tragédia e, conseqüentemente, o trágico, que é o tema do presente estudo.
Retomando o fragmento transcrito, Nietzsche diz que “na tragédia grega”, o artista é “ao mesmo tempo onírico e extático”, o que também quer dizer apolíneo e dionisíaco, respectivamente. O apolíneo é tomado como onírico por seu poder de configurar imagens, ao passo que o dionisíaco é extático por seu poder de embriagar o indivíduo no auto-esquecimento e devolvê-lo ao cerne da natureza. Investiguemos com mais calma essas noções.
Se, ao início da leitura de O Nascimento da Tragédia, pode parecer que Apolo e Dioniso constituem forças antagônicas, no decorrer da leitura vai se compreendendo a vital relação entre ambos.
Fazendo-se valer dos deuses da mitologia grega,
Nietzsche recria, já que vai desdobrando
e criando novos conceitos.
À noção de dionisíaco ele introduz e atrela nomes como “o verdadeiramente-existente e Uno- primordial”, “o gênio da natureza”, “o eterno padecente e pleno de contradição”, “o pai de todas as coisas”. De acordo com essas nomenclaturas, percebe-se que Dioniso é percebido como a força de origem do próprio mundo, como o fundo que clama por emergir. É o lugar do êxtase, da embriaguez, do que não tem limite. É a afirmação total da vida.
Poder-se-ia dizer, de acordo com nosso filósofo, que o lugar privilegiado do dionisíaco é a música. Nietzsche diz que “o caráter da música dionisíaca e, portanto, da música em geral” é “a comovedora violência do som, a torrente unitária da melodia e o mundo absolutamente incomparável da harmonia” [3].
Sinfonia N*40 de Mozart, por Smalin
A música, como dinâmica
não formal que é,não se prende,
por isso mesmo, ao limite (intrínseco à forma).
Sinfonia N*40 de Mozart, por Smalin
A música é encarada como uma espécie de expressão do mundo, uma linguagem universal no mais alto grau. Na agressão da “torrente unitária” musical vigora o dionisíaco. O “Uno-primordial”, “o gênio da natureza” faz sentir sua potência pela veia musical.
Transpondo para a tragédia, temos no coro o lugar privilegiado do dionisíaco. Originado no ditirambo (canto cultual inicialmente dedicado apenas a Dioniso), o coro trágico reinaugura a música extática. No frêmito coral, não importam os indivíduos, mas sim a massa dionisíaca que se faz una: a sabedoria de Dioniso. É a torrente vital em toda sua abundância. Seguem-se palavras do próprio Nietzsche:
Esse coro contempla em sua visão o seu senhor e mestre Dionísio e é por isso eternamente o coro servente (...) Nessa posição de absoluto servimento em face do deus, o coro é pois, literalmente, a mais alta expressão da natureza e profere, como esta, em seu entusiasmo, sentenças de oráculo e de sabedoria; como compadecente ele é ao mesmo tempo o sábio que, do coração do mundo, enuncia a verdade. [4]
Como origem da tragédia,
o coro dionisíaco se faz fundamento.
Sendo, entretanto, o dionisíaco o fundo inesgotável do mundo, ele só se realiza plenamente ao lançar-se no devir apolineamente, ou seja, em configurações aparentes. Dioniso precisa de Apolo até mesmo para não se afundar definitivamente no ilimitado e ser pura destruição. É na configuração apolínea que se dá a realização e a delimitação formal do dionisíaco.
Faz-se mister destacar outras nomeações usadas por Nietzsche também para designar o apolíneo, como por exemplo, “a reverberação da eterna dor primordial”, “o reflexo do eterno contraditório” e “o princípio de individuação”. Adentremos essas três designações.
Primeiro, “a reverberação da eterna dor primordial”. Mas o que seria essa “eterna dor primordial”? Voltemos ao mito: filho de Zeus e Perséfone, Dioniso foi esquartejado e devorado pelos Titãs. Seu coração, entretanto, foi salvo por Atena, que o levou a Zeus. O deus engoliu o coração do filho, dando origem ao novo Dioniso Zagreu.
Residiria, então, no dilaceramento de Dioniso a sua dor primordial: ser desfeito em pedaços. Dioniso, desfeito em pedaços, é destruição, mas também é multiplicação de singularidades. Daí também se entender o dionisíaco como “o eterno contraditório”, em um movimento ininterrupto de destruir e construir. O apolíneo, como reverberação dessa “eterna dor primordial” e “reflexo do eterno contraditório”, reflete o despedaçamento de Dioniso em diferentes imagens.
É no aparente que vige o limite, a medida. Apolo é, pois, o deus da bela aparência, do comedido, regido pelo “princípio de individuação”, sendo este o que dá forma e limite ao impulso dionisíaco. Se o dionisíaco é o fundo disforme universal; o apolíneo individualiza, faz singular. Do fundo dionisíaco, emergem as configurações apolíneas; do coro trágico, brotam as cenas da tragédia.
Por isso mesmo é que Nietzsche interpreta “a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo” [5].
Deste mundo de imagens apolíneo,
aproximemo-nos de uma figura fundamental
na tragédia grega: o herói trágico.
Pode-se dizer que o herói encarna a força apolínea por excelência, pois ele assimila o princípio de individuação em alto grau. Ele não só aparece singularmente na tragédia clássica, mas leva sua individualidade às últimas conseqüências, tanto que o nome do indivíduo heróico sempre prevalece. Podemos dizer, portanto, que “o herói vence ao perecer” [6]. É o auge da força apolínea.
Entretanto, se, como visto anteriormente, a configuração apolínea provém do fundo dionisíaco, o auge da força apolínea também é o auge da força dionisíaca. Nietzsche vai interpretar o herói, a configuração apolínea por excelência, como uma máscara, portanto, uma aparência, de Dioniso. Ele diz:
o único Dionísio verdadeiramente real aparece numa pluralidade de configurações, na máscara de um herói lutador e como que enredado nas malhas da vontade individual (...) e o fato de ele aparecer com tanta precisão e nitidez épicas é efeito do Apolo oniromante que interpreta para o coro o seu estado dionisíaco, através daquela aparência similiforme. Na verdade, porém, aquele herói é o Dionísio sofredor, dos Mistérios, aquele deus que experimenta em si os padecimentos da individuação... [7]
Assim como no herói fulgura a força dionisíaca pelo apolíneo, poder-se-ia dizer que no coro trágico o apolíneo se redime no dionisíaco. Ambos os impulsos estão presentes em todos os elementos da tragédia, o que há é uma proeminência ora de um ora de outro. Sendo, entretanto, o dionisíaco, o “pai de todas as coisas”, podemos dizer que ele predomina no efeito geral da tragédia. Afinal,
a forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou o fato de alcançar a vitória na derrota. A cada vez, o indivíduo é derrotado: e, apesar disso, percebemos seu aniquilamento como uma vitória. Para o herói trágico, é necessário sucumbir por aquilo que ele deve vencer. Nesse grave confronto, intuímos algo da já aludida estima suprema da individuação: aquela de que um originário precisa para alcançar seu último objetivo de prazer. De modo que o perecer se revela tão digno e respeitável quanto o nascer, e de modo que o nascimento deve cumprir, ao perecer, a missão que lhe é imposta como indivíduo.[8]
Na tragédia, é atribuída uma grande importância à aparição apolínea, como, por exemplo, a que se configura no herói trágico, mas esse aparecer termina sendo aniquilado pelo fundo dionisíaco, com prazer inclusive, e adquirindo novas fulgurações. O desaparecimento da vida individual em nada afeta a potência da eterna força vital dionisíaca. O prazer na tragédia só se justifica pela ótica do coro, que reintegra o homem ao Uno-primordial.
Cabe retomar e reforçar a visão de Nietzsche do mundo, que abarca simultaneamente o vigor do dionisíaco e do apolíneo.
O processo artístico original de vida
é justamente o tônico
que faz emergir e imergir.
Sendo a tragédia a tensão oriunda da conjunção Apolo-Dioniso, é a arte que inaugura o estado artístico propriamente vital: o trágico. O trágico é, portanto, o ser da própria realidade e implica a plena adesão à vida.
Nietzsche diz que:
a difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na tragédia poderia realmente ser simbolizada através de uma aliança fraterna entre as duas divindades: Dionísio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte em geral.[9]
Mas o que seria a meta suprema da tragédia e da arte em geral? Volto ao início do trabalho para responder esta pergunta: “o homem trágico como o homem nomeado para ser professor dos homens. A formação e a educação não devem tomar como norma o talento mediano para o ethos e o intelecto, mas justamente essas naturezas trágicas”.
A formação do humano se fundamenta essencialmente no trágico. Eis o que deve ser “ensinado”, ou melhor, vivido pelo professor. “Ser homem trágico” implica assumir e corresponder à natureza trágica. Eis a meta suprema da arte: resgatar o homem trágico, o que permite a conciliação entre Apolo e Dioniso, o que diz sim a tudo o que é vida.
Fonte:
Revista Garrafa 7- 2005
http://www.ciencialit.letras.ufrj.br/garrafa7/3.html
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