sábado, 21 de maio de 2011

RACIONALISMO, ARTE CLÁSSICA E RAZÃO TRÁGICA EM NIETZSCHE



 Nietzsche

Vitor Henriques 
– Mestre em Teoria Literária
 
Já é por demais reconhecida 
a imagem de um Nietzsche crítico e irônico 
em relação às tentativas de se conhecer
o mundo racional e cientificamente. 

Nosso trabalho se justifica pela revisão de tal imagem. Existe um Nietzsche bem menos visitado pela crítica, um Nietzsche visivelmente mais frio em relação aos arroubos estético-dionisíacos de parte da sua obra; é este Nietzsche que nos interessa aqui. 

Em o “Nascimento da Tragédia”, Sócrates aparece como o representante do espírito teórico-científico, espírito este que, visto de forma negativa por Nietzsche, enfraquece o mundo. No entanto, Rüdiger Safranski, autor de uma bela biografia intelectual do filósofo, aponta para uma espantosa frase encontrada nas anotações de Nietzsche, esta dizia que

Sócrates“aniquilou a ciência”.  
[1] 
Na verdade, 
o problema não é a ciência, 
é Sócrates. 

Tal anotação nos impele para uma reverificação do que Nietzsche entende por ciência, já que o filósofo costuma ser concebido pela crítica, baseada fundamentalmente em o “Nascimento da Tragédia”, como alguém que fala mais em nome da arte do que, ou em detrimento, da ciência. Safranski diz, comentando a crítica de Nietzsche a Sócrates, que “Sócrates é criticável não porque queria saber, mas porque não queria saber de modo suficientemente radical e ‘frio'” [2].

Quer dizer, segundo Nietzsche, um mundo terrível se abriria para aquele que realmente quisesse conhecê-lo, e uma postura forte e bela seria aquela a qual suportaria as vicissitudes, incertezas e angústias desse mundo sem o refúgio de uma religião, de uma metafísica ou de uma arte como remédio.

A idéia de Nietzsche é: 
que o conhecimento possa se estabelecer e triunfar,
ainda que desvende o mais terrível 
e indizível dos mundos; 
“o cognoscente declara orgulhoso: 
vou suportar meu conhecimento 
ainda que ele quase me mate.” 
('me enlouqueça', eu)
[3] 
Aqui salta um Nietzsche não dionisíaco, não esteta, mas um Nietzsche mais contido, analista e iluminista. 

Em “Humano, Demasiado Humano”, certamente o livro em que coloca, positivamente, a razão e a ciência como temas de primeira ordem, Nietzsche chega a falar em “levar adiante a bandeira do iluminismo”. Num aforismo chamado “A hostilidade alemã ao Iluminismo”, Nietzsche diz que, em detrimento da razão, filósofos, historiadores e cientistas alemãs instauraram o culto ao sentimento. Na filosofia, através da especulação metafísica no lugar da explicação, estabelecendo uma época pré-científica; na historiografia, através do romantismo, com a volta de temas medievais e dos sentimentos ascéticos; na ciência, através de uma natureza divinizada e simbólica, e não mais natural. Isso tudo, segundo Nietzsche, contra os ideais da razão iluminista, que teríamos então de levar adiante. [4]

Nietzsche segue, sim, uma tradição racionalista que vem desde a Grécia Antiga e que foi recuperada pelo Renascimento italiano (época histórica que Nietzsche sempre louvara) e pelo Iluminismo. Estes últimos momentos da história surgem sempre em oposição a um passado medieval supersticioso:
 
A Europa freqüentou a escola do pensar coerente e crítico, enquanto a Ásia ainda não sabe distinguir entre poesia e realidade e não está consciente de onde vêm suas convicções, se dá sua própria observação e pensamento correto ou de fantasias. – A razão na escola fez da Europa a Europa: na Idade Média ela estava a caminho de se tornar novamente um pedaço e apêndice da Ásia – isto é, de perder o senso científico que devia aos gregos. [5]
 
O que ressaltamos na citação acima é a crítica que Nietzsche promove aos asiáticos, já que os mesmos, segundo ele, ainda não sabiam diferenciar o que é realidade e o que é fantasia e poesia. Percebe-se aqui um Nietzsche em defesa da razão, mas de uma razão enquanto conquista histórica. No mesmo aforismo, o filósofo ainda diz o que é humanamente essencial e distintivo, citando Goethe: “Razão e Ciência, suprema força do homem”. 

Antes de prosseguirmos, convém ressaltar uma forte mudança de Nietzsche em relação à arte. Se em “O Nascimento da Tragédia” (1872), Nietzsche concebe a arte como uma potência reveladora e cognoscente do mundo, a partir de “Humano, Demasiado Humano” (1878) e “Aurora” (1880) há uma guinada em sua filosofia; o que antes cabia à arte é ocupado agora pela razão e pela ciência. Estas são valorizadas pela manutenção de uma verdade provisória, pela durabilidade da potência do conhecimento e pela conquista dos métodos. 

A arte,
por sua vez, 
é vista agora como portadora 
dos excessos da alma, 
pela ignorância do que é orgânico 
e pela superficialidade dos métodos. 

Há, nesse sentido, uma passagem exemplar:
 
É marca de uma cultura superior estimar as pequenas verdades despretensiosas achadas com método rigoroso, mais do que os erros que nos ofuscam e alegram, oriundos de tempos e homens metafísicos e artísticos. No inicio as primeiras são vistas com escárnio, com se não pudesse haver comparação: umas tão modestas, simples, sóbrias, aparentemente desanimadoras, os outros tão belos, esplêndidos, encantadores, talvez extasiantes. Mas o que foi arduamente conquistado, o certo, duradouro e por isso relevante para todo o conhecimento posterior, é afinal superior; apegar-se a ele é viril e demonstra coragem, simplicidade, moderação.

Aos poucos, não apenas o individuo, 
mas toda a humanidade se alçará a esta virilidade, 
quando enfim se habituar a uma maior estima 
dos conhecimentos sólidos e duráveis,
e perder toda crença na inspiração
e na comunicação milagrosa de verdades.
 
No entanto, Nietzsche sabe que uma essência do mundo a ser descoberta pela ciência ou pela razão não existe, que a essência do mundo é, sim, um ponto vazio, mas o que lhe interessa não é a existência de uma substância a ser desvelada, mas a crença depositada no desvelamento; é esta crença que tornou o mundo possível, habitável e minimamente inteligível. 

A aposta na existência de uma realidade passível de se conhecer é o postulado lógico de todo o conhecimento humano, que Nietzsche, por sua vez, está longe de desprezar; Nietzsche fala então da necessidade dessa ilusão. Assim sendo, ele entende, por exemplo, a própria convicção da linguagem como um instrumento capaz de apreender as coisas no mundo como uma crença necessária, pois é ela que deu sustentação para o desenvolvimento da ciência e da razão, por isso, “quem nos desvendasse a essência do mundo, nos causaria a todos a mais incômoda desilusão”. [7]
 
A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que se considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. Na medida em que por muito tempo acreditou nos conceitos e nomes das coisas com em aeternae veritates [verdades eternas], o homem adquiriu esse orgulho com que se ergueu acima do animal: pensou ter realmente na linguagem o conhecimento do mundo.

O criador da linguagem não foi modesto a ponto de crer que dava às coisas apenas denominações, ele imaginou, isto sim, exprimir com as palavras o supremo saber sobre as coisas; de fato, a linguagem é a primeira etapa no esforço da ciência. 
Da crença na verdade encontrada
fluíram, aqui também, 
as mais poderosas fontes de energia.

Muito depois – somente agora – os homens começam a ver que, em sua crença na linguagem, propagaram um erro monstruoso. Felizmente é tarde demais para que isso faça recuar o desenvolvimento da razão, que repousa nessa crença. [8]
 
“Felizmente é tarde demais” quer dizer: viver da crença na linguagem é positivo e necessário. O filósofo sempre foi entendido, justamente pela idéia da ilusão da representação do mundo através da linguagem, como alguém que pretendia assim aniquilar com os discursos que tinham a realidade como matéria. Como podemos ver acima, é justamente essa ilusão que Nietzsche destaca, reconhecendo sua importância para o conhecimento humano em geral.

O assenhorear-se do mundo 
é uma tentativa fundamental para que o mesmo 
passe a fazer sentido ao homem.

Uma das grandes contribuições de Nietzsche, a nosso ver, é esse versar sobre a necessidade da ilusão para que a vida seja vivida e conhecida racionalmente. 

Para entendermos o papel que a razão ocupa na concepção de arte em Nietzsche, nos parece interessante fazer uma referência do papel ocupado pela mesma na teoria poética de Fernando Pessoa. Podemos, com segurança, dizer que a máxima da teoria da arte de Pessoa consiste na idéia de que aquilo que o faz sentir, poeticamente, não é a sensibilidade à flor da pele, mas uma razão que fabrica uma sensibilidade à flor da pele. 

O sentir é pensado 
e não necessariamente 
e diretamente sentido. 

Não por acaso, Pessoa se considera um herdeiro do artista clássico que, segundo ele, sentia pelo pensamento e não pela emoção; o temperamento do poeta é dissolvido pela inteligência: o poeta raciocina na arte e tem a arte de raciocinar. 
Pessoa sempre teceu críticas 
aos princípios românticos da subjetividade 
e dos sentimentalismos na poesia, 
pois estes dão fundamento à concepção 
de que o grande poeta é aquele que manifesta 
com maestria o seu fórum íntimo.

É contra esse personalismo que Pessoa fala em “intelectualização da sensibilidade”; seu intuito teórico e artístico é, segundo ele mesmo, inverter o princípio romântico da inteligência subordinada à emoção. Para Pessoa, a poesia, enquanto arte, deve ser racional, impessoal, objetiva e reflexiva, que para ele eram princípios “clássicos”. 

Esses elementos clássicos que alimentam a poética pessoa são os mesmos que animam alguns momentos da filosofia nietzschiana. Desta forma, o filósofo valoriza a contenção e a limitação clássicas, como, por exemplo, a disciplina, na forma artística, de alguns dramaturgos franceses frente à inquietude do romantismo alemão. 

Segundo Nietzsche, a irregularidade da forma na arte romântica/moderna nos deu “vantagens bárbaras”, como a poesia de todos os estilos e de todos os povos, porém, a mesma rejeitou a noção de medida, regularidade, simplicidade, ponderação e proporção clássicas. [9] Nós, Modernos, perdemos, assim, o “bom gosto”, perdemos “o que há de aristocrático nas obras e nos homens, o seu instante de mar calmo e de auto-suficiência alciônica, a condição dourada e fria que mostram todas as coisas perfeitas”. [10]

Nietzsche, assim como Pessoa,
visivelmente toma partido na velha querela teórica 
entre Clássico e Romântico, entre Antigo e Moderno. 

Criticando o sentimentalismo exagerado de seu tempo, Nietzsche fala da necessidade de uma sobriedade do sentimento: “reflexão severa, concisão, frieza, simplicidade deliberadamente levada ao extremo; em suma, restrição do sentimento e laconismo – só isso pode ajudar”. [11]

Ao pensar em arte, Nietsche, portanto, pensa em ponderação, equilíbrio, limite, objetividade, proporção, todos esses, atributos artísticos considerados clássicos. O filósofo parece encampar a noção clássica de que só a boa forma na arte é capaz de falar à razão. Nietzsche não só ressalta, no processo criativo, o pensamento diante da emoção, como valoriza a noção de trabalho frente à inspiração:

“[...] a improvisação artística 
se encontra muito abaixo do pensamento artístico 
selecionado com seriedade e empenho. 
Todos os grandes [artistas] foram grandes trabalhadores,
incansáveis não apenas no inventar,
mas também no rejeitar, eleger, 
remodelar e ordenar.” 

Desta forma, a boa arte está ligada mais à razão do que à emoção, a beleza da segunda dependeria da atuação da primeira; a arte, portanto, é mais trabalho racional do que extravasamento emotivo. Baseado nessas noções, 

Nietzsche “confirma” 
o “classicismo” de Fernando Pessoa 
e Fernando Pessoa “confirma”
o “classicismo” de Nietzsche. 

Todavia, é importante frisar que Nietzsche nunca perdeu a dimensão trágica do mundo, desta forma, ao conceber a relevância da razão, o filósofo, levando agora em consideração toda a sua obra, está longe de chapar a questão. O que ele disse uma vez sobre o que seria a nobreza de um homem, pode, sim, ser aplicado para entendermos o papel que a razão exerce neste mesmo homem. 

Para o filósofo, 
o sutil e mais delicado ato de nobreza 
é quando um espírito tem a capacidade 
de reconhecer a necessidade do não nobre,

como, por exemplo, o reconhecimento de que muitos juízos, ainda que errôneos e morais, são necessários para a manutenção da existência, da mesma forma, como apontamos anteriormente, como Nietzsche reconheceu a necessidade da ilusão para a descoberta do mundo e viabilidade da própria vida. É inserido nessa lógica que um delicado e sutil ato de um homem que preza a razão se dá segundo sua capacidade de reconhecer a necessidade também da não razão. À pergunta “o que confere nobreza?”, uma das respostas de Nietzsche é:
“[...] não será obedecer às paixões: 
há paixões desprezíveis.” 
Logo em seguida diz ele que 

“[...] a paixão que se apodera do ser nobre
é coisa que ele não se dá conta [...].”
[13] 

Há, portanto, uma razão que ao mesmo tempo molda e entende a vida e desaparece perante o assalto das paixões sem se dar conta disso; é nesse sentido que entendemos a razão em Nietzsche como uma razão trágica, já que se impõe e se esvai, como se ela afirmasse e fosse negada ao mesmo tempo. Trágica, porque essa dubiedade é tão fatal como a dor é para a vida. 

A obstrução da dor
é a obstrução da própria alegria, 
já que para Nietzsche quanto mais feliz é um homem,
mas infeliz ele pode ser, pois mais suscetível 
às afetações do mundo. 

Para o filósofo, quanto maior o desprazer, maior foi o prazer. Assim sendo, da mesma maneira que alegria e dor são um e o mesmo, razão e desrazão se entrelaçam num mundo tragicamente concebido.


Bibliografia
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora . Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
_________. A Gaia Ciência. Trad. Jean Melville. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.
_________. Humano, Demasiado Humano . Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
_________. Para Além do Bem e do Mal . Trad. Alex Marins. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.
PESSOA, Fernando. Obras em Prosa . Rio de Janeiro, José Aguilar Editora, 1974.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche: Biografia de uma tragédia . Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2001.
Fonte:
Revista Garrafa



Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.

Sejam abençoados todos os seres.

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