segunda-feira, 16 de maio de 2011

O SONHO - C.G.JUNG - Nise da Silveira



Guardiões do saber

C.G. Jung
O SONHO

Nise da Silveira
 


       «0 sonho é 
uma auto representação espontânea,
sob forma simbólica, 
da situação do inconsciente».



       «0 sonho é aquilo que ele é, inteiramente e unicamente aquilo que é; não é uma fachada, não é algo pré-arranjado, um disfarce qualquer, mas uma construção completamente realizada»



       «0 sonho é coisa viva. Não é de modo algum coisa morta que soe como papel seco machucado. É uma situação existente, é como um animal com antenas ou com numerosos cordões umbilicais». 


Eis algumas definições que Jung dá do sonho.


       Sendo o inconsciente manifestação autentica da natureza, o sonho, formação nativa do inconsciente, tem todas as caracterrísticas de um produto genuinamente natural. Exprime as coisas tal como elas são, na linguagem arcaica das imagens e dos símbolos. Não disfarça coisa alguma. 

«A natureza nunca é diplomática».


       Para Freud «o sonho é a realização (disfarçada) de um desejo reprimido». Jung não aceita o disfarce nem admite que todos os sonhos traduzam sempre desejos. Haverá decerto sonhos que revelem desejos secretos, mas a escala de coisas que os sonhos poderão exprimir é infinitamente mais ampla que a mera realização de aspirações não aceitas pelos códigos morais.

«Os sonhos podem ser feitos de verdades inelutáveis, de sentenças filosóficas, de ilusões, de fantasias desordenadas, de recordações, projetos, antecipações, seja mesmo de visões telepáticas, de experiências íntimas irracionais, e de não sei mais o que ainda».


       Segundo Jung, uma pessoa não aparece no sonho em lugar de outra, como um disfarce de outra. Os personagens que surgem no sonho, as situações representadas, referem-se de fato à realidade objetiva. Isso acontece geralmente quando as pessoas com as quais se sonha são conhecidos íntimos ou desempenham papel atual na vido do sonhador. 

Mas se os figurantes do sonho são desconhecidos, ou mesmo quando conhecidos se não mantém estreitas relações, no presente, com o sonhador, então adquirem significação peculiar: representam fatores autônomos da própria psique do sonhador. Assim, por exemplo, o princípio feminino existente no homem personificar-se-á, no sonho, na imagem de uma mulher jamais vista na vida real; e a sombra do sonhador tomará por empréstimo a face de um conhecido que possua as qualidades negativas que ele não quer reconhecer em si próprio. 

Na maioria dos casos «todas as figuras do sonho são aspectos personificados da personalidade do sonhador». E não só os personagens propriamente ditos: «o sonho é o teatro onde o sonhador é ao mesmo tempo o ator, a cena, o ponto, o regente, o autor, o público e o critico». Ocorre o que disse Schakespeare:



«no sonho cada um é o seu próprio Shakespeare».


       Na prática analítica fala-se de interpretação no nível objetivo, quando o sonho se reporta a situações reais e de interpretação no nível subjetivo, desde que as imagens oníricas representem fatores psíquicos do sonhador.

       A psicologia jungueana aborda o sonho de dois pontos de vista: do ponto de vista de sua causalidade e de sua finalidade. A bordagem causal parte dos elementos do sonho e, através da cadeia de associações que estes despertem vai, de elo em elo, até chegar a um complexo reprimido no inconsciente. É uma técnica redutiva que visa atingir o ponto X, raiz única de onde brotariam todos os elementos do sonho. 

Sem negar a importância de seguir o fio do determinismo causal do sonho, Jung diz que para descobrir os complexos mais carregados de energia, atuantes no inconsciente, não é necessário ter como ponto de partida os elementos do sonho. Uma figura qualquer de anúncio de jornal ou mesmo uma forma abstrata conduzirão inevitavelmente o sonhadora seus complexos. 0 sonho, prodigiosa trama onde se entrelaçam tão numerosos conteúdos psíquicos poderá dar muito mais que isso. Jung não pergunta apenas: por que este sonho? 

Pergunta principalmente: para que este sonho, qual a sua finalidade? Se uma técnica redutiva satisfará à primeira pergunta, a segunda exigirá outro método. Será necessário explorar os conteúdos oníricos em todas as direções possíveis, amplificando-os e enriquecendo-os, será necessário procurar descobrir as conexões que existam entre uns e outros, até que se configure o sentido do sonho, isto é, a expressão das forças do inconsciente no exercício de suas funções autoreguladoras (método das ampliações). Falar em finalidade do sonho provocará talvez estranheza pois o espírito científico contemporâneo é fundamentalmente causalista. 

Entretanto são de um biologista moderno as seguintes palavras: «A prevenção anti-finalista ainda reinante no espírito dos sábios contemporâneos resulta da sobrevivência do longo domínio da física macroscópica». (...)

«É análoga ao erro cometido outrora pelos físicos quando concebiam o átomo sob o modelo de um sistema planetário com trajetórias reguladas pelo jogo de equilíbrios estabelecidos passo a passo» (R. Ruyer).

       Atualmente são numerosos os biologistas que põem em relevo a finalidade das atividades orgânicas sempre que elas envolvem. convergência de fatores num trabalho conjunto, tais como os fenômenos de regulação vital. 0 sonho poderá ser classificado entre as atividades deste tipo.

A produção onírica desempenha funções importantes, mesmo vitais, na economia psíquica. Neurofisiologistas modernos, na base de experiências, chegaram à conclusão de que não sonhar é mais prejudicial que não dormir (trabalhos de Kleitman e W. Dement).




       Jung foi o primeiro a abrir caminho nesta direção
ao descrever a função compensadora dos sonhos. 

No seu conceito, os sonhos funcionam principalmente como reações de defesa, como autoreguladores de posições conscientes, demasiado unilaterais ou anti-naturais.


       «Do mesmo modo que o corpo reage de maneira adequada a um ferimento, a uma infecção ou a um tipo de vida anormal, assim também as funções psíquicas reagem, por meios de defesa apropriados, a alterações perigosamente perturbadoras. 0 sonho, na minha opinião, faz parte dessas reações oportunas, introduzindo na consciência, graças a uma estruturação simbólica, os materiais constelados no inconsciente pela situação consciente».


       Os sonhos situam-se como expressões importantes da dialética entre consciente e inconsciente que caracteriza a dinâmica da vida psíquica, segundo a concepção de Jung. 

Sempre que a atitude consciente extrema-se, seja no sentido de extroversão ou de introversão sue saia fora dos ritmos peculiares ao tipo psicológico do indivíduo, ou quando uma das funções de orientação do consciente (pensamento, sentimento, sensação, intuição) torna-se demasiado hipertrofiada em detrimento das demais; sempre que o indivíduo super valoriza ou, ao contrário, subestima a si próprio ou a outrem sempre que necessidades específicas a cada um são negligenciadas, surgem sonhos compensadores indicando que a psique funciona como um sistema autoregulador.


       Quando, por exemplo, existem relações de estreita dependência do sonhador com sua mãe ou seu pai e tão grande super valorização dessas figuras que o desenvolvimento de sua personalidade fica entravado, é freqüente acontecer que, nos sonhos, mãe ou pai apareçam sob aspecto exageradamente desfavorável a mãe como uma mulher perversa, o pai ébrio, etc. 

0 indivíduo demasiado ambicioso que, pela crispação de sua vontade consciente, pretende galgar posições para as quais não possui qualidades, terá sonhos que o depreciem, o diminuam. Estes últimos são sonhos redutores, modalidade dos sonhos de compensação. 

Vê-se, portanto, que um sonho não poderá ser corretamente interpretado sem que seja conhecida a situação consciente. Não há leis estabelecidas da compensação onírica porque o jogo dos mecanismos compensatórios é inesgotável e varia conforme cada caso.

       Além da função compensadora, outra função importante do sonho é a função prospectiva. Desde logo fique claro que esta função não assegura ao sonho atributos de profecias infalíveis. Jung adverte: «seria injustificado qualificá-los de proféticos (aos sonhos prospectivos), pois, no fundo, eles são tão proféticos quanto um prognóstico médico ou meteorológico».



0 que acontece é que longos processos subterrâneos precedem sempre a eclosão das grandes crises. 


0 inconsciente dispõe de dados mais abundantes que o consciente: impressões subliminares, sensações, sentimentos, pensamentos, ainda não apreendidos pelo consciente. E é da conjunção de todos esses elementos que o sonho se estrutura. Assim, não será exagero admitir que o sonho se acha muitas vezes, «do ponto de vista prognóstico, numa situação bem mais favorável que o consciente».

       Os antigos sabiam que poderiam encontrar nos sonhos antecipações do futuro. 0 sonho de Nabucodonosor, interpretado com extraordinária agudeza por Daniel, é um belo exemplo.

       Nabucodonosor, rei da Babilônia, estava em pleno fastígio de sua glória quando viu em sonho uma enorme árvore cuja copa se elevava até o céu: seus amplos ramos, carregados de frutos, abrigavam pássaros e davam sombra aos animais dos campos. Então desceu do csu um santo e disse: abatei a árvore e' cortai seus ramos, sacudi a folhagem e dispersai os frutos: que os animais fujam de sua sombra e os pássaros abandonem seus ramos. 

Mas deixai na terra o cepo onde se prendem as raízes e amarrai-o com cadeias de ferro e de bronze por entre a erva dos campos. Que este cepo seja molhado pelo orvalho do céu e que partilhe da erva da terra com os animais. 

Seu coração de homem lhe será retirado e um coração de animal lhe será dado até que sete tempos passem sobre ele. Doze meses mais tarde Nabucodonosor enlouquecia e era banido de sua cidade. Passou a comer erva com os bois, seu corpo foi molhado pelo orvalho, seus cabelos cresceram como as penas das águias e suas unhas como as garras de aves (Daniel, IV, 16-30).

       No sonho de Nabucodonosor pode-se observar a função compensadora exercendo-se em relação às idéias de grandeza do rei e a função prospectiva revelando que a situação era demasiado grave para ser reequilibrada.
 

Não só as doenças psíquicas, 
mas também as doenças somáticas
refletem-se nos sonhos. 


Scherner cita o caso de um doente com pneumonia que sonhou ver uma fornalha cheia de chamas soprada por forte ventania. 0 processo inflamatório é representado pelo fogo e a respiração pelo vento. Corpo e psique, sendo inextricáveis um do outro, o sonho dirá, na sua linguagem simbólica, quando a vida estiver em perigo.

Jung narra o caso de uma jovem que sonhou com um cavalo que atravessava a galope o apartamento onde ela residia, num quarto andar, e lançava-se pela janela espatifando-se no solo. Este sonho, que se seguia a outros semelhantes, permitiu a Jung confirmar o diagnóstico de uma grave doença neurológica. Pouco tempo depois a jovem morria. A vida animal, corporal, representada pelo cavalo, galopava para a destruição. Também, sem que exista qualquer doença física imagens referentes ao corpo freqüentemente aparecem nos sonhos, traduzindo problemas psíquicos em termos somáticos.


       Outro tipo de sonho é o sonho reativo. Acontecimentos traumáticos são, revividos no sonho, tais como violentos choques de guerra, incêndios, inundações. Essas repetições processam-se de maneira autônoma, sem que a compreensão do fenômeno interrompa sua continuação. 0 estímulo traumático repete-se até desgastar-se.


       Devem ainda ser mencionados os sonhos telepáticos, A existência desses sonhos é inegável, mas as leis que os regem ainda não foram descobertas no presente estado de nossos conhecimentos. Poderão ser colocados entre os fenômenos de sincronicidade, termo pelo qual Jung designa à coincidência significativa ou a equivalência de um estado psíquico e de um estado físico ou um acontecimento que não têm relações causais entre si.


       Vistos noutra perspectiva, os sonhos serão cognominados de grandes e de pequenos sonhos. Os grandes sonhos são aqueles carregados de significações profundas, seja de caráter individual ou coletivo, sonhos que perturbam, infundem medo ou exaltam. 

Os sonhos que dizem respeito 
aos problemas ordinários da vida cotidiana 
são os pequenos sonhos.


       Jung encontrou esta classificação de grandes e pequenos sonhos entre primitivos da África oriental. Eles acreditam que só os chefes e os feiticeiros gozem do privilégio dos grandes sonhos, nos quais recebem inspiração para decidir dos destinos da tribo. Mas, se acontece que um indivíduo qualquer tenha um sonho impressionante, ele deve pedir que a tribo se reuna para narrá-lo diante de todos, Charles Baudelaire, o poeta francês, separa os sonhos de maneira equivalente: 

«Os sonhos do homem são de duas classes. Uns, cheios dos problemas de sua vida ordinária, de suas preocupações, de seus desejos, de seus vícios, combinam-se de modo mais ou menos bizarro com os objetos entrevistos durante o dia e que se fixaram indiscretamente sobre a vasta tela de sua memória. Eis o sonho natural; este sonho é o próprio homem. Mas a outra espécie de sonho! o sonho absurdo, imprevisto, sem relação nem conexão com o caráter, a vida e as paixões do sonhador! este sonho, que eu denominarei hieroglífico, representa evidentemente o lado sobrenatural da vida».

Baudelaire decerto refere-se aos grandes sonhos. Àqueles que são feitos de imagens originadas nas camadas mais profundas da psique, tão distantes do ego consciente que, apesar de serem natureza genuína, transmitem impressão de tanta estranheza que lhes cabe a denominação de sobrenaturais.

       Exemplo de um grande sonho. Poucos antes da segunda guerra mundial, uma estudante alemã de 17 anos, que não aderira ao nacional socialismo, está no cárcere, condenada a morte. Um medo terrível invadiu-a. Na véspera de ser executada, sonha: ela caminha para a morte com uma criança nos braços. Perto do muro de execução está uma outra jovem a cujos braços ela passa a criança. Ao despertar, o medo se havia dissipado completamenle e a estudante morreu com honra. 0 sonho mostrou à jovem que ela participava de um fluir infinito, sem fim nem princípio, de algo muito maior que sua vida individual.
       


A entrada do sonho para o campo da ciência foi um acontecimento decisivo, uma abertura novos caminhos.


Coube a Freud este feito, e, pode dizer-se que todas as ciências do homem foram influenciadas pelo seu livro - A INTERPRETASÃO DOS SONHOS - aparecido em 1900. Dai por diante ficava demonstrado que a vida psíquica do homem não se passa apenas no plano consciente. Subterrâneamente, forças insuspeitadas debatem-se e influem sobre seu comportamento.

E os sonhos são manifestações dessas forças obscuras em ação. Não se trata de produções insignificantes e absurdas. Encerram sentido. É possível decifrar sua linguagem.

       Nas suas pesquisas, Freud encontrou que «a maioria dos símbolos oníricos são símbolos sexuais». Entretanto ele próprio comenta: «Contrariamente às imagens oníricas, que são muito variadas, as interpretações dos símbolos são extraordinariamente monótonas. Este fato decepciona todos que o constatam, mas não está em nossas mãos remediá-lo» (Introdução à Psicanálise Os sonhos, F).

       Na perspectiva jungueana a linguagem do sonho é muito mais complexa e jamais monótona. Seus elementos não se deixam reduzir a uma significação única; são ricos de múltiplos sentidos, de numerosas valências.

       No sonho viaja-se da periferia ao centro da psique. Dos acontecimentos individuais pertencentes ao domínio do inconsciente pessoal, ao reino das imagens arquetípicas, patrimônio comum a todos os homens.

       «O sonho, diz Jung, é uma porta estreita dissimulada nos recantos mais obscuros e mais íntimos da psique, aberta sobre essa noite original cósmica que já era psiquismo muito antes da existência da consciência do eu e o estende muito para além do que a consciência individual jamais terá atingido.



Pois a consciência do eu é dispersa. 


Ela distingue fatos isolados, procedendo por separação, extração e diferenciação e só é percebido aquilo que pode entrar em relação com o eu. 

A consciência do eu, mesmo quando toca de leve as nebulosas mais longínquas é feita de enclaves bem delimitados. A consciência específica. Pelo sonho, ao contrário, penetramos no mais profundo, no mais verdadeiro, mais geral, mais duradouro do ser humano, que mergulha ainda no claro - escuro da noite original, onde formava um todo e onde o todo estava nele, no seio da natureza indiferenciada e impersonificada. É dessas profundezas, onde o universal se unifica, que nasce o sonho mesmo quando reveste as aparências mais pueris, mais grotescas, mais imorais».


       A interpretação de um sonho isolado 
diz quase sempre muito pouco.


Convém estudar os sonhos em séries. Segundo Jung, os sonhos «são provavelmente elos visíveis de uma cadeia de acontecimentos inconscientes. Só urna série de sonhos poderá dar idéia dos processos aí em curso, de avanços, recuos, transformações, integrações. 

Um sonho único será uma palavra, ou talvez uma frase, de um texto desconhecido. Será insuficiente para a decifração do texto inteiro. Belo exemplo de estudo de uma série de sonhos encontra-se no livro de Jung, PSICOLOGIA E ALQUIMIA. São 81 sonhos de um cientista contemporâneo que têm por tema o simbolismo da totalidade psíquica, interpretados em ordem cronológica.


       Os sonhos constituem os melhores índices de informação das etapas que o sonhador esteia percorrendo no caminho da individuação. Assim, estar atento aos sonhos é tarefa da maior seriedade para todo aquele que aspira conhecer-se a si mesmo e fazer desse conhecimento a base para o desenvolvimento de sua personalidade.



       Exemplo de sonho revelador de um momento importante na evolução da personalidade de uma mulher.


       A sonhadora vai andando pela rua, tendo à direita um gato branco e à esquerda um gato preto. Dados alguns passos adiante, precisamente na porta de uma carvoaria, o gato branco transforma-se em linda criança que diz à sonhadora: «Vamos à igreja!» 

A sonhadora emociona-se e pensa consigo mesma: nunca me ocupei da educação religiosa desse gato, ele não estudou catecismo nem fez a primeira comunhão e eis que me pede para ir à igreja. 0 gato preto não sofre nenhuma metamorfose, mas agora a sonhadora carrega-o no braço esquerdo, envolvido numa toalha branca. Logo se acham os três em pequena e escura capela onde não há altares nem imagens. 

Vê-se apenas um cão que dorme estendido no solo. De súbito a criança transforma-se numa jovem de olhos claros luminosos, vestida de branco. Ela se inclina para o cão e acaricia-o. A sonhadora passa o braço direito em torno dos ombros da jovem com um sentimento de intensa ternura e lhe diz: afastemo-nos, porque se o gato preto acorda e vê o cão, vai assustar-se e fugir. A jovem concorda com um movimento de cabeça, sorrindo.

       Neste sonho, o gato preto representa forças instintivas obscuras submersas no inconsciente (lado esquerdo), enquanto a gato branco, pela sua cor e por sua subseqüente metamorfose, representa forças instintivas que tendem a aproximar-se da consciência (lado direito) trazendo-lhe sua significação simbólica. 0 processo prossegue, com a transformação do gato branco em criança, símbolo que exprime as potencialidades de desenvolvimento do self e que se afirma claramente por suas exigências religiosas ("vamos à igreja").

0 fato do símbolo do self assumir forma humana significa, segundo Jung, que pelo menos parcialmente o centro ordenador da vida psíquica está se aproximando da consciência e, ainda mais, dando à sonhadora a ordem de conduzi-lo à igreja, toma papel diretor deixando ao ego o papel executor. 

Convém notar que a transformação do animal em criança ocorre na porta de uma carvoaria, local usado como depósito do produto da queima da madeira, que outra coisa não é senão carbono quase puro. 0 carvão tem, portanto, estreita conexão química com o diamante, que é carbono puro cristalizado e um dos mais universais símbolos do self.

       A sonhadora, isto é, a personalidade consciente, surpreende-se que, "sem ter estudado catecismo", o gato, agora criança, deseje ir à igreja, ou seja que aspirações religiosas manifestem-se como impulso espontâneo. Chegados à capela, a criança metamorfoseia-se numa jovem. Isso indica que o processo psicológico está desenvolvendo-se aceleradamente: o gato branco transformou-se em criança e logo as possibilidades nela encerradas desabotoaram na imagem da jovem desconhecida.

Originando-se de metamorfoses sucessivas, a jovem apresenta-se como um ser mítico, e suas características a aproximam da jovem divina, da Koré mitológica, apta representação da personalidade superior, do self, quando se trata da mulher (seu equivalente no homem é figurado pelo velho sábio).

       A experiência analítica demonstra que a imagem da jovem divina surge freqüentemente no lado da figura da mãe divina, esta última quase sempre sob seu aspecto tenebroso. 

Neste sonho, a origem da jovem divina que encarna o aspecto luminoso do self é, muito coerentemente o gato branco. A contraparte escura, porém, não se apresenta sob forma humana. Acha-se ainda amalgamada na base instintiva apresentando-se sob a imagem do gato preto que não sofre nenhuma metamorfose. Acresce que o gato preto dorme nos braços da sonhadora. Também dorme o cão, animal de Hécate, deusa mãe no seu aspecto noturno e sinistro. 

Isto parece significar que forças instintivas opostas do mundo feminino subterrâneo ainda não atingiram condições de se defrontarem. Vendo o cão, o gato preto poderá mesmo assustar-se e fugir, isto é, escapar autônomo ao controle da personalidade consciente. A jovem divina embora tenha acariciado o cão, contato que o poderia ter despertado, aceita que se afastem, pois não chegou ainda o momento do encontro de opostos extremos, próprio das etapas ulteriores do processo de individuação.

Este processo parece estar desdobrando-se, na sonhadora, em níveis bastante desiguais: terno encontro com a jovem divina de uma parte, e de outra, animais etônicos que dormem profundamente. A última cena, passando-se numa capela, sublinha o caráter religioso dos fenômenos em curso. Entretanto, a capela, embora cristã, aparece sem seus altares e sem suas imagens. 0 lugar é cristão, mas a divindade presente veste a forma pagã da Koré.
 
       Não seria suficiente assinalar neste sonho a presença de elementos pagãos e interpretá-los como sobrevivências de um mundo mais antigo, espécie de achados arqueológicos. 

A análise das produções do inconsciente, pelo método jungueano, trouxe a revelação de que os elementos arcaicos não só permanecem vivos e atuantes, mas que estão envolvidos num contínuo processo de elaboração através do tempo. Assim, não interpretaremos a presença da Koré e dos animais dentro da igreja cristã como meros vestígios do paganismo inscritos nos estratos profundos da psique. 

Vemos nesses símbolos e na maneira como eles se dispõem no cenário do sonho a expressão do esforço instintivo do inconsciente para reaproximar valores que se haviam separado demais. Infelizmente para a sonhadora este esforço acha-se longe de sua meta. Por isso mesmo trata-se de um sonho bastante representativo da situação psíquica da mulher contemporânea ainda em caminho para a completação e integração de sua personalidade.

Próximo capítulo - Contos de fada

Fonte:
CooJornal-Revista RioTotal


http://www.riototal.com.br/coojornal/guardiao-jung010.htm


Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.

Sejam abençoados todos os seres.

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