Guardiões do saber 

C.G. Jung
O SONHO
Nise da Silveira
       «0 sonho é 
 uma auto representação espontânea,
 sob forma simbólica, 
da situação do inconsciente».
       «0 sonho é aquilo que ele é, inteiramente e  unicamente aquilo que é; não é uma fachada, não é algo pré-arranjado, um  disfarce qualquer, mas uma construção completamente realizada»
       «0 sonho é coisa viva. Não é de modo algum  coisa morta que soe como papel seco machucado. É uma situação existente,  é como um animal com antenas ou com numerosos cordões umbilicais». 
Eis  algumas definições que Jung dá do sonho.
       Sendo o inconsciente manifestação autentica da  natureza, o sonho, formação nativa do inconsciente, tem todas as  caracterrísticas de um produto genuinamente natural. Exprime as coisas  tal como elas são, na linguagem arcaica das imagens e dos símbolos. Não  disfarça coisa alguma. 
«A natureza nunca é diplomática».
       Para Freud «o sonho é a realização  (disfarçada) de um desejo reprimido». Jung não aceita o disfarce nem  admite que todos os sonhos traduzam sempre desejos. Haverá decerto  sonhos que revelem desejos secretos, mas a escala de coisas que os  sonhos poderão exprimir é infinitamente mais ampla que a mera realização  de aspirações não aceitas pelos códigos morais.
«Os sonhos podem ser  feitos de verdades inelutáveis, de sentenças filosóficas, de ilusões, de  fantasias desordenadas, de recordações, projetos, antecipações, seja  mesmo de visões telepáticas, de experiências íntimas irracionais, e de  não sei mais o que ainda».
       Segundo Jung, uma pessoa não aparece no sonho  em lugar de outra, como um disfarce de outra. Os personagens que surgem  no sonho, as situações representadas, referem-se de fato à realidade  objetiva. Isso acontece geralmente quando as pessoas com as quais se  sonha são conhecidos íntimos ou  desempenham papel atual na vido do  sonhador. 
Mas se os figurantes do sonho são desconhecidos, ou mesmo  quando conhecidos se não mantém estreitas relações, no presente, com o  sonhador, então adquirem significação peculiar: representam fatores autônomos da própria psique do sonhador.  Assim, por exemplo, o princípio feminino existente no homem  personificar-se-á, no sonho, na imagem de uma mulher jamais vista na  vida real; e a sombra do sonhador tomará por empréstimo a face de um  conhecido que possua as qualidades negativas que ele não quer reconhecer  em si próprio. 
Na maioria dos casos «todas as figuras do sonho são  aspectos personificados da personalidade do sonhador». E não só os  personagens propriamente ditos: «o sonho é o teatro onde o sonhador é ao  mesmo tempo o ator, a cena, o ponto, o regente, o autor, o público e o  critico». Ocorre o que disse Schakespeare:
«no sonho cada um é o seu  próprio Shakespeare».
       Na prática analítica fala-se de interpretação  no nível objetivo, quando o sonho se reporta a situações reais e de  interpretação no nível subjetivo, desde que as imagens oníricas  representem fatores psíquicos do sonhador.
       A psicologia jungueana aborda o sonho de dois  pontos de vista: do ponto de vista de sua causalidade e de sua  finalidade. A  bordagem causal parte dos elementos do sonho e, através  da cadeia de associações que estes despertem vai, de elo em elo, até  chegar a um complexo reprimido no inconsciente. É uma técnica redutiva  que visa atingir o ponto X, raiz única de onde brotariam todos os  elementos do sonho. 
Sem negar a importância de seguir o fio do  determinismo causal do sonho, Jung diz que para descobrir os complexos  mais carregados de energia, atuantes no inconsciente, não é necessário  ter como ponto de partida os elementos do sonho. Uma figura qualquer de  anúncio de jornal ou mesmo uma forma abstrata conduzirão inevitavelmente  o sonhadora seus complexos. 0 sonho, prodigiosa trama onde se  entrelaçam tão numerosos conteúdos psíquicos  poderá dar muito mais que isso. Jung não pergunta apenas: por que este  sonho? 
Pergunta principalmente: para que este sonho, qual a sua  finalidade? Se uma técnica redutiva satisfará à primeira pergunta, a  segunda exigirá outro método. Será necessário explorar os conteúdos  oníricos em todas as direções possíveis, amplificando-os e  enriquecendo-os, será necessário procurar descobrir as conexões que  existam entre uns e outros, até que se configure o sentido do sonho,  isto é, a expressão das forças do inconsciente no exercício de suas  funções autoreguladoras (método das ampliações). Falar em finalidade do  sonho provocará talvez estranheza pois o espírito científico  contemporâneo é fundamentalmente causalista. 
Entretanto são de um  biologista moderno as seguintes palavras: «A prevenção anti-finalista  ainda reinante no espírito dos sábios contemporâneos resulta da sobrevivência  do longo domínio da física macroscópica». (...)
«É análoga ao erro  cometido outrora pelos físicos quando concebiam o átomo sob o modelo de um sistema planetário com trajetórias reguladas  pelo jogo de equilíbrios estabelecidos passo a passo» (R. Ruyer).
       Atualmente são numerosos os biologistas que  põem em relevo a finalidade das atividades orgânicas sempre que elas  envolvem. convergência de fatores num trabalho conjunto, tais como os  fenômenos de regulação vital. 0 sonho poderá ser classificado entre as  atividades deste tipo.
       Jung foi o primeiro a abrir caminho nesta  direção
 ao descrever a função compensadora dos sonhos. 
No seu conceito, os sonhos funcionam principalmente como reações de defesa, como autoreguladores de posições conscientes, demasiado unilaterais ou anti-naturais.
       «Do mesmo modo que o corpo reage de maneira  adequada a um ferimento, a uma infecção ou a um tipo de vida anormal,  assim também as funções psíquicas reagem, por meios de defesa  apropriados, a alterações perigosamente perturbadoras. 0 sonho, na minha  opinião, faz parte dessas reações oportunas, introduzindo na  consciência, graças a uma estruturação simbólica, os materiais  constelados no inconsciente pela situação consciente».
       Os sonhos situam-se como expressões  importantes da dialética entre consciente e inconsciente que caracteriza  a dinâmica da vida psíquica, segundo a concepção de Jung. 
Sempre que a  atitude consciente extrema-se, seja no sentido de extroversão ou de  introversão sue saia fora dos ritmos peculiares ao tipo psicológico do  indivíduo, ou quando uma das funções de orientação do consciente  (pensamento, sentimento, sensação, intuição) torna-se demasiado  hipertrofiada em detrimento das demais; sempre que o indivíduo super  valoriza ou, ao contrário, subestima a si próprio ou a outrem sempre que  necessidades específicas a cada um são negligenciadas, surgem sonhos  compensadores indicando que a psique funciona como um sistema  autoregulador.
       Quando, por exemplo, existem relações de  estreita dependência do sonhador com sua mãe ou seu pai e tão grande  super valorização dessas figuras que o desenvolvimento de sua  personalidade fica entravado, é freqüente acontecer que, nos sonhos, mãe  ou pai apareçam sob aspecto exageradamente desfavorável a mãe como uma  mulher perversa, o pai ébrio, etc. 
0 indivíduo demasiado ambicioso que,  pela crispação de sua vontade consciente, pretende galgar posições para  as  quais não possui qualidades, terá sonhos que o depreciem, o diminuam.  Estes últimos são sonhos redutores, modalidade dos sonhos de  compensação. 
Vê-se, portanto, que um sonho não poderá ser corretamente  interpretado sem que seja conhecida a situação consciente. Não há leis  estabelecidas da compensação onírica porque o jogo dos mecanismos  compensatórios é inesgotável e varia conforme cada caso.
       Além da função compensadora, outra função  importante do sonho é a função prospectiva. Desde logo fique claro que  esta função não assegura ao sonho atributos de profecias infalíveis.  Jung adverte: «seria injustificado qualificá-los de proféticos (aos  sonhos prospectivos), pois, no fundo, eles são tão proféticos quanto um  prognóstico médico ou meteorológico».
 0 que acontece é que longos  processos subterrâneos precedem sempre a eclosão das grandes crises. 
0  inconsciente dispõe de dados mais abundantes que o consciente:  impressões subliminares, sensações, sentimentos, pensamentos, ainda não  apreendidos pelo consciente. E é da conjunção de todos esses elementos  que o sonho se estrutura. Assim, não será exagero admitir que o sonho se  acha muitas vezes, «do ponto de vista prognóstico, numa situação bem  mais favorável que o consciente».
       Os antigos sabiam que poderiam encontrar nos  sonhos antecipações do futuro. 0 sonho de Nabucodonosor, interpretado  com extraordinária agudeza por Daniel, é um belo exemplo.
       Nabucodonosor, rei da Babilônia, estava em  pleno fastígio de sua glória quando viu em sonho uma enorme árvore cuja  copa se elevava até o céu: seus amplos ramos, carregados de frutos,  abrigavam pássaros e davam sombra aos animais dos campos. Então desceu  do csu um santo e disse: abatei a árvore e' cortai seus ramos, sacudi a  folhagem e dispersai os frutos: que os animais fujam de sua sombra e os pássaros abandonem seus ramos. 
Mas deixai na terra o  cepo onde se prendem as raízes e amarrai-o com cadeias de ferro e de  bronze por entre a erva dos campos. Que este cepo seja molhado pelo  orvalho do céu e que partilhe da erva da terra com os animais. 
Seu  coração de homem lhe será retirado e um coração de animal lhe será dado  até que sete tempos passem sobre ele. Doze meses mais tarde  Nabucodonosor enlouquecia e era banido de sua cidade. Passou a comer  erva com os bois, seu corpo foi molhado pelo orvalho, seus cabelos  cresceram como as penas das águias e suas unhas como as garras de aves  (Daniel, IV, 16-30).
       No sonho de Nabucodonosor pode-se observar a  função compensadora exercendo-se em relação às idéias de grandeza do rei  e a função prospectiva revelando que a situação era demasiado grave  para ser reequilibrada.
        Não só as doenças psíquicas, 
mas também as doenças somáticas
  refletem-se nos sonhos. 
Scherner cita o caso de um doente com pneumonia que sonhou ver uma fornalha cheia de chamas soprada por forte ventania. 0 processo inflamatório é representado pelo fogo e a respiração pelo vento. Corpo e psique, sendo inextricáveis um do outro, o sonho dirá, na sua linguagem simbólica, quando a vida estiver em perigo.
Jung narra o caso de uma jovem que sonhou com um cavalo que atravessava a galope o apartamento onde ela residia, num quarto andar, e lançava-se pela janela espatifando-se no solo. Este sonho, que se seguia a outros semelhantes, permitiu a Jung confirmar o diagnóstico de uma grave doença neurológica. Pouco tempo depois a jovem morria. A vida animal, corporal, representada pelo cavalo, galopava para a destruição. Também, sem que exista qualquer doença física imagens referentes ao corpo freqüentemente aparecem nos sonhos, traduzindo problemas psíquicos em termos somáticos.
       Outro tipo de sonho é o sonho reativo.  Acontecimentos traumáticos são, revividos no sonho, tais como violentos  choques de guerra, incêndios, inundações. Essas repetições processam-se  de maneira autônoma, sem que a compreensão do fenômeno interrompa sua  continuação. 0 estímulo traumático repete-se até desgastar-se.
       Devem ainda ser mencionados os sonhos  telepáticos, A existência desses sonhos é inegável, mas as leis que os  regem ainda não foram descobertas no presente estado de nossos  conhecimentos. Poderão ser colocados entre os fenômenos de  sincronicidade, termo pelo qual Jung designa à coincidência  significativa ou a equivalência de um estado psíquico e de um estado  físico ou um acontecimento que não têm relações causais entre si.
       Vistos noutra perspectiva, os sonhos serão  cognominados de grandes e de pequenos sonhos. Os grandes sonhos são  aqueles carregados de significações profundas, seja de caráter  individual ou coletivo, sonhos que perturbam, infundem medo ou exaltam. 
Os sonhos que dizem respeito 
aos problemas ordinários da vida cotidiana
são os pequenos sonhos.
aos problemas ordinários da vida cotidiana
são os pequenos sonhos.
       Jung encontrou esta classificação de grandes e  pequenos sonhos entre primitivos da África oriental. Eles acreditam que  só os chefes e os feiticeiros gozem do privilégio dos grandes sonhos,  nos quais recebem inspiração para decidir dos destinos da tribo. Mas, se  acontece que um indivíduo qualquer tenha um sonho impressionante, ele  deve pedir que a tribo se reuna para narrá-lo diante de todos, Charles Baudelaire, o poeta francês, separa os sonhos de maneira  equivalente: 
«Os sonhos do homem são de duas classes. Uns, cheios dos  problemas de sua vida ordinária, de suas preocupações, de seus desejos,  de seus vícios, combinam-se de modo mais ou menos bizarro com os objetos  entrevistos durante o dia e que se fixaram indiscretamente sobre a  vasta tela de sua memória. Eis o sonho natural; este sonho é o próprio  homem. Mas a outra espécie de sonho! o sonho absurdo, imprevisto, sem  relação nem conexão com o caráter, a vida e as paixões do sonhador! este  sonho, que eu denominarei hieroglífico, representa evidentemente o lado  sobrenatural da vida».
Baudelaire decerto refere-se aos grandes sonhos.  Àqueles que são feitos de imagens originadas nas camadas mais profundas  da psique, tão distantes do ego consciente que, apesar de serem  natureza genuína, transmitem impressão de tanta estranheza que lhes cabe  a denominação de sobrenaturais.
       Exemplo de um grande sonho. Poucos antes da  segunda guerra mundial, uma estudante alemã de 17 anos, que não aderira  ao nacional socialismo, está no cárcere, condenada a morte. Um medo  terrível invadiu-a. Na véspera de ser executada, sonha: ela caminha para  a morte com uma criança nos braços. Perto do muro de execução está uma  outra jovem a cujos braços ela passa a criança. Ao despertar, o medo se  havia dissipado completamenle e a estudante morreu com honra. 0 sonho  mostrou à jovem que ela participava de um fluir infinito, sem fim nem  princípio, de algo muito maior que sua vida individual.
  A entrada do sonho para o campo da ciência foi  um acontecimento decisivo, uma abertura novos caminhos.
Coube a Freud  este feito, e, pode dizer-se que todas as ciências do homem foram  influenciadas pelo seu livro - A INTERPRETASÃO DOS SONHOS - aparecido em  1900. Dai por diante ficava demonstrado que a vida psíquica do homem  não se passa apenas no plano consciente. Subterrâneamente, forças  insuspeitadas debatem-se e influem sobre seu comportamento.
E os sonhos  são manifestações dessas forças obscuras em ação. Não se trata de  produções insignificantes e absurdas. Encerram sentido. É possível  decifrar sua linguagem.
       Nas suas pesquisas, Freud encontrou que «a  maioria dos símbolos oníricos são símbolos sexuais». Entretanto ele  próprio comenta: «Contrariamente às imagens oníricas, que são muito  variadas, as interpretações dos símbolos são extraordinariamente  monótonas. Este fato decepciona todos que o constatam, mas não está em  nossas mãos remediá-lo» (Introdução à Psicanálise Os sonhos, F).
       Na perspectiva jungueana a linguagem do sonho é  muito mais complexa e jamais monótona. Seus elementos não se deixam  reduzir a uma significação única; são ricos de múltiplos sentidos, de  numerosas valências.
       No sonho viaja-se da periferia ao centro da  psique. Dos acontecimentos individuais pertencentes ao domínio do  inconsciente pessoal, ao reino das imagens arquetípicas, patrimônio  comum a todos os homens.
       «O sonho, diz Jung, é uma porta estreita  dissimulada nos recantos mais obscuros e mais íntimos da psique, aberta  sobre essa noite original cósmica que já era psiquismo muito antes da  existência da consciência do eu e o estende muito para além do que a  consciência individual jamais terá atingido.
 Pois a  consciência do eu é  dispersa. 
Ela distingue fatos isolados, procedendo por separação,  extração e diferenciação e só é percebido aquilo que pode entrar em  relação com o eu. 
A consciência do eu, mesmo quando toca de leve as  nebulosas mais longínquas é feita de enclaves bem delimitados. A  consciência específica. Pelo sonho, ao contrário, penetramos no mais  profundo, no mais verdadeiro, mais geral, mais duradouro do ser humano,  que mergulha ainda no claro - escuro da noite original, onde formava um  todo e onde o todo estava nele, no seio da natureza indiferenciada e  impersonificada. É dessas profundezas, onde o universal se unifica, que  nasce o sonho mesmo quando reveste as aparências mais pueris, mais  grotescas, mais imorais».
       A interpretação de um sonho isolado 
diz quase  sempre muito pouco.
Convém estudar os sonhos em séries. Segundo Jung, os sonhos «são provavelmente elos visíveis de uma cadeia de acontecimentos inconscientes. Só urna série de sonhos poderá dar idéia dos processos aí em curso, de avanços, recuos, transformações, integrações.
Um sonho  único será uma palavra, ou talvez uma frase, de um texto desconhecido.  Será insuficiente para a decifração do texto inteiro. Belo exemplo de  estudo de uma série de sonhos encontra-se no livro de Jung, PSICOLOGIA E  ALQUIMIA. São  81 sonhos de um cientista contemporâneo que têm por tema o simbolismo da  totalidade psíquica, interpretados em ordem cronológica.
       Os sonhos constituem os melhores índices de  informação das etapas que o sonhador esteia percorrendo no caminho da  individuação. Assim, estar atento aos sonhos é tarefa da maior seriedade  para todo aquele que aspira conhecer-se a si mesmo e fazer desse  conhecimento a base para o desenvolvimento de sua personalidade.
       Exemplo de sonho revelador de um momento importante na evolução da personalidade de uma mulher.
       A sonhadora vai andando pela rua, tendo à  direita um gato branco e à esquerda um gato preto. Dados alguns passos  adiante, precisamente na porta de uma carvoaria, o gato branco  transforma-se em linda criança que diz à sonhadora: «Vamos à igreja!» 
A  sonhadora emociona-se e pensa consigo mesma: nunca me ocupei da educação  religiosa desse gato, ele não estudou catecismo nem fez a primeira  comunhão e eis que me pede para ir à igreja. 0 gato preto não sofre  nenhuma metamorfose, mas agora a sonhadora carrega-o no braço esquerdo,  envolvido numa toalha branca. Logo se acham os três em pequena e escura  capela onde não há altares nem imagens. 
Vê-se apenas um cão que dorme  estendido no solo. De súbito a criança transforma-se numa jovem de olhos claros luminosos, vestida de branco. Ela se inclina para o cão e  acaricia-o. A sonhadora passa o braço direito em torno dos ombros da jovem com um sentimento de  intensa ternura e lhe diz: afastemo-nos, porque se o gato preto acorda e  vê o cão, vai assustar-se e fugir. A jovem concorda com um movimento de  cabeça, sorrindo.
       Neste sonho, o gato preto representa forças  instintivas obscuras submersas no inconsciente (lado esquerdo), enquanto  a gato branco, pela sua cor e por sua subseqüente metamorfose,  representa forças instintivas que tendem a aproximar-se da consciência  (lado direito) trazendo-lhe sua significação simbólica. 0 processo  prossegue, com a transformação do gato branco em criança, símbolo que  exprime as potencialidades de desenvolvimento do self e que se afirma claramente por suas exigências religiosas ("vamos à igreja").
0 fato do símbolo do self  assumir forma humana significa, segundo Jung, que pelo menos  parcialmente  o centro ordenador da vida psíquica está se aproximando da  consciência e, ainda mais, dando à sonhadora a ordem de conduzi-lo à  igreja, toma papel diretor deixando ao ego o papel executor. 
Convém  notar que a transformação do animal em criança ocorre na porta de uma  carvoaria, local usado como depósito do produto da queima da madeira,  que outra coisa não é senão carbono quase puro. 0 carvão tem, portanto,  estreita conexão química com o diamante, que é carbono puro cristalizado  e um dos mais universais símbolos do self.
       A sonhadora, isto é, a personalidade  consciente, surpreende-se que, "sem ter estudado catecismo", o gato,  agora criança, deseje ir à igreja, ou seja que aspirações religiosas  manifestem-se como impulso espontâneo. Chegados à capela, a criança  metamorfoseia-se numa jovem. Isso indica que o processo psicológico está  desenvolvendo-se aceleradamente: o gato branco transformou-se em  criança e logo as possibilidades nela encerradas desabotoaram na imagem  da jovem desconhecida.
Originando-se de metamorfoses sucessivas, a jovem  apresenta-se como um ser mítico, e suas características a aproximam da  jovem divina, da Koré mitológica, apta representação da personalidade  superior, do self, quando se trata da mulher (seu equivalente no homem é  figurado pelo velho sábio).
       A experiência analítica demonstra que a imagem  da jovem divina surge freqüentemente no lado da figura da mãe divina,  esta última quase sempre sob seu aspecto tenebroso. 
Neste sonho, a  origem da jovem divina que encarna o aspecto luminoso do self é,  muito coerentemente o gato branco. A contraparte escura, porém, não se  apresenta sob forma humana. Acha-se ainda amalgamada na base instintiva  apresentando-se sob a imagem do gato preto que não sofre nenhuma  metamorfose. Acresce que o gato preto dorme nos braços da sonhadora.  Também dorme o cão, animal de Hécate, deusa mãe no seu aspecto noturno e  sinistro. 
Isto parece significar que forças instintivas opostas do  mundo feminino subterrâneo ainda não atingiram condições de se  defrontarem. Vendo o cão, o gato preto poderá mesmo assustar-se e fugir,  isto é, escapar autônomo ao controle da personalidade consciente. A  jovem divina embora tenha acariciado o cão, contato que o poderia ter  despertado, aceita que se afastem, pois não chegou ainda o momento do  encontro de opostos extremos, próprio das etapas ulteriores do processo  de individuação.
Este processo parece estar desdobrando-se, na  sonhadora, em níveis bastante desiguais: terno encontro com a jovem  divina de uma parte, e de outra, animais etônicos que dormem  profundamente. A última cena, passando-se numa capela, sublinha o  caráter religioso dos fenômenos em curso. Entretanto, a capela, embora  cristã, aparece sem seus altares e sem suas imagens. 0 lugar é cristão,  mas a divindade presente veste a forma pagã da Koré.
       Não seria suficiente assinalar neste sonho a  presença de elementos pagãos e interpretá-los como sobrevivências de um  mundo mais antigo, espécie de achados arqueológicos. 
A análise das  produções do inconsciente, pelo método jungueano, trouxe a revelação de  que os elementos arcaicos não só permanecem vivos e atuantes, mas que  estão envolvidos num contínuo processo de elaboração através do tempo.  Assim, não interpretaremos a presença da Koré e dos animais dentro da  igreja cristã como meros vestígios do paganismo inscritos nos estratos  profundos da psique. 
Vemos nesses símbolos e na maneira como eles se  dispõem no cenário do sonho a expressão do esforço instintivo do  inconsciente para reaproximar valores que se haviam separado demais.  Infelizmente para a sonhadora este esforço acha-se longe de sua meta.  Por isso mesmo trata-se de um sonho bastante representativo da situação  psíquica da mulher contemporânea ainda em caminho para a completação e  integração de sua personalidade.
Próximo capítulo - Contos de fada
   Fonte:
CooJornal-Revista RioTotal
  http://www.riototal.com.br/coojornal/guardiao-jung010.htm
Sejam felizes todos os seres. Vivam em paz todos os seres.
    Sejam abençoados todos os seres.

Nenhum comentário:
Postar um comentário
Que tal comentar agora?