Curso de Filosofia
– Régis Jolivet
Capítulo Segundo
A ALMA HUMANA
161 Até aqui, limitamo-nos a descrever e analisar os fatos psicológicos, a fim de determinar suas leis empíricas. Trata-se, agora, de deduzir dos fatos observados e das leis estabelecidas a própria natureza desse sujeito metafísico sem o qual os fatos psicológicos e a própria realidade do sujeito são ininteligíveis. É este sujeito metafísico que designamos pelo nome de alma, e que é, como tal, o objeto do que se chama muitas vezes Psicologia racional, uma vez que seu objeto só é acessível à razão.
Neste último capítulo, que não é, em suma, senão, a conclusão» do conjunto da Psicologia, teremos, então, de tratar das seguintes questões: natureza da alma, união da alma e do corpo e destinoda alma.
ART. I. NATUREZA DA ALMA
162 O estudo objetivo dos fenômenos psicológicos leva-nos a afirmar que o homem possui uma alma, que é uma substância simples e espiritual. Ao demonstrar cada uma das partes desta asserção, veremos que só temos que tirar conclusões contidas nos resulta dos positivos de nossos precedentes estudos de Cosmologia e de Psicologia.
§ 1. Existência e unidade da alma
1. Existência da alma. — É impossível negar a existência da alma, sem tornar, no mesmo instante, ininteligíveis todos os. fatos que estudamos. Com efeito, quando duas coisas têm propriedades opostas, concluímos, legitimamente, que têm duas naturezas diferentes. Ora, constatamos no homem duas categorias de fenômenos perfeitamente distintos: fenômenos materiais, redutíveis a movimentos e por isso quantitativamente mensuráveis (peso, inércia etc), e fenômenos qualitativos (pensamento, vontade, sentimento), irredutíveis a movimentos. Não é possível que fenômenos tão opostos procedam de um só princípio ou, ao menos, de um princípio perfeitamente uno em si mesmo. Devemos, então, admitir no homem a dupla realidade de um corpo e de uma alma, ato primeiro do corpo orgânico.
2. Unicidade da alma.
a) O princípio vital único. O homem não é apenas uma inteligência; exerce, também, as funções da vida vegetativa e da vida sensível, que exigem, cada uma, um princípio proporcionado a suas operações próprias. Todavia, o homem, natureza intelectual, não possui três almas, assim como o animal não possui duas almas, uma vegetativa, outra sensitiva. A alma superior assume as funções dos graus inferiores e, sob este aspecto, a alma humana é a um tempo principio da vida vegetativa, da vida sensível e da vida intelectual.
É isto, por outro lado, o que mostra a análise psicológica da consciência: ela nos revelou a existência de um "eu", que aparece no turbilhão e no fluxo incessante dos fenômenos interiores, de qualquer natureza que sejam, como centro de convergência de todos estes fenômenos, como fonte ativa de todos os estados psíquicos (158). Ora, esta consciência do "eu", com seus caracteres, seria completamente inexplicável se a alma não fosse única.
b) O sentimento de identidade e de responsabilidade. Por outro lado, a alma não é apenas una em número, é também uma no tempo, ou seja, permanece idêntica a si mesma. É isto o que demonstra, claramente, nossa consciência invencível de identidade através de todas as transformações de nossa vida. É o que demonstra, também, o sentimento da responsabilidade: sentimos que temos de responder por nossos atos passados e não poderíamos experimentar um tal sentimento se nossa alma não permanecesse idêntica a si mesma.
§ 2 . SUBSTANCIALIDADE DA ALMA
163 1. Noção. — Certos filósofos materialistas quiseram reduzir a alma apenas a uma coleção de fenômenos. Mas esta doutrina contradiz os fatos psicológicos mais positivos. Esses fatos nos obrigam a admitir que a alma é uma substância, quer dizer, uma realidade -permanente, fonte e suporte dos fenômenos da vida.
2. Prova. — Com efeito, se eu posso, a cada instante, evocar meus atos de consciência passados e reconhecê-los como meus, é necessário que alguma coisa de permanente subsista em mim, senão, longe de me reconhecer nos meus estados passados, minha consciência de mim mesmo se desvaneceria à medida que esses estados desaparecessem, e eu só teria de mim mesmo uma consciência sucessiva, sempre limitada ao imediatamente presente.
Assim, a alma é uma substância. Mas esta substância é material ou espiritual? É o que nos falta estabelecer.
§ 3. Simplicidade da alma
164 A alma é simplesmente una em número e una no tempo, quer dizer, idêntica a si mesma, ela é ainda una em sua essência, quer dizer, simples e indivisível, ao contrário das coisas materiais, que são compostas e divisíveis. É o que demonstra a análise das operações da alma.
a) A sensação. Temos das coisas materiais uma percepção indivisa. Ora, isto não se pode explicar senão pela simplicidade da alma. Se a alma fosse composta de partes, cada uma destas partes perceberia ou todo o objeto ou uma parte apenas do objeto, e nós teríamos então, no primeiro caso, tantas percepções totais quantas partes a alma tivesse, e, no segundo caso, tanta percepções parciais quantas partes tivesse a alma, mas jamais uma percepção una e indivisa do objeto.
b) A reflexão. A alma pode voltar-se sobre si mesma para conhecer-se nos seus atos. Ora, o que é composto não pode conhecer-se a si mesmo como um todo, porque as partes do composto permanecem necessariamente exteriores umas às outras. A supor que uma parte possa conhecer-se a si mesma, as outras permaneceriam sempre estranhas a ela. Unicamente uma substância simples é capaz de se voltar sobre si mesma, quer dizer, conhecer-se por reflexão.
§ 4. Espiritualidade da alma
165 Chama-se espiritual todo ser que não depende da matéria nem na sua existência, nem nas suas operações. Ora, dizemos que a alma humana é espiritual. Mas é necessário entender bem em que sentido nós o dizemos. É um fato que as operações sensíveis da alma aproveitam o concurso direto do corpo e que as operações superiores, inteligência e vontade, não podem exercer-se senão através de certas condições orgânicas. Mas a alma, por sua própria natureza, permanece independente do corpo, no sentido de que exerce sem órgão suas funções superiores de inteligência e de vontade, e que é capaz de existir sem o corpo. Dito isto, quais são as provas da espiritualidade da alma?
a) Prova pela natureza da inteligência. Tal operação, tal natureza. Ora, as operações da inteligência e da vontade, em si mesmas ou intrinsecamente, não dependem do corpo. Logo, a alma, de que procedem, não depende dele, com maior razão, e deve ser chamada subsistente, quer dizer, capaz de existir sem o corpo.
A inteligência, pelas idéias, conhece imaterialmente as coisas corporais, e seu ato, que nada tem de material nem de quantitativo, não pode proceder de uma faculdade orgânica. A inteligência é, então, uma faculdade espiritual, e a alma de que procede não pode ser senão uma substância espiritual.
b) A vontade manifesta igualmente a espiritualidade da alma: tende ao bem imaterial e infinito, deseja os bens espirituais, persegue a ciência e a virtude. Ora, isto não se poderia dar se a vontade não fosse uma faculdade espiritual; nenhum ser deseja o que ultrapassa essencialmente a sua natureza e lhe é, portanto, incognoscível. Uma pedra não pode desejar pensar. Devemos, por isso, concluir que a alma, de que procede a vontade, é uma substância espiritual.
c) Todavia, a alma não é um espírito puro; ela é apenas incompletamente espiritual. Porque, como já dissemos, certas de suas funções (vegetativas e sensitivas) dependem intrinsecamente dos órgãos corporais, e suas funções superiores (inteligência e vontade) deles dependem extrinsecamente (82). Por isso, é uma substância incompleta, destinada a ser unida a um corpo, e a formar com ele uma única e mesma substância composta que se chama, por esta razão, o composto humano.
Art. II. A UNIÃO DA ALMA E DO CORPO
166 1. União acidental e união substancial. — É necessário distinguir dois modos de união: a união acidental, que é aquela que existe entre dois seres completos em si mesmos, e independentes um do outro (como a união dos anéis de uma corrente, ou ainda a união de dois amigos), — e a união substancial, ou fusão de duas realidades incompletas, que constituem por sua união uma substância única, embora composta.
2. O problema da união da alma e do corpo.
a) As doutrinas de Descartes, Malebranche e Leibniz. O problema da união da alma e do corpo tornou-se insolúvel nas doutrinas filosóficas tais como as de Descartes, de Malebranche, i que concebem o corpo humano e a alma humana como substâncias ou seres completos por si mesmos. Para estes filósofos, a alma é essencialmente pensamento e o corpo essencialmente extensão. Duas substâncias completas, tão radicalmente opostas, não podem ter entre si mais do que uma união acidental.
Por isso, para explicar suas relações (relações do físico e do moral), Malebranche foi levado a propor uma solução pouco natural quanto a do ocasionalismo, em virtude do qual os movimentos da alma seriam produzidos por Deus, diretamente, por ocasião dos movimentos do corpo, e inversamente. Leibniz, por seu lado, propõe, para resolver o mesmo problema, a teoria da harmonia preestabelecida, segundo a qual Deus teria de alguma forma sincronizado, desde a origem, a série dos fatos psíquicos e dos fatos corporais.
Estas teorias cederam lugar rapidamente às doutrinas que, para resolver um problema tão mal considerado, negaram ora a realidade da alma (materialismo de Hume), ora a realidade da matéria (imaterialismo de Berkeley).
b) O todo substancial. O problema das relações da alma e do corpo não pode ser resolvido de uma maneira inteligível, a não ser que se admita que o corpo e a alma se unam em um só todo substancial, ou, em outros termos, explicados em Cosmologia (76-77; 81), que a alma é a forma imediata e única do corpo, o que quer dizer que é por ela, e apenas por ela, que o homem não apenas é homem, mas ainda animal a ser vivo, corpo, substância e ser (78; 82). Segue-se daí que a alma não esta no corpo como um piloto no seu navio (união acidental), mas que, formando com ele um único todo natural, a alma está inteiramente em todo o corpo, e inteiramente em cada parte do corpo. O homem não é composto de dois seres; é um único ser composto.
167 3. Relações do físico e do moral. — Apenas a união substancial pode explicar o que se chamam as relações do físico e do moral, quer dizer, do influxo mútuo das funções vegetativas, sensitivas e intelectuais. Uma digestão penosa, uma enxaqueca, tornam impossível o trabalho do espírito. Inversamente, uma intensa atividade intelectual paralisa a digestão, acelera ou relaxa o movimento do coração. As operações sensíveis da alma dependem intrinsecamente dos órgãos corporais. As funções intelectuais deles não dependem, senão extrinsecamente, quer dizer, como condições exteriores a si mesmas; é nos dados sensíveis, com efeito, que nossa inteligência vai buscar o primeiro objeto de suas operações.
Todos estes fatos bem conhecidos não podem ser explicados de uma maneira satisfatória a não ser que se admita que corpo e alma formam uma única substância em que todas as funções estão solidárias.
ART. III.
O DESTINO DA ALMA
168 A união da alma e do corpo não é indissolúvel: chega um dia em que ela se rompe. Sabemos o que acontece ao corpo. Mas que acontece à alma? Morremos completamente? Esta questão é grave: toda a orientação de nossa vida depende dela, e esta palavra de PASCAL é profundamente verdadeira: "Concordo em que não se aprofunde a teoria de Copérnico, mas isto sim! é muito importante saber se a alma é mortal ou imortal."
Mas antes de mostrar que a alma humana é imortal, cumpre; precisar bem o que se deve entender por imortalidade.
§ 1. Noção de imortalidade
1. Definição. — A imortalidade natural é uma propriedade em virtude da qual um ser não pode morrer. Tal é a imortalidade da alma humana. Chama-se natural, enquanto deriva da própria, natureza da alma.
2. Condições da imortalidade. — A imortalidade natural exige três condições, a saber: que a alma continue a existir, após a dissolução do composto humano, — que, nesta sobrevivência, a alma, conserve sua individualidade e permaneça, por conseguinte, consciente de si mesma e de sua identidade, — que a sobrevivência seja ilimitada.
3. A imortalidade panteística. — Trataremos do panteísmo em Teodicéia, Aqui basta notar que esta doutrina professa que a alma humana constitui com Deus uma única e mesma substância, de que seria uma emanação, ou uma manifestação passageira. Após a morte a alma iria reunir-se ao grande Todo, onde ela não possuiria mais nem individualidade nem consciência de si mesma.
É por um abuso que uma tal doutrina fala ainda de imortalidade da alma, pois a imortalidade exclui absolutamente o aniquilamento da personalidade. Ela exige, para ser verdadeira, uma tal sobrevivência individual e substancial, que nós conservemos nosso poder de conhecer e de amar, a consciência de nós mesmos e de nossa identidade pessoal.
§ 2. Provas da imortalidade da alma
169 Temos de demonstrar que nossa alma é imortal de direito e de fato. O que nos obriga a dividir assim nossos argumentos, é que, se a alma é por sua natureza, quer dizer, de direito, imortal,. fica ainda por provar que nenhum poder exterior virá aniquilá-la.
1. A imortalidade intrínseca. — A alma é imortal intrinsecamente, quer dizer, a alma, é, por natureza, incorruptível e imortal. É isto o que se pode provar por três argumentos principais.
a) Prova metafísica. Esta prova se apóia na simplicidade da alma. Uma substância pode perecer de duas maneiras: diretamente (ou por si), ou indiretamente (ou por acidente). Uma substância perece diretamente, quando estiver separada do princípio de que tira o ser, a vida e suas funções; é assim que o corpo, separado da alma, que é seu princípio vital, se decompõe e retorna a seus ele mentos. — Uma substância perece indiretamente, ou por acidente, quando está privada do sujeito sem o qual não pode exercer suas funções vitais: é o caso da alma dos brutos, cujas funções são todas orgânicas, e não podem, portanto, exercer-se sem o corpo.
Ora, a alma humana não pode perecer diretamente, porque é uma substância simples, portanto incapaz de se decompor, nem indiretamente, porque não tem necessidade do corpo e de seus órgãos para exercer suas funções próprias de conhecimento e de vontade. A alma é, então, por sua própria natureza, incorruptível e imortal.
b) Prova moral. Esta prova se baseia na justiça de Deus, que exige que a virtude e o vício recebam as sanções que lhes são devidas: recompensa ou punição. Aqui no mundo, as sanções da virtude e do vício são evidentemente insuficientes; muitas vezes mesmo, é o vício que triunfa, e a virtude que fica humilhada. A justiça quer que cada um seja tratado segundo suas obras, e isto não pode ser feito a não ser com a imortalidade da alma.
c) Prova psicológica. Esta prova se apóia nas tendências essenciais de nossas faculdades. É um fato que nós aspiramos a conhecer a verdade absoluta, possuir o bem supremo e a felicidade perfeita, quer dizer, a gozar de objetos que ultrapassam o tempo. Isto é tão verdadeiro que jamais nos sentimos saciados de verdade e de felicidade; quanto mais avançamos no conhecimento da verdade, na prática do bem, mais aumenta nosso desejo, a ponto de nada parecer poder satisfazer-lhe, fora da Verdade, da Bondade, da Beleza perfeitas, ou seja, fora de Deus. Aí está nosso fim, tal como o manifestam as nossas tendências mais profundas e mais vivas, quê mostram, da mesma forma, que a alma ultrapassa qualquer tempo particular e finito, e é realmente imortal por sua natureza.
Ora, a imortalidade seria uma palavra vã, se a alma, na sua sobrevivência, não conservasse a consciência de si mesma, de sua identidade, e não pudesse exercer suas operações. Que assim não é, mas que a alma conserva a sua individualidade, é o que demonstram os três argumentos precedentes.
A prova metafísica supõe, com efeito, que a alma, perseverando no seu ser, continue ao mesmo tempo a exercer as operações que se realizam sem órgão próprio. A mesma conclusão se impõe por duas outras provas: para que as sanções da outra vida sejam eficazes, é necessário que a alma se conheça e se conheça como idêntica ao que era durante a vida terrestre; e, para que suas aspirações à felicidade perfeita sejam satisfeitas, é necessário que ela mantenha a consciência de si mesma e de sua individualidade.
Enfim, a sobrevivência ilimitada aparece como uma condição essencial da felicidade perfeita: não se pode ser verdadeiramente feliz, quando não se está convicto de jamais perder o bem que se possui.
2. A imortalidade extrínseca. — A alma é, então, de direito, imortal. Mas sê-lo-á, de fato? Para tanto, é necessário que nenhuma força exterior à alma venha aniquilá-la.
Ora, apenas aquele que cria pode aniquilar. Deus, então, e apenas Deus, poderia lançar a alma para o nada, de onde a retirou pelo seu poder. Mas a razão nos prova que ele não o fará e que não deu à alma uma natureza imortal a não ser para garantir-lhe, de fato, a imortalidade. Sua sabedoria e sua bondade o exigem.
A sabedoria do Criado?* exige que ele não destrua sua obra; o arquiteto não constrói para demolir, e Deus não deu à alma uma natureza incorruptível para lançá-la ao nada.
A bondade de Deus exige que a alma desfrute desta imortalidade, sem a qual suas aspirações mais ardentes e mais profundas ficariam insatisfeitas. Frustrada em suas tendências essenciais. a alma humana teria uma sorte pior que a dos brutos que, ao menos, atingem seu fim, e estaria fadada ao desespero. Mas isto seria indigno da bondade divina.
Assim, de direito como de fato, a alma é imortal, de uma imortalidade pessoal e sem fim.
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Fonte:
CONSCIÊNCIA:.ORG
http://www.consciencia.org/cursofilosofiajolivet20.shtml
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