sexta-feira, 8 de março de 2013

HERMES- Livro III - Os Grandes Iniciados - Edouard Schuré






 Veni ,Creator Spiritus - Canto Gregoriano -3m


LIVRO III
HERMES
OS MISTÉRIOS DO EGITO

Alma cega ! Arma-te do facho dos Mistérios, e na noite
terrestre descobrirás teu luminoso Duplo, tua Alma
celeste. Segue este guia divino e que ele seja teu Gênio.
Pois ele tem a chave de tuas existências passadas e
futuras.

Apelo aos Iniciados (segundo o Livro dos Mortos)
Escutai em vós mesmos e olhai no infinito do Espaço e
do Tempo. Lá retumbam o canto dos Astros, a voz dos
Números, a harmonia das Esferas.

Cada sol é um pensamento de Deus e cada planeta um
modo desse pensamento. Almas! é para conheceres o
pensamento divino que desceis e subis penosamente a
estrada dos sete planetas e seus sete céus.

Que fazem os astros? Que dizem os Números? Que
rolam as Esferas? - Almas perdidas ou salvas! Eles
cantam, eles dizem, eles rolam - vossos destinos!
Fragmento (segundo Hermes)


HERMES
Os Mistérios do Egito
I
A ESFINGE
Diante de Babilônia, metrópole tenebrosa do despotismo, o Egito
foi no mundo antigo uma verdadeira cidadela da ciência sagrada, uma
escola para seus mais ilustres profetas, um refúgio e um laboratório das
mais nobres tradições da humanidade. Graças a imensas escavações e
admiráveis trabalhos, conhecemos hoje o povo egípcio melhor do que
qualquer outra civilização anterior à grega, pois ele nos reabre sua
história escrita em páginas de pedra (1). Desenterram-se seus
monumentos, decifram-se seus hieróglifos; e, no entanto, ainda falta
penetrar no mais profundo arcano de seu pensamento. Este arcano é a
doutrina oculta de seus sacerdotes, a qual, cientificamente cultivada nos
templos, prudentemente velada sob os mistérios, mostra-nos ao mesmo
tempo a alma do Egito, o segredo de sua política e seu papel capital na
história universal.

Nossos historiadores falam dos faraós no mesmo tom com que se
referem aos déspotas de Nínive e de Babilônia. Para eles, o Egito é uma
monarquia absoluta e conquistadora como a Assíria, só diferindo dela
por ter durado alguns milhares de anos a mais. Teriam levado em
consideração que na Assíria a realeza esmagou o sacerdócio fazendo
dele seu instrumento, enquanto no Egito o sacerdócio disciplinou a
realeza, e jamais abdicou, mesmo nas piores épocas, impondo-se aos
reis, expulsando os déspotas, governando sempre a nação?

 E isto, por
uma superioridade intelectual, por uma sabedoria profunda e oculta, que
nenhum corpo docente jamais igualou em qualquer país ou qualquer
tempo. É pouco provável. Pois, muito longe de colher as inúmeras
conseqüências desse fato essencial, nossos historiadores apenas o
entreviram e parecem não lhe atribuir nenhuma importância. 94 Todavia,
não é necessário ser arqueólogo ou lingüista para compreender que o
ódio implacável entre a Assíria e o Egito provém de que esses dois
povos representam no mundo dois princípios opostos e que o povo
egípcio ficou devendo sua longa duração a uma estrutura religiosa e
científica mais forte do que todas as revoluções.

Desde a época ariana, através do período agitado que seguiu os
tempos védicos até a conquista persa e a época alexandrina, isto é,
durante um lapso de mais de cinco mil anos, o Egito foi a fortaleza das
mais puras e elevadas doutrinas, cujo conjunto constitui a ciência dos
princípios e que se poderia chamar a ortodoxia esotérica da
Antigüidade. Cinqüenta dinastias puderam suceder-se e o Nilo pôde
carregar seus aluviões sobre cidades inteiras; a invasão fenícia pôde
inundar o país e dele ser expulsa. Porém, em meio aos fluxos e refluxos
da História, sob a idolatria aparente de seu politeísmo exterior, o Egito
conservou o velho fundo de sua teologia oculta e sua organização
sacerdotal. Esta resistiu aos séculos como a pirâmide de Gisé, meio
soterrada na areia, mas intacta.

Graças a esta imobilidade de esfinge guardando seu segredo, a
esta resistência de granito, o Egito tomou-se o eixo em torno do qual
evoluiu o pensamento religioso da humanidade, passando da Ásia para a
Europa. A Judéia, a Grécia, a Etrúria, igualmente almas de vida que
formaram civilizações diversas. Mas, onde colheram elas suas idéiasmães,
senão na reserva orgânica do velho Egito? 

Moisés e Orfeu criaram duas religiões opostas e prodigiosas, uma com seu áspero monoteísmo, outra com seu politeísmo efervescente. Porém, em que
molde se formou seu gênio? Onde encontrou a força, a energia, a
audácia para reformar um povo semi-selvagem, como o bronze numa
fornalha, e o outro, a magia de fazer falar os deuses, como uma lira
afinada, à alma de seus bárbaros encantados? Nos templos de Osíris, na
antiga Tebas, que os iniciados chamavam de cidade do sol ou Arca
Solar - porque ela continha a síntese da ciência divina e todos os
segredos da iniciação.95

Todos os anos, no solstício do verão, quando caem as chuvas
torrenciais da Abissínia, o Nilo muda de cor e adquire o tom de sangue
a que se refere a Bíblia. O rio aumenta até o equinócio do outono e
esconde sob as vagas o horizonte de suas margens. Mas, de pé sobre
seus planaltos graníticos, sob o sol deslumbrante, os templos talhados
em rocha viva, as necrópoles, os pilões e as pirâmides refletem a
majestade de suas ruínas no Nilo transformado em mar. Assim o
sacerdócio egípcio atravessou os séculos com sua organização e seus
símbolos, os arcanos de sua ciência por longo tempo impenetráveis.
Nesses templos, criptas e pirâmides elaborou-se a famosa doutrina do
Verbo-Luz, da Palavra universal, que Moisés encerrará em sua arca de
ouro e da qual Cristo será a chama viva.

A verdade é imutável em si mesma; 
só ela sobrevive a tudo;
 
porém ela muda de morada como de formas e suas revelações são
intermitentes. “A luz de Osíris”, que outrora iluminava para os iniciados
as profundezas da natureza e as abóbadas celestes, extinguiu-se para
sempre nas criptas abandonadas. Cumpriu-se a profecia de Hermes e
Asclépio: “Egito! Egito! não restarão de ti senão fábulas inacreditáveis
para as futuras gerações, e de ti só ficarão palavras talhadas nas pedras”.
Entretanto, é um raio deste misterioso sol dos santuários que
queremos fazer reviver, seguindo a via secreta da antiga iniciação
egípcia, tanto quanto o permite a intuição esotérica e a fugaz refração
das eras.

Mas, antes de entrar no templo, lancemos um rápido olhar sobre
as grandes fases que o Egito atravessou antes do tempo dos hicsos.
Quase tão velha quanto a carcaça de nossos continentes, a
primeira civilização egípcia remonta à antiga raça vermelha. A esfinge
colossal de Gisé (2), junto da grande pirâmide, é sua obra. No tempo em
que o Delta não existia ainda (formado mais tarde pelos aluviões do
Nilo), o animal monstruoso e simbólico já estava deitado na colina de
granito, diante da cadeia dos montes líbios e olhava o mar quebrar-se a
seus pés, lá onde se estende hoje a areia do deserto.96

 A esfinge, primeira criação do Egito, tornou-se seu símbolo principal, sua marca característica. O mais antigo sacerdócio humano a esculpiu, imagem de
natureza calma e temível em seu mistério. Uma cabeça de homem sai de
um corpo de touro com garras de leão, e asas de águia curvam-se sobre
seus flancos. É Ísis terrestre, a natureza na unidade viva de seus reinos.
Pois já nos tempos imemoriais os sacerdotes sabiam e ensinavam que,
na grande evolução, a natureza humana emerge da natureza animal.
Naquele composto de touro, leão, águia e homem estão também
encerrados os quatro animais da visão de Ezequiel, representando
quatro elementos constitutivos do microcosmo e do macrocosmo: a
água, a terra, o ar e o fogo, bases da ciência oculta. Eis porque, nos
séculos posteriores, quando os iniciados viram o animal sagrado deitado
no limiar dos templos ou no fundo das criptas, sentiram viver este
mistério neles próprios e curvaram em silêncio as asas do espírito sobre
a verdade interior. Pois antes de Édipo, eles souberam que a palavra do
enigma da esfinge era o homem, o microssomo, o agente divino, que
resume todos os elementos e todas as forças da natureza.

A raça vermelha, pois, não deixou outra testemunha de si mesma
além da esfinge de Gisé, prova irrecusável de que ela havia formulado e
resolvido à sua maneira o grande problema.

(1). Champollion, L Egypte sous les Pharaons; Bunsen, Aegyptische
Alterthümer; Lepsius, Denkmaeler, Paul Pierret, Le Livre des morts; François
Lenormant, Histoire des peuples de I'Orient; Maspero, Histoire ancienne des
peuples de L'Orient, etc.

(2). Em uma inscrição da 4ª dinastia, fala-se da esfinge como um
monumento cuja origem se perde na noite dos tempos, que foi encontrado
fortuitamente sob o reinado desse príncipe, coberto pela areia do deserto e
esquecido por longas gerações. Fr. Lenormant, Hist. d'Orient, 11, 55. - Ora, a
4ª dinastia nos leva a 4.000 anos antes de Cristo. Por aí pode-se deduzir a
antigüidade da Esfinge! 97

II

HERMES
A raça negra, que sucedeu à raça vermelha do domínio do mundo,
fez do Alto Egito seu principal santuário. O nome de Hermes-Tote,
misterioso e primeiro iniciador do Egito nas doutrinas sagradas,
relaciona-se, sem dúvida, a uma primeira e pacífica mistura da raça
branca com a negra, nas regiões da Etiópia e do Alto Egito, muito
tempo antes da época ariana.

Hermes é um nome genérico, como Manu e Buda. Designa ao
mesmo tempo um homem, uma casta e um deus. O homem, Hermes, é o
primeiro, o grande iniciador do Egito; casta, é o sacerdócio depositário
das tradições ocultas; deus, é o planeta Mercúrio, assimilado com sua
esfera a uma categoria de espíritos, de iniciadores divinos; em resumo,
Hermes preside à região supraterrestre da iniciação celestial.
Na economia espiritual do mundo, todas essas coisas estão ligadas
por secretas afinidades, como que por um fio invisível. 

O nome de
Hermes é um talismã que as sintetiza, um som mágico que as evoca.
Daí seu prestígio. Os gregos, discípulos dos egípcios, chamaram-no
Hermes Trimegisto ou três vezes grande, porque era considerado rei,
legislador e sacerdote. Ele representa uma época em que o sacerdócio, a
magistratura e a realeza estavam reunidos em um só corpo
governamental. A cronologia egípcia de Maneton denomina esta época
de reino dos deuses. Ainda não havia o papiro nem a escrita fonética;
mas já existia a ideografia sagrada e a ciência do sacerdócio estava
inscrita em hieróglifos nas colunas e nas paredes das criptas.

Consideravelmente aumentada, ela passou mais tarde às bibliotecas dos
templos. Os egípcios atribuíam a Hermes 42 livros sobre a ciência
oculta. O livro grego conhecido sob o nome de Hermes Trimegisto
encerra certamente restos alterados, mas infinitamente preciosos, da
antiga teogonia que é como o fiat lux, de onde Moisés e Orfeu
receberam seus primeiros raios.98

 A doutrina do Fogo-Princípio e do Verbo-Luz,
 contida na Visão de Hermes, será o vértice
 e o centro da iniciação egípcia.

 
Tentaremos dentro em pouco reencontrar esta visão dos mestres,
esta rosa mística que só desabrochou na noite do santuário e no arcano
das grandes religiões. Algumas palavras de Hermes, impregnadas da
antiga sabedoria, são bem elaboradas para nos prepararmos. “Nenhum
de nossos pensamentos - disse ele ao discípulo Asclépio - poderia
conceber Deus, nem linguagem alguma defini-lo. 

O que é incorporal,invisível, sem forma,
 não pode ser apreendido por nossos sentidos; o
que é eterno não poderia ser medido pela curta regra do tempo;
 Deus, portanto, é inefável. 

 
Deus pode, é verdade, comunicar a alguns eleitos a
faculdade de se elevar acima das coisas naturais, a fim de perceber
algum vislumbre de sua suprema perfeição - mas esses eleitos não
encontram palavras para traduzir em linguagem vulgar a imaterial visão
que os fez estremecer. Podem explicar à humanidade as causas
secundárias das criações que passam sob seus olhos como imagens da
vida universal, mas a causa primeira permanece velada e só chegaremos
a compreende-la atravessando a morte.” É assim que Hermes falava de
Deus desconhecido no limiar das criptas. Os discípulos que penetravam
com ele em suas profundezas aprendiam a conhece-lo como um ser vivo
(1).

O livro fala de sua morte como da partida de um deus. “Hermes
viu o conjunto das coisas, e, tendo visto, ele compreendeu; e tendo
compreendido, ele tinha o poder de manifestar e de revelar. O que ele
pensou, ele escreveu; o que ele escreveu ocultou em grande parte,
simultaneamente falando e calando-se com sabedoria para que toda a
duração do mundo procurasse essas coisas. E assim, tendo ordenado aos
deuses, seus irmãos, que lhe servissem de cortejo, ele subiu às estrelas.”
Pode-se, a rigor, isolar a história política dos povos, mas não se
pode separar sua história religiosa. As religiões da Assíria, do Egito, da
Judéia, da Grécia só podem ser compreendidas quando se toma seu
ponto de ligação com a antiga religião indo-ariana. Consideradas em
particular são enigmas e charadas; vistas em conjunto e do alto,
constituem uma soberba evolução, onde tudo se comanda e se explica
reciprocamente.99 

Em resumo, a história de uma religião será sempre
estreita, supersticiosa e falsa. Nada existe de verdadeiro, a não ser a
história religiosa da humanidade. A esta altura, só se sentem as
correntes que dão a volta ao globo. 

O povo egípcio, o mais
independente e o mais fechado de todos às influências exteriores, não
pode esquivar-se a esta lei universal.

Cinco mil anos antes de nossa era, a luz de Rama, acesa no Irã,
brilhou sobre o Egito e tornou-se a lei de Âmon-Rá, o Deus solar de
Tebas. Essa constituição permitiu-lhe enfrentar muitas revoluções.
Menes foi o primeiro rei justo, o primeiro faraó executor daquela lei.

Ele procurou não negar a antiga teologia do Egito, que também era a
sua. Apenas confirmou-a e a fez desabrochar; a ela acrescentando uma
organização social nova: o sacerdócio, isto é, o ensinamento, a um
primeiro conselho; a justiça, a um outro; o governo, aos dois; a realeza
foi concebida como sua delegação e submetida ao seu controle; a
independência relativa dos nomos ou comunas, na base da sociedade. A
isto podemos chamar governo dos iniciados. Seu princípio fundamental
era uma síntese das ciências conhecidas sob o nome de Osíris (O-Sir-is),
o senhor intelectual.

 A grande pirâmide e o gnomo matemático são seu símbolo. O faraó, que recebia seu nome iniciático no templo, que exercia a arte sacerdotal e real sobre o trono, era um personagem muito diferente do déspota assírio, cujo poder arbitrário apoiava-se no crime e no sangue. O faraó era o iniciado coroado, ou pelo menos aluno e instrumento dos iniciados. Durante séculos, os faraós defenderão, contra a Ásia que se tornara despótica e contra a Europa anárquica, a lei do Carneiro, que representava então os direitos da justiça e da arbitragem internacional.

Por volta do ano 2.000 antes de Cristo, o Egito sofreu a crise mais
terrível que um povo pode atravessar: a invasão estrangeira e uma
semiconquista. A invasão fenícia era a conseqüência do grande cisma
religioso asiático, que sublevara as massas populares, semeando a
discórdia nos templos. Liderada pelos reis-pastores chamados hicsos,
essa invasão derramou seu dilúvio sobre o Delta e o Médio-Egito.100

 Os
reis cismáticos traziam com eles uma civilização corrompida,
indolência jônia, o luxo asiático, os costumes do harém, uma idolatria
grosseira. A existência nacional do Egito estava comprometida, sua
intelectualidade em perigo, sua missão universal ameaçada. Mas o Egito
tinha uma alma de vida, isto é, um corpo organizado de iniciados,
depositários da antiga ciência de Hermes e de Âmon-Rá. O que fizeram
eles? Retiraram-se para o fundo de seus santuários, recolheram-se em si
mesmos para melhor resistirem ao inimigo. Aparentemente, o
sacerdócio se curvou diante da invasão e reconheceu os usurpadores que
traziam a lei do Touro e o culto do boi Ápis. Entretanto, ocultos nos
templos, os dois conselhos lá guardavam, como um depósito sagrado,
sua ciência, suas tradições, a antiga e pura religião e, com ela, a
esperança de uma restauração da dinastia nacional.

Foi por essa época que os sacerdotes espalharam entre a multidão
a lenda de Ísis e de Osíris, do desmembramento deste último e de sua
próxima ressurreição através do filho, Hórus, o qual reencontraria seus
membros esparsos trazidos pelo Nilo. Excitou-se a imaginação da
multidão mediante a pompa das cerimônias públicas. Manteve-se seu
amor pela velha religião representando-lhe as infelicidades da deusa,
suas lamentações pela perda do esposo celeste e a esperança que tinha
no filho, Hórus, o divino mediador. Mas, ao mesmo tempo, os iniciados
julgaram necessário tornar a verdade esotérica inatacável, ocultando-se
sob um tríplice véu. À difusão do culto popular de Ísis e de Osíris
corresponde a organização interior e sábia dos pequenos e grandes
Mistérios, cercados de barreiras intransponíveis, de perigos terríveis.

Inventaram-se provas morais, exigiu-se o juramento do silêncio e a pena
de morte foi rigorosamente aplicada contra os iniciados que
divulgassem o mínimo detalhe dos Mistérios. Graças a essa organização
severa, a iniciação egípcia tornou-se não somente refúgio da doutrina
esotérica, mas ainda cadinho de uma ressurreição nacional e escola das
futuras religiões. Enquanto os usurpadores coroados reinavam em
Menfis, Tebas preparava lentamente a regeneração do país. De seu
templo, de sua arca solar, saiu o salvador do Egito, Amós, que expulsou
os hicsos, após nove séculos de domínio, restaurando os direitos da
ciência egípcia e da varonil religião de Osíris.101

 Assim os Mistérios salvaram a alma do Egito da tirania estrangeira, e para o bem da humanidade. Pois, naquela época, era tal a força da sua disciplina, o
poder de sua iniciação, que eles continham a melhor força moral e a
mais alta seleção intelectual.

A iniciação antiga repousava em uma concepção do homem ao
mesmo tempo mais sadia e mais elevada do que a nossa. Nós
dissociamos a educação do corpo, da alma e do espírito. Nossas ciências
físicas e naturais, bastante avançadas em si mesmas, abstraem o
princípio da alma e de sua difusão no Universo; nossa religião não
satisfaz às necessidades da inteligência; nossa medicina nada quer saber
nem da alma nem do espírito. O homem contemporâneo procura o
prazer sem a felicidade, a felicidade sem a ciência, e a ciência sem a
sabedoria. A antigüidade não admitia semelhante separação. Em todos
os domínios, ela levava em conta a tríplice natureza do homem. 

A
iniciação era um treino gradual de todo ser humano rumo aos cumes
vertiginosos do espírito, de onde se pode dominar a vida. “Para atingir o
domínio – diziam os sábios de então – o homem tem necessidade de
uma refundição total de seu ser físico, moral e intelectual. Ora, esta
refundição só é possível mediante o exercício simultâneo da vontade, da
intuição e do raciocínio. Por meio de sua completa concordância, o
homem pode desenvolver suas faculdades até limites incalculáveis.

 A
alma tem sentidos adormecidos; a iniciação os desperta. Através de um
estudo aprofundado, uma aplicação constante, o homem pode colocar-se
em comunicacao consciente com as forcas ocultas do Universo. Atraves
de um esforco prodigioso, ele pode atingir a percepcao espiritual direta,
abrir os caminhos do alem e tornar-se capaz de se dirigir para la.
Somente entao pode dizer que venceu o destino e conquistou aqui na
terra sua liberdade divina. Somente entao o iniciado pode tornar-se
iniciador, profeta e teurgo, isto e, vidente e criador de almas. Porque
somente aquele que comanda a si mesmo pode comandar os outros;
somente aquele que e livre pode libertar.102

Assim pensavam os iniciados antigos. Os maiores deles viviam e
agiam de acordo com esse pensamento. A verdadeira iniciacao,
portanto, era muito diferente de um sonho vazio e muito mais do que
um simples ensinamento cientifico; era a criacao de uma alma por ela
mesma, sua eclosao em um plano superior, sua eflorescencia no mundo
divino.

Coloquemo-nos no tempo dos Ramses, na epoca de Moises e de
Orfeu, cerca do ano 1.300 antes de nossa era . e esforcemo-nos para
penetrar no coracao da iniciacao egipcia. Os monumentos figurados, os
livros de Hermes, a tradicao judaica e a grega (2) permitem fazer reviver
as fases ascendentes e fazer uma ideia de sua mais alta revelacao.

(1). A teologia sabia, esoterica, diz M. Maspero, e monoteista desde os
tempos do Antigo Imperio. A afirmacao da unidade fundamental do ser divino
se expressa em termos formais e com grande energia nos textos que remontam aquela época. Deus e uno, unico, aquele que existe pela essencia, o que vive só em substância, o único gerador no ceu e sobre a terra, que nao foi gerado.

Ao mesmo tempo Pai, Mae e Filho, ele gera, ele procria e e, perpetuamente; e
estas tres pessoas, longe de dividir a unidade da natureza divina, concorrem
para sua infinita perfeicao. Seus atributos sao a imensidade, a eternidade, a
independencia, a vontade todo-poderosa, a bondade sem limite. gEle criou
seus proprios membros, que sao os Deusesh, dizem os velhos textos. Cada um
desses deuses secundarios, considerados identicos ao Deus Unico, pode
formar um tipo novo, de onde emanam por sua vez, e pelo mesmo processo,
outros tipos inferiores. - Histoire ancienne des peuples de I'Orient.(2). 

103
III

ISIS. A INICIACAO. AS PROVAS
No tempo dos Ramses, a civilizacao egipcia resplandecia no
apogeu de sua gloria. Os faraos da XXa dinastia, discipulos e guardioes
dos santuarios, sustentavam como verdadeiros herois a luta contra
Babilonia. Os arqueiros egipcios assediavam os libios, os bodones, os
numidas ate o centro da Africa. Uma frota de 400 velas perseguia a liga
dos cismaticos ate as bocas do Indo. Para melhor resistir ao choque da
Assiria e de seus aliados, os Ramses haviam tracado retas estrategicas
ate o Libano e constituido uma serie de fortes entre Magedo e
Carquemiche. Interminaveis caravanas afluiram, pelo deserto, de
Radasie a Elefantina. Os trabalhos de arquitetura prosseguiam sem
descanso e ocupavam os operarios de tres continentes. A sala hipostila
de Carnac fora recuperada e ai cada pilar atinge a altura da coluna
Vendome; o templo de Abidos se enriquecia com maravilhosas
esculturas e o Vale dos Reis, com grandiosos monumentos. Construiase
em Bubasta, em Lucsor, em Espeos Ibsambul. Em Tebas, um trofeu
colossal relembrava a tomada de Cadesh. Em Menfis, erguia-se o
Ramesseum cercado de uma floresta de obeliscos, estatuas e monolitos
gigantes.

Em meio a essa atividade efervescente, a essa vida ofuscante,
mais de um estrangeiro que aspirava aos Misterios, vindo das plagas
longinquas da Asia Menor ou das montanhas da Tracia, abordava o
Egito, atraido pela reputacao de seus templos! Ao chegar a Menfis, ele
ficava estupefato: monumentos, espetaculos, festas publicas, tudo lhe
dava impressao de opulencia e de grandeza. Apos a cerimonia da
consagracao real no recesso do santuario, ele via o farao sair do templo
diante da multidao, exibir o escudo sustentado por doze oficiais
paramentados de seu estado-maior. A sua frente, doze jovens levitas
mantinham sobre almofadas bordadas de ouro as insignias reais: o cetro
dos arbitrios com cabeca de carneiro, a espada, o arco e um jogo de
armas.

Atrás seguiam a casa real, os colegios sacerdotais e os iniciados
nos grandes e nos pequenos misterios. Os pontifices traziam a tiara
branca e em seu peito reluziam como fogo as pedras simbolicas. Os
dignitarios da coroa ostentavam as decoracoes do Cordeiro, do
Carneiro, do Leao, do Lis e da Abelha, suspensas por correntes macicas
admiravelmente trabalhadas. As corporacoes fechavam a marcha com
seus emblemas e suas bandeiras desfraldadas (1). A noite, barcas
magnificamente ornamentadas, conduziam pelos lagos artificiais as
orquestras reais, no meio das quais perfilavam-se em poses hieraticas
dancarinas e saltimbancos.

Mas nao era essa pompa esmagadora que o estrangeiro procurava.
O que o trazia de tao longe era o desejo de penetrar no segredo das
coisas, a sede de saber. Tinham-lhe dito que nos santuarios do Egito
viviam magos, hierofantes possuidores da ciencia divina. Ele tambem
queria ter acesso ao segredo dos deuses. Ouvira falar, por um sacerdote
de seu pais, do Livro dos Mortos, de seu rolo misterioso que se colocava
sob a cabeca das mumias como um viatico e que, segundo os sacerdotes
de Amon-Ra, narrava em linguagem simbolica a viagem de alemtumulo
da alma. O estrangeiro acompanhara com avida curiosidade e
um certo estremecimento interior mesclado de duvida essa longa
viagem da alma apos a vida; sua expiacao em uma regiao ardente; a
purificacao do seu involucro sideral; o encontro com o mau piloto
sentado na barca com a cabeca virada e o bom piloto, que olha de
frente; o companheiro diante dos quarenta e dois juizes terrestres; sua
justificacao por Tote; e, finalmente, sua entrada e sua transfiguracao na
luz de Osiris. Podemos aquilatar o poder deste livro e a revolucao total
que a iniciacao egipcia operava nos espiritos, pela passagem do Livro
dos Mortos que diz o seguinte: gEste capitulo foi achado em
Hermopolis, em escrita azul sobre uma laje de alabastro, aos pes do
deus Tote (Hermes), no tempo do rei Mencara, pelo principe Hatastefe,
quando ele viajava para inspecionar os templos. Ele transportou a pedra
para o templo real. Oh! grande segredo! Quando ele leu este capitulo,
nao viu mais nada, nao ouviu mais nada, nao se aproximou mais de
nenhuma mulher e nao comeu mais carne nem peixeh (2).105

 Porém, o que havia de verdadeiro nessas narrativas perturbadoras, nessas imagens hieráticas por detras das quais reluzia o terrivel misterio de alemtumulo?
 
Isis e Osiris o sabem! diziam. Mas que deuses seriam esses,
dos quais so se falava com um dedo sobre a boca? Para sabe-lo e que o
estrangeiro batia a porta do grande Templo de Tebas ou Menfis.

Os servos o conduziam sob o portico de um patio interno, cujos
pilares enormes pareciam lotus gigantescos sustentando, com sua forca
e sua pureza, a Arca solar, o templo de Osiris. O hierofante se
aproximava do novato.

 A majestade de seu porte, a tranquilidade de sua
fisionomia, o misterio de seus olhos negros, impenetraveis, mas repletos
de luz interior, ja de certa maneira, inquietavam o postulante. Este olhar
perfurava como uma puncao. O estrangeiro se sentia diante de um
homem do qual nada seria possivel esconder. O sacerdote de Osiris o
interrogava sobre sua cidade natal, sobre sua familia e sobre o templo
que o instruira. Se, nesse curto mas penetrante exame, ele fosse julgado
indigno dos misterios, um gesto silencioso, porem irrevogavel,
mostrava-lhe a porta. Se, contudo, o hierofante encontrasse no aspirante
o desejo sincero da verdade, pedia-lhe que o seguisse. 

Atravessavam
porticos, patios internos, depois, por uma avenida talhada na rocha, a
ceu aberto e guarnecida de estrelas e de esfinges, chegavam a um
pequeno templo que servia de entrada as criptas subterraneas. A porta
era dissimulada por uma estatua de Isis em tamanho natural. A deusa,
sentada, segurava um livro fechado sobre os joelhos, numa atitude de
meditacao e de recolhimento. Seu rosto estava velado e, sob a estatua,
se lia: Nenhum mortal levantou meu véu.

Dizia-lhe, entao, o hierofante:
Eis aqui a porta do santuario oculto. Olha estas duas colunas. A
vermelha representa a ascensao do espirito para a luz de Osiris; a negra
significa o seu cativeiro na materia, e esta queda pode ir ate o
aniquilamento. Todo aquele que aborda nossa ciencia e nossa doutrina
ai arrisca sua vida.

A loucura ou a morte, 
eis o que encontra o fraco ou o mau;
 somente os fortes e os bons encontram a vida e a imortalidade.
 
Muitos, imprudentes, entraram por esta porta e nao sairam vivos. E um
abismo que so restitui a luz os intrepidos.106

 Portanto, reflete muito no que vais fazer, nos perigos que vais correr e, se tua coragem nao for bastante para toda prova, renuncia a empresa. Pois, uma vez que esta porta se fechar sobre ti, nao poderas mais recuar.
Se o estrangeiro persistia em sua resolucao, o hierofante o levava
para o patio externo e o recomendava aos servidores do templo, com os
quais ele devia passar uma semana, obrigado aos trabalhos mais
humildes, escutando hinos e fazendo ablucoes. Recomendavam-lhe o
silencio mais absoluto.

Chegando, a noite das provas, dois neocoros (3) ou assistentes
levavam o aspirante aos misterios a porta do santuario oculto. Entravase
em um vestibulo escuro, sem saida aparente. Dos dois lados dessa
sala lugubre, a luz de tochas, o estrangeiro via uma fila de estatuas com
corpos de homens e cabeca de animais . leoes, touros, aves de rapina,
serpentes ., que pareciam fita-lo, zombando dele enquanto passava. Ao
fim desta sinistra avenida, que se atravessava sem pronunciar uma unica
palavra, havia uma mumia e um esqueleto humano, de pe, de frente um
para o outro. E, com um gesto mudo, os dois neocoros mostravam ao
novico um buraco no muro a sua frente. Era a entrada de um corredor
tao baixo que so se podia penetrar arrastando-se.
Dizia-lhe um dos assistentes:

. Podes ainda voltar. A porta do santuario ainda nao foi fechada.
Caso contrario, deves continuar teu caminho por ali, e sem retomo.
Entao, o novico respondia, reunindo toda sua coragem:

- Eu fico!
Entregavam-lhe, entao, uma pequena lampada acesa. Os neocoros
regressavam e fechavam com estrondo a porta do santuario. Nao era
possivel mais hesitar, era preciso entrar no corredor. Apenas comecava
a rastejar sobre os joelhos, com a lampada na mao, ele ouvia uma voz
dizer, do fundo do subterraneo: gAqui morrem os loucos que cobicaram
a ciencia e o poderh. Gracas a um maravilhoso efeito acustico, essa frase
era repetida sete vezes por meio de ecos distanciados.107

 Era preciso
avancar, todavia. O corredor se alargava, mas descia em rampa cada vez
mais inclinada. Enfim, o viajante destemido se encontrava diante de um
funil que terminava num buraco. Uma escada de ferro la se perdia; o
novico ai se arriscava. No ultimo degrau, seu olhar sobressaltado
desaparecia num poco assustador. Sua pobre lampada de nafta, que ele
apertava convulsivamente com a mao tremula, projetava uma luz difusa
nas trevas sem fundo. O que fazer? Acima dele, o retorno era
impossivel; para baixo, a queda na escuridao, na noite aterradora. Nessa
angustia, ele percebia uma fenda a esquerda. Agarrado a escada com
uma das maos e com a outra focalizando a lampada, ele aí via degraus.

Outra escada! Era a salvacao! Para ela se atirava, subia e escapava do
abismo. A escada, furando a rocha como uma verruma, subia em
espiral. No fim, o aspirante esbarrava numa grade de bronze que dava
para uma larga galeria, sustentada por enormes cariatides. Nos
intervalos, na parede, viam-se duas fileiras de pinturas simbolicas.
Havia doze de cada lado, suavemente iluminadas por lampadas de
cristal que as belas cariatides seguravam.

Um mago, chamado pastoforo (guardiao dos simbolos sagrados)
abria a grade ao novico e o acolhia com um sorriso benevolente.

Felicitava-o por ter felizmente vencido a primeira prova; depois,
conduzindo-o atraves da galeria, explicava-lhe as pinturas sagradas.

Embaixo de cada uma dessas pinturas, havia uma letra e um numero. Os
vinte e dois simbolos representavam os vinte e dois primeiros arcanos e
constituiam o alfabeto da ciencia oculta, quer dizer, os principios
absolutos, as chaves universais que, aplicadas pela vontade, tornam-se a
fonte de toda a sabedoria e de todo o poder. Esses principios se fixavam
na memoria pela correspondencia com as letras da linguagem sagrada e
com os numeros que se ligam a estas letras. Cada letra e cada numero
exprime, nessa linguagem, uma lei ternaria, tendo sua repercussao no
mundo divino, no mundo intelectual e no mundo fisico. Assim como o
dedo que tange uma corda da lira faz ressoar uma nota da gama e vibrar
todas as suas harmonias, assim tambem o espirito que contempla todas
as virtualidades de um numero, a voz que profere uma letra com a
consciencia de seu alcance, evocam um poder que repercute nos tres
mundos.108

E assim que a letra A, que corresponde ao numero 1, exprime no
mundo divino: Ser absoluto de onde emanam todos os seres; no mundo
intelectual: a unidade, fonte e sintese dos numeros; no mundo fisico: o
homem, apice dos seres relativos, que, pela expansao de suas
faculdades, se eleva nas esferas concentricas do infinito. .

O A arcano 1
era representado, entre os egipcios, por um mago de vestimenta branca,
cetro na mao, a fronte cingida de uma coroa de ouro. A veste branca
significava a pureza, o cetro, o dominio, a coroa de ouro, a luz
universal.

O novico estava longe de compreender tudo o que ouvia de
estranho e de novo; mas perspectivas desconhecidas se entreabriam
diante dele a palavra do pastoforo, diante das belas pinturas que o
olhavam com a impassivel gravidade dos deuses. Atras de cada uma
delas, ele vislumbrava por meio de revelacoes uma serie de
pensamentos e de imagens subitamente evocadas. Pela primeira vez ele
pressentia o interior do mundo atraves da cadeia misteriosa das causas.

Assim, de letra em letra, de numero em numero, o mestre ensinava ao
discipulo o sentido dos arcanos, e o conduzia de Isis Urania ao carro de
Osiris, pela torre fulminada a estrela flamejante, e finalmente a coroa
dos magos. Fica sabendo . dizia o pastoforo . o que quer dizer esta
coroa: toda vontade que se une a Deus, para manifestar a verdade e
operar a justica, participa ja nesta vida do poder divino sobre os seres e
as coisas, como recompensa eterna dos espiritos livres. Enquanto ouvia
o mestre, o neófito experimentava um misto de surpresa, de temor e de
arrebatamento. Eram os primeiros claroes do santuario, e a verdade
entrevista lhe parecia a aurora de uma divina recordacao.

Mas as provas nao tinham ainda terminado. Acabando de falar, o
pastoforo abria uma porta que dava acesso a outra abobada estreita e
longa, em cuja extremidade crepitava uma fornalha ardente. E o novico,
tremulo, olhava seu guia e dizia:

- Mas isto e a morte!
- Filho - respondia o pastoforo - a morte so apavora as naturezas
abortadas. Outrora, atravessei estas chamas como se fossem um roseiral.
E a grade da galeria dos arcanos se fechou atras do postulante.
Aproximando-se da barreira de fogo, ele percebia que a fornalha se
resumia a uma ilusao de otica criada por leves entrelacamentos de
ramos resinosos, dispostos em quincunce sobre grelhas. 109

Uma vereda
desenhada no meio permitia-lhe passar rapidamente. A prova do fogo
sucedia a prova da agua. O aspirante era forcado a atravessar uma agua
morta e negra, ao clarao de um incendio de nafta que se acendia por tras
dele, no quarto do fogo. Depois disto, dois assistentes o conduziam,
todo tremulo ainda, a uma gruta obscura onde se via apenas um leito
macio, misteriosamente iluminado pela meia-luz de uma lampada de
bronze suspensa na abobada. Secavam-lhe o corpo, faziam-lhe
massagem com essencias aromaticas, vestiam-no de fino linho e
deixavam-no so, depois de lhe terem dito: Repousa e espera o
hierofanteh.

O novico estendia os membros cansados sobre o tapete suntuoso
do leito. Depois das emoções diversas por que passara, esse momento
de calma lhe parecia doce. As pinturas sagradas que vira, todas aquelas
figuras estranhas, as esfinges, as cariatides voltavam a sua imaginacao.
Porem, por que uma daquelas pinturas se repetia como uma alucinacao?
Ele revia obstinadamente o arcano X representado por uma roda
suspensa sobre seu eixo entre duas colunas. De um lado sobe
Hermanubis, o genio do Bem, belo como um jovem efebo; do outro,
Tifon, o genio do Mal, com a cabeca baixa, se precipita no abismo.
Entre os dois, acima da roda, esta sentada uma esfinge segurando na
garra uma espada.

O vago som de uma música lasciva, que parecia partir do fundo da
gruta, desvanecia aquela imagem. Eram sons leves e indefinidos, de um
langor triste e penetrante. Um tinido metalico vinha afagar seus
ouvidos, misturado aos tremulos harpejos, de onde escapavam sons de
flauta, suspiros ofegantes como um sopro ardente. Envolto num sonho
de fogo, o estrangeiro fechava os olhos. Ao reabri-los, via a alguns
passos do leito uma aparicao perturbadora de vida e de infernal seducao.

Uma mulher de Núbia, vestida em gaze de purpura transparente, um
colar de amuletos ao pescoco, semelhante as sacerdotisas de Milita, la
estava, de pe, cobrindo-o com o olhar e segurando com a mao esquerda
uma taca coroada de rosas. Ela era do tipo nubio, cuja sensualidade
intensa e capitosa concentra todos os poderes do animal feminino:
macas salientes, narinas dilatadas, labios polpudos como um fruto
vermelho e saboroso. Seus olhos negros brilhavam na penumbra. O
novico erguia-se e, surpreso, nao sabendo se devia tremer ou rejubilarse,
cruzava instintivamente as maos sobre o peito. Mas a escrava
avancava a passos lentos e, com as palpebras descerradas, murmurava
em voz baixa: gTens medo de mim, belo estrangeiro? 

Trago-te a recompensa dos vencedores, 
o esquecimento das penas, a taca da
felicidade. . .
 
 O novico hesitava; então, como que tomada de lassidao, a
nubia sentava-se no leito e envolvia o estrangeiro com um olhar
suplicante como uma longa chama umida. Infeliz dele se ousasse tocala,
se se inclinasse sobre aquela boca, se se inebriasse com os perfumes
pesados que subiam daquelas espaduas bronzeadas. Uma vez que
houvesse tomado aquela mao e molhado os labios naquela taca, estaria
perdido... e rolaria no leito preso num amplexo ardente. Mas, depois da
satisfacao selvagem do desejo, o liquido que bebera mergulhava-o num
sono pesado. Ao despertar, via-se so, angustiado. A lampada lancava
urna claridade funebre sobre o leito em desordem. Um homem estava de
pe, diante dele. Era o hierofante, que lhe dizia:

- Venceste as primeiras provas. Triunfaste sobre a morte, o fogo e
a agua; mas nao soubeste vencer a ti mesmo. Tu, que aspiras as alturas
do espirito e do conhecimento, sucumbiste a primeira tentacao dos
sentidos e tombaste no abismo da materia. Quem vive escravo dos
sentidos, vive nas trevas. Preferiste as trevas a luz; fica, pois, nas trevas.
Eu te adverti dos perigos aos quais te expunhas. Salvaste tua vida, mas
perdeste a liberdade. Permaneceras, sob pena de morte, escravo do
templo.

Se, ao contrario, o aspirante houvesse derramado a taca e repelido
a tentadora, doze neocoros armados de tochas vinham cerca-lo para
conduzi-lo triunfalmente ao santuario de Isis, onde os magos em
semicirculo e vestidos de branco aguardavam-no em assembleia
plenaria. No fundo do templo esplendidamente iluminado, ele percebia
a estatua colossal de Isis em metal fundido, uma rosa de ouro ao peito e
coroada de um diadema de sete raios de luz, trazendo nos bracos o filho
Horus. Diante da deusa, o hierofante vestido de purpura recebia o
neofito e, sob as mais terriveis imprecacoes, mandava-o fazer o
juramento do silencio e da submissão. Entao, saudava-o em nome de
toda a assembleia como um irmao e como um futuro iniciado. Diante
destes augustos mestres, o discipulo de Isis acreditava-se em presenca
dos deuses. Dignificado acima de si mesmo, pela primeira vez ele
penetrava na esfera da verdade.111

(1). Ver as pinturas murais dos tempos de Tebas, reproduzidas no livro
de Francois Lenormant e o capitulo sobre o Egito na Mission des Juifs, de M.
Saint-Yves d'Alveydre.
(2). Livro dos Mortos, cap. LXIV.
(3). Por ser mais inteligivel, empregamos aqui a traducao grega dos
termos egipcios.112

IV

OSIRIS. A MORTE E A RESSURREICAO
No entanto, o novico nao fora alem do limiar da iniciacao. Pois
comecavam agora os longos anos de estudo e de aprendizagem. Antes
de chegar a Isis Ucrania, ele devia conhecer a Isis terrestre, instruir-se
nas ciencias fisicas e androgonicas. Seu tempo se dividia entre as
meditacoes em sua cela, o estudo dos hieroglifos nas salas e nos patios
do templo tao vasto quanto uma cidade, e as licoes dos mestres. Ele
aprendia a ciencia dos minerais e das plantas, a historia do homem e dos
povos, a medicina, a arquitetura e a musica sacra. Nessa longa
aprendizagem, ele nao devia somente conhecer, mas transformar-se,
ganhar forca por meio da renuncia.

Os sabios antigos acreditavam que o homem somente possui a
verdade se ela se tornar uma parte do intimo de seu ser, um ato
espontaneo da alma. Durante aquele profundo trabalho de assimilacao, o
discipulo era deixado sozinho consigo mesmo. Os mestres nao o
ajudavam em nada, e muitas vezes ele se espantava com sua frieza e
indiferenca. Vigiavam-no com atencao; submetiam-no a regras
inflexiveis; exigiam dele obediencia absoluta; mas nao lhe revelavam
nada alem de certos limites. Ante suas inquietacoes e perguntas,
respondiam-lhe: Espera e trabalha!

Vinham-lhe, entao, revoltas subitas, arrependimentos amargos,
suspeitas horriveis. Teria ele se tornado escravo de impostores
audaciosos da magia negra, que subjugavam sua vontade para um fim
infame? A verdade fugia; os deuses o abandonavam; ele estava so e
prisioneiro do templo. A verdade tinha-lhe aparecido sob a figura de
uma esfinge. Agora, a esfinge lhe dizia: Eu sou a Duvida!h E a besta
alada, com sua cabeca de mulher impassivel e suas garras de leao,
transportava-o para dilacera-lo na areia ardente do deserto.

Porem, a esses pesadelos sucediam horas de calma e de
pressentimento divino. Ele compreendia, entao, o sentido simbolico das
provas que atravessara ao entrar no templo. Porque, ai! o poco sombrio
em que ele quase caira era menos negro do que a insondavel verdade; o
fogo que atravessara era menos temivel do que as paixoes que
queimavam ainda sua carne; a agua gelada e tenebrosa onde tivera de
mergulhar era menos fira do que a duvida em que seu espirito
naufragava e se arruinava nas horas mas.113

Em uma das salas do Templo se estendiam, em duas filas, aquelas
mesmas pinturas sagradas, cujo sentido tinham-lhe explicado na cripta
durante a noite das provas, e que representavam os vinte e um arcanos.

Esses arcanos, que se deixavam entrever no limiar da ciencia oculta,
eram as proprias colunas da teologia; mas era preciso ter atravessado
toda a iniciacao para compreende-los. Depois, nenhum dos mestres
tornara a falar-lhe deles. Permitiam-lhe somente passear naquela sala,
meditar sobre aqueles sinais. Ele alí passava longas horas solitarias. Por
aquelas figuras castas como a luz, graves como a Eternidade, a invisivel
e impalpavel verdade se infiltrava lentamente no coracao do neofito. Na
muda sociedade daquelas divindades silenciosas e sem nome, cada uma
das quais parecia presidir a uma esfera da vida, ele comecava a
experimentar algo de novo: primeiro uma descida ao fundo do seu ser,
depois, uma especie de desligamento do mundo que o fazia pairar acima
das coisas. As vezes, ele perguntava a um dos magos: Ser-me-a
permitido um dia respirar a rosa de Isis e ver a luz de Osiris?

Respondiam-lhe: Isto nao depende de nós. A verdade nao se dá. E
encontrada em si mesma ou nao e encontrada. Nos nao podemos fazer
de ti um adepto, e preciso torna-lo por ti mesmo. O lotus pulsa sob as
aguas do rio por muito tempo, antes de desabrochar. Nao apresses a
eclosao da flor divina. Se ela deve vir, vira no dia certo. Trabalha e
ora!

E o discipulo voltava aos estudos, as meditacoes, com uma alegria
triste. Ele sentia o encanto austero e suave daquela solidao que passava
como um sopro do ser dos seres. Assim corriam os meses, os anos.114

 E
ele percebia operar-se em si uma transformacao lenta, uma metamorfose
completa. As paixoes que haviam assediado sua juventude se afastavam
como sombras, e os pensamentos que o acometiam agora sorriam-lhe
como amigos imortais. O que ele experimentava por momentos era o
desaparecimento de seu eu terrestre e o nascimento de um outro eu,
mais puro e mais etereo. Com esse sentimento, acontecia-lhe prosternarse
diante dos degraus do santuario fechado. Entao, nao existia mais nele
revolta, nem desejo algum, nem arrependimento. Havia apenas um
abandono perfeito de sua alma aos Deuses, uma oblacao completa a
verdade. gOh! Isis . dizia ele em sua prece . uma vez que minha alma
nao e mais do que uma lagrima de teus olhos, que ela caia como orvalho
sobre as outras almas e que, morrendo, eu sinta seu perfume subir em
tua direcao. Eis-me aqui, pronto para o sacrificio!

Após uma dessas oracoes mudas, o discipulo ainda em extase via,
de pe perto dele, como uma visao saida do sol, o hierofante envolto nos
calidos claroes do pôr-do-sol. O mestre parecia ler todos os
pensamentos do discipulo, penetrar todo o drama de sua vida interior. E
dizia-lhe:

- Filho, aproxima-se a hora em que a verdade ser-te-a revelada. Tu
ja a pressentiste descendo ao fundo de ti mesmo e ai encontrando a vida
divina. Vais entrar na grande, na inefavel comunhao dos Iniciados. Es
digno dela pela pureza do coracao, pelo amor da verdade e a forca da
renuncia. Mas ninguem transpoe a soleira de Osiris sem passar pela
morte e pela ressurreicao. Nos te acompanharemos ate a cripta. Nao
tenhas medo, pois já és um de nossos irmãos.

No crepúsculo, os sacerdotes de Osiris, empunhando tochas,
acompanhavam o novo adepto a uma cripta baixa, sustentada por quatro
pilares assentados sobre esfinges. Em um canto se encontrava aberto um
sarcofago de marmore (1). E o hierofante o advertia:
- Nenhum homem escapa a morte e toda alma viva esta destinada
a ressurreicao. O adepto passa vivo pelo tumulo para, desta vida, entrar
na luz de Osiris. Deita-te, pois, neste sarcofago e espera a luz. Nesta
noite atravessaras a porta do Terror e alcancaras os umbrais do
Mestrado.115

O adepto deitava-se no sarcofago aberto, o hierofante estendia a
mao sobre ele, para abencoa-lo, e o cortejo dos iniciados se afastava em
silencio da sepultura. Uma pequena lampada deixada no chao ilumina
ainda, com sua luz incerta, as quatro esfinges que sustentam as colunas
atarracadas da cripta. Um coro de vozes profundas se faz ouvir, baixo e
velado. De onde vem ele? E o canto dos funerais!..., Ele termina, a
lampada lanca um derradeiro clarao, depois se extingue completamente.

O adepto esta so nas trevas, o frio do sepulcro cai sobre ele e congelalhe
todos os membros. Passa gradualmente pelas sensacoes dolorosas da
morte e cai em letargia. Sua vida desfila diante dele em quadros
sucessivos, como algo irreal e sua consciencia terrestre torna-se cada
vez mais vaga e difusa. Mas a medida que sente seu corpo se dissolver,
a parte eterea e fluida de seu ser se desprende. Ele entra em extase...

Que ponto brilhante e longínquo e este que aparece, imperceptivel
no fundo negro das trevas? Ele se aproxima, aumenta, transforma-se
numa estrela de cinco pontas, cujos raios tem todas as cores do arco-iris
e que lanca nas trevas descargas de luz magnetica. Agora e um sol que o
atrai na brancura de seu centro incandescente. Sera a magia dos mestres
que produz essa visao? Sera o invisivel que se torna visivel?

 Será o presságio da verdade celeste, a estrela flamejante da esperanca e da
imortalidade? . Ela desaparece; e em seu lugar um botao de flor
desabrocha na noite, uma flor imaterial, mas sensivel e dotada de uma
alma. Abre-se diante dele como uma rosa branca; desabrocha suas
petalas e ele ve tremularem suas folhas vivas e avermelhar-se seu calice
inflamado.

Sera a flor de Isis, a Rosa mistica da sabedoria que encerra o
Amor em seu coração?

Mas, eis que de repente ela se evapora como uma nuvem de
perfumes. Entao, aquele que estava em extase se sente inundado num
sopro quente e acariciante. E, depois de ter tomado formas caprichosas,
a nuvem se condensa e se transforma numa figura humana. E a figura de
uma mulher, a Isis, do santuario oculto, porem, mais jovem, sorridente e
luminosa. Um veu transparente a envolve em espiral e seu corpo brilha,
revelando-se. Segurando um rolo de papiro, ela se aproxima docemente,
inclina-se sob o iniciado deitado no tumulo e lhe diz: gEu sou a tua irma
invisivel, tua alma divina e este e o livro da tua vida. Ele contem
paginas repletas de tuas existencias passadas e paginas brancas das
futuras. Um dia, desenrolarei todas diante de ti. Agora tu me conheces.
116

Chama-me e eu virei!
 E enquanto ela fala, brota-lhe dos olhos um raio
de ternura... presença de uma reprodução angélica, promessa inefável do
divino, fusão maravilhosa no impalpável além!...

Mas tudo se rompe, a visao se desfaz. Uma dilaceracao atroz... e o
adepto se sente precipitado em seu corpo como em um cadaver. Volta
ao estado de letargia consciente; circulos de fogo apertam-lhe os
membros; um peso terrivel comprime seu cerebro; ele desperta... e, de
pe, diante dele, esta o hierofante, acompanhado dos magos. Rodeiamno,
fazem-no beber um cordial e ele se levanta.
Proclama, entao, o profeta:
- Eis que surges ressuscitado! Vem celebrar conosco o agape dos
iniciados e conta-nos tua viagem na luz de Osiris. Pois, de hoje em
diante, es um dos nossos.

Transporterno-nos agora, com o hierofante e o novo iniciado, ao
observatorio do templo, no tepido esplendor de uma noite egipcia. La o
chefe do templo fazia, ao adepto recente, a grande revelacao, narrandolhe
a visao de Hermes Essa visao nao estava escrita em nenhum papiro.
Era apenas indicada por sinais simbolicos nas estrelas da cripta secreta,
so conhecida pelo profeta. E sua explicacao era transmitida, oralmente,
de pontifice a pontifice.

. Presta atenção . dizia o hierofante ., esta visao encerra a
historia eterna do mundo e o circulo das coisas.

(1). Os arqueólogos viram, durante muito tempo, no sarcofago da
grande piramide de Gise, o túmulo do rei Sesostris, baseados na opiniao de
Herodoto, que nao era iniciado e ao qual os sacerdotes egipcios confiaram
apenas anedotas e contos populares. Mas os reis do Egito tinham sua sepultura em outro lugar. A estrutura interior e bizarra da piramide prova que ela devia servir para as cerimonias da iniciacao e praticas secretas dos sacerdotes de Osiris. Encontra-se ali o Poço da Verdade, que descrevemos, a escadaria, a Sala dos arcanos... A chamada câmara do rei, que encerra o sarcófago, era aquela a qual conduziram o adepto na véspera de sua grande iniciação. As mesmas disposições estavam reproduzidas nos grandes templos da Idade Média e do Alto Egito.117

V

A VISAO DE HERMES (1)
Um dia, Hermes adormeceu, apos ter refletido sobre a origem
das coisas. Um pesado torpor apoderou-se-lhe do corpo; mas, a medida
que o corpo se entorpecia, seu espirito se elevava nos espacos. Entao,
teve a impressao de que um ser imenso, sem forma determinada, o
chamava pelo nome. Atemorizado, Hermes pergunta: 

- Quem és tu?
- Eu sou Osíris, a Inteligência soberana, e posso revelar todas as
coisas. O que desejas?
- Contemplar a origem dos seres, oh! divino Osíris, e conhecer
Deus.

- Serás satisfeito.
Logo Hermes sentiu-se inundado por uma luz deliciosa. Naquelas
ondas diáfanas passavam as formas encantadoras de todos os seres.
Porém, repentinamente, trevas assustadoras e de forma sinuosa
desceram sobre ele. Hermes mergulhou num caos úmido, cheio de
fumaça e de um lúgubre rugido. Então, uma voz se elevou do abismo.
Era o grito da luz. Logo, um fogo sutil lançou-se das profundezas
úmidas e ganhou as alturas etéreas. Hermes subiu com ele e se reviu nos
espaços. O caos clareava no abismo; coros de astros ressoavam sobre
sua cabeça; e a voz da luz enchia o infinito.

E Osíris perguntou a Hermes, acorrentado em seu sonho e
supenso entre a terra e o céu:

- Compreendeste o que viste?
- Não, respondeu Hermes.
- Pois bem, vais compreender. Acabas de ver toda a eternidade. A
luz, que viste primeiro, é a inteligência divina que contém todas as
coisas em potência e encerra os modelos de todos os seres. As trevas,
em que mergulhaste a seguir, é o mundo material onde vivem os
homens da terra. Mas o fogo, que viste brotar das profundezas, é o
Verbo divino. Deus é o Pai, o Verbo é o Filho, sua união é a Vida.118

Comentou Hermes:
- Que sentido maravilhoso abriu-se para mim! Não vejo mais com
os olhos do corpo, mas com os do espírito. Como é possível isto?
Osíris respondeu:
- Filho do pó! Isto é porque o Verbo está em ti. O que em ti ouve,
vê, age, é o próprio Verbo, o fogo sagrado, a palavra criadora!

Então disse Hermes:
- Já que é assim, deixa-me ver a vida dos mundos, o caminho das
almas, de onde o homem vem e para onde vai.
- Que seja feito segundo teu desejo.

Hermes tornou-se mais pesado do que uma pedra e rolou pelos
espaços como uma aerólito. Finalmente, viu-se no cume de uma
montanha. Era noite; a terra sombria e nua; seus membros pareciam-lhe
pesados como ferro. E ouviu a voz de Osíris:
- Ergue os olhos e olha!

Então, Hermes viu um espetáculo maravilhoso. O espaço infinito,
o céu estrelado o envolvia com as sete esferas luminosas. Com um só
olhar Hermes percebeu os sete céus dispostos sobre sua cabeça como
sete globos transparentes e concêntricos, cujo centro sideral ele
ocupava. O último tinha como circuito a Via Láctea. Em cada esfera
girava um planeta acompanhado de um gênio de forma, signo e luz
diferentes. Enquanto Hermes, deslumbrado, contemplava sua
florescência esparsa e seus majestosos movimentos, a voz lhe disse:

- Olha, escuta e compreende. Estás vendo as sete esferas de toda
vida. Através delas se efetua a queda das almas e sua ascensão. Os sete
Gênios são os sete raios do Verbo-Luz. Cada um deles comanda uma
esfera do Espírito, uma fase da vida das almas. O mais próximo de ti é o
Gênio da Lua, com seu sorriso inquietante e coroado de uma foice de
prata. Ele preside aos nascimentos e às mortes. Separa as almas dos
corpos e as atrai para seu raio de luz. Acima dele, o pálido Mercúrio
mostra o caminho às almas, que descem e sobem com seu caduceu que
contém a Ciência. Mais alto, a brilhante Vênus segura o espelho do
Amor, em que as almas alternadamente se esquecem e se reconhecem.
Abaixo dela, o Gênio do Sol ergue a tocha triunfal da eterna Beleza.119

Mais alto ainda, Marte brande o gládio da Justiça. Reinando sobre a
esfera azulada, Júpiter sustenta o cetro do poder supremo, que é a
Inteligência divina. Nos limites do mundo, sob os signos do zodíaco,
Saturno carrega o globo da sabedoria universal (2).

Hermes falou:
- Vejo as sete regiões que compreendem o mundo visível e
invisível; vejo os sete raios do Verbo-Luz, do Deus único que as
atravessa e governa. Mas, meu mestre, como se realiza a viagem dos
homens através de todos esses mundos?

Respondeu Osíris:
- Vês uma semente luminosa cair das regiões da via Láctea na
sétima esfera? São germes de almas. Elas vivem como vapores leves na
região de Saturno, felizes, sem preocupação, e desconhecem sua
felicidade. Porém, ao cair de esfera em esfera, elas revestem-se de
invólucros sempre mais pesados. Em cada encarnação, adquirem um
novo sentido corporal, conforme o meio em que habitam. Sua energia
vital aumenta; e, à medida que penetram em corpos mais densos, elas
perdem a lembrança de sua origem celeste. Assim se completa a queda
das almas que vêm do divino Éter. Cada vez mais cativas da matéria,
cada vez mais inebriadas com a vida, elas se precipitam como uma
chuva de fogo, com estremecimentos de volúpia, através das regiões da
Dor, do Amor e da Morte, até sua prisão terrestre; onde tu mesmo
gemes retido pelo centro ígneo da terra e onde a vida divina te parece
um sonho vão.

Hermes perguntou:
- As almas podem morrer?
Respondeu a voz de Osíris:
- Sim, muitas perecem na descida fatal. A alma é filha do céu e
sua viagem é uma prova. Se, em seu amor desenfreado pela matéria, ela
perde a lembrança de sua origem, a centelha divina que nela estava, e
que teria podido tornar-se mais brilhante do que uma estrela, volta à
região etérea como átomo sem vida – e a alma se desagrega no turbilhão
dos elementos grosseiros.

120
A estas palavras, Hermes estremeceu. E uma tempestade rugidora
o envolveu com uma nuvem negra. As sete esferas desapareceram sob
densos vapores. Ele então viu espectros humanos soltando gritos
estranhos, arrancados e dilacerados por fantasmas de monstros e
animais, em meio a gemidos e blasfêmias inomináveis.
E Osíris, então, falou:

- Tal é o destino das almas irremediavelmente baixas e más. Sua
tortura só termina com sua destruição, que é a perda de toda a
consciência. Mas veja, os vapores se dissipam e as sete esferas
reaparecem sob o firmamento. Olha deste lado. Vês este enxame de
almas que procura subir para a região lunar? Umas são rebaixadas para
a terra como turbilhões de pássaros sob os golpes da tempestade. Outras
atingem, em grandes vôos, a esfera superior, que as arrasta em sua
rotação. Uma vez lá chegando, elas recuperam a visão das coisas
divinas. Mas desta vez elas não se contentam apenas em refleti-las no
sonho de uma felicidade impotente. Elas se deixam impregnar com a
lucidez da consciência clareada pela dor, com a energia da vontade
adquirida na luta. Tornam-se luminosas, porque possuem o divino em si
mesmas e o manifestam em seus atos. Fortalece, pois, tua alma, oh!

Hermes, e tranqüiliza teu espírito obscurecido, contemplando esses vôos
longínquos de almas que tornam a subir as sete esferas e lá se espalham
como feixes faiscantes. Pois tu também podes segui-las; basta querer,
para elevar-se. Vê como elas enxameiam e descrevem coros divinos.
Cada uma se junta ao seu gênio preferido. As mais belas vivem na
região solar, as mais poderosas se elevam até Saturno. Algumas sobem
novamente até ao Pai, entre as potências, sendo elas mesmas outras
potências. Porque lá, onde tudo termina, tudo começa eternamente; e as
sete esferas dizem juntas:

 “Sabedoria! Amor! Justiça! Beleza!
Esplendor! Ciência! Imortalidade!”
 

E o hierofante, então, explicava:

-“Eis o que viu o antigo Hermes e o que seus sucessores nos
transmitiram. As palavras do sábio são como as sete notas da lira, que
encerram toda a música com os números e as leis do universo. A visão
de Hermes se assemelha ao céu estrelado, cujas profundezas
121
insondáveis estão semeadas de constelações. Para o menino, não passa
de uma abóbada com cravos de ouro; para o sábio é o espaço ilimitado
onde giram os mundos com seus ritmos e suas cadências maravilhosas.
Esta visão encerra os números eternos, os signos evocadores e as chaves
mágicas. Quanto mais aprenderes a contemplá-la e a compreendê-la,
mais verás se estenderem seus limites. Porque a mesma lei orgânica
governa todos os mundos”.

E o profeta do templo comentava o texto sagrado. Explicava que a
doutrina do Verbo-Luz representa a divindade no estado estático em seu
equilíbrio perfeito. Demonstrava sua tríplice natureza, que é ao mesmo
tempo inteligência, força e matéria; espírito, alma e corpo; luz, verbo e
vida. A essência, a manifestação e a substância são três termos que se
superpõem reciprocamente. Sua união constitui o princípio divino e
intelectual por excelência, a lei da unidade ternária, que de alto a baixo
domina a criação.

Tendo assim conduzido seu discípulo ao centro ideal do universo,
ao princípio gerador do Ser, o mestre desabrochava-o no tempo e no
espaço, sacudia-o em florações múltiplas. Pois a segunda parte da visão
representa a divindade no estado dinâmico, isto é, em evolução ativa ou,
em outros termos, o universo visível e invisível, o céu vivo. As sete
esferas ligadas a sete planetas simbolizavam sete princípios, sete
estados diferentes da matéria e do espírito, sete mundos diversos que
cada homem e cada humanidade são forçados a transpor em sua
evolução através do Sistema solar. 

Os sete Gênios, os sete Deuses,
cosmogônicos significavam os espíritos superiores e dirigentes de todas
as esferas, oriundos, eles mesmos, a inelutável evolução. Cada grande
Deus era, portanto, para o iniciado antigo, o símbolo e o modelo de
legiões de espíritos que reproduziam seu tipo sob mil variantes e que de
sua esfera podiam exercer uma ação sobre o homem e sobre as coisas
terrestres. Os sete Gênios da visão de Hermes são os sete Devas da
Índia, os sete amachapandas da Pérsia, os sete grandes Anjos da
Caldéia, os sete Sefirotes (3) da Cabala, os sete Arcanjos do Apocalipse
cristão. E o grande setenário que envolve o universo não vibra somente
nas sete cores do arco-íris, nas sete notas da escala musical: ele se
manifesta ainda na constituição do homem, que é tríplice por essência,
mas sétuplo por sua evolução (4).
Dizia o hierofante, para terminar:

- Assim penetraste no limiar do grande arcano. A vida divina
apareceu-te sob as quimeras da realidade. Hermes te fez conhecer o céu
invisível, a luz de Osíris, o Deus oculto do universo, que respira por dez
milhões de almas, anima os globos errantes, e os corpos em ação. Cabe
a ti, agora, dirigir-te a ti mesmo e escolher teu caminho para subir até o
Espírito puro. Pois, de hoje em diante, pertences aos ressuscitados
vivos. Não te esqueças de que há duas chaves principais da ciência. Eis
a primeira: “O exterior é como o interior das coisas; o pequeno é como
o grande; só há uma única lei e aquele que trabalha é Um. Nada é
pequeno, nada é grande na economia divina”. Eis a segunda:

 “Os homens são deuses mortais
 e os deuses são homens imortais”. 

 
Feliz daquele que compreende essas palavras, porque possui a chave de todas
as coisas. Lembra-te que a lei do mistério dissimula a grande verdade. O
total conhecimento só pode ser revelado aos nossos irmãos que
passaram pelas mesmas provas que nós. É preciso regular a verdade
segundo as inteligências – disfarçá-la com um véu para os fracos,
porque ela torná-los-ia loucos; ocultá-las dos maus, que dela só podem
apreender fragmentos, dos quais fariam armas de destruição. Encerra-a
em teu coração e que ela fale por tuas obras. A ciência será tua força, a
fé tua espada e o silêncio tua armadura infrangível.

As revelações do profeta de Âmon-Rá, que abriam ao novo
iniciado tão vastos horizontes, sobre si mesmo e sobre o universo, sem
dúvida alguma produziam profunda impressão, quando feitas no
observatório de um templo de Tebas, na calma lúcida de uma noite
egípcia. Os pilares, os tetos e os terraços brancos dos templos dormiam
a seus pés, entre os maciços negros dos nopais e dos tamarineiros. À
distância, grandes monolitos, estátuas colossais dos Deuses, estavam
assentados como juizes incorruptíveis sobre seu lago silencioso. Três
pirâmides, figuras geométricas do tetragrama e do setenário sagrado,
perdiam-se no horizonte, espaçando seus triângulos no cinzento leve do
ar. O insondável firmamento pululava de estrelas. Com que surpresa ele
123
olhava esses astros, que lhe pintavam como futuras moradas! Quando,
finalmente, o esquife dourado da lua emergia do espelho sombrio do
Nilo, que se perdia no horizonte como uma longa serpente azulada, o
neófito acreditava ver a barca de Ísis navegando no rio das almas e
transportando-as para o sol de Osíris. Recordava-se, então, do Livro dos
Mortos e o sentido de todos esses símbolos se revelava agora a seu
espírito. Depois do que havia visto e aprendido, podia acreditar-se no
reino crepuscular de Amenti, misterioso interregno entre a vida terrestre
e a vida celestial, onde os defuntos, a princípio sem olhos e sem palavra,
recuperam pouco a pouco a visão e a voz. Ele também iria empreender a
grande viagem, a viagem do infinito, através dos mundos e das
existências. Hermes já o absolvera e o julgara digno, tendo já lhe dito a
palavra do grande enigma: “Uma única alma, a grande alma do Todo,
gerou, dividindo-se, todas as almas que se movem no Universo”.

Armado do grande segredo, o neófito subia na barca de Ísis. Ela
partia. Soerguida nos espaços etéreos, ela flutuava nas regiões
intersiderais. Ora amplos raios de uma imensa aurora varavam os véus
azulados dos horizontes celestes, ora o coro dos, espíritos gloriosos, dos
Auimu-Secu, que alcançaram o eterno repouso, cantava:

 “Levanta-te,
Rá-Hermacuti! Sol dos espíritos!
 Aqueles que vão em tua barca estão em exaltação! 
Soltam exclamações na barca de milhões de anos.


 O grande ciclo divino transborda de alegria
 glorificando a grande barca sagrada.
 Celebram-se festas na capela misteriosa.
 Levanta-te, Âmon-Rá
Hermacuti! Sol que a si mesmo se criou!” 

E o iniciado respondia com
estas palavras orgulhosas:

 “Eu alcancei o país da verdade e da justificação.

                  Ressuscito como um Deus vivo e brilho no coro dos
Deuses que habitam o céu, porque sou de sua raça”.
 
Tanto os pensamentos altivos como as esperanças audaciosas
perseguiam o espírito do adepto, na noite que sucedia à cerimônia
mística da ressurreição. No dia seguinte, nas avenidas do templo, sob a
luz deslumbrante, não lhe parecia mais do que um sonho. Mas que
sonho inolvidável fora essa primeira viagem no impalpável e no
invisível... De novo ele lia a inscrição na estátua de Ísis: Nenhum mortal
levantou meu véu.124

Uma ponta do véu soerguera-se, todavia, mas para tornar a cair
em seguida, e ele despertara na terra dos túmulos. Ah! como estava
longe do fim sonhado! Quão longa é a viagem na barca dos milhões de
anos! Pelo menos ele entrevira o alvo final. Mesmo que sua visão do
outro mundo fosse apenas um sonho, um esboço infantil de sua
imaginação ainda repleta das vaidades da terra, poderia ele duvidar
dessa outra consciência que ele sentira eclodir dentro de si, desse duplo
misterioso, desse eu celestial que lhe aparecera em sua beleza astral
como uma forma viva e que falara durante o sono?

 Seria uma alma
gêmea, seria seu gênio ou apenas um reflexo do íntimo de seu espírito,
um pressentimento de seu ser futuro? Maravilha e mistério. Com
certeza seria uma realidade, e se essa alma não fosse a sua, seria a
verdadeira. O que não faria ele para reencontrá-la! Vivesse ele milhões
de anos e não esqueceria esta hora divina em que vira seu outro eu, puro
e radiante! (5).

Terminara a iniciação. O adepto estava consagrado sacerdote de
Osíris. Como egípcio, ele ficaria ligado ao templo; como estrangeiro,
era-lhe permitido às vezes retornar a seu país, para lá fundar um culto
ou cumprir sua missão. Mas, antes de partir, ele prometia solenemente,
mediante um juramento terrível, guardar silêncio absoluto sobre os
segredos do templo. Jamais deveria contar a alguém o que vira ou
escutara, nem revelar a doutrina de Osíris, a não ser sob o tríplice véu
dos símbolos mitológicos ou dos mistérios. Se ele violasse esse
juramento, uma morte fatal o atingiria cedo ou tarde, tão longe quanto
estivesse. O silêncio tornara-se o escudo de sua força.

Regressando às plagas da Jônia, à sua turbulenta cidade, sob o
choque das paixões furiosas, naquela multidão de homens que vivem
como insensatos, ignorando-se a si mesmos – muitas vezes relembrava
o Egito, as pirâmides, o templo de Âmon-Rá. Então o sonho da cripta
lhe voltava. E como lá o lótus balança sobre as ondas do Nilo, essa
visão branca sempre flutuaria sobre o rio lodoso e confuso desta vida.
Em horas escolhidas, ele ouvia sua voz, e era a voz da luz.

Despertando em seu ser uma música íntima, ela lhe dizia: “A alma é
uma luz velada. Quando a negligenciamos, ela escurece e se extingue.
125
Mas, quando nela derramamos o óleo santo do amor, ela reluz como
uma lâmpada imortal!”
(1). A visão de Hermes se encontra no frontispício dos livros de Hermes
Trimegisto sob o nome de Poimandrés. A antiga tradição egípcia só chegou
até nós sob uma forma alexandrina ligeiramente alterada. Tentei reconstituir
esse fragmento capital da doutrina hermética no sentido da alta iniciação e da
síntese esotérica que ele representa.

(2). Decerto, esses Deuses traziam outros nomes na linguagem egípcia.
Mas os sete Deuses cosmogônicos se correspondem em todas as mitologias,
por seu sentido e suas atribuições. Têm sua raiz comum na antiga tradição
esotérica. A tradição ocidental adotou os nomes latinos e nós os conservamos
para maior clareza.

(3). Há dez Sefirotes na Cabala. Os três primeiros representam o
temário divino, os sete outros, a evolução do Universo.

(4). Daremos aqui os termos egípcios dessa constituição setenária do
homem, que se encontra na Cabala: Chat, corpo material; Anch, força vital;
Ka, duplo etéreo ou corpo astral; Hati, alma animal; Baí, alma racional;
Cheybi, alma espiritual; Ku, espírito divino. O desenvolvimento dessas idéias
fundamentais da doutrina esotérica será encontrado no livro de Orfeu e
sobretudo no de Pitágoras.

(5). Na doutrina egípcia, considerava-se que o homem só tinha
consciência da alma animal e da alma racional, chamadas Hati e Baí. A parte
superior de seu ser, a alma espiritual e o espírito divino, cheybi e ku, existem
nele em estado de germe inconsciente e se desenvolvem depois desta vida,
quando ele próprio se torna um Osíris.
 Fonte:



 ENTRE IRMÃOS.NET

http://www.entreirmaos.net/wp-content/uploads/2011/10/

Os-Grandes-Iniciados-Edouard-Schure.pdf


Li-Sol-30


Fonte:

 http://www.entreirmaos.net/wp-content/uploads/2011/10/
Os-Grandes-Iniciados-Edouard-Schure.pdf

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