O mito da criação em Heliópolis
O mito era uma forma de explicação para processos naturais que estavam semresposta no pensamento egípcio, tais como a criação do mundo, da raça humana e o pós-morte.
Os mitos também passavam um tipo de moral,concepção de ordem e caos, e valores éticos que deveriam ser seguidos eensinados às próximas gerações.
Um bom exemplo é o mito de Osíris, como veremos. Assim, os mitos representavam necessidades e anseios dos homense mulheres dessa sociedade.Um dos mitos mais importantes e antigos relativo à criação é o da cidade deHeliópolis, cujo nome em egípcio antigo é Wn, Annu ou Iunnu.
Durante o Antigo Império (2.575 - 2.134 a.C.) tornou-se o principal centro religioso esede do culto solar, sobretudo da 4ª. à 6ª. dinastias, época da construção daspirâmides de Queóps, Quefren, Miquerinos, Unas, Pepi e Teti. O prestígio doculto solar foi tal que um dos cinco títulos básicos do faraó, de "Filho de Ra"(sa-Ra), pode ter surgido nesse período.
Referências a esse mito podem serencontradas nos Textos das Pirâmides no papiro Bremner-Rhind e no livro da Vaca celeste. Estes dois últimos talvez sejam a melhor maneira de conhecê-lo,apesar da forma truncada da narrativa. De um modo geral, podemos contar omito da seguinte maneira:No princípio era o Nu (Num), o oceano celestial com sua característica deimobilidade e totalmente estático - a visão do caos na concepção egípcia. Doseu interior emergiu o deus Atum autogerado (não confundir com Aton, quesurgiria na 18ª.
dinastia e representa o disco solar). Uma vez emerso do Num,a primeira porção de terra também emergiu para acolher o deus. Tal porçãode terra era identificada por uma forma piramidal, frequentemente associadaa um obelisco.Segundo George Hart, no livro Mitos egípcios, "este outeiro primitivo tornou-se formalizado como benben (bnbn), uma elevação piramidal firme parasustentar o deus Sol; as relíquias reais de pedra, talvez consideradas como osêmen petrificado de Atum, eram citadas como sobrevivente no hewet- benben (hwt-bnbn), a Mansão do benben", ou a Mansão da pedra benben.
O benben pode ser interpretado como o raio de Sol petrificado e nãonecessariamente o sêmen.Uma vez sustentado, o deus Atum inicia o processo de criação dos deuses, poratos oriundos da fala ou da boca. (Em outras variantes, essa criação foiproduzida pela masturbação do deus. Há uma outra, ainda, que relata a uniãodo deus Atum com sua sombra (kaibit). Uma vez autogerado, o deus Atumexpeliu o deus Shu e cuspiu a deusa Tefnut, estabelecendo a primeira tríade.Shu representava o ar, a atmosfera entre outros atributos (esse deus podeaparecer com o atributo da luz solar segundo outros textos).Tefhutrepresentava a umidade do céu. A partir desse ponto, o casal Shu-Tefnutcontinuou a criação gerando o casal Geb (terra) e Nut (céu).
Atum não tomou mais parte na criação,
a não ser para gerar, de suas lágrimas, a raça humana.
O deus Geb possuía um caráter masculino, ao contrário de muitas sociedadesantigas que estabelecem uma relação feminina com a terra
— "a mãe terra". A deusa Nut, por outro lado, representava o céu no qual estrelas, planetas eoutros deuses estão presentes. A barca de Ra navegava 12 horas por dia no seucorpo e tal jornada tinha início no seu ventre, situado no leste, e terminavaaparentemente na sua boca, no crepúsculo no oeste. Em seguida, uma novafase foi levada a efeito com a geração dos quatro filhos do casal Geb e Nut:Osíris, que se tornaria rei do mundo inferior, Ísis, a senhora do trono; Seth,representando forças caóticas da natureza, e Néfits, a senhora do castelo.Um aspecto importante nessa fase da criação é o papel de Osíris e Seth, querepresentavam certa dualidade de princípios na forma masculina.
Assim,temos a terra fértil e estéril, o vale do Nilo e o deserto, luz e trevas, ordem ecaos, Osíris e Seth. Ísis representa o aspecto materno, a grande maga econsorte de Osíris. Ela é a senhora do trono (trono de Osíris ou do Egito).Néftis é a senhora do castelo ou mansão
—
Nebt-het. Esse castelo pode serentendido como um lugar no firmamento e a casa de Hórus. Assim, os deuses Atum (ou Ra, o deus Sol), Shu, Tefnut, Geb, Nut, Osíris, Ísis, Seth e Néftisformaram a enéada de Heliópolis. Ou seja, os nove deuses da criação. Aosdeuses é agregado Hórus ou Heru, que representava o faraó ou a própria raçahumana.Com o Hórus vivo deixado na terra depois da partida de Atum-Ra para o fir-mamento e Osíris reinando no mundo inferior, o processo da criação estavaestabelecido. A criação da natureza ocorreu em algum ponto das quatro fasesda criação. Assim, a espécie humana —criada a partir das lágrimas de Atum-Ra — passou por um processo diferente do mundo natural.
O mito de Osíris
Osíris era o deus que, com sua irmã-esposa Ísis, remava sobre o Egito. Elehavia ensinado aos homens a agricultura e a metalurgia e era amado por seussúditos. Seu enciumado irmão Seth (o deus do mau vento do deserto) o matou, colocou seu corpo num cofre e jogou no Nilo.
Ísis procurou o cadáverdo marido e o encontrou em Biblos. Ela o trouxe de volta e o escondeu em umpântano. Seth o descobriu, cortou-o em 14 pedaços e os espalhou pelo Egito.Ísis novamente foi atrás do marido, recuperou os pedaços em decomposição,com exceção do falo, e, com eles, fez uma múmia. Com a ajuda de outrosdeuses mais seus poderes mágicos, Ísis devolveu a vida ao marido ereconstituiu seu membro perdido.
O casal gerou Hórus, que foi criado pelamãe e protegido do ambicioso Seth até chegar o momento de assumir o trono.Osíris não recuperou seu reinado terrestre, mas passou a reinar sobre osmortos. Hórus, mais tarde, tornou-se o rei do Egito. Os faraós o sucederam.Se o mito de Heliópolis pretende dar conta das questões relativas à origemdos deuses, do mundo natural e da espécie humana, o mito de Osíris parecedemonstrar formas de conduta da sociedade egípcia, tais como o papel de um rei justo que é enganado pelo irmão invejoso (Seth); o assassinato do rei bompelo irmão mau; o papel de Ísis como mulher, esposa, dedicada e leal, queprocura o corpo do marido e não descansa enquanto não o encontra; o poderde magia também de Ísis e a possibilidade de ressurreição com Thot e Anúbis,que revivem Osíris e reconstituem seu falo, permitindo, assim, que Ísis gereum herdeiro (o filho Hórus).
De fato, se analisarmos o mito como um todo poderemos perceber que ele trata muito mais da saga da deusa Ísis do que de Osíris.
O mito tem grandeimportância também por estar associado ao rito funerário e à mumificação,uma vez que Osíris torna-se senhor do mundo inferior e "ressuscita" nesselocal depois de mumificado. Desse modo, todo aquele que morre, passandopelo rito funerário e pelo processo da mumificação, é considerado um Osíris.
Práticas religiosas e mágicas
Cultos e templos
Havia três modos de cultos no Egito antigo: oficial, popular e funerário. Oculto oficial era realizado pelo faraó e pelo corpo de sacerdotes nos grandestemplos e em diversas regiões do Egito. Era endereçado aos deuses dopanteão egípcio. Os deuses locais tinham uma importância maior no culto.
Dessa forma, na cidade de Mênfis, a tríade constituída pelo deus Ptah (deus dos artesãos, mas considerado criador nessa cidade), pela deusa Sekhmet(deusa solar de grande poder e responsável pelas doenças e pela cura) e pelo"filho" Nefertum deveria ter uma atenção maior. Já em Tebas, o deus Amon-Ra — visto aqui como um deus criador — , sua consorte, a deusa Mut (a mãe),e Khonsu, um deus de característica lunar, ganhariam mais destaque.
Mas apenas poucas cidades tinham tríades divinas como essas.O culto era realizado diariamente por um grupo de sacerdotes que possuíafunções específicas no decorrer da cerimônia, como preparar as oferendas, em boa parte alimentos, e o cuidado com os materiais ritualísticos, por exemplo,o que denota uma hierarquia no segmento sacerdotal.
Nessa prática religiosa,o templo era o principal local e poderia servir tanto para o culto aos deusesquanto para o culto ao faraó (nos templos em memória do faraó falecido).O local tinha um tempo sagrado e tornava-se um espaço santo quando utiliza-do em rituais e festivais: representava o lugar e o momento em que os homense os deuses uniam-se.
Assim, aparecia de forma transparente num processode comunicação, no qual seria afirmada a presença da divindade e arenovação dos compromissos entre divindade e homens e vice-versa. Dessemodo, o monarca se tornaria representante e mediador da humanidade,reafirmando a vitória da existência sobre a não-existência (caos) e afastandotal inexistência para além das fronteiras do Egito. Por conseguinte, o espaçosagrado do templo poderia ser justificado através dos mitos cosmogônicos.
O culto popular é mais difícil de ser identificado, já que esse segmento nãodeixou artefatos que perdurassem como os da realeza e da nobreza egípcia. Detodo modo, podemos inferir que o culto era realizado no lar (toda casa tinhaum nicho para a divindade) e em capelas nas cidades e pequenas localidades.Em alguns casos, como no culto ao faraó Amenhetep I, a projeção foi tal queum pequeno corpo sacerdotal foi constituído.
O culto oficial e o popular se encontravam nos grandes festivais e procissõesque aconteciam ao longo do ano egípcio. Nos festivais de caráter oficial, a barca que continha os deuses e possivelmente o faraó saía em procissão peloNilo. Em outros, uma divindade de um templo visitava outra. É o caso deHathor de Dendera e Hórus de Edfu. Nessas festividades, a população tinhaacesso à parte do cerimonial e aos mitos através de algum tipo de encenação,pois a esmagadora maioria não sabia ler.Por fim, existiam as práticas funerárias, que de um modo geral tinham afunção de preparar a pessoa para a outra vida.
Quanto mais abastado fosse oegípcio mais complexo seria seu funeral. Aquele desprovido de recursosinfelizmente não deixou vestígios claros e não temos como saber ao certo quetipo de rito era praticado no sepultamento. Todavia, por mais pobre que fosse,é provável que um simples culto e funeral se realizasse para que ele pudessetambém chegar ao reino de Osíris.De um modo geral, o ato funerário envolvia o processo de mumificação, atumba, o enxoval funerário e ritos como o da abertura da boca. Dessa forma,passando pelo julgamento, o morto, agora justo de fala e ações (maak-kheru),seria suprido das coisas boas desta vida na vida após a morte. Estaria com osdeuses, poderia visitar sua tumba e receber a energia vital (Ka) das oferendas.
Ritos e oferendas
Os ritos e as oferendas aos deuses constituem também um tipo de prática má-gica. O ritual da abertura dos olhos e da boca do morto no ato funerário podeser um exemplo dessa prática. Mas tentemos exemplificar um culto diárioapesar das dificuldades de conhecermos um rito em seus detalhes.Estamos nas primeiras horas do dia. O sol está se erguendo mais uma vezcomo o deus Ra. Enquanto isso, em um templo dedicado ao deus Hórus nacidade de Edfu, os sacerdotes estão em preparação. Fizeram a lustração diária(banho ritualístico) e passaram unguentos no corpo (cosméticos perfumados).Todos estão com as vestes ritualísticas de linho branco, todos estão com pelosraspados e iniciaram a preparação das oferendas que possui muitos itens. Os sacerdotes responsáveis pelos pães estão presentes; lírios e outras florestambém foram trazidas. Outros se encarregam dos materiais ritualísticos — estandartes, objetos, recipientes e muito mais. Outro grupo se encarrega do incenso à base de mirra e olibano e de óleos especiais usados para ungirimagens e locais.
Sacerdotes e sacerdotisas entoam cânticos cominstrumentos de sopro, corda e percussão. A hora se aproxima, pois o sol se eleva cada vez mais e assim o cortejo é preparado. Longe do alcance das vistasda população, o séquito se dirige para o local mais profundo do templo noqual o cenário é dominado pela penumbra e pela luz vibrante das chamas.
Alguns sacerdotes poderão chegar até esse ponto, pois nem todos têmpermissão para tal (ao que parece).O santuário de Hórus é aberto, invocações são proferidas e cânticos ecoamnas paredes sólidas de pedra do templo. Então o deus é banhado pela águapura e o incenso é queimado diante de sua imagem que recebeu a encarnaçãode Hórus (eles não estão adorando a estátua, mas a essência que está naestátua no momento). Unguentos são ministrados na imagem, que recebeuma vestimenta. As oferendas são trazidas e mais encantamentos einvocações são proferidos com a intenção de que a ordem cósmica sejamantida mais uma vez nas terras do Egito e que o faraó seja seu principalservidor nessa missão.Pronto!
O sol — sempre o sol — já está mais acima no horizonte, algumashoras se passaram. O santuário é fechado, a cerimônia é encerrada e ossacerdotes retornam às suas atividades diárias. Ao longo do dia, outros cultosserão realizados e o ciclo natural e a ordem se estabelecem para evitar o caos.
Práticas mágicas
As práticas mágicas estão ligadas aos cultos religiosos e à mitologia. O rito fu-nerário, por exemplo, é repleto de encantamentos. A magia também possuirelação com a medicina uma vez que papiros médicos prescrevem certosencantamentos associados aos medicamentos. A população tinha acesso àmagia por meio de algum tipo de mago, sacerdote ou através doconhecimento popular.
Muitos dos feitiços ultrapassaram os séculos e traçosforam encontrados em papiros gregos oriundos do Egito dos séculos IV ao VIIda era cristã.Os encantamentos são os mais diversos, mas questões ligadas ao amor, às en-fermidades, à concepção ou não-concepção, ao combate do mal e àaniquilação de um inimigo são as mais visíveis. Entre todos, feitiços relativosao amor dominam o cenário. Dessa forma, a relação entre deuses e homensna questão popular torna-se mais claras uma vez que a magia, ao que tudoindica, pretende conceder desejos, necessidades e oferecer solução para osdiversos dilemas e desafios da vida.
É interessante notar que, milhares de anos depois, muitas atitudes em essência não mudaram, se compararmos aonosso século XXI. Nada melhor do que alguns exemplos para ilustrar a visãoegípcia. Apesar de ambos os encantamentos estarem no masculino, isso nãosignifica que mulheres não tivessem acesso:1º. EncantamentoEncantamento do Amor
Saúdo a ti Ó Ra-Harakhty, Pais dos Deuses!
Saúdo a ti Ó ―Sete Hathors‖!
Aquela que é adornada com contas vermelhas!Saúdo a ti Deuses senhores do céu e da terra! Venham (façam) (fulana) filha de Sicrano vir atrás de mim, como um servoatrás da grama.Como um servo atrás da criança.Como um pastor atrás do rebanho!Se vocês não fizerem ela vir atrás de mim, então eu colocarei fogo em Busiris equeimarei (Osíris).(Escrito em um fragmento de cerâmica – 20ª. dinastia, por volta de 1100 a.C.).
É interessante notar que aquele que faz o encantamento, ameaça um dosdeuses caso não tenha sucesso.2° encantamentoEncantamento de amor por contatoToma um escaravelho solar e cozinha-o em azeite cremoso de mirra e logotoma o escaravelho e tritura-o juntamente com ervilhas; jogá-lo em uma taçade cristal e diz duas vezes a fórmula que se segue: "thobarrabau, MiguelMiguel; Osíris phor; phorba, Abriel; sesengen barpharanges, Iao, Sabaot, Adnáis, Laïlam, obriga a fulana, filha de sicrana, a me seguir se eu a tocar.(Papiro PGM - séculos IV - VII d.C.) Percebe-se uma mistura de cultos religiosos de diversas origens, mas bemcentrados na antiga magia egípcia.
A religião a serviço do poder: faraós e sacerdotes
As práticas religiosas e mágicas também serviram à monarquia divina dos fa-raós, pois estabeleciam a legitimidade de ações através do desejo ou dapermissão dos deuses. Ou seja, eram utilizadas como forma de controle sociale "propaganda" de governo. Nessa mesma linha, encontramos os "deusesdinásticos" (divindades associadas a uma dinastia de monarcas reinantes)podendo atingir grande importância no reino como um todo.
Os deuses podiam "subir" ou "cair" em importância. Durante a 4a. e 6a.
dinastias, período da construção das pirâmides como tumba, o deus Ra erapoderosíssimo. Antes disso o deus Hórus era dominante, mas na maior parteda história do Egito foi o deus Amon (ou Amon-Ra), que assumiu esse papele, em um curto espaço de tempo, durante o reinado do faraó Akhenaton, odeus Aton — o disco solar — passou a ter a mesma prerrogativa de deus.
Pedro Paulo Funari -
As Religiões Que o Mundo Esqueceu
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Fontes:
http://pt.scribd.com/doc/65303138/Pedro-Paulo-Funari-As-Religioes-Que-o-Mundo-Esqueceu
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