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LIVRO VI
PITÁGORAS
Os Mistérios de Delfos
Inscrição do templo de Delfos
O Sono, o Sonho e o Êxtase são as três portas para o
Além, de onde nos vêm a ciência da alma e a arte da adivinhação.
A Evolução é a lei da Vida.
O Número é a lei do Universo.
A Unidade é a lei de Deus.
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Conhece-te a ti mesmo – e conhecerás o Universo e os
Deuses.
PITÁGORAS
Os Mistérios de Delfos
I
A GRÉCIA NO SÉCULO VI
A alma de Orfeu atravessara como um divino meteoro o céu
tempestuoso da Grécia nascente. Com o seu desaparecimento, as trevas
a invadiram de novo. Após uma série de revoluções, os tiranos da
Trácia queimaram seus livros, derrubaram seus templos, expulsaram
seus discípulos. Os reis gregos e muitas cidades, mais preocupados com
a liberdade desenfreada do que com a justiça que decorre das puras
doutrinas, imitaram-nos. Quiseram apagar a lembrança do profeta,
destruir seus últimos vestígios, e o fizeram tão bem que, alguns séculos
depois de sua morte, uma parte da Grécia duvidava de sua existência.
Em vão os iniciados conservaram sua tradição durante mais de mil anos.
Em vão Pitágoras e Platão falavam dele como de um homem divino. Os
sofistas e os retóricos não viam nele mais do que uma lenda sobre a
origem da Música. Ainda hoje os estudiosos negam decididamente a
existência de Orfeu. Apóiam-se principalmente no fato de que nem
Homero nem Hesíodo mencionam seu nome. Mas o silêncio desses
poetas se explica, amplamente, pela proibição a que os governos locais
submeteram o nome do grande iniciador. Os discípulos de Orfeu não
perdiam ocasião de atribuir todos os poderes à autoridade suprema do
Templo de Delfos e não cessavam de repetir que era preciso submeter as
desavenças entre os diversos Estados da Grécia ao conselho dos
Anfictiões. Isto incomodava tanto os demagogos quanto os tiranos.
Homero, que provavelmente recebeu sua iniciação no santuário de
Tir, e cuja mitologia é a tradução poética da teologia de Sanconiaton,
Homero, o jônio, pôde muito bem ignorar Orfeu, o dórico, cuja tradição
se mantinha tanto mais secreta quanto mais era perseguida. Quanto a
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Hesíodo, nascido perto de Parnaso, deve ter conhecido seu nome e sua
doutrina através do santuário de Delfos. Mas seus iniciadores
impuseram-lhe silêncio, e com razão.
Orfeu, porém, vivia em sua obra. Vivia em seus discípulos e
naqueles mesmos que o negavam. Essa obra, qual seria? Essa alma viva,
onde procurá-la? Seria na oligarquia militar e feroz de Esparta, onde a
ciência é desprezada, a ignorância erigida em sistema, a brutalidade
exigida como um complemento da coragem? Seria nas implacáveis
guerras de Messénia, onde os espartanos perseguiram um povo vizinho
até seu completo extermínio, ou os romanos da Grécia se prepararam na
rocha tarpéia e nos lauréis sangrentos do Capitólio, precipitando num
abismo o heróico Aristomeno, defensor de sua pátria?
Ou seria talvez na
democracia turbulenta de Atenas, sempre pronta a sucumbir na tirania?
Seria na guarda pretoriana de Psístrato ou no punhal de Harmônio e de
Aristógito, escondido sob um ramo de mirta? Seria nas inúmeras
cidades da Hélade, da Magna Grécia e da Ásia Menor, das quais Atenas
e Esparta oferecem dois exemplos opostos? Seria em todas aquelas
democracias e aquelas tiranias invejosas, ciumentas e sempre prestes a
se entredevorarem? Não. A alma da Grécia não está aí. Ela está em seus
templos, em seus mistérios e em seus iniciados. Ela está no santuário de
Júpiter em Olímpia, de Juno em Argos, de Ceres em Elêusis. Ela reina
em Atenas com Minerva, ela resplandece em Delfos com Apolo, que
domina e invade todos os templos com sua luz. Eis o centro da vida
helênica, o cérebro e o coração da Grécia. Aí vão instruir-se os poetas
que traduzem à multidão as verdades sublimes em imagens vívidas, os
sábios que as propagam em dialética sutil.
O espírito de Orfeu circula por toda a parte onde palpita a Grécia
imortal. Nós o encontramos nas competições de poesia e ginástica, nos
jogos de Delfos e Olímpia, instituições felizes imaginadas pelos
sucessores do mestre para reaproximar e fundir as doze tribos gregas.
Nós o tocamos com o dedo no tribunal dos Anfictiões, nesta assembléia
dos grandes iniciados, corte suprema e arbitral, que se reunia em Delfos,
grande poder de justiça e de concórdia, o único onde a Grécia encontrou
sua unidade, nas horas de heroísmo e de abnegação (1).
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Entretanto, a Grécia de Orfeu, que tinha como intelecto uma pura
doutrina guardada nos templos, como alma uma religião plástica e como
corpo uma elevada corte de justiça centralizada em Delfos, essa Grécia
começara a periclitar desde o sétimo século. As ordens de Delfos não
eram mais respeitadas. Violavam-se os territórios sagrados. Isso porque
a raça dos grandes inspirados havia desaparecido. O nível intelectual e
moral dos templos decaíra. Os sacerdotes se vendiam aos poderes
políticos. Os próprios Mistérios começaram a se corromper. O aspecto
geral da Grécia havia mudado. À antiga realeza sacerdotal e agrícola
sucediam, aqui, a tirania pura e simples, ali, a aristocracia militar, lá
ainda, a democracia anárquica. Os templos tornaram-se impotentes para
prevenir a dissolução ameaçadora. Necessitavam de uma ajuda nova.
Uma vulgarização das doutrinas esotéricas fazia-se necessária. Para que
o pensamento de Orfeu pudesse viver e se propagar com todo brilho, era
preciso que a ciência dos templos passasse às ordens laicas. Ela se
insinuou, pois, sob diversos disfarces, na mente dos legisladores civis,
nas escolas dos poetas, sob o pórtico dos filósofos. Estes sentiram, em
seu ensinamento, a mesma necessidade que Orfeu havia reconhecido
para a religião, a necessidade de duas doutrinas: uma pública, outra
secreta, que expusessem a mesma verdade, sob medidas e formas
diferentes, próprias ao desenvolvimento de seus alunos. Esta evolução
deu à Grécia seus três grandes séculos de criação artística e esplendor
intelectual. Ela permitiu ao pensamento órfico, que é ao mesmo tempo o
impulso primeiro e a síntese ideal da Grécia, concentrar toda sua luz e
se irradiar por todo o mundo, antes que seu edifício político, minado
pelas dissensões internas, fosse abalado pelos golpes da Macedônia,
para desmoronar, enfim, sob o punho férreo de Roma.
A evolução de que falamos teve muitos obreiros. Ela suscitou
físicos como Tales, legisladores como Sólon, poetas como Píndaro,
heróis como Epaminondas. Mas teve um chefe reconhecido como tal,
um iniciado de primeira ordem, uma inteligência soberana, criadora e
ordenadora: Pitágoras. Ele é o mestre da Grécia laica, como Orfeu é o
mestre da Grécia sacerdotal. Ele traduz e continua o pensamento
religioso de seu predecessor, aplicando-o aos novos tempos. Essa
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tradução, porém, é uma criação, visto que ele coordena as inspirações
órficas em um sistema completo; fornece delas a prova científica em seu
ensino e a prova moral em seu instituto de educação, na ordem
pitagórica que a ele sobrevive.
Embora apareça em plena luz da História, Pitágoras permaneceu
sempre um personagem quase legendário. A principal razão disto está
na perseguição obstinada de que foi vítima na Sicília e que custou a vida
a tantos pitagóricos. Uns pereceram sob os escombros de sua escola
incendiada, outros morreram de fome num templo. A lembrança e a
doutrina do mestre somente se perpetuaram por meio de alguns
sobreviventes que conseguiram fugir para a Grécia. Platão, com
dificuldade e por um alto preço, obteve por intermédio de Arquitas um
manuscrito do mestre, que, aliás, escrevera toda sua doutrina com sinais
secretos e de forma simbólica. Sua verdadeira ação, como a de todos os
reformadores, se exercia pelo ensinamento oral. Mas a essência do
sistema consiste nos Versos Dourados de Ísis, no comentário de
Hiérocles, nos fragmentos de Filolaus e de Arquitas, assim como no
Timeu de Platão, que contém a cosmogonia de Pitágoras. Enfim, os
escritores da Antigüidade estão repletos do filósofo de Crotona. São
inesgotáveis; as historietas que pintam sua sabedoria, sua beleza e seu
poder maravilhoso sobre os homens. Os neoplatônicos de Alexandria,
os gnósticos, e até os primeiros Padres da Igreja citam-no como uma
autoridade. São preciosas testemunhas, nas quais vibra sempre a
poderosa onda de entusiasmo que a grande personalidade de Pitágoras
soube comunicar à Grécia, e cujos derradeiros ecos são ainda
perceptíveis oito séculos após sua morte.
Vista do alto, aberta com as chaves do esoterismo comparado, sua
doutrina apresenta um magnífico conjunto, um todo solidário cujas
partes estão ligadas por uma concepção fundamental. Encontramos nela
uma reprodução racional da doutrina esotérica da Índia e do Egito, à
qual deu a clareza e a simplicidade helênicas, acrescentando-lhes um
sentimento mais enérgico, uma idéia mais nítida da liberdade humana.
Na mesma época e em diversos pontos do globo, grandes
reformadores divulgavam doutrinas análogas. Lao-Tsé saía, na China,
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do esoterismo de Fo-Hi. O último Buda, Sáquia-Muni, pregava às
margens do Ganges. Na Itália, o sacerdócio etrusco enviava a Roma um
iniciado munido dos livros sibilinos, o rei Numa, que tentou refrear, por
meio de sábias instituições, a ameaçadora ambição do Senado romano.
E não foi por acaso que esses reformadores apareceram ao mesmo
tempo entre povos tão diversos. Suas diferentes missões concorrem para
um objetivo comum. Elas provam que em certas épocas uma mesma
corrente espiritual atravessa misteriosamente toda a humanidade. De
onde vem essa corrente? Do mundo divino que está fora de nossa vista,
mas do qual os gênios e os profetas são os enviados e as testemunhas.
Pitágoras atravessou todo o mundo antigo antes de revelar sua
palavra à Grécia. Ele conheceu a África e a Ásia, Mênfis e Babilônia,
sua política e iniciação. Sua vida agitada assemelha-se a uma nave
lançada em plena tempestade. Soltas as velas, ela demanda o porto, sem
se desviar da rota, imagem da calma e da força no meio dos elementos
desencadeados. Sua doutrina é como uma noite fresca que sucede ao
ardor intenso de um dia sangrento. Ela evoca a beleza do firmamento
que pouco a pouco desenrola seus arquipélagos cintilantes e suas
harmonias etéreas sobre a cabeça daquele que vê.
Tentemos separar uma e outra das obscuridades da lenda e dos
preconceitos da escola.
(1). O juramento anfictiônico dos povos associados dá a idéia da
grandeza e da força social dessa instituição: “Juramos jamais destruir as
cidades anfictiônicas, jamais desviar, seja durante a paz, seja durante a guerra,
as fontes necessárias às suas necessidades. Se alguma potência ousar
empreendê-lo, marcharemos contra ela e destruiremos suas cidades. Se os
ímpios roubarem as oferendas do templo de Apolo, juramos empregar nossos
pés, nossos braços, nossa voz, todas as nossas forças, contra eles e seus
cúmplices.”
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II
OS ANOS DE VIAGEM
No começo do sexto século antes de nossa era, Samos era uma das
ilhas mais florescentes da Jônia. A enseada de seu porto abria-se diante
das montanhas cor de violeta da quente Ásia Menor, de onde vinham
todos os luxos e todas as seduções. Numa larga baía, a cidade se
estendia sobre a margem verdejante e se dispunha em anfiteatro sobre a
montanha, ao pé de um promontório coroado pelo templo de Netuno.
As colunatas de um palácio magnífico sobressaíam.
Ali reinava o tirano Polícrates. Este, depois de ter privado Samos
de suas liberdades, dera-lhe o brilho das artes e de um esplendor
asiático. Hetaíras de Lesbos, chamadas por ele, tinham-se estabelecido
em um palácio vizinho ao seu e convidavam os jovens da cidade para
festas, onde elas lhes ensinavam as volúpias mais refinadas, temperadas
com música, danças e festins. Anacreonte, chamado por Polícrates a
Samos, para lá se dirigiu sobre um trirreme com velas cor de púrpura e
mastros dourados. E o poeta, com uma taça de prata cinzelada a mão,
fez ouvir diante desta alta corte do prazer suas odes acariciantes e
perfumadas como uma chuva de rosas.
A sorte de Polícrates tornara-se proverbial em toda a Grécia. Ele
era amigo do faraó Amasis, que várias vezes o advertira que
desconfiasse de uma felicidade tão constante e que, sobretudo, dela não
se gabasse. Polícrates respondeu ao aviso do monarca egípcio, atirando
seu anel ao mar e dizendo: “Faço este sacrifício aos Deuses”. No dia
seguinte, um pescador levou ao tirano o anel precioso que encontrara no
ventre de um peixe. Quando o faraó soube disto, declarou que rompia
sua amizade com Polícrates, porque uma felicidade tão insolente atrairlhe-
ia a vingança dos Deuses.
Seja qual for a veracidade desta historieta, o certo é que o fim de
Polícrates foi trágico. Um de seus sátrapas o atraiu a uma província
vizinha, mandou matá-lo sob terríveis tormentos e ordenou que
pregassem seu corpo numa cruz, no monte Micala. Assim os sâmios
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puderam ver, em um sangrento pôr-de-sol, o cadáver de seu tirano
crucificado num promontório, diante da ilha onde ele reinara na glória e
nos prazeres.
Mas voltemos ao princípio do reinado de Polícrates. Em noite
clara, um jovem estava sentado numa floresta de agnus-cactus de folhas
luzidias, não longe do templo de Juno, cuja fachada dórica a lua cheia
banhava e cuja mística majestade fazia ressaltar. Há muito tempo um
rolo de papiro, contendo um canto de Homero, estendia-se a seus pés.
Sua meditação, iniciada no crepúsculo, durava ainda e se prolongava no
silêncio da noite. Há muito tempo o sol se pusera, mas seu disco
chamejante flutuava ainda diante do olhar do jovem sonhador como
algo irreal. Seu pensamento vagava longe do mundo invisível.
Pitágoras era filho de um rico joalheiro de Samos e de uma
mulher chamada Partênis. A Pítia de Delfos, consultada durante uma
viagem, pelos jovens recém-casados, prometera-lhes “um filho que seria
útil a todos os homens, em todos os tempos”, e o oráculo enviara os
esposos a Sidon, na Fenícia, para que o filho predestinado fosse
concebido, gerado e nascido longe das influências perturbadoras de sua
pátria. Antes mesmo de seu nascimento, a criança maravilhosa fora
dedicada por seus pais à luz de Apolo, na lua do amor.
O menino nasceu; quando completou um ano, sua mãe, atendendo
ao conselho dos sacerdotes de Delfos, levou-o ao templo de Adonai,
num vale do Líbano. Lá, o pontífice o abençoou. Depois a família
voltou a Samos. O filho de Partênis era muito bonito, meigo, moderado,
pleno de senso de justiça. Somente a paixão intelectual brilhava em seus
olhos e imprimia aos seus atos uma energia secreta. Longe de contrariálo,
seus pais encorajavam sua inclinação precoce para o estudo da
sabedoria. Assim, ele pôde livremente conferenciar com os sacerdotes
de Samos e com os sábios que começavam a fundar, na Jônia, escolas
onde ensinavam os princípios da Física. Aos dezoito anos, recebia as
lições de Hermodamas, de Samos; aos vinte, as de Ferecides, em Siro. E
já conferenciara com Tales e Anaximandro, em Mileto. Estes mestres
tinham-lhe aberto novos horizontes, mas nenhum satisfizera. Entre seus
ensinamentos contraditórios ele procurava interiormente o liame, a
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síntese, a unidade do grande Todo. O filho de Partênis chegara, então, a
uma dessas crises em que o espírito, superexcitado pela contradição das
coisas, concentra todas as suas faculdades num esforço supremo para
entrever o objetivo, para encontrar o caminho que leva ao sol da
verdade, ao centro da vida.
Naquela noite quente e esplêndida, o filho de Partênis
contemplava alternadamente a terra, o templo e o céu estrelado. Ela
estava lá, sob seus pés, ao redor dele: Deméter, a terra-mãe, a Natureza
que ele queria penetrar. Ele respirava suas emanações poderosas, sentia
a invencível atração que o acorrentava ao seu seio, ele, o átomo
pensante, como uma parte inseparável dela. Os sábios que ele consultara
tinham-lhe dito: “É dela que tudo se origina. Nada vem do nada. A alma
vem da água ou do fogo, ou dos dois. Sutil emanação dos elementos, ela
deles escapa apenas para a eles voltar. Resigna-te à sua lei fatal. Teu
único mérito será o de conhecê-la e a ela te submeteres”.
Depois, ele contemplava o firmamento e as letras de fogo que as
constelações formam na profundeza insondável do espaço. Aquelas
letras deviam ter um significado. Pois se infinitamente pequeno o
movimento dos átomos, tem sua razão de ser, como o infinitamente
grande, a dispersão dos astros, cujo agrupamento representa o corpo do
Universo não o teria também? Sim! Cada um desses mundos tem sua lei
própria, e todos juntos se movem conforme um Número e em harmonia
suprema. Mas quem algum dia decifrará o alfabeto das estrelas? Os
sacerdotes de Juno tinham-lhe dito: “Foi o céu dos Deuses que existiu
antes da Terra. Tua alma vem de lá. Orai para que ela volte para lá”.
Esta meditação foi interrompida por um canto voluptuoso, que
saía de um jardim às margens do Imbrasus. As vozes lascivas das
lésbicas harmonizavam-se langorosamente com os sons da cítara.
Alguns jovens respondiam entoando árias báquicas. A estas vozes se
misturaram, de repente, outros gritos penetrantes e lúgubres, que
partiam do porto. Eram rebeldes que Polícrates mandava embarcar para
vender como escravos na Ásia. Açoitavam-nos com correias cheias de
pregos, para amontoá-los sob os pontões dos remadores. Seus urros e
blasfêmias se perderam na noite. Depois, tudo voltou ao silêncio.
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O jovem sentiu um estremecimento doloroso, que reprimiu para
se recolher em si mesmo. O problema estava diante dele mais pungente,
mais agudo. A Terra dizia: Fatalidade! O Céu dizia: Providência! E a
Humanidade, que flutua entre os dois, respondia: Loucura! Dor!
Escravidão! Mas, no fundo de si mesmo, o futuro adepto ouvia uma voz
irrefutável que respondia às cadeias da Terra e aos clarões do céu com
este grito: Liberdade!
Quem, pois, teria razão? Os sacerdotes, os sábios, os loucos, os
infelizes ou ele mesmo? Todas aquelas vozes diziam a verdade, cada
uma delas triunfava em sua esfera, mas nenhuma lhe revelava sua razão
de ser. Os três mundos existiam imutáveis, como o seio de Deméter,
como a luz dos astros e como o coração humano. Mas somente aquele
que soubesse encontrar sua harmonia e a lei de seu equilíbrio seria um
verdadeiro sábio, somente ele possuiria a ciência divina e poderia
auxiliar os homens. Na síntese dos três mundos está o segredo do
Cosmos.
Ao pronunciar esta palavra – que acabara de encontrar –,
Pitágoras se ergueu. Seu olhar fascinado fixou-se na fachada dórica do
templo. O severo edifício parecia transfigurado sob os castos raios de
Diana. Ele acreditou ver ali a imagem ideal do mundo e a procurada
solução do problema. Pois, a base, as colunatas, a arquitrave e o frontão
triangular significam para ele, subitamente, a tríplice natureza do
homem e do Universo, do microcosmo e do macrocosmo coroado pela
unidade divina, que é, ela própria, uma trindade. O Cosmos, dominado e
penetrado por Deus, formava:
A Tétrada sagrada, imenso e puro símbolo,
Fonte da Natureza e modelo dos Deuses (1).
Sim, ela estava lá, oculta naquelas linhas geométricas: a chave do
Universo, a ciência dos números, a lei ternária que rege a constituição
dos seres, a do setenário que preside à sua evolução. E, numa visão
grandiosa, Pitágoras viu os mundos se moverem segundo o ritmo e a
harmonia dos números sagrados. Viu o equilíbrio da Terra e do céu,
mantido pela liberdade humana. Os três mundos, natural, humano e
divino, se sustentam, determinando-se reciprocamente e representando o
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drama universal por meio de um duplo movimento, descendente e
ascendente. Ele adivinhou as esferas do mundo invisível envolvendo o
visível e animando-o sem cessar. Concebeu, enfim, a purificação e a
liberação do homem, já nesta Terra, pela tríplice iniciação. Viu tudo
isto, sua vida e sua obra, numa iluminação instantânea e clara, com a
certeza irrecusável do espírito que se sente diante da Verdade. Foi um
relâmpago.
Tratava-se, agora, de provar pela Razão o que sua pura
Inteligência havia apreendido no Absoluto. E para isto era preciso uma
vida de Homem, um trabalho de Hércules.
Mas, onde encontrar a ciência necessária para levar a bom termo
semelhante labor? Nem os cantos de Homero, nem os sábios da Jônia,
nem os templos da Grécia seriam suficientes.
O espírito de Pitágoras, que logo encontrara asas, mergulhou em
seu passado, em seu nascimento envolto em véus e no misterioso amor
de sua mãe. Uma lembrança da infância voltou-lhe com uma precisão
incisiva. Recordou-se de que sua mãe o levara, com a idade de um ano,
a um vale do Líbano, ao templo de Adonai. Ele se reviu muito criança,
nos braços de Partênis, no meio de montanhas colossais, de florestas
imensas, onde um rio caía em catarata. Ela estava de pé, num terraço à
sombra de grandes cedros. Diante dela, um sacerdote majestoso, de
barba branca, sorria para eles, pronunciando palavras graves que ele não
compreendia. Depois, várias vezes a mãe repetira-lhe aquelas palavras
do hierofante de Adonai: “Mulher de Jônia, teu filho será grande pela
sabedoria; mas lembra-te que, se os gregos possuem ainda a ciência dos
Deuses, a ciência de Deus só se encontra no Egito”.
Aquelas palavras voltavam-lhe agora, juntamente com o sorriso
materno, a bela fisionomia do ancião e o estrépito distante da catarata,
dominado pela voz do sacerdote, em uma paisagem grandiosa como o
sonho de outra vida. Pela primeira vez ele adivinhava o significado do
oráculo. Muito ouvira sobre o saber prodigioso dos sacerdotes egípcios,
e seus formidáveis mistérios; mas acreditara poder abster-se deles.
Agora, entretanto, compreendia que era necessária aquela “ciência de
Deus” para penetrar a fundo na natureza, e que só a encontraria nos
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templos do Egito. E foi a doce Partênis, com seu instinto de mãe, que o
preparara para essa obra, e o levara como uma oferenda ao Deus
soberano!
Nesse instante tomou a decisão de ir ao Egito e lá receber a
iniciação
Polícrates se gabava de proteger os filósofos tanto quanto os
poetas. Apressou-se a dar a Pitágoras uma carta de recomendação para o
faraó Amasis, que o apresentou aos sacerdotes de Mênfis. Estes só o
receberam a contragosto e depois de muitas dificuldades. Os sábios
egípcios desconfiavam dos gregos, que tachavam de levianos e
inconstantes. Tudo fizeram para desencorajar o jovem de Samos.
Contudo, o noviço se submeteu com uma paciência e uma coragem
inquebrantáveis às demoras e às provas que lhe impuseram. Ele sabia,
por antecipação, que somente chegaria ao conhecimento pelo total
domínio da vontade em todo o seu ser. Sua iniciação durou vinte e dois
anos, sob o pontificado do grande sacerdote de Sonchis. Já narramos, no
livro de Hermes, as provas, as tentações, os pavores e os êxtases do
iniciado de Ísis, até a morte aparente e cataléptica do adepto e sua
ressurreição na luz de Osíris. Pitágoras atravessou todas as fases que
permitiam realizar, não como uma vã teoria, mas como um elemento
vivo, a doutrina do Verbo-Luz ou da Palavra universal e da evolução
humana através dos sete ciclos planetários. A cada passo daquela
vertiginosa ascensão as provas se repetiam sempre mais terríveis. Ali,
cem vezes correu risco de vida, sobretudo quando queriam levá-lo ao
manejo das forças ocultas, à perigosa prática da magia e da teurgia.
Como todos os grandes homens, Pitágoras tinha fé em sua estrela. Nada
que pudesse conduzi-lo à ciência o desanimava, e o medo da morte não
o detinha, porque queria a vida do Além.
Quando os sacerdotes egípcios reconheceram nele uma força de
alma extraordinária e aquela paixão impessoal pela sabedoria, que é a
coisa mais rara no mundo, abriram-lhe os tesouros de sua experiência.
Foi entre eles que Pitágoras se formou e adquiriu sua têmpera. Foi lá
que pôde se aprofundar na matemática sagrada, a ciência dos números
ou dos princípios universais, da qual ele fez o centro de seu sistema,
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formulando-a de uma maneira nova. A severidade da disciplina egípcia
nos templos fê-lo conhecer, por outro lado, a força prodigiosa da
vontade humana sabiamente exercida e treinada, suas aplicações
infinitas tanto no corpo quanto na alma. “A ciência dos números e a arte
da vontade são as duas chaves da magia”, diziam os sacerdotes de
Mênfis; “elas abrem todas as portas do Universo”. Foi, pois, no Egito,
que Pitágoras adquiriu a visão elevada que permite perceber as esferas
da vida e as ciências em uma ordem concêntrica, compreender a
involução do espírito na matéria pela criação universal e sua evolução
ou subida para a unidade por aquela criação individual que se chama o
desenvolvimento de uma consciência.
Pitágoras atingira o ápice do sacerdócio egípcio e sonhava, talvez,
em voltar à Grécia, quando foi desencadeada a guerra na bacia do Nilo,
com todos os seus flagelos e arrastou o iniciado de Osíris em um novo
turbilhão. Há muito tempo os déspotas da Ásia tramavam a derrota do
Egito. Durante séculos, seus repetidos ataques haviam fracassado diante
da sabedoria das instituições egípcias, diante da força do sacerdócio e da
energia dos faraós. Mas o imemorial. reino, asilo da ciência de Hermes,
não devia durar eternamente. O filho do vencedor da Babilônia,
Cambises, abateu-se sobre o Egito com seus exércitos inumeráveis e
famintos como nuvens de gafanhotos, e pôs fim à instituição do
faraonato, cuja origem se perdia na noite dos tempos. Aos olhos dos
sábios era uma catástrofe, para o mundo inteiro. Até então, o Egito
defendera a Europa da Ásia. Sua influência protetora se estendia ainda
sobre toda a bacia do Mediterrâneo, sobre templos da Fenícia, da Grécia
e da Etrúria, com os quais o alto sacerdócio egípcio mantinha relações
constantes. Uma vez desmoronado esse baluarte, o Touro iria precipitarse,
de cabeça baixa, sobre as margens do mundo helênico.
Pitágoras viu, pois, Cambises invadir o Egito. Viu o déspota
persa, digno herdeiro das celeradas coroas de Nínive e Babilônia,
saquear os templos de Mênfis e de Tebas e destruir o de Âmon. Viu o
faraó Psamenit acorrentado e conduzido diante de Cambises, colocado
numa colina, ao redor da qual foram enfileirados os sacerdotes, as
principais famílias e a corte do rei. Viu a filha do faraó, vestida de
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farrapos e acompanhada de todas as suas damas de honra, nos mesmos
trajes, e dois mil jovens ameaçados, com o cabresto ao pescoço, antes
de serem decapitados. Viu o faraó Psamenit reprimindo seus soluços
diante desta cena horrorosa; e o infame Cambises, sentado no trono, se
divertia com a dor de seu adversário abatido.
Cruel, mas instrutiva lição da História, depois das lições da
Ciência! Que imagem da natureza animal desencadeada no homem,
resultando neste monstro de despotismo, que esmaga tudo e impõe à
humanidade o reinado do mais implacável destino por sua hedionda
apoteose!
Cambises mandou Pitágoras à Babilônia, com uma parte do
sacerdócio egípcio e ali o manteve confinado (2). Aquela cidade
colossal, que Aristóteles compara a um país cercado de muros, oferecia
então um imenso campo de observação. A antiga Babel, a grande
prostituta dos profetas hebreus, era mais do que nunca, após a conquista
persa, um pandemônio de povos, idiomas, cultos e religiões, em cujo
seio o despotismo asiático erigia sua torre vertiginosa. Segundo as
tradições persas, sua fundação remontava à legendária Semíramis. Fora
esta, diziam, quem mandara construir seu recinto colossal, de oitenta e
cinco quilômetros de contorno; o Imgum-Bel, suas muralhas, onde duas
carruagens corriam de frente, seus terraços superpostos, seus palácios
maciços com relevos policrômicos, seus templos sustentados por
elefantes de pedra e encimados por dragões multicores. Lá tinha-se
sucedido a série de déspotas que escravizara a Caldéia, a Assíria, a
Pérsia, uma parte da Tartária, a Judéia, a Síria e a Ásia Menor. Para lá
Nabucodonosor, o assassino dos magos, arrastara em cativeiro o povo
judeu, que continuava a praticar seu culto em um recanto da imensa
cidade na qual Londres caberia quatro vezes. Os judeus tinham até
fornecido ao grande rei um ministro poderoso: o profeta Daniel. Com
Baltazar, filho de Nabucodonosor, as muralhas da velha Babel
finalmente desmoronaram, sob os golpes vingadores de Ciro. E
Babilônia ficou por vários séculos sob o domínio persa.
Devido a essa série de acontecimentos anteriores, no momento em
que Pitágoras ali chegou, três religiões diferentes conviviam no alto do
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sacerdócio de Babilônia; os antigos padres caldeus, os sobreviventes do
magismo persa e a elite do cativeiro judaico. O que prova que esses
diversos sacerdotes se harmonizavam entre si pelo lado esotérico; é
precisamente o papel de Daniel, que, sempre dando testemunho do Deus
de Moisés, permaneceu primeiro-ministro sob Nabucodonosor, Baltazar
e Ciro.
Pitágoras teve de alargar seus horizontes, já tão vastos, estudando
todas aquelas doutrinas, religiões e cultos, cuja síntese alguns iniciados
ainda conservavam. Ele pôde aprofundar na Babilônia os
conhecimentos dos magos, herdeiros de Zoroastro. Se somente os
sacerdotes egípcios possuíam as chaves universais das ciências
sagradas, os magos persas tinham a reputação de terem propagado a
prática de certas artes. Eles se atribuíam o manejo daqueles poderes
ocultos da natureza que se chamam o fogo pantomórfico e a luz astral.
Dizia-se que em seus templos as trevas advinham em pleno dia, as
lâmpadas se acendiam sozinhas, viam-se resplandecer os Deuses e
ouvia-se cair o raio. Os magos chamavam de leão celeste àquele fogo
incorpóreo, agente gerador da eletricidade, que sabiam condensar ou
dissipar a sua vontade, e de serpentes às correntes elétricas da
atmosfera, magnéticas da Terra, que pretendiam dirigir como flechas
sobre os homens. Tinham feito também um estudo especial do poder
sugestivo, atrativo e criador do verbo humano. Empregavam, para a
evocação dos espíritos, formulários graduados e copiados dos mais
antigos idiomas da Terra. Eis a razão psíquica que apresentavam para
isso: “Não mudai nada nos nomes bárbaros da evocação. Porque eles
são os nomes panteísticos de Deus. São magnetizados pelas adorações
de uma multidão e seu poder é inefável” (3). Essas evocações,
praticadas no meio das purificações e das preces, eram, propriamente
falando, o que se chamou mais tarde de magia branca.
Na Babilônia, Pitágoras penetrou nos arcanos da antiga magia. Ao
mesmo tempo, naquele antro do despotismo, viu um grande espetáculo:
sobre os destroços das religiões decadentes do Oriente, acima de seu
sacerdócio dizimado e degenerado, um grupo de iniciados intrépidos,
unidos, defendiam sua ciência, sua fé e, tanto quanto possível, a justiça.
229
De pé diante dos déspotas, como Daniel na cova dos leões, sempre
preparados para serem devorados, eles fascinavam e domavam a fera do
poder absoluto, por meio de seu poder intelectual, e com ela disputavam
passo a passo o terreno.
Depois de sua iniciação egípcia e caldaica, o filho de Samos sabia
muito mais do que seus mestres de Física e do que qualquer grego,
padre ou leigo, de seu tempo. Conhecia os princípios eternos do
Universo e suas aplicações. A natureza descerrara-lhe seus abismos; os
pesados véus da matéria tinham-se dilacerado a seus olhos, para
mostrar-lhe as esferas maravilhosas da natureza e da humanidade
espiritualizada. No templo de Neit-Ísis, em Mênfis no de Bel, na
Babilônia, ele apreendera muitos segredos sobre o passado das religiões,
sobre a história dos continentes e das raças. Pudera comparar as
vantagens e os inconvenientes do monoteísmo judeu, do politeísmo
grego, do trinitarismo hindu. e do dualismo persa. Sabia que todas
religiões eram raios de uma mesma verdade, filtrados por diversos graus
de inteligência e para diversos estados sociais. Ele possuía a chave, isto
é, a síntese de todas estas doutrinas na ciência esotérica. Seu olhar,
abrangendo o passado, mergulhando no futuro, julgava o presente com
uma singular lucidez. Sua experiência mostrava-lhe a humanidade
ameaçada dos maiores flagelos, pela ignorância dos sacerdotes, pelo
materialismo dos sábios e pela indisciplina das democracias. Em meio
ao afrouxamento universal, ele via crescer o despotismo asiático. E
daquela nuvem negra um ciclone formidável iria precipitar-se sobre a
Europa indefesa.
Já era tempo de voltar à Grécia, para lá cumprir sua missão,
começar sua obra.
Pitágoras estivera confinado na Babilônia durante doze anos. Para
sair de lá era preciso uma ordem do rei dos persas. Um compatriota,
Demócedes, médico do rei, intercedeu a seu favor e obteve a liberdade
do filósofo.
Pitágoras voltou então para Samos, após trinta e quatro anos de
ausência. Encontrou sua pátria esmagada sob o domínio de um sátrapa
do grande rei. Escolas e templos estavam fechados; poetas e sábios
230
tinham fugido, como um bando de andorinhas diante do cesarismo
persa. Pelo menos ele teve a consolação de recolher o último suspiro de
seu primeiro mestre, Hermodamos, e de reencontrar a mãe, Partênis, a
única que não duvidara de seu regresso. Pois toda a gente acreditava
morto o filho aventuroso do joalheiro de Samos. Ela, porém, jamais
duvidara do oráculo de Apolo; e agora compreendia que, sob as vestes
brancas de sacerdote egípcio, seu filho se preparava para uma elevada
missão. Ela sabia que do templo de Neit-Ísis sairia o mestre benfeitor, o
profeta luminoso, com o qual havia sonhado no bosque sagrado de
Delfos, e que o hierofante de Adonai lhe prometera, às sombras dos
cedros do Líbano.
Agora sobre as ondas azuladas das Cícladas um barco veloz
levava mãe e filho para um novo exílio. Com todos os seus haveres, eles
fugiam de Samos, oprimida e perdida. Iam para a Grécia. Não eram as
coroas olímpicas, nem louros do poeta que tentavam o filho de Partênis.
Sua obra era mais misteriosa e maior: despertar a alma adormecida dos
Deuses nos santuários; restituir ao templo de Apolo a força e o
prestígio; depois fundar, em alguma parte, uma escola de ciência e de
vida, de onde sairiam, não políticos e sofistas, mas mulheres e homens
iniciados, mães verdadeiras e heróis puros!
(1). Versos dourados de Pitágoras, tradução de Fabre d'Olivet.
(2). Jamblique lembra este fato, em sua Vie de Pythagore.
(3). Oráculos de Zoroastro recolhidos na teurgia de Proclus.
231
III
O TEMPLO DE DELFOS. A CIÊNCIA APOLÍNEA.
A TEORIA DA ADIVINHAÇÃO. A PITONISA TEOCLÉIA
Da planície da Fócida, subia-se por campinas agradáveis que
seguem as margens do Plítios, e entrava-se num vale tortuoso, entre
altas montanhas. A cada passo ele se tornava mais estreito, a paisagem
mais grandiosa e mais desolada. Atingia-se, enfim, um círculo de
montanhas abruptas, coroadas de picos selvagens, verdadeiro funil de
eletricidade, castigado por freqüentes tempestades. Bruscamente, no
fundo da garganta sombria, aparecia a cidade de Delfos, como um ninho
de águia, sobre seu rochedo cercado de precipícios e dominado pelos
dois cumes do Parnaso. Ao longe viam-se cintilar as Vitórias de bronze,
os cavalos também de bronze e as inúmeras estátuas de ouro dispostas
em fila na via sagrada, como uma guarda de heróis e Deuses ao redor do
templo dórico de Fobos Apolo.
Era o local mais santo da Grécia. Lá profetizava a Pítia. Lá se
reuniam os Anfictiões. Lá todos os povos helênicos haviam erguido, em
torno do santuário, capelas que encerravam tesouros de oferendas. Lá,
procissões de homens, mulheres e crianças vindas de longe subiam a via
sacra, para saudar o Deus da Luz. A religião havia consagrado Delfos,
desde tempos imemoriais, à veneração dos povos. Sua localização
central na Hélade, seu rochedo, ao abrigo dos ataques e de fácil defesa,
contribuíram para isto. O Deus estava lá para tocar a imaginação; uma
singularidade lhe deu seu prestígio. Em uma caverna, atrás do templo,
abria-se uma fenda, de onde saíam vapores frios que provocavam,
segundo se dizia, a inspiração e o êxtase. Plutarco narra que em tempos
muito remotos um sacerdote, estando sentado à beira daquela fenda,
pôs-se a profetizar. No início julgavam-no louco. Mas à medida que
suas profecias se foram realizando, deram atenção ao fato. Os
sacerdotes se apoderaram dele e consagraram o local à divindade. Daí a
instituição da Pítia, que se sentava sobre a fenda, sobre um tripé. Os
vapores que saíam do abismo provocavam-lhe convulsões, crises
232
estranhas e aquela segunda visão que se observa nos sonâmbulos
notáveis.
Ésquilo – cujas afirmações têm peso, pois era filho de um
sacerdote de Elêusis e ele mesmo um iniciado – nos ensina nas
Eumênidas, pela boca da Pítia, que Delfos tinha sido consagrado
primeiro à Terra, em seguida a Têmis (A Justiça), depois a Febe (a lua
mediadora) e, finalmente, a Apolo, o Deus solar. Cada um destes nomes
representa, no simbolismo dos templos, longos períodos e abrange
séculos. Mas a celebridade de Delfos data de Apolo. Júpiter, diziam os
poetas, tendo desejado conhecer o centro da Terra, soltou duas águias,
uma do levante e outra do poente. Elas se encontraram em Delfos.
De onde vem este prestígio, esta autoridade universal e inconteste,
que fez de Apolo o Deus grego por excelência e faz com que tenha
conservado, até para nós, um brilho inexplicável?
A história não nos diz nada sobre este ponto tão importante.
Interrogando-se os oradores, os poetas, os filósofos, eles apenas darão
explicações superficiais. A verdadeira resposta a esta questão
permanece segredo do templo. Procuremos penetrá-lo.
No pensamento órfico, Dionísio e Apolo eram duas revelações
diversas da mesma divindade. Dionísio representava a verdade
esotérica, o fundo e o interior das coisas, aberto somente aos iniciados.
Ele continha os mistérios da vida, as existências passadas e futuras, as
relações da alma e do corpo, do Céu e da Terra. Apolo personificava a
mesma verdade, aplicada à vida terrestre e à ordem social. Inspirador da
poesia, da medicina e das leis, era a ciência através da adivinhação, a
beleza através da arte, a paz dos povos através da justiça, e a harmonia
da alma e do corpo através da purificação. Numa palavra, para o
iniciado, Dionísio significava nada menos do que o espírito divino em
evolução no Universo; e Apolo, sua manifestação ao homem terrestre.
Os sacerdotes tinham feito com que o povo compreendesse isto por
meio de uma lenda. Contavam-lhe que no tempo de Orfeu, Baco e
Apolo tinham disputado o tripé de Delfos. Baco cedera-o de bom grado
ao irmão e se retirara para um dos cumes de Parnaso, onde as mulheres
tebanas celebravam seus mistérios. Na realidade, os dois grandes filhos
233
de Júpiter dividiram entre si o império do mundo. Um reinava sobre o
misterioso além; o outro reinava sobre os seres vivos.
Encontramos em Apolo o Verbo solar, a Palavra universal, o
grande Mediador, o Visnu dos hindus, o Mitras dos persas, o Hórus dos
egípcios. Mas as velhas idéias do esoterismo asiático se revestiram, na
lenda de Apolo, de uma beleza plástica, de um esplendor incisivo, que
lhes permitiu infiltrarem-se mais profundamente na consciência humana
como as flechas do Deus, “serpentes de asas brancas impelidas de seu
arco de ouro”, segundo Ésquilo.
Apolo irrompeu, da grande noite, em Delfos. Todas as deusas
saúdam seu nascimento. Ele anda, toma o arco e a lira. Seus cabelos
cacheados esvoaçam no ar, a aljava ressoa em seus ombros. E o mar
palpita e toda a ilha resplandece num banho de fogo e ouro. É a epifania
da luz divina, que por sua augusta presença cria a ordem, o esplendor e
a harmonia, dos quais a poesia é o maravilhoso eco.
O Deus segue para Delfos e fere com suas flechas uma serpente
monstruosa que assolava a região, saneia o país e funda o templo,
imagem da vitória daquela luz divina sobre as trevas e o mal. Nas
religiões antigas, a serpente simbolizava ao mesmo tempo o círculo fatal
da vida e o mal que dele resulta. Dessa compreensão advém o seu
conhecimento. Apolo, matador da serpente, é o símbolo do iniciado que
traspassa a natureza com a ciência, domina-a com sua vontade e,
rompendo o círculo fatídico da carne, eleva-se no esplendor do espírito,
enquanto os destroços da animalidade humana se contorcem na areia.
Eis por que Apolo é o mestre das expiações, das purificações da alma e
do corpo. Salpicado com o sangue do monstro, ele expiou, purificou-se
num exílio de oito anos, sob os loureiros amargos e salubres do vale de
Tempe.
Apolo, educador dos homens, gosta de estar entre eles; sente-se
bem nas cidades, entre a juventude masculina, nos concursos de poesia
e oratória, mas ele aí fica só temporariamente. No outono, volta à sua
pátria, ao país dos hiperbóreos. É o povo misterioso das almas
luminosas e transparentes que vivem na eterna aurora de uma felicidade
perfeita. Lá estão seus verdadeiros mestres e suas amadas sacerdotisas.
234
Com eles vive numa comunidade íntima e profunda: e, quando quer
fazer aos homens um dom real, envia-lhes do país dos hiperbóreos uma
das grandes almas luminosas e a faz nascer na Terra, para ensinar e
encantar os mortais. Ele mesmo volta a Delfos em todas as primaveras,
quando se entoam peãs e hinos. Chega, visível somente para os
iniciados, em sua brancura hiperbórea, num carro puxado por cisnes
melodiosos. Volta a habitar o santuário onde a Pítia transmite seus
oráculos e os sábios e os poetas a escutam. Então os rouxinóis cantam, a
fonte de Castália borbulha em ondas prateadas, os eflúvios de uma luz
ofuscante e de uma música celeste penetram no coração do homem e
nas veias da natureza.
Nesta lenda dos hiperbóreos manifesta-se em raios brilhantes o
fundo esotérico do mito de Apolo. O país dos hiperbóreos é o Além, o
empírico das almas vitoriosas, cujas auroras astrais iluminam as zonas
multicores. O próprio Apolo personifica a luz imaterial e inteligível, na
qual o Sol é apenas a imagem física e de onde decorre toda a verdade.
Os cisnes maravilhosos que o conduzem são os poetas, os divinos
gênios, mensageiros de sua grande alma solar, que deixam atrás de si
estremecimentos de luz e de melodia. Apolo hiperbóreo personifica,
pois, a descida do Céu sobre a Terra, a encarnação da beleza espiritual
no sangue e na carne, o afluxo da verdade transcendente por meio da
inspiração e da adivinhação.
Mas é tempo de soerguer o véu dourado das lendas e penetrar no
próprio templo. Como se praticava a adivinhação? Tocamos aqui os
arcanos da ciência apolínea e dos mistérios de Delfos.
Um laço profundo unia, na Antigüidade, a adivinhação e os cultos
solares. O culto do sol é a chave de ouro de todos os mistérios
considerados mágicos.
A adoração do homem ariano dirigiu-se, desde a origem da
civilização, ao Sol como fonte de luz, calor e vida. Mas quando o
pensamento dos sábios se elevou do fenômeno à causa, eles
conceberam, para além deste fogo sensível e desta luz visível, um fogo
imaterial e uma luz inteligível. Identificaram o primeiro com o princípio
masculino, com o espírito criador e a essência intelectual do Universo, e
235
a segunda com seu princípio feminino, sua alma formadora, sua
substância plástica. Esta instituição remonta a um tempo imemorial. A
concepção que menciono mistura-se com as mais velhas mitologias. Ela
circula nos hinos védicos sob a forma de Agni, o fogo universal que
penetra todas as coisas. Desabrocha na religião de Zoroastro, cujo culto
de Mitras representa a parte esotérica. Mitras é o fogo masculino e
Mitra, a luz feminina. Zoroastro diz, formalmente, que o Eterno criou,
por meio do Verbo vivo, a luz celeste, semente de Ormuz, princípio da
luz material e do fogo material. Para o iniciado de Mitras, o Sol é
apenas um reflexo grosseiro daquela luz. Em sua gruta escura, com a
abóbada pintada de estrelas, ele invoca o sol da graça, o fogo do amor,
vencedor do mal, reconciliador de Ormuz e de Arimã, purificador e
mediador, que habita a alma dos santos profetas. Nas criptas do Egito,
os iniciados procuram este mesmo Sol, sob o nome de Osíris. Quando
Hermes pede para contemplar a origem das coisas, inicialmente sente-se
mergulhado nas ondas etéreas de uma luz deliciosa, onde se movem
todas as formas vivas. Depois, imerso nas trevas da matéria espessa,
ouve uma voz e nela reconhece a voz da luz. Ao mesmo tempo, um
fogo irrompe das profundezas. Logo o caos se organiza e se ilumina.
No
livro dos mortos dos egípcios, as almas vagam penosamente em direção
àquela luz na barca de Ísis. Moisés adotou plenamente esta doutrina, no
Gênese: “Eloim disse: faça-se a luz; e a luz se fez”. Ora, a criação dessa
luz precede a do Sol e das estrelas. Isto quer dizer que na ordem dos
princípios e da cosmogonia, a luz inteligível precede a luz material. Os
gregos, que dramatizaram e vazaram na forma humana as idéias mais
abstratas, exprimiram a mesma doutrina no mito de Apolo hiperbóreo.
O espírito humano chegou pois, pela contemplação interna do
Universo, do ponto de vista da alma e da inteligência, a conceber uma
luz inteligível, um elemento imponderável que servia de intermediário
entre a matéria e o espírito. Seria fácil mostrar que os físicos modernos
se aproximaram insensivelmente da mesma conclusão, por um caminho
oposto, isto é, buscando a constituição da matéria e vendo a
impossibilidade de explicá-la por si mesma. Já no século XVI,
Paracelso, estudando as combinações químicas e as metamorfoses dos
236
corpos, chegara a admitir um agente universal e oculto, mediante o qual
elas operam. Os físicos dos séculos XVII e XVIII, que conceberam o
Universo como uma máquina morta, acreditaram no vazio absoluto dos
espaços celestes. Entretanto, quando se reconheceu que a luz não é a
emissão de uma matéria radiante, mas a vibração de um elemento
imponderável, teve-se de admitir que todo o espaço está repleto de um
fluido infinitamente sutil, que penetra todos os corpos e pelo qual se
transmitem as ondas de calor e luz. Voltava-se assim às idéias da Física
e da teosofia grega.
Newton, que havia passado a vida inteira estudando os
movimentos dos corpos celestes, foi mais longe. Chamou a esse éter
sensorium Dei, ou o cérebro de Deus, isto é, o órgão pelo qual o
pensamento divino age no infinitamente grande e no infinitamente
pequeno. Externando esta idéia, que lhe parecia necessária para explicar
a simples rotação dos astros, o grande físico vogava em plena filosofia
esotérica. O éter que o pensamento de Newton encontrava nos espaços,
Paracelso havia encontrado no fundo de seus alambiques e denominara
luz astral.
Ora, este fluido imponderável, mas presente por toda a parte, que
penetra em tudo, este agente sutil, mas indispensável, esta luz invisível
a nossos olhos, mas que está no fundo de todas as cintilações e de todas
as fosforescências, um físico alemão constatou-os todos, numa série de
experiências sabiamente ordenadas. Reichenbach notara que indivíduos
de constituição nervosa muito sensível, colocados numa câmara
completamente escura, diante de um ímã, viam, nas duas extremidades,
fortes raios de luz vermelha, amarela e azul. Às vezes, estes raios
vibravam, num movimento ondulatório. Continuou suas experiências
com todas as espécies de corpos, principalmente com cristais. Ao redor
de todos esses corpos, os indivíduos viram emanações luminosas. E em
torno da cabeça dos homens colocados na câmara escura, viram raios
brancos; e de seus dedos saíam pequenas chamas. Na primeira fase do
sono, os sonâmbulos algumas vezes viam o seu magnetizador com
aqueles mesmos sinais. A pura luz astral só aparece no alto êxtase, mas
se polariza em todos os corpos, combina-se com todos os fluidos
237
terrestres e desempenha funções diversas na eletricidade, no
magnetismo terrestre e no magnetismo animal (1). O interesse nas
experiências de Reichenbach está em ter chegado aos limites e à
transição da visão física para a visão astral, que pode conduzir à visão
espiritual. Fazem entrever também as sutilezas infinitas da matéria
ponderável. Neste caminho, nada nos impede de concebê-la tão fluida,
tão sutil e penetrante que se torne de certa maneira homogênea ao
espírito e lhe sirva de vestimenta perfeita.
Acabamos de ver que a Física moderna teve de reconhecer um
agente universal imponderável para explicar o mundo, cuja presença
constatou mesmo, voltando assim, sem o saber, para as idéias das
teosofias antigas. Procuremos agora definir a natureza e a função do
fluido cósmico, segundo a filosofia do oculto em todos os tempos.
Sobre este período capital da cosmogonia, estão de acordo
Zoroastro e Heráclito, Pitágoras e São Paulo, os cabalistas e Paracelso.
Ela reina em toda a parte, Cibele-Maia, a grande alma do mundo, a
substância vibrante e plástica que manipula à sua vontade o sopro do
Espírito criador. Seus oceanos etéreos servem de argamassa entre todos
os mundos. Ela é a grande mediadora entre o invisível e o visível, entre
o espírito e a matéria, entre o interior e o exterior no Universo.
Condensada em massas enormes na atmosfera, sob a ação do Sol, ela aí
eclode em forma de raio. Bebida pela Terra, circula em correntes
magnéticas. Sutilizada no sistema nervoso do animal, transmite sua
vontade aos membros, suas sensações ao cérebro. Ainda mais: esse
fluido sutil forma organismos vivos semelhantes aos corpos materiais.
Pois serve de substância ao corpo astral da alma, vestimenta luminosa
que o espírito tece sem cessar para si mesmo. Conforme as almas que
reveste, conforme os mundos que envolve, este fluido se transforma,
afina-se ou se condensa. Não somente ele corporifica o espírito e
espiritualiza a matéria, mas também reflete, em seu seio animado, as
coisas, as vontades e os pensamentos humanos em uma perpétua
miragem. A força e a duração dessas imagens é proporcional à
intensidade da vontade que as produz. Na verdade, não há outro meio de
se explicar a sugestão e a transmissão do pensamento à distância, este
238
princípio da magia hoje constatado e reconhecido pela ciência (2).
Assim o passado dos mundos tremula na luz astral em imagens incertas,
e o futuro aí perambula com as almas vivas que o inelutável destino
força a descer à carne. Eis o sentido do véu de Ísis e do manto de
Cibele, em que são tecidos todos os seres.
Vê-se agora que a doutrina teosófica da luz astral é idêntica à
doutrina secreta do verbo solar nas religiões do Oriente e da Grécia. Vêse
também como essa doutrina se liga à da adivinhação. A luz astral aí
se revela como o médium universal dos fenômenos de visão e de êxtase,
e os explica. E ao mesmo tempo o veículo que transmite os movimentos
do pensamento, e o espelho vivo onde a alma contempla as imagens do
mundo material e espiritual. Uma vez transportado para este elemento, o
espírito do vidente deixa as condições corporais. A medida do espaço e
do tempo mudam para ele, que participa, de algum modo, da ubiqüidade
do fluido universal. A matéria opaca torna-se-lhe transparente. E a alma,
separando-se do corpo, elevando-se em sua própria luz, chega através
do êxtase a penetrar no mundo espiritual, a ver as almas revestidas, de
seus corpos etéreos e a se comunicar com elas. Todos os antigos
iniciados tinham uma idéia nítida dessa segunda visão ou visão direta
do espírito. Temos o testemunho de Ésquilo, que atribui à sombra de
Clitemnestra esta frase: “Olha estas feridas, teu espírito pode vê-las;
quando se dorme, o espírito tem olhos mais penetrantes; à luz do dia, os
mortais não abrangem um vasto campo com sua visão”.
Acrescentamos ainda que esta teoria da clarividência e do êxtase
harmoniza-se maravilhosamente com as numerosas experiências
cientificamente praticadas pelos sábios e médicos deste século com
sonâmbulos lúcidos e clarividentes de todo tipo (3). Em conformidade
com estes fatos contemporâneos, tentaremos caracterizar brevemente a
sucessão de estados psíquicos, desde a clarividência simples até o
êxtase cataléptico.
O estado de clarividência, conforme demonstram milhares de
fatos constatados, é um estado psíquico que difere tanto do sono quanto
da vigília. Longe de embotarem, as faculdades intelectuais do
clarividente aumentam de maneira surpreendente. Sua memória é mais
239
exata, sua imaginação mais viva, sua inteligência mais desperta. Enfim,
este é o fato essencial, desenvolve-se um sentido novo, que não é mais
um sentido corporal, mas da alma. Não somente os pensamentos do
magnetizador se transmitem a ele como no simples fenômeno da
sugestão, o qual já sai do plano físico, mas o clarividente lê no
pensamento dos assistentes, vê através dos muros, penetra em interiores
a centenas de léguas, onde jamais esteve, e também na vida íntima de
pessoas que não conhece. Seus olhos estão fechados e nada podem ver,
mas seu espírito vê mais longe e melhor do que se os olhos estivessem
abertos, parece viajar livremente pelo espaço (4).
Em sua palavra, se a clarividência é um estado anormal do ponto
de vista do corpo, é um estado normal e superior do ponto de vista do
espírito. Pois sua consciência tornou-se mais profunda, sua visão mais
larga. O eu permanece o mesmo, mas ele passou a um plano superior,
onde seu olhar, liberto dos órgãos grosseiros do corpo, abrange e
penetra um horizonte mais vasto (5). Deve-se notar que alguns
sonâmbulos, ao receberem os passes do magnetizador, sentem-se
inundados por uma luz cada vez mais brilhante, e que o despertar lhes
parece um penoso retomo às trevas.
A sugestão, a leitura do pensamento e a visão à distância são fatos
que já provam a existência independente da alma e nos transportam
acima do plano físico do Universo, sem dele nos desligar
completamente. Mas a clarividência tem variedades infinitas e uma
escala de estados diversos, muito mais extensa do que a da vigília. À
medida que nela se avança, os fenômenos se tornam mais raros e mais
extraordinários. Citemos apenas as etapas principais.
A retrospecção é uma visão dos acontecimentos passados
conservados na luz astral e reavivados pela simpatia do vidente. A
adivinhação propriamente dita é uma visão problemática das coisas do
futuro, seja por uma introspecção do pensamento dos seres vivos, que
contém em germe as ações futuras, seja pela influência oculta de
espíritos superiores que mostram o futuro em imagens vivas diante da
alma do clarividente. Os dois casos são projeções de pensamento na luz
astral. Enfim, o êxtase se define como uma visão do mundo espiritual,
240
onde espíritos bons ou maus aparecem ao vidente sob forma humana e
comunicam-se com ele. A alma parece realmente transportada para fora
do corpo; parece que a vida quase o deixou e que se enrijece numa
catalepsia vizinha da morte. Nada pode exprimir, segundo as narrativas
dos grandes extáticos, a beleza e o esplendor dessas visões e nem o
sentimento de inefável fusão com a essência divina, a que eles se
referem como uma embriaguez de luz e de música. Pode-se duvidar da
realidade destas visões, mas é preciso acrescentar que, se no estado
médio da clarividência a alma tem uma percepção exata dos lugares
distantes e dos ausentes, é lógico admitir-se que, em sua mais alta
exaltação, ela possa ter a visão de uma realidade superior e imaterial.
Esta será, segundo nosso pensamento, uma tarefa para o futuro:
restituir às faculdades transcendentes da alma humana a sua dignidade e
sua função social, reorganizando-as sob o controle da ciência e sobre as
bases de uma religião verdadeiramente universal, aberta a todas as
verdades. Então a ciência, regenerada pela verdadeira fé e pelo espírito
de caridade, atingirá de olhos abertos as esferas onde a filosofia
especulativa vagueia, tateando de olhos vendados. Sim, a ciência tornarse-
á vidente e redentora, à medida que nela aumentar a consciência e o
amor à humanidade. E talvez, pela “porta do sono e dos sonhos” – como
dizia o velho Homero – a divina Psiquê, banida de nossa civilização e
que chora em silêncio, sob seu véu, retomará a posse de seus altares.
Seja como for, os fenômenos de clarividência, observados em
todas as suas fases por sábios e médicos do século XIX, lançam nova
luz sobre o papel da adivinhação da Antigüidade e sobre uma
imensidade de fenômenos aparentemente sobrenaturais, de que estão
repletos os anais de todos os povos. Certamente, é indispensável
distinguir o que pertence à lenda e à História, à alucinação e à visão
verdadeira. Mas a psicologia experimental de nossos dias nos ensina a
não rejeitarmos sumariamente os fatos que estão na possibilidade da
natureza humana, e a estudá-los do ponto de vista das leis constatadas.
Se a clarividência é uma faculdade da alma, já não se pode atirar pura e
simplesmente os profetas, os oráculos e as sibilas para o domínio da
superstição. A adivinhação pôde ser conhecida e praticada pelos
241
templos antigos, com princípios fixos, para um fim social e religioso. O
estudo comparado das religiões e das tradições esotéricas mostra que
esses princípios foram os mesmos por toda a parte, ainda que sua
aplicação tenha variado infinitamente. O que desacreditou a arte da
adivinhação é que sua corrupção deu margem aos piores abusos, e suas
belas manifestações só foram possíveis em seres de grandeza e pureza
excepcionais.
A adivinhação, tal como exercida em Delfos, estava fundada nos
princípios que acabamos de expor, e a organização interior do templo
também correspondia a eles. Como nos grandes templos do Egito,
compunha-se de uma arte e de uma ciência. A arte consistia em penetrar
o longínquo, o passado e o futuro, pela clarividência ou pelo êxtase
profético; as ciências, em calcular o futuro segundo as leis da evolução
universal. Arte e ciência controlavam-se reciprocamente.
Nada diremos desta ciência, chamada genetliologia pelos antigos,
e da qual a astrologia da Idade Média é apenas um fragmento mal
compreendido, a não ser que ela supunha a enciclopédia esotérica
aplicada ao futuro dos povos e dos indivíduos. Muito útil como
orientação, sua aplicação permaneceu sempre bastante problemática. Só
os espíritos de primeira grandeza souberam dela fazer uso. Pitágoras
aprofundou-a no Egito. Na Grécia, era exercida com dados menos
completos e menos precisos. Ao contrário, a clarividência e a profecia
tinham avançado bastante.
Sabe-se que esta se exercia em Delfos por intermédio de mulheres
jovens e velhas, chamadas pítias ou pitonisas, que desempenhavam
papel passivo, de sonâmbulas clarividentes. Os sacerdotes
interpretavam, traduziam e ordenavam segundo uma interpretação
pessoal esses oráculos, freqüentemente confusos. Os historiadores
modernos viram na instituição de Delfos somente a exploração da
superstição, por um charlatanismo inteligente. Mas, além da adesão de
toda a Antigüidade filosófica à ciência divinatória de Delfos, vários
oráculos referidos por Heródoto, como aqueles sobre Creso e sobre a
batalha de Salamina, depõem a seu favor. Sem dúvida, esta arte teve seu
começo, sua florescência e sua decadência. O charlatanismo e a
242
corrupção acabaram por se imiscuir. Testemunha disto foi o rei
Cleômenes, que corrompeu a superiora das sacerdotisas de Delfos para
despojar Demarates da realeza. Plutarco escreveu um tratado onde
pesquisou as razões da extinção dos oráculos; e toda esta
degenerescência foi sentida como uma infelicidade por toda a sociedade
antiga. Na época precedente, a adivinhação fora cultivada com uma
sinceridade religiosa e uma profundidade científica que a elevaram às
alturas de um verdadeiro sacerdócio. No frontão do templo, lia-se a
seguinte inscrição: “Conhece-te a ti mesmo”. E esta outra, acima da
porta de entrada: “Que não se aproxime quem não tiver as mãos puras”.
Estas palavras diziam ao visitante que as paixões, as mentiras, as
hipocrisias terrestres não deviam ultrapassar os umbrais do santuário, e
que no interior a verdade divina reinava com uma seriedade terrível.
Pitágoras só foi a Delfos depois de ter passado por todos os
templos da Grécia. Estivera com Epimênides, no santuário de Júpiter
Idéon; assistira aos jogos olímpicos; presidira aos mistérios de Elêusis,
onde o hierofante lhe cedera o lugar. Por toda a parte fora recebido
como um mestre. Esperavam-no em Delfos. A arte divinatória
definhava e Pitágoras queria devolver-lhe sua profundidade, força e
prestígio. Vinha, portanto, menos para consultar Apolo do que para
esclarecer seus intérpretes, reanimar seu entusiasmo e despertar sua
energia. Agir sobre eles seria agir sobre a alma da Grécia e preparar seu
futuro.
Felizmente, ele encontrou no templo um instrumento
maravilhoso, que um desígnio providencial parecia ter-lhe reservado.
A jovem Teocléia pertencia ao colégio das sacerdotisas de Apolo.
Originava-se de uma das famílias nas quais a dignidade sacerdotal é
hereditária. A atmosfera do santuário, as cerimônias do culto, os peãs,
as festas de Apolo pítio e hiperbóreo tinham alimentado sua infância.
Era daquelas jovens que têm aversão inata e instintiva por tudo o que
seduz as outras, e por isso não gostam de Ceres e temem Vênus. A
pesada atmosfera terrestre as inquieta e o amor físico, vagamente
entrevisto, parece-lhes uma violação da alma, uma quebra de seu ser
intacto e virginal. Ao contrário, são estranhamente sensíveis a correntes
243
misteriosas, a influências astrais. Quando a Lua incidia sobre os
sombrios bosques da fonte de Castália, Teocléia via deslizarem formas
brancas. Em pleno dia, ouvia vozes. Quando se expunha aos raios do
Sol levante, sua vibração mergulhava-a em uma espécie de êxtase, em
que ouvia coros invisíveis. No entanto, era insensível às superstições e
às idolatrias populares do culto. As estátuas deixavam-na indiferente e
tinha horror aos sacrifícios animais. Não falava a ninguém das aparições
que perturbavam seu sono. Sentia, com o instinto das clarividentes, que
os sacerdotes de Apolo não possuíam a suprema luz de que ela
necessitava. Estes, contudo, não descuidavam dela para convencê-la a
tornar-se Pitonisa. Ela sentia-se atraída por um mundo superior, do qual
não tinha a chave. Que deuses seriam aqueles que se apoderavam dela
mediante sopros e calafrios? Gostaria de sabê-lo, antes de consagrar-se
a eles. Pois as grandes almas têm necessidade de ver claramente, mesmo
quando se abandonam às potências divinas.
De que profunda comoção, de que pressentimento misterioso
deverá ter-se agitado a alma de Teocléia, quando viu Pitágoras pela
primeira vez e ouviu sua voz eloqüente repercutir entre as colunas do
santuário apolíneo! Sentiu a presença do iniciador que esperava e
reconheceu seu mestre. Ela queria saber. Ela saberia por ele; e este
mundo interior, este mundo que ela carregava consigo ele iria revelá-lo!
– Ele, por seu lado, com seu olhar seguro e penetrante, deve ter
reconhecido nela a alma viva e vibrante que procurava para tornar-se
intérprete de seu pensamento no templo e nele infundir um novo
espírito. Desde o primeiro olhar, desde a primeira palavra, uma corrente
invisível ligou o sábio de Samos à jovem sacerdotisa, que o escutava
sem nada dizer, bebendo suas palavras, fitando-o com os grandes olhos
atentos. Não sei quem disse que o poeta e a lira se reconhecem em uma
vibração profunda, aproximando-se um do outro. Assim se
reconheceram Pitágoras e Teocléia.
Desde o nascer do sol, Pitágoras mantinha longas conversas com
os sacerdotes de Apolo, chamados santos e profetas. Ele pediu que a
jovem sacerdotisa ali fosse admitida, a fim de iniciá-la em seu
ensinamento secreto e prepará-la para desempenhar sua missão. Ela
244
pôde então acompanhar as lições que o mestre dava todos os dias no
santuário. Pitágoras estava no vigor da idade. Trazia a veste branca
disposta à maneira egípcia; uma faixa púrpura cingia-lhe a larga fronte.
Quando falava, seus olhos graves e lentos pousavam no interlocutor e o
envolviam numa luz tépida. Em torno dele, a atmosfera parecia tornarse
mais leve e inteiramente intelectual.
As conversações do sábio de Samos com os mais altos
representantes da religião grega foram da maior importância. Não se
tratava somente de adivinhação e de inspiração, mas do futuro da Grécia
e dos destinos do mundo inteiro. Os conhecimentos, os títulos e os
poderes que ele adquirira nos templos de Mênfis e da Babilônia
conferiam-lhe a maior autoridade. Tinha o direito de falar como
superior e como guia aos inspiradores da Grécia. Fê-lo com a
eloqüência de seu gênio, com o entusiasmo de sua missão. Para que
melhor compreendessem, começou por narrar sua juventude, suas lutas,
sua iniciação egípcia. Falou-lhes do Egito, mãe da Grécia, velho como o
mundo, imutável como uma múmia coberta de hieróglifos, no fundo de
suas pirâmides, que possuía em sua tumba o segredo dos povos, dos
idiomas, das religiões. Desenrolou diante de seus olhos os mistérios da
grande Ísis, terrestre e celeste, mãe dos Deuses e dos homens; e,
fazendo-os passar por suas provas, mergulhou-os com ele na luz de
Osíris. Depois foi a vez da Babilônia, dos magos caldeus, de suas
ciências ocultas, de seus templos profundos e maciços, onde evocam o
fogo vivo onde se movem os demônios e os Deuses.
Ao escutar Pitágoras, Teocléia experimentava sensações
surpreendentes. Tudo o que ele dizia ficava gravado com letras de fogo
em seu espírito. Aquelas coisas pareciam-lhe ao mesmo tempo
maravilhosas e conhecidas. Aprendendo-as, acreditava recordar. As
palavras do mestre faziam-na folhear as páginas do Universo como em
um livro. Ela não via mais os Deuses sob suas efígies humanas, mas em
suas essências, que formam as coisas e os espíritos. Flutuava, subia,
descia com eles nos espaços. Às vezes, tinha a ilusão de não mais sentir
os limites de seu corpo e de se dissolver no infinito. Assim, sua
imaginação entrava pouco a pouco no mundo invisível; e as marcas
245
antigas que encontrava em sua própria alma diziam-lhe que era esta a
verdade, a única realidade. O resto era apenas aparência. Ela sentia que
em breve seus olhos interiores abrir-se-iam para contemplá-la
diretamente.
Daquelas alturas o mestre a trouxe bruscamente de volta à terra,
narrando as infelicidades do Egito. Depois de ter discorrido sobre a
grandeza da ciência egípcia, ele mostrou-a sucumbindo sob a invasão
persa. Narrou os horrores de Cambises, os templos saqueados, os livros
sagrados jogados à fogueira, os sacerdotes de Osíris mortos ou
dispersos, o monstro do despotismo persa concentrando sob sua mão de
ferro toda a velha barbárie asiática; as raças errantes semi-selvagens do
centro da Ásia e do fundo da Índia esperando somente uma ocasião para
precipitar-se sobre a Europa. Sim, esse ciclone que aumentava devia um
dia eclodir sobre a Grécia, tão seguramente quanto o raio deve sair de
uma nuvem que se condensa no ar. A Grécia dividida estaria preparada
para resistir a esse choque terrível?
Ela nem sequer suspeitava disso. Os
povos não evitam seus destinos, e, se não vigiarem incessantemente, os
Deuses os precipitam. A sábia nação de Hermes, o Egito, não
desmoronara após seis mil anos de prosperidade? E a Grécia, a bela
Jônia, passaria mais depressa ainda! Chegará o tempo em que o Deus
solar abandonará este templo, cujas pedras os bárbaros derrubarão,
enquanto os pastores apascentarão seus rebanhos nas ruínas de Delfos...
Ante estas sinistras profecias, a fisionomia de Teocléia
transformou-se, exibindo uma expressão de pavor. Ela se deixou cair
por terra e, abraçada a uma coluna, olhos fixos, abismada em seus
pensamentos, parecia o gênio da Dor chorando sobre o túmulo da
Grécia.
“Mas estes, continuou Pitágoras, são segredos que devem ficar
sepultados no fundo dos templos. O iniciado atrai a morte ou a repele à
sua vontade. Formando a cadeia mágica das vontades, os iniciados
prolongam também a vida dos povos. Cabe a vós retardar a hora fatal,
cabe a vós fazer brilhar a Grécia, cabe a vós fazer resplandecer nela o
verbo de Apolo. Os povos são o que deles fazem os seus Deuses. Mas
os Deuses só se revelam àqueles que os invocam. O que é Apolo? O
246
Verbo do Deus único que se manifesta eternamente no mundo. A
verdade é a alma de Deus, seu corpo é a luz. Os sábios, os videntes, os
profetas são os únicos que a vêem. Os homens só vêem sua sombra. Os
espíritos glorificados, que denominamos heróis e semideuses, habitam
esta luz, em legiões, em esferas inumeráveis. Eis o verdadeiro corpo de
Apolo, o sol dos iniciados, e sem seus raios nada de grande se faz sobre
a Terra. Como o ímã atrai o ferro, com nossos pensamentos, com nossas
preces, com nossas ações, atraímos a inspiração divina. A vós cabe
transmitir à Grécia o verbo de Apolo; e a Grécia brilhará com uma luz
imortal!”
Foi com discursos semelhantes que Pitágoras conseguiu devolver
aos sacerdotes de Delfos a consciência de sua missão. Teocléia
absorvia-os com uma paixão silenciosa e concentrada. Transformava-se
a olhos vistos, sob a influência do pensamento e da vontade do mestre,
como sob um lento encantamento. De pé, em meio aos anciãos
espantados, ela desfazia sua cabeleira negra e a afastava da testa, como
se ali sentisse correr fogo. Já seus olhos, muito abertos e transfigurados,
pareciam contemplar os gênios solares e planetários, em suas órbitas
esplêndidas e intensa irradiação.
Um dia ela caiu espontaneamente num sono profundo e lúcido. Os
cinco profetas cercaram-na; ela permaneceu insensível à sua voz e ao
seu toque. Pitágoras aproximou-se e disse: “Levanta-te e vai onde meu
pensamento te enviar. Pois de agora em diante és Pitonisa!”
À voz do mestre, um tremor percorreu-lhe todo o corpo e a
soergueu numa longa vibração. Seus olhos estavam fechados; mas ela
via interiormente.
Pitágoras perguntou-lhe:
– Onde estás?
– Eu subo... subo cada vez mais.
– E agora?
– Nado na luz de Orfeu...
– O que vês no futuro?
247
– Grandes guerras... homens de bronze... brancas vitórias... Apolo
volta para habitar seu santuário e eu serei sua voz!... Mas, tu, seu
mensageiro... Ai! Ai! tu vais deixar-me... e levarás sua luz para a Itália.
A vidente, de olhos fechados, falou durante longo tempo com sua
voz musical, ofegante, ritmada. Depois, com um soluço, caiu como
morta.
Assim Pitágoras, vertia os puros ensinamentos no seio de Teocléia
e afinava-a como uma lira para o sopro dos Deuses. Uma vez exaltada a
esta altura de inspiração, ela tornou-se uma chama, graças à qual ele
pôde sondar seu próprio destino, desvendar o possível futuro, dirigindose
às plagas sem margem do invisível. Esta contraprova palpitante das
verdades que ele ensinava encheu os sacerdotes de admiração, despertou
seu entusiasmo e reanimou sua fé. O templo tinha agora uma pitonisa
inspirada, sacerdotes iniciados nas ciências e nas artes divinas. Delfos
poderia transformar-se num centro de vida e de ação.
Pitágoras permaneceu ali um ano inteiro. Foi só depois de ter
instruído os sacerdotes em todos os segredos de sua doutrina e de ter
formado Teocléia para o seu ministério que ele partiu para a Magna
Grécia.
(1). Reichenbach chamou este fluido de odylo. Sua obra foi traduzida
para o inglês por Gregory: Researches on magnetism, electricity, heat, light,
cristallization and chemical attraction. – Londres, 1850.
(2). Ver o Boletim da Sociedade de psicologia fisiológica, presidida por
M. Charcot, 1885. Ver, sobretudo, o belo livro de M. Ochorowicz, De la
Suggestion Mentale, Paris, 1887.
(3). Sobre esta matéria existe uma literatura abundante, de valor
bastante desigual, tanto na França quanto na Alemanha e na Inglaterra.
Citaremos aqui duas obras em que essas questões são tratadas cientificamente
por homens dignos de fé:
248
1º Letters on animal magnetism, de William Gregory, Londres, 1850. –
Gregory era professor de Química na Universidade de Edimburgo. Seu livro é
um estudo aprofundado dos fenômenos do magnetismo animal, desde a
sugestão até a visão à distância e clarividência lúcida, em indivíduos
observados por ele mesmo, de acordo com métodos científicos e com
minuciosa exatidão.
2º Die Mystischen Erscheinungen der menschlichen Natur, von
Maximilian Perty, Leipzig, 1872. – M. Perty foi professor de Filosofia e de
Medicina na Universidade de Berna. Seu livro oferece um imenso repertório
de todos os fenômenos ocultos que têm algum valor histórico. O capítulo
bastante notável sobre a clarividência (Schlafwachen), volume I, encerra vinte
histórias de mulheres sonâmbulas e cinco de homens sonâmbulos, narradas
pelos médicos que os trataram. A história da clarividente Weiner, tratada pelo
autor, é das mais curiosas. – Ver também os tratados de magnetismo de
Dupotet, Deleuze e o livro extremamente curioso: Die Sherin von Prévorst, de
Justinis Kerner.
(4). Exemplos numerosos em Gregory: Letters, XVI, XVII e XVIII.
(5). O filósofo alemão Schelling reconheceu a importância capital do
sonambulismo na questão da imortalidade da alma. Ele observa que, no sono
lúcido, produz-se uma elevação e uma liberação relativa da alma em relação
ao corpo, como jamais acontece no estado normal. Nos sonâmbulos tudo
demonstra a mais intensa consciência, como se todo o ser estivesse
concentrado num foco luminoso que reúne o passado, o presente e o futuro.
Longe de perderem a memória, o passado se esclarece para eles, o próprio
futuro mesmo se revela às vezes num clarão intenso. Se isto é possível na vida
terrestre – pergunta Schelling – não é certo que nossa personalidade espiritual
que nos acompanha na morte, já está presente em nós atualmente, que ela não
nasce nesta ocasião, que ela simplesmente é libertada e se revela assim que
não está mais ligada ao mundo exterior pelos sentidos? O estado depois da
morte é, pois, mais real do que o estado terrestre. Nesta existência, o
acidental, se imiscuindo em tudo, paralisa em nós o essencial. Schelling muito
simplesmente chama de clarividência o estado futuro. O espírito,
desembaraçado de tudo que existe de acidental na vida terrestre, torna-se mais
vivo e mais forte. O mau torna-se pior e o bom, melhor.
249
Muito recentemente, M. Charles Du Prel sustentou a mesma tese, com
uma grande riqueza de fatos e de observações, num belo livro: Philosophie
der Mystik (1886). Ele parte do seguinte fato: “A consciência do eu não
esgota seu objeto. A alma e a consciência não são termos adequados. Não se
ajustam, pois não têm uma extensão igual. A esfera da alma ultrapassa em
muito a da consciência”. Há, então, em nós um eu latente. Este eu latente, que
se manifesta rio sono e no sonho, é o verdadeiro eu supraterrestre e
transcendente, cuja existência precedeu nosso eu terrestre, ligado ao corpo. O
eu terrestre é perecível; o eu transcendente é imortal. Eis por que São Paulo
disse: “Já nesta terra caminhamos para o céu.”
250
IV
A ORDEM E A DOUTRINA
A cidade de Crotona ocupava a extremidade do golfo de Tarento,
perto do promontório Laciniano, diante do alto mar. Era, com Síbaris, a
cidade mais florescente da Itália meridional. Era admirada por sua
constituição dórica, seus atletas vencedores nos jogos olímpicos, seus
médicos rivais dos asclepíades. Os sibaritas devem sua imortalidade ao
luxo e à indolência. Os crotoniatas seriam talvez esquecidos, apesar de
suas virtudes, se não tivessem tido a glória de oferecer asilo à grande
escola de filosofia esotérica, conhecida pelo nome de seita pitagórica,
que se pode considerar mãe da escola platônica e avó de todas as
escolas idealistas. Por mais nobres que sejam as descendentes, a avó as
supera em muito. A escola platônica procede de uma iniciação
incompleta; a escola estóica perdeu a verdadeira tradição. Os outros
sistemas de filosofia antiga e moderna são especulações mais ou menos
felizes, enquanto que a doutrina de Pitágoras estava baseada em uma
ciência experimental e acompanhada de uma organização completa da
vida.
Como as ruínas da cidade desaparecida, os segredos da ordem e o
pensamento do mestre estão hoje profundamente enterrados.
Procuraremos, contudo, fazê-los reviver. Será para nós ocasião de
penetrar no coração da doutrina teosófica, arcano das religiões e das
filosofias, e erguer uma ponta do véu de Ísis, com a clareza do gênio
grego.
Várias razões levaram Pitágoras a escolher esta colônia dórica
para centro da ação. Seu fim não era unicamente ensinar a doutrina
esotérica a um círculo de discípulos escolhidos, mas ainda aplicar seus
princípios à educação da juventude e à vida do Estado. Esse plano
comportava a fundação de um instituto para a iniciação laica, com a
intenção oculta de transformar, pouco a pouco, a organização política
das cidades, à imagem daquele ideal filosófico e religioso. É certo que
nenhuma das repúblicas da Hélade ou do Peloponeso teria tolerado esta
251
inovação. O filósofo foi acusado de conspirar contra o Estado. As
cidades gregas do golfo de Tarento, menos minadas pela demagogia,
eram mais liberais. Pitágoras não se enganou contando ali encontrar um
acolhimento favorável para suas reformas, por parte do Senado de
Crotona. Devemos acrescentar que suas pretensões se estendiam para
além da Grécia. Adivinhando a evolução das idéias, ele previa a queda
do helenismo e sonhava em depositar no espírito humano os princípios
de uma religião científica. Fundando sua escola no golfo de Tarento,
disseminava as idéias esotéricas na Itália e conservava, no vaso precioso
de sua doutrina, a essência purificada da sabedoria oriental para os
povos do Ocidente.
Ao chegar a Crotona, que tendia então à vida voluptuosa de sua
vizinha, Síbaris, Pitágoras promoveu uma verdadeira revolução. Porfírio
e Jamblico nos pintam suas apresentações iniciais mais como as de um
mágico do que de um filósofo. Reuniu os jovens no templo de Apolo e
conseguiu, com sua eloqüência, arrancá-los do deboche. Reuniu as
mulheres no templo de Juno e as persuadiu a levarem suas roupas
douradas e seus ornamentos a este mesmo templo, como troféus à
derrota da vaidade e do luxo. Cercava de graça a austeridade de seus
ensinamentos. De sua sabedoria emanava uma chama comunicativa. A
beleza de sua fisionomia, a nobreza de sua pessoa, o encanto de seu
rosto e de sua voz completavam sua sedução. As mulheres
comparavam-no a Júpiter, os jovens, a Apolo hiperbóreo. Ele cativava,
arrebatava a multidão pasmada que o ouvia, fazendo-a apaixonar-se
pela virtude e pela verdade.
O Senado de Crotona ou Conselho dos mil inquietou-se com esta
ascendência. Intimou Pitágoras a explicar diante dele sua conduta e os
meios que empregava para dominar os espíritos. Para Pitágoras, esta foi
uma oportunidade para desenvolver suas idéias sobre a educação e
demonstrar que, longe de ameaçar a constituição dórica de Crotona, elas
não fariam mais que fortalecê-la.
Quando conquistou para seu projeto os cidadãos mais ricos e a
maioria do Senado, propôs-lhes a criação de um instituto, para si e seus
discípulos. Essa confraria de iniciados leigos levaria vida comunitária,
252
em um edifício construído especialmente com esse objetivo, mas sem
abandonar a vida civil. Entre eles, aqueles que já mereciam o nome de
mestres podiam ensinar as ciências físicas, psíquicas e religiosas.
Quanto aos jovens, seriam admitidos nas lições dos mestres e nos
diversos graus de iniciação, segundo sua inteligência e boa vontade, sob
o controle do chefe da ordem. Para começar, deviam submeter-se às
regras da vida comunitária e passar todo o dia no instituto, sob a
supervisão dos mestres. Aqueles que quisessem entrar formalmente na
ordem entregariam sua fortuna a um curador, com a liberdade de
retomá-la quando lhes aprouvesse. Haveria no Instituto uma fala para as
mulheres, com iniciação paralela, mas diferenciada e adaptada aos
deveres de seu sexo.
O projeto foi adotado com entusiasmo pelo Senado de Crotona.
Alguns anos depois, erguia-se nos arredores da cidade um edifício
cercado de imensos pórticos e belos jardins. Os habitantes de Crotona
chamaram-no de Templo das Musas, E na realidade havia, no centro da
construção, junto à modesta habitação do mestre, um templo dedicado
àquelas divindades.
Assim nasceu o instituto pitagórico, que se tornou ao mesmo
tempo um colégio de educação, uma academia de ciências e uma
pequena cidade-modelo, sob a direção de um grande iniciado, Pela
teoria e pela prática, pelas ciências e pelas artes reunidas, chegava-se
lentamente à ciência das ciências, à harmonia mágica da alma e do
intelecto com o Universo, que os pitagóricos consideravam como o
arcano da filosofia e da religião. A escola pitágorica tem para nós um
interesse supremo, porque foi a mais notável tentativa de iniciação
leiga. Síntese antecipada do helenismo e do cristianismo, ela enxertou o
fruto da ciência na árvore da vida; conheceu a realização interna e viva
da verdade, que somente a fé profunda pode proporcionar. Realização
efêmera, mas de uma importância capital, revelou-se exemplo fecundo.
Para fazermos uma idéia do que foi, penetremos no instituto
pitagórico com um noviço e acompanhemos, passo a passo, sua
iniciação.
253
AS PROVAS
Brilhava sobre uma colina, entre ciprestes e oliveiras, a alva
morada dos irmãos iniciados. Quem viesse de baixo, ladeando a costa,
veria seus pórticos, seus jardins, seu ginásio. O templo das Musas
ultrapassava as duas alas do edifício com sua colunata circular, de uma
elegância etérea. Do terraço dos jardins exteriores dominava-se a
cidade, o Pritaneu, o porto, o local das assembléias. Ao longe, o golfo
estendia-se entre as cotas pontiagudas como uma taça de ágata, e o mar
Jônio arrematava o horizonte com sua Unha azulada. Algumas vezes
viam-se mulheres vestidas de cores diversas saírem da ala esquerda e
desceram para o mar, em longas filas, pela alameda dos ciprestes. Iam
cumprir seus ritos no templo de Ceres. Freqüentemente, também da ala
direita viam-se homens, em vestes brancas, subirem para o templo de
Apolo. Não era o menor atrativo para a imaginação investigadora da
juventude pensar que a escola dos iniciados estava colocada sob a
proteção daquelas duas divindades, das quais uma, a Grande Deusa, era
possuidora dos mistérios profundos da Mulher e da Terra, e a outra, o
Deus solar, revelava os do Homem e do Céu.
Sorria pois acima da cidade populosa a pequena cidade dos
eleitos. Sua tranqüila serenidade atraía os nobres instintos na juventude,
mas nada se via do que se passava no interior, e sabia-se que não era
fácil fazer-se admitir ali, Uma simples cerca viva servia como defesa
aos jardins pertencentes ao instituto de Pitágoras e a porta de entrada
permanecia aberta durante o dia. Porém havia lá uma estátua de Hermes
em cujo pedestal se lia: Eskato bébéloi: Para trás os profanos! Todo
mundo respeitava esta ordem dos Mistérios.
Pitágoras era muito exigente na admissão dos noviços, dizendo
que “nem toda a madeira era própria para fazer um Mercúrio”. Os
jovens que quisessem entrar para a associação deviam submeter-se a um
período de prova e de ensaio. Apresentados por seus pais ou por um dos
mestres, era-lhes permitido, no início, entrar no ginásio pitagórico, onde
os noviços entregavam-se aos jogos próprios de sua idade. O jovem
254
notava, ao primeiro olhar, que esse ginásio não se assemelhava ao da
cidade. Nada de gritos violentos, nada de grupos brigões, nada da
fanfarronice ridícula ou da vã exibição da força dos atletas imaturos,
desafiando-se entre si ou mostrando seus músculos. Havia grupos de
jovens afáveis e distintos, passeando aos pares sob os pórticos ou
jogando na arena. Eles o convidavam com graça e simplicidade a tomar
parte em sua conversação, como se fosse um dos seus, sem tolhê-lo com
um olhar desconfiado ou um sorriso malicioso. Na arena, exercitava-se
a corrida, o arremesso do dardo e do disco. Executavam-se também
combates simulados sob forma de danças dóricas; mas Pitágoras. havia
severamente banido de seu instituto a luta corporal, dizendo que era
supérfluo e mesmo perigoso desenvolver o orgulho e o ódio com a força
e a agilidade; que os homens destinados a praticar as virtudes da
amizade não deviam começar por se lançarem por terra, rolando na areia
como animais selvagens; que um verdadeiro herói sabia combater com
coragem, sem furor; que o ódio nos torna inferiores a qualquer
adversário.
O novato ouvia estas máximas do mestre repetidas pelos noviços,
muito orgulhosos de lhe comunicarem sua sabedoria precoce. Ao
mesmo tempo, eles o exortavam a manifestar suas opiniões, a
contradizê-los livremente. Dessa forma estimulado, o pretendente
ingênuo mostrava logo, abertamente, sua verdadeira natureza. Feliz por
estar sendo ouvido e admirado, ele perorava e se desoprimia à vontade.
Durante todo esse tempo, os mestres observavam-no de perto, sem
repreendê-lo. Pitágoras vinha de improviso estudar seus gestos e suas
palavras. Dava particular atenção ao modo de andar e ao riso dos
jovens. O riso, segundo ele, manifesta o caráter de uma maneira
indubitável; nenhuma dissimulação pode embelezar o riso do Homem
mau. Ele realizara um estudo tão profundo da fisionomia humana que
podia ler no fundo da alma (1).
Mediante estas observações minuciosas, o mestre fazia uma
avaliação precisa de seus futuros discípulos. Após alguns meses vinham
as provas decisivas. Imitavam as provas da iniciação egípcia, porém
bastante suavizadas e adaptadas à natureza grega, cuja
255
impressionabilidade não suportaria os pavores mortais das criptas de
Mênfis e Tebas. Faziam o aspirante pitagórico passar a noite numa
caverna, nos arredores da cidade, onde se dizia que havia monstros e
aparições. Os que não tinham força para suportar as impressões
fúnebres da solidão e da noite, os que recusavam entrar ou fugiam antes
da manhã, eram considerados fracos para a iniciação e despedidos.
A prova moral era mais séria. Numa bela manhã, bruscamente,
sem nenhuma preparação, encerrava-se o candidato a discípulo numa
cela triste e nua. Deixavam-lhe uma ardósia e ordenavam-lhe friamente
que encontrasse o significado de um dos símbolos pitagóricos, por
exemplo: “O que significa o triângulo inscrito no círculo?” ou “por que
o dodecaedro compreendido na esfera é o algarismo do Universo?” Ele
passava doze horas na cela. com sua ardósia e seu problema, sem
nenhuma outra companhia além de pão seco e um jarro de água. Depois
levavam-no para uma sala, diante dos noviços reunidos. Nessa
circunstância, estes tinham ordem de escarnecer sem piedade do infeliz
que, aborrecido e faminto, parecia um culpado.” – Eis, diziam eles, o
novo filósofo. Seu semblante parece inspirado! Ele vai nos contar suas
meditações. Não nos escondas o que descobriste. Vais passar por todos
os símbolos. Com mais um mês deste regime, tu te tornarás um grande
sábio!”
Nesse momento o mestre observava com profunda atenção as
atitudes e a fisionomia do jovem. Irritado pelo jejum, coberto de
sarcasmos, humilhado por não ter resolvido um enigma
incompreensível, ele precisava fazer um esforço enorme para se
dominar. Alguns choravam de raiva, outros respondiam com palavras
cínicas; e outros, fora de si, quebravam a ardósia com furor, cobrindo de
injúrias a escola, o mestre e seus discípulos. Pitágoras aparecia então e
dizia com calma que, tendo suportado tão mal a prova do amor-próprio,
pedia-lhe para não mais voltar a uma escola da qual tinha tão mau
conceito e cujas virtudes elementares eram a amizade e o respeito aos
mestres. O candidato recusado ia embora envergonhado, e algumas
vezes tornava-se inimigo terrível da ordem, como o famoso Cilon, que
depois amotinou o povo contra os Pitagóricos e contribuiu para a
256
catástrofe da ordem. Aqueles que, ao contrário, suportavam com
firmeza os ataques, que respondiam às provocações por meio de
reflexões justas e espirituais, e declaravam estar dispostos a recomeçar
cem vezes a prova para obterem uma única parcela da sabedoria, estes
eram solenemente admitidos no noviciado e recebiam as felicitações
entusiastas de seus novos condiscípulos.
PRIMEIRO GRAU – PREPARAÇÃO
O noviciado e a vida pitagórica
Somente então começava o noviciado chamado Preparação
(paraskéié), que durava pelo menos dois anos e podia prolongar-se até
cinco. Os noviços ou ouvintes (akusikoi) eram submetidos, durante as
lições, à regra do absoluto silêncio. Não tinham nem o direito de fazer
uma objeção aos mestres, nem de discutir seus ensinamentos. Deviam
recebê-los com respeito, e depois meditar longamente sobre eles. Para
gravar esta regra no espírito do ouvinte novato, mostravam-lhe uma
estátua de mulher envolta num longo véu, com um dedo pousado nos
lábios: a Musa do silêncio.
Pitágoras não acreditava que a mocidade fosse capaz de
compreender a origem e o fim das coisas. Pensava que exercitá-la na
dialética e no raciocínio, antes de ter-lhe dado o sentido da verdade,
formaria cabeças vazias e sofistas pretensiosos. Sonhava em
desenvolver em seus alunos, antes de tudo, a faculdade primordial e
superior do homem: a intuição. E para isso não ensinava coisas
misteriosas ou difíceis. Falava dos sentimentos naturais, dos primeiros
deveres do homem em sua entrada na vida, e mostrava sua relação com
as leis universais. Como inculcava primordialmente nos jovens o amor
pelos pais, exaltava este sentimento assimilando a idéia de pai à de
Deus, o grande criador do Universo. “Não há nada de mais venerável,
dizia, do que a qualidade de pai. Homero denominou Júpiter rei dos
Deuses, mas, para mostrar toda a sua grandeza, denominou-o “pai dos
257
Deuses e dos homens”. Comparava a mãe à natureza generosa e
benfeitora. Como Cibele celeste produz os astros, como Deméter gera
os frutos e as flores da Terra, assim a mãe nutre a criança com todas as
alegrias. O filho devia, pois, honrar em seu pai e em sua mãe os
representantes, as imagens terrestres daquelas grandes divindades.
Mostrava ainda que o amor pela pátria vem do amor que se sentiu na
infância pela mãe. Os pais não nos são dados por acaso, como acredita o
vulgo, mas por uma ordem antecedente e superior, chamada fortuna ou
necessidade. É preciso honrá-los, mas deve-se escolher seu amigo. Os
noviços eram convidados a se reunirem dois a dois conforme suas
afinidades. O mais jovem devia procurar no mais velho as virtudes que
desejava para si e os dois companheiros deviam exercitar-se para uma
vida melhor. Dizia o mestre: “O amigo é um outro eu. Deve-se honrá-lo
como a um Deus”. Se a regra pitagórica impunha ao noviço ouvinte
uma submissão absoluta em face dos mestres, devolvia-lhe sua plena
liberdade no encanto da amizade, dela fazendo o estimulante de todas as
virtudes, a poesia da vida, o caminho do ideal.
As energias individuais eram assim despertadas; a moral tornavase
viva e poética; a regra, aceita com amor, deixava de ser uma
violência e tornava-se a própria afirmação da individualidade. Pitágoras
queria que a obediência fosse uma aceitação. Além do mais, o ensino
moral preparava o ensino filosófico. Pois as relações que se
estabeleciam entre os deveres sociais e as harmonias do Cosmos
deixavam entrever a lei das analogias e das concordâncias universais.
Nesta lei reside o princípio dos Mistérios, da doutrina oculta e de toda a
filosofia. O espírito do aluno habituava-se assim a encontrar a marca de
uma ordem invisível na realidade visível. Máximas gerais, prescrições
sucintas abriam perspectivas sobre este mundo superior. De manhã e à
noite soavam versos dourados aos ouvidos do aluno, com os acordes da
lira:
Dedica aos Deuses imortais o culto consagrado,
E conserva tua fé.
258
Comentando-se esta máxima, mostrava-se que os Deuses,
diversos na aparência, eram na realidade os mesmos entre todos os
povos, pois correspondiam às mesmas forças intelectuais e anímicas,
atuantes em todo o Universo. O sábio podia, portanto, honrar os Deuses
de sua pátria tendo, de sua essência, uma concepção diferente da do
vulgo. Tolerância para com todos os cultos; unidade dos povos na
humanidade; unidade das religiões na ciência esotérica. . . Estas idéias
novas se desenhavam vagamente no espírito do noviço, como
divindades grandiosas entrevistas no esplendor do poente. E a lira de
ouro continuava seus graves ensinamentos:
Reverencia a memória
Dos heróis-benfeitores, dos espíritos semideuses.
Por trás destes versos, o noviço via reluzir, como que através de
um véu, a divina Psiquê, a alma humana. A rota celeste brilhava como
um foguete de luz. No culto dos heróis e dos semideuses, o iniciado
contemplava a doutrina da vida futura e o mistério da evolução
universal. Não se revelava este grande segredo ao noviço. Mas ele era
preparado para compreendê-lo, ouvindo falar de uma hierarquia de seres
superiores à humanidade, chamados heróis e semideuses, que são seus
guias e seus protetores. Acrescentava-se que eles serviam de
intermediários entre o homem e a divindade, que por meio deles ele
poderia, gradativamente, se aproximar dela, praticando as virtudes
heróicas e divinas. “Mas, como se comunicar com estes gênios
invisíveis? De onde vem a alma? Para onde vai ela? E por que este
sombrio mistério da morte?” O noviço não ousava formular estas
questões, mas elas transpareciam em seus olhares. E como única
resposta seus mestres mostravam-lhe combatentes na Terra, estátuas nos
templos, e almas glorificadas no céu, “na cidadela ígnea dos Deuses”,
onde Hércules chegara.
No fundo dos mistérios antigos, todos os Deuses conduziam ao
Deus único e supremo. Essa revelação, com todas as suas
conseqüências, era a chave do Cosmos. Por isso ela era inteiramente
259
reservada à iniciação propriamente dita. O noviço nada sabia dela. Só o
deixavam entrever esta verdade através do que lhe diziam sobre as
potências da Música e do Número. Os números, ensinava o mestre,
contêm o segredo das coisas, e Deus é a harmonia universal. Os sete
modos sagrados, construídos sobre as sete notas do heptacórdio,
correspondem às sete cores da luz, aos sete planetas e aos sete modos de
existência que se reproduzem em todas as esferas da vida material e
espiritual, desde a menor até a maior. As melodias destes modos,
sabiamente infundidas, deviam afinar a alma e torná-la suficientemente
harmoniosa para vibrar ao sopro da verdade.
À purificação da alma correspondia necessariamente a do corpo,
alcançada pela higiene e pela severa disciplina dos costumes. Vencer as
paixões era o primeiro dever do iniciado. Quem não fez de seu próprio
ser uma harmonia não pode refletir a harmonia divina. Entretanto, o
ideal da vida pitagórica nada tinha da vida ascética, uma vez que o
casamento era considerado uma coisa santa. Porém recomendava-se a
castidade aos noviços e a moderação aos iniciados, como um elemento
de força e perfeição. “Não cedas à volúpia senão quando consentires em
ser inferior a ti mesmo”, dizia o mestre. E acrescentava que a volúpia
não existe espontaneamente, comparando-a “ao canto das sereias, que
desaparecem quando alguém delas se aproxima, deixando no local
apenas ossos partidos e carnes ensangüentadas, sobre um recife gasto
pelas ondas, ao passo que a verdadeira alegria é semelhante ao concerto
das musas, que deixa na alma uma celeste harmonia”. Pitágoras
acreditava nas virtudes da mulher iniciada, mas não confiava na mulher
natural. A um discípulo que lhe perguntou quando lhe seria permitido
aproximar-se de uma mulher, ele respondeu ironicamente: “Quando
estiveres cansado de teu repouso.”
O dia pitagórico ordenava-se da seguinte maneira: assim que o
disco ardente do sol saía das ondas azuis do mar Jônio e dourava as
colunas do templo das Musas, acima da morada dos iniciados, os jovens
pitagóricos, cantavam um hino a Apolo, executando uma dança dórica
de caráter másculo e sagrado. Após as abluções de rigor, faziam um
passeio ao templo, guardando silêncio. Cada despertar é uma
260
ressurreição, que tem sua flor de inocência. A alma devia recolher-se no
começo do dia e permanecer virgem para a lição da manhã. No bosque
sagrado, agrupavam-se em torno do mestre ou de seus intérpretes, e a
lição decorria sob a frescura das grandes árvores ou à sombra dos
pórticos. Ao meio-dia faziam uma prece aos heróis, aos gênios
benfazejos. A tradição esotérica supunha que os bons espíritos preferem
se aproximar da terra com os raios do sol, enquanto os maus espíritos
procuram a sombra e se espalham na atmosfera quando vem a noite. A
refeição frugal do meio-dia compunha-se geralmente de pão, mel e
azeitonas. A tarde era consagrada aos exercícios de ginástica, depois ao
estudo, à meditação e a um trabalho mental sobre a lição da manhã.
Após o pôr-do-sol faziam uma oração coletiva, cantavam um hino aos
Deuses cosmogônicos, a Júpiter celeste, a Minerva Providência, a Diana
protetora dos mortos. Durante esse tempo, o estirax, o maná ou o
incenso queimavam no altar ao ar livre, e o hino, misturado ao perfume
que dali exalava, subia docemente ao crepúsculo, enquanto as primeiras
estrelas varavam o pálido firmamento. O dia terminava com a refeição
da noite, depois da qual o mais jovem fazia uma leitura comentada pelo
mais velho.
Assim decorria o dia pitagórico, límpido com uma fonte, claro
como uma manhã sem nuvens. O ano se ritmava segundo as grandes
festas astronômicas. Assim a volta de Apolo hiperbóreo e a celebração
dos mistérios de Ceres reuniam os noviços e os iniciados de todos os
graus, homens e mulheres. Viam-se ali moças tocando liras de marfim,
mulheres casadas em peplos púrpura e açafrão executando coros
alternados, acompanhados de cantos, com movimentos harmoniosos da
estrofe e da ante-estrofe, que mais tarde foram imitados pela tragédia.
Em meio destas grandes festas, em que a divindade parecia presente na
graça das formas e dos movimentos, na melodia incisiva dos coros, o
noviço tinha como que um pressentimento das forças ocultas, das leis
todo-poderosas do Universo animado, do céu profundo e transparente.
Os casamentos, os ritos fúnebres tinham um caráter mais íntimo, não
menos solene. Uma cerimônia original era realizada para impressionar a
imaginação. Quando um noviço saía voluntariamente do instituto para
261
retomar a vida vulgar, ou quando um discípulo havia traído um segredo
da doutrina, o que aconteceu somente uma vez, os iniciados erguiam-lhe
um túmulo no recinto consagrado, como se ele tivesse morrido. O
mestre dizia: “Ele está mais morto do que os mortos, pois voltou para a
vida má; seu corpo passeia entre os homens, mas sua alma está morta.
Choremos por ela”. E este túmulo, erguido para um ser vivo, perseguiao
como seu próprio fantasma e como um sinistro augúrio.
SEGUNDO GRAU – PURIFICAÇÃO (2)
Os Números. - A Teogonia.
Era um dia feliz, “um dia de ouro”, como diziam os antigos,
aquele em que Pitágoras recebia o noviço em sua morada e o aceitava
solenemente nas fileiras de seus discípulos. O noviço entrava primeiro
em contatos seguidos e diretos com o mestre. Penetrava no pátio interno
de sua habitação, reservado a seus fiéis. Daí o nome de esotéricos (os de
dentro) oposto ao de exotéricos (os de fora). A verdadeira iniciação
começava.
Essa revelação consistia numa exposição completa e racional da
doutrina oculta, desde seus princípios contidos na ciência misteriosa dos
números até às últimas conseqüências da evolução universal, os
destinos e os fins supremos da divina Psiquê, da alma humana. Esta
ciência dos números era conhecida sob diversos nomes nos templos do
Egito e da Ásia. Como ela fornecia a chave de toda a doutrina,
escondiam-se cuidadosamente do vulgo. As cifras, as letras, as figuras
geométricas ou as representações humanas que serviam de sinais àquela
álgebra do mundo oculto só eram entendidas pelo iniciado. Este
somente revelava o seu significado ao adepto depois do juramento do
silêncio.
Pitágoras formulou esta ciência em um livro escrito pessoalmente
chamado hiéros logos, a palavra sagrada. Este livro não chegou até nós.
Mas os escritos posteriores dos pitagóricos, Filolaus, Arquitas e
262
Hiérocles, os diálogos de Platão, os tratados de Aristóteles, de Porfírio e
de Jamblico, dão-nos a conhecer seus princípios. Se eles permaneceram
ocultos, para os filósofos modernos, é porque só se pode compreender
seu significado e seu alcance pela comparação de todas as doutrinas
esotéricas do Oriente.
Pitágoras chamava seus discípulos de matemáticos, porque seu
ensinamento superior começava pela doutrina dos números. Esta
matemática sagrada, ou ciência dos princípios, era ao mesmo tempo
mais transcendente e mais viva do que a matemática profana, a única
conhecida por nossos sábios e filósofos. Nela, o número não era
considerado uma quantidade abstrata, mas a virtude intrínseca e ativa do
uno supremo, de Deus, fonte da harmonia universal. A ciência dos
números era a das forças vivas, das faculdades divinas em ação nos
mundos e no homem, no macrocosmo e no microcosmo... Penetrandoas,
distinguindo-as e explicando seu jogo, Pitágoras elaborava nada
menos do que uma teogonia ou urna teologia racional.
Uma teologia verdadeira deveria fornecer os princípios de todas as
ciências. Ela só será a ciência de Deus se mostrar a unidade e o
encadeamento das ciências da natureza. Só merece este nome sob a
condição de constituir o órgão e a síntese de todas as outras. Ora, era
justamente esta a função que desempenhava nos templos egípcios a
ciência do verbo sagrado, formulada e aperfeiçoada por Pitágoras, sob o
nome de ciência dos números. Ela acreditava poder fornecer a chave do
ser, da ciência e da vida. O adepto, guiado pelo mestre, devia começar
por contemplar-lhe os princípios com sua própria inteligência, antes de
seguir suas múltiplas aplicações na imensidade concêntrica das esferas
da evolução.
Um poeta moderno pressentiu esta verdade, quando fez Fausto
descer até as Mães, para dar vida ao fantasma de Helena. Fausto toma a
chave mágica, a Terra abre-se a seus pés, a vertigem dele se apodera, e
ele mergulha na vida dos espaços. Finalmente, chega ao reino das Mães,
que vigiam as formas originárias do grande Todo e fazem brotar os
seres do molde dos arquétipos.
Estas Mães são os Números de
Pitágoras, as forças divinas do mundo. O poeta transmitiu-nos a
comoção de seu próprio pensamento diante deste mergulho nos abismos
do Insondável. Para o iniciado antigo, em que a visão direta da
inteligência despertava pouco a pouco como um novo sentido, esta
revelação interior parecia antes uma ascensão ao grande sol
incandescente da Verdade, de onde ele contemplava, na plenitude da
Luz, os seres e as formas, projetados no turbilhão das vidas por uma
irradiação vertiginosa.
Não se chegava em um só dia a esta posse interna da verdade, em
que o homem realiza a vida universal pela concentração de suas
faculdades. Eram necessários anos de exercício, e a concordância tão
difícil da inteligência e da vontade. Antes de manipular a palavra
criadora – e quão poucos ali chegam! – é preciso soletrar o verbo
sagrado, letra por letra, sílaba por sílaba Pitágoras tinha o hábito de ministrar estes ensinamentos no
templo das Musas. Os magistrados de Crotona mandaram-no construir,
atendendo a seu pedido expresso e conforme suas indicações, muito
perto de sua morada, em um jardim fechado. Os discípulos do segundo
grau ali penetravam sozinhos com o mestre. No interior do templo
circular viam-se as nove Musas em mármore. De pé, no centro, velava
Héstia, envolta num véu, solene e misteriosa. Com a mão esquerda ela
protegia a chama de um lume, com a mão direita mostrava o céu. Para
os gregos como para os romanos, Héstia ou Vesta é a guardiã do
princípio divino presente em todas as coisas. Consciência do fogo
sagrado, ela tem seu altar no templo de Delfos, no Pritaneu de Atenas,
no lume menor. No santuário de Pitágoras, ela simbolizava a Ciência
divina e central ou Teogonia. Ao redor dela, as Musas esotéricas
traziam, além de seus nomes tradicionais e mitológicos, o nome das
ciências ocultas e das artes sagradas, que elas guardavam. Urânia
representava a astronomia e a astrologia; Polínia, a ciência das almas da
outra vida e a arte da adivinhação; Melpômene, com sua máscara
trágica, a ciência da vida e da morte, transformações e renascimentos.
Estas três Musas superiores reunidas constituíam a cosmogonia ou
física celeste. Calíope, Clio e Euterpe presidiam à ciência do homem ou
psicologia, com as artes correspondentes: Medicina, Magia, Moral. O
264
último grupo, Terpsícore, Erato e Tália, abrangia a física terrestre, a
ciência dos elementos, das pedras, das plantas e dos animais Assim,
num primeiro estágio, o organismo das ciências, calcado sobre o
organismo do Universo, aparecia ao discípulo no círculo vivo das
Musas iluminadas pela chama divina.
Depois de ter conduzido seus discípulos àquele pequeno
santuário, Pitágoras abria o livro do Verbo e começava seu ensinamento
esotérico. “As Musas, dizia ele, são apenas as efígies terrestres dos
poderes divinos, cuja beleza imaterial e sublime ides agora contemplar
em vós mesmos. Assim como elas vêem o Fogo de Héstia, do qual
emanam e que lhes dá o movimento, o ritmo e a melodia, assim também
deveis mergulhar no Fogo central do Universo, no Espírito divino, para
expandir-vos com ele nas suas manifestações visíveis”. Então, com mão
forte e audaciosa, Pitágoras arrancava seus discípulos ao mundo das
formas e das realidades. Apagava o tempo e o espaço e os fazia descer
com ele até a grande Mônada, a essência do Ser incriado.
Pitágoras denominava o Uno primeiro, composto de harmonia, o
Fogo masculino que atravessa tudo, o Espírito que se move por si, o
Indivisível e o grande Não-Manifesto, cujos mundos efêmeros
manifestam o pensamento criador, o único, o Eterno, o Imutável, oculto
sob as coisas múltiplas que passam e que mudam. “A essência em si
mesma escapa ao homem, diz o pitagórico Filolaus. Ele somente
conhece as coisas deste mundo, onde o finito se combina com o infinito.
E como pode conhecê-las? Porque há entre ele e as coisas uma
harmonia, uma relação, um princípio comum. Esse princípio lhe é dado
pelo Uno, o qual lhe dá, com sua essência, a medida e a inteligibilidade.
Ele é a medida comum entre o objeto e o sujeito, a razão das coisas pela
qual a alma participa da razão última do Uno (3)”. Mas, como se
aproximar d’Ele, do Ser que não se pode apreender? Alguém já viu o
mestre do tempo, a alma dos sóis, a fonte das inteligências? Não. E
somente confundindo-se com ele é que se penetra em sua essência. Ele é
semelhante a um fogo invisível colocado no centro do Universo, cuja
chama ágil circula em todos os mundos e movimenta a circunferência.
Acrescentava que a obra da iniciação consistia em aproximar-se do
265
grande Ser, assemelhando-se a ele, tornando-se tão perfeito quanto
possível, dominando as coisas pela inteligência, chegando a ser ativo
como ele e não passivo como elas. “Vosso próprio Ser, vossa alma, não
é um microcosmo, um pequeno Universo? Mas ela está repleta de
tempestades e discórdias. Pois bem, trata-se de realizar a unidade da
harmonia. Então, somente então, Deus descerá em vossa consciência e
participareis de seu poder, e fareis de vossa vontade a pedra do lar, o
altar de Héstia, o trono de Júpiter!”
Portanto, Deus, a substância indivisível, tem por número a
Unidade que contém o Infinito, por nome o de Pai, de Criador ou de
Eterno-Masculino, por sinal o Fogo vivo, símbolo do Espírito, essência
do Todo. Eis o primeiro dos princípios.
Mas as faculdades divinas são semelhantes ao lótus místico que o
iniciado egípcio, deitado em seu sepulcro, vê surgir na negra noite. A
princípio não passa de um ponto brilhante, depois abre-se como uma
flor e o centro incandescente desabrocha como uma rosa de luz com mil
pétalas.
Pitágoras dizia que a grande Mônada age como Díada criadora.
No momento em que se manifesta, Deus é duplo, essência indivisível e
substância divisível; princípio masculino ativo, animador, e princípio
feminino passivo ou matéria plástica animada. A Díada representava,
pois, a união do Eterno-Masculino e do Eterno-Feminino em Deus, as
duas faculdades divinas essenciais e correspondentes. Orfeu exprimira
profeticamente essa idéia no seguinte verso:
Júpiter é o Esposo e a Esposa divina.
Intuitivamente, todos os politeísmos tiveram consciência desta
idéia, representando a Divindade ora sob a forma masculina, ora sob a
forma feminina.
E esta Natureza viva, eterna, esta grande Esposa de Deus, não é
somente a natureza terrestre, mas a natureza celeste invisível a nossos
olhos carnais, a Alma do mundo, a Luz primordial, alternadamente
Maia, Ísis. e Cibele, que, vibrando sob o impulso divino, encerra as
essências de todas as almas, os tipos espirituais de todos os seres. Em
seguida é Deméter, a terra viva e todas as terras com os corpos que
encerram, em que aquelas almas vêm se encarnar. É depois a Mulher,
companheira do Homem. Na humanidade a Mulher representa a
Natureza; e a imagem perfeita de Deus não é só o Homem, mas o
Homem e a Mulher. Daí sua invencível, sedutora e fatal atração; daí a
embriaguez e o Amor, onde se representa o sonho das criações infinitas
e o obscuro pressentimento de que o Eterno-Masculino e o Eterno-
Feminino gozam de uma união perfeita no seio de Deus. “Honra,
portanto, à Mulher, sobre a terra e no céu”, dizia Pitágoras com todos os
iniciados antigos; “ela nos faz compreender a grande Mulher, a
Natureza. Que ela seja sua imagem santificada e que nos ajude a galgar
os degraus que nos levam até a grande Alma do Mundo, que gera,
conserva e renova, até a divina Cibele, que arrasta a multidão das almas
em seu manto de luz.”
A Mônada representa a essência de Deus; a Díada, sua faculdade
geradora e reprodutora. Esta gera o mundo, manifestação visível de
Deus no espaço e no tempo. Ora, o mundo real é tríplice. Porque, assim
como o homem se compõe de três elementos distintos, mas fundidos um
no outro: o corpo, a alma e o espírito, assim também o Universo é
dividido em três esferas concêntricas: o mundo natural, o mundo
humano e o mundo divino. A Tríada ou lei do ternário é, portanto, a lei
constitutiva das coisas e a verdadeira chave da vida, pois ela se acha em
todos os graus da escada da vida, desde a constituição da célula
orgânica, através da constituição fisiológica do corpo animal, do
funcionamento do sistema sangüíneo e do sistema cerebrospinal, até a
constituição hiperfísica do homem, a do universo e de Deus. Assim,
como por encanto ela abre ao espírito maravilhado a estrutura interna do
Universo. Mostra as correspondências infinitas do macrocosmo e do
microcosmo. Age como uma luz, que passaria nas coisas para torná-las
transparentes, e faz reluzir os mundos pequenos e grandes como outras
tantas lanternas mágicas.
Expliquemos esta lei pela correspondência essencial do homem e
do Universo.
267
Pitágoras admitia que o espírito do homem ou do intelecto
conserva de Deus sua natureza imortal, invisível, absolutamente ativa: o
espírito é aquilo que se move por si mesmo. Ele considera o corpo sua
parte mortal, divisível e passiva. Pensava que aquilo que chamamos
alma está estreitamente unido ao espírito, formado porém de um
terceiro elemento intermediário que provém do fluido cósmico. A alma
se assemelha, portanto, a um corpo etéreo que o espírito tece e constrói
para si mesmo. Sem este corpo etéreo, o corpo material não poderia se
manifestar e não passaria de uma massa inerte e sem vida (4).
A alma
tem uma forma semelhante à do corpo que ela vivifica, e a ele sobrevive
após a dissolução ou morte. Ela se torna então, segundo expressão de
Pitágoras, repetida por Platão, o carro sutil que leva o espírito às esferas
divinas ou deixa-o cair nas regiões tenebrosas da matéria, conforme seja
mais ou menos boa ou má. Ora, a constituição e a evolução do homem
repetem-se em círculos crescentes em toda a escala dos seres e em todas
as esferas. Assim como a humana Psiquê luta contra o espírito que a
atrai e o corpo que a retém, também a humanidade evolui entre o mundo
natural e animal, em que mergulha por meio de suas raízes terrestres, e
o mundo divino dos puros espíritos, onde está sua fonte celeste e à qual
ela aspira elevar-se. E o que se passa na humanidade ocorre em todas as
terras e em todos os sistemas solares, em proporções sempre diversas,
em modos sempre novos. Estendei o círculo até o infinito – e, se
puderdes, abrangei com um só conceito os mundos sem limite. O que
encontrareis ali? O pensamento criador, o fluido astral e dos mundos em
evolução: o espírito, a alma e o corpo da divindade. Levantando véu por
véu e sondando as faculdades da própria divindade, lá vereis a Tríada e
a Díada envolvendo-se na sombria profundidade da Mônada como uma
florescência de estrelas nos abismos da imensidade.
Por esta rápida exposição, pode-se perceber a importância capital
que Pitágoras atribuía à lei do ternário. Pode-se dizer que ela constitui a
pedra angular da ciência esotérica. Todos os grandes iniciadores
religiosos tiveram consciência disto, todos os teósofos o pressentiram.
Um oráculo de Zoroastro diz:
268
O número três por toda a parte reina no Universo
E a Mônada é seu princípio.
O mérito incomparável de Pitágoras é ter formulado esta lei com a
clareza do gênio grego. Fez dela o centro de sua teogonia e o
fundamento das ciências. Já velada nos escritos esotéricos de Platão e
completamente incompreendida pelos filósofos posteriores, esta
concepção somente foi compreendida, nos tempos modernos, por alguns
raros iniciados das ciências ocultas (5). Vê-se desde então que base
larga e sólida a lei do ternário universal oferecia à classificação das
ciências, à edificação da cosmogonia e da psicologia.
Assim como o ternário universal se concentra na unidade de Deus
ou na Mônada, também o ternário humano se concentra na consciência
do eu e na vontade, que reúne todas as faculdades do corpo, da alma e
do espírito em sua viva unidade. O ternário humano e divino resumido
na Mônada constitui a Tétrada sagrada. Mas o homem só realiza sua
própria unidade de uma maneira relativa. Pois sua vontade, que age
sobre todo o seu ser, não pode, entretanto, agir simultânea e plenamente
em seus três órgãos, ou seja, no instinto, na alma e no intelecto. O
universo e o próprio Deus apenas lhe aparecem alternada e
sucessivamente refletidos por estes três espelhos:
1. Visto através do instinto e do caleidoscópio dos sentidos, Deus
é múltiplo e infinito como suas manifestações. Daí o politeísmo, onde o
número dos deuses não é limitado;
2. Visto através da alma racional, Deus é duplo, isto é, espírito e
matéria. Daí o dualismo de Zoroastro, dos maniqueus e de várias outras
religiões;
3. Visto através do intelecto puro, ele é triplo, ou seja, espírito,
alma e corpo, em todas as manifestações do universo. Daí os cultos
trinitários da Índia (Brahma, Visnu, Siva) e a própria trindade do
cristianismo (Pai, Filho, Espírito Santo);
269
4. Concebido pela vontade que resume o todo, Deus é único; é o
monoteísmo hermético de Moisés em todo o seu rigor. Aqui, nada de
personificações, nada de encarnação. Saímos do universo visível e
entramos no Absoluto. O Eterno reina só sobre o mundo reduzido a pó.
A diversidade das religiões provém, portanto, do fato de que o homem
só realiza a divindade através do seu próprio ser, que é relativo e finito,
enquanto Deus realiza a todo instante a unidade dos três mundos da
harmonia do Universo.
Esta última aplicação demonstraria, por si só, a virtude, de certa
forma mágica, do Tetragrama na ordem das idéias. Não somente aí se
encontravam os princípios das ciências, a lei dos seres e seu modo de
evolução, mas ainda a razão das religiões diversas e de sua unidade
superior. Era verdadeiramente a chave universal. Daí o entusiasmo com
que Lísis dela fala no Vers dorés; e compreende-se agora por que os
Pitagóricos juravam por este grande símbolo:
Juro por aquele que gravou em nossos corações
A Tétrada sagrada, imenso e puro símbolo,
Fonte da Natureza e modelo dos Deuses.
Pitágoras levava muito mais longe o ensino dos números. Em
cada um deles definia um princípio, uma lei, uma força ativa do
Universo. Mas afirmava que os princípios essenciais estão contidos nos
quatro primeiros números, uma vez que adicionando-os ou
multiplicando-os obtêm-se todos os outros. Do mesmo modo a infinita
variedade dos seres que compõem o Universo é produzida pelas
combinações das três forças primordiais: matéria, alma, espírito, sob o
impulso criador da unidade divina que os mistura e os diferencia,
concentra-os e ativa-os. Como os principais mestres da ciência
esotérica, Pitágoras atribuía grande importância ao número sete e ao
número dez. Sete, sendo composto de três e de quatro, significa a união
do homem com divindade. É a cifra dos adeptos, dos grandes iniciados,
270
e, como exprime a realização completa em qualquer coisa por sete
graus, ele representa a lei da evolução. O número dez, formado pela
adição dos quatro primeiros e que contém o precedente, é o número
perfeito por excelência, pois representa todos os princípios da divindade
evoluídos e reunidos numa nova unidade.
Terminando o ensino de sua teogonia, Pitágoras mostrava aos
discípulos as nove Musas, personificando as ciências, agrupadas três a
três, presidindo ao tríplice ternário evoluído em nove mundos, e
formando, com Héstia, a Ciência divina, guardiã do Fogo primordial: a
Década sagrada.
TERCEIRO GRAU – PERFEIÇÃO (6)
Cosmogonia e psicologia. – A evolução da alma.
O discípulo recebera do mestre os princípios da ciência. Estaprimeira iniciação havia derrubado as escamas espessas da matéria que
encobriam os olhos de seu espírito. Descerrando o véu brilhante da
mitologia, ela o arrancara ao mundo visível para lançá-lo loucamente
nos espaços sem limites e mergulhá-lo no sol da Inteligência, de onde a
Verdade se irradia sobre os três mundos.
Mas a ciência dos números era apenas o preâmbulo da grande
iniciação. Armado desses princípios, o discípulo iria agora descer das
alturas do Absoluto para as profundezas da natureza, para lá colher o
pensamento divino na formação das coisas e na evolução da alma
através dos mundos. A cosmogonia e a psicologia esotéricas atingiam os
maiores mistérios da vida, segredos perigosos e cuidadosamente
guardados, das ciências e das artes ocultas. Por isso Pitágoras gostava
de dar essas lições longe da luz profana, à noite, na praia, nos terraços
do templo de Ceres, ao murmúrio leve do mar jônico, de uma cadência
melodiosa, sob as distantes fosforescências do Cosmo estrelado; ou
então, nas criptas do santuário, onde candeias egípcias de nafta
espalhavam uma claridade uniforme e suave. As mulheres iniciadas
assistiam a estas reuniões noturnas. Algumas vezes, sacerdotes ou
sacerdotisas, procedentes de Delfos ou de Elêusis, vinham confirmar os
ensinamentos do mestre pela narrativa de suas experiências ou pela
palavra lúcida do sono clarividente.(pag.171)
A evolução material e espiritual do mundo são dois movimentos
inversos, mas paralelos e concordantes em toda a escalada do ser. Um
não se explica sem o outro, e, vistos em conjunto, explicam o mundo. A
evolução material representa a manifestação de Deus na matéria pela
alma do mundo que a elabora. A evolução espiritual representa a
elaboração da consciência das mônadas individuais e suas tentativas de
se reunirem, através do ciclo das vidas, ao espírito divino do qual
emanam. Ver o Universo do ponto de vista físico ou do ponto de vista
espiritual não é considerar dois objetos diferentes; é considerar o mundo
pelos dois pólos opostos. Do ponto de vista terrestre, a explicação
racional do mundo deve começar pela evolução material, uma vez que é
sob este ângulo que ele nos aparece; mas, fazendo-nos ver o trabalho do
Espírito universal na matéria e acompanhar o desenvolvimento das
mônadas individuais, esta explicação conduz insensivelmente ao ponto
de vista espiritual e nos faz passar do lado de fora para o lado de dentro
das coisas, do avesso para o direito do mundo.
Assim, pelo menos, procedia Pitágoras, que considerava o
Universo um ser vivo, animado por uma grande alma e penetrado por
uma grande inteligência. A segunda parte de seu ensino começava,
portanto, pela cosmogonia.
De acordo com as divisões do céu que constam dos fragmentos
esotéricos dos pitagóricos, sua astronomia seria semelhante à
astronomia de Ptolomeu: a Terra imóvel e o Sol girando ao redor, com
os planetas e o céu todo. Mas o princípio mesmo desta astronomia nos
adverte de que ela é puramente simbólica. No centro de seu Universo,
Pitágoras coloca o Fogo (do qual o Sol é apenas um reflexo). Ora, em
todo o esoterismo do Oriente o Fogo é o sinal representativo do
Espírito, da Consciência divina, universal. O que nossos filósofos
consideram geralmente como a Física de Pitágoras e de Platão não vai
além de uma descrição metafórica de sua filosofia secreta, luminosa
para os iniciados mas completamente impenetrável ao vulgo, fazendo-a
passar, portanto, por uma simples física. Porém, devemos procurar nela
uma espécie de cosmografia da vida das almas, e não outra coisa. A
região sublunar designa a esfera onde se exerce a atração terrestre e é
chamada o círculo das gerações. Os iniciados entendiam que a Terra é
para nós a região da vida corporal. Nela se dão todas as operações que
acompanham a encarnação e a desencarnação das almas. A esfera dos
seis planetas e do Sol corresponde às categorias ascendentes de
espíritos. Pag.272)
O Olimpo,
concebido como uma esfera rolante,
é chamado o céu dos inalteráveis,
por ser assimilado à esfera das almas perfeitas.
Essa astronomia infantil encobre,
portanto, uma concepção do Universo
espiritual.
particularmente Pitágoras, tinham do Universo físico noções muito mais
exatas. Aristóteles diz positivamente que os Pitagóricos acreditavam no
movimento da Terra ao redor do Sol. Copérnico afirma que a idéia da
rotação da Terra em tomo de seu eixo veio-lhe lendo, em Cícero, que
um certo Hicetas, de Siracusa, mencionara o movimento diurno da
Terra. A seus discípulos do terceiro grau, Pitágoras ensinava o duplo
movimento da Terra. Sem dispor das medidas exatas da ciência
moderna, ele sabia, como os sacerdotes de Mênfis que os planetas
resultantes do Sol giram em torno dele; que as estrelas são outros
sistemas solares governados pelas mesmas leis que o nosso e cada um
dos quais tem seu lugar no imenso Universo. Sabia também que cada
mundo solar forma um pequeno universo que tem sua correspondência
no mundo espiritual e seu céu próprio. Os planetas serviam para marcar
essa escala. Porém estas noções, que teriam subvertido a mitologia
popular e que a multidão teria tachado de sacrílegas, jamais eram
abordadas na escritura vulgar. Ensinavam-nas somente sob o mais
profundo segredo (7).
O Universo visível, dizia Pitágoras, o céu com todas as suas
estrelas, é só unia forma passageira da alma do mundo, da grande Maia,
que concentra a matéria esparsa nos espaços infinitos, depois a dissolve
e espalha como fluido cósmico imponderável. (pag.273)
Cada turbilhão solar possui uma parcela dessa alma universal, que evolui em seu seio durante milhões de séculos, com força de impulsão e medida especiais.
Quanto às potências, aos reinos, aos espaços e às almas vivas que
aparecerão sucessivamente nos astros desse pequeno mundo, elas vêm
de Deus, descendem do Pai. Isto é, como de uma evolução material
anterior de um sistema solar extinto. Dessas potências invisíveis,
algumas, absolutamente imortais, dirigem a formação deste mundo;
outras aguardam sua eclosão no sono cósmico ou no sonho divino, para
entrarem nas gerações visíveis, segundo sua posição e segundo a lei
eterna. Entretanto, a alma solar e seu fogo central, que move
diretamente a grande Mônada manipulam a matéria em fusão. Os
planetas são filhos do Sol. Cada um deles, elaborado pelas forças de
atração e de rotação inerentes à matéria, está dotado de uma alma
semiconsciente nascida da alma solar e tem seu caráter distinto, sua
função particular na evolução. Como cada planeta é uma expressão
diversa do pensamento de Deus, como exerce uma função especial na
cadeia planetária, os antigos sábios identificaram os nomes dos planetas
com os dos grandes deuses, que representam as faculdades divinas em
ação no Universo.
Os quatro elementos, de que são formados os astros e todos os
seres, designam quatro estados graduados da matéria. O primeiro, sendo
mais denso e mais pesado, é o mais refratário ao espírito; o último,
sendo o mais refinado, apresenta com ele grande afinidade. A Terra
representa o estado sólido; a água, o estado líquido; o ar, o estado
gasoso; o fogo, o estado imponderável.
O quinto elemento,
o elemento etérico, representa um estado
tão sutil e vivaz da matéria que não é mais atômico,
e é dotado de penetração universal. É o fluido cósmico
originário, a luz astral ou a alma do mundo.
Pitágoras falava também a seus discípulos do Egito e da Ásia.Sabia que a Terra em fusão era primitivamente cercada por uma
atmosfera gasosa, que, liqüefeita por seu resfriamento sucessivo, tinha
formado os mares. Conforme seu hábito, ele resumia metaforicamente
esta idéia, dizendo que os mares eram produzidos pelas lágrimas de
Saturno (o tempo cósmico).
274
Mas eis os reinos aparecendo, os germes invisíveis flutuando na
aura etérea da terra, turbilhonando em seu invólucro gasoso, e depois
sendo atraídos para o seio profundo dos mares e sobre os primeiros
continentes que emergiram. Os mundos vegetal e animal, ainda
confundidos, apareceram quase ao mesmo tempo. A doutrina esotérica
admite a transformação das espécies animais, não somente segundo a lei
secundária da seleção, mas ainda segundo a lei primária da percussão da
Terra pelas potências celestes, e de todos os seres vivos pelos princípios
inteligíveis e pelas forças invisíveis. Quando uma espécie nova aparece
no globo, é que uma raça de almas de um tipo superior se encarna em
dada época nos descendentes da espécie antiga, para fazê-la subir um
degrau, remoldando-a e transformando-a à sua imagem. É assim que a
doutrina esotérica explica o aparecimento do homem na Terra.
Do ponto de vista da evolução terrestre, o homem é a última
ramificação e o coroamento de todas as espécies anteriores. Porém este
ponto de vista não é suficiente para explicar sua entrada em cena, como
não seria suficiente para explicar o aparecimento da primeira alga ou do
primeiro crustáceo no fundo dos mares. Todas essas criações sucessivas
supõem, como cada nascimento, a percussão da Terra pelos poderes
invisíveis que criam a vida.
A criação do homem supõe o reino anterior de uma humanidade celeste, que preside à eclosão da humanidade terrestre e envia-lhe, como ondas de uma maré formidável, novas torrentes de almas que se encarnam em seus flancos e fazem brilhar os primeiros raios de uma luz divina naquele ser saturado de animalidade, forçado para viver, a lutar com todas as potências da natureza.
Pitágoras, formado pelos templos do Egito, tinha noções precisas
sobre as grandes revoluções do globo. A doutrina indiana e egípcia
conhecia a existência do antigo continente austral que produzira a raça
vermelha e uma poderosa civilização, chamada Atlântida pelos gregos.
Atribuía a emergência e a imersão alternada dos continentes à oscilação
dos pólos, e admitia que a humanidade tenha atravessado assim seis
dilúvios. Cada ciclo interdiluviano resulta na predominância de uma
grande raça humana. No meio dos eclipses parciais da civilização e das
faculdades humanas, existe um movimento geral ascendente.
275
Eis, pois, a humanidade constituída e as raças que seguem sua
evolução através dos cataclismos do globo. E sobre este globo que
acreditamos ser a base imutável do mundo e que flutua por si mesmo
levado no espaço, sobre estes continentes que emergem dos mares para
novamente desaparecerem no meio desses povos que passam, dessas
civilizações que se desmoronam, qual é o grande, o pungente, o eterno
mistério? É esse o grande problema interior, aquele de cada um e de
todos. E o problema da alma, que descobre em si mesma um abismo de
trevas e de luz, que se contempla com uma mistura de encantamento e
de pavor e se diz: “Eu não sou deste mundo, pois ele não é suficiente
para me explicar. Não venho da Terra; vou para outro lugar. Mas para
onde?” É o mistério de Psiquê, no qual se encerram todos os outros.
A cosmogonia do mundo visível, dizia Pitágoras, nos conduziu à
história da Terra, e esta, ao mistério da alma humana. Com ele
chegamos ao santuário dos santuários, ao arcano dos arcanos. Uma vez
despertada sua consciência, a alma se transforma por si mesma no mais
extraordinário dos espetáculos. Mas esta consciência é apenas a
superfície iluminada de seu ser, onde ela pressente abismos obscuros e
insondáveis. Em sua profundidade desconhecida, a divina Psiquê
contempla, com olhar fascinado, todas as vidas e todos os mundos:
passado, presente e futuro que a eternidade reúne. “Conhece-te a ti
mesmo e conhecerás o Universo dos Deuses.” Eis o segredo dos sábios
iniciados. Mas, para penetrar por esta porta estreita da imensidão do
Universo invisível, despertemos em nós a vida reta da alma purificada e
armemo-nos do facho da inteligência da ciência dos princípios e dos
Números sagrados.
Pitágoras passava assim da cosmogonia física à cosmogonia
espiritual. Após a evolução da Terra, ele narrava a evolução da alma
através dos mundos. Fora da iniciação, esta doutrina é conhecida sob o
nome de transmigração das almas. Sobre nenhuma outra parte da
doutrina oculta se têm dito maiores disparates do que sobre aquela, de
tal forma que a literatura antiga e moderna só a conhecem por meio de
deturpações pueris. O próprio Platão que, de todos os filósofos, mais
contribuiu para popularizá-la, dela nos deu apenas interpretações
276
fantasiosas e às vezes extravagantes, talvez pelo fato de sua prudência
ou de seus juramentos terem-no impedido dizer tudo o que sabia.
Poucas pessoas imaginam hoje que esta doutrina possa ter tido para os
iniciados um aspecto científico, ou possa ter aberto perspectivas
infinitas e dado à alma consolações divinas. A doutrina da vida
ascensional da alma através da série das existências é o traço comum
das tradições esotéricas e o coroamento da teosofia. Acrescento que ela
tem para nós uma importância capital. Atualmente, o homem rejeita
com igual desprezo a imortalidade abstrata e vaga da filosofia e o céu
infantil da religião primária. No entanto, a sequidão e a nulidade do
materialismo lhe causam horror. Ele aspira inconscientemente à
consciência de uma imortalidade orgânica, que corresponda ao mesmo
tempo às exigências de sua razão e às necessidades indestrutíveis de sua
alma. Compreende-se, de resto, porque os iniciados das religiões
antigas, mesmo tendo completo conhecimento destas verdades,
mantiveram-nas tão secretas. Pois elas são de natureza a provocar
vertigem nos espíritos não cultivados. Ligam-se estreitamente aos
profundos mistérios da geração espiritual, dos sexos e da geração da
carne, de que dependem os destinos da humanidade futura.
Portanto, esperava-se com uma espécie de frêmito aquele
momento decisivo do ensinamento esotérico. Pela palavra de Pitágoras,
como por um lento encantamento, a matéria espessa parecia perder seu
peso, as coisas da Terra tornavam-se transparentes, as do céu, visíveis
ao espírito. Esferas azuis e douradas, sulcadas de essências luminosas,
desenrolavam seus orbes até o infinito.
Nessa hora os discípulos, homens e mulheres, agrupavam-se em
torno do mestre, em uma parte subterrânea do templo de Ceres chamada
cripta de Proserpina, e escutavam com uma emoção palpitante a
história celeste de Psiquê.
O que é a alma humana? Uma parcela da grande alma do mundo,
uma centelha do espírito divino, uma Mônada imortal. Mas, se seu
possível futuro abre-se nos esplendores insondáveis da consciência
divina, sua misteriosa eclosão remonta às origens da matéria
organizada. Para tornar-se o que é na humanidade atual, foi preciso que
277
ela atravessasse todos os reinos da natureza, toda a escala dos seres,
desenvolvendo-se gradualmente por uma série de inumeráveis
existências. O espírito que fermenta os mundos e condensa a matéria
cósmica em massas enormes manifesta-se com intensidades diversas e
uma concentração sempre maior nos reinos sucessivos da natureza.
Força cega e indistinta no mineral, individualizada na planta, polarizada
na sensibilidade e no instinto dos animais, ela tende para a Mônada
consciente nessa lenta elaboração. E a Mônada elementar é visível no
mais inferior dos animais. O elemento anímico e espiritual existe, pois,
em todos os reinos, embora somente em quantidade infinitesimal nos
reinos superiores. As almas que existem em estado de germes nos reinos
inferiores aí permanecem sem sair, durante imensos períodos. E só
depois de grandes revoluções cósmicas é que elas passam para um reino
superior, mudando de planeta. Tudo o que elas podem fazer durante o
período de vida num planeta é subir algumas espécies.
Onde começa a mônada? Seria o mesmo que perguntar a hora em
que se formou a nebulosa, ou um sol brilhou pela primeira vez.
Seja
como for, o que constitui a essência de qualquer homem teve de evoluir
durante milhões de anos, através de uma cadeia de planetas e reinos
inferiores, conservando, porém, através de todas essas existências um
princípio individual que a acompanha por toda a parte. Esta
individualidade obscura, mas indestrutível, constitui a marca divina da
mônada, na qual Deus quer manifestar-se pela consciência.
Quanto mais ascende na série dos organismos, mais a mônada
desenvolve os princípios latentes que já possui. A força polarizada
torna-se sensível; a sensibilidade torna-se instinto, e o instinto,
inteligência. E à medida que se acende a chama vacilante da consciência
esta alma torna-se mais independente do corpo, mais capaz de levar
uma existência livre. A alma fluida e não polarizada dos minerais e dos
vegetais está ligada aos elementos da Terra. A dos animais, fortemente
atraída pelo fogo terrestre, ali permanece certo tempo após deixar seu
cadáver; depois volta para a superfície do globo, para se reencarnar em
sua espécie, sem jamais abandonar as baixas camadas do ar. Estas são
povoadas de elementos ou almas animais, que desempenham sua função
278
na vida atmosférica e uma grande influência oculta sobre o homem.
Somente a alma humana vem do céu e para lá retorna após a morte. Mas
em que época de sua longa existência cósmica a alma elementar tornouse
humana? Qual cadinho incandescente, qual chama etérea lhe teria
possibilitado tal passagem? Essa transformação só seria possível, num
período interplanetário, pelo reencontro de almas humanas já
plenamente formadas, que desenvolveram na alma elementar seu
princípio espiritual e lhe imprimiram seu divino protótipo como uma
marca de fogo em sua substância plástica.
Mas quantas viagens, quantas encarnações, quantos ciclos
planetários ainda a atravessar para que a alma humana, assim formada,
se torne o homem que conhecemos! Segundo as tradições esotéricas da
Índia e do Egito, os indivíduos que compõem a humanidade atual teriam
começado sua existência humana em outros planetas, onde a matéria é
muito menos densa do que no nosso. O corpo do homem era então
quase vaporoso; suas encarnações, rápidas e fáceis. Suas faculdades de
percepção espiritual direta teriam sido muito poderosas e sutis naquela
primeira fase humana. A razão e a inteligência, ao contrário, estariam
em estado embrionário. Neste estado semicorporal, semi-espiritual, o
homem via os espíritos, tudo era esplendor e encanto para seus olhos,
música para seus ouvidos. Ele ouvia até a harmonia das esferas. Não
pensava, não refletia, quase não queria. Deixava-se viver, bebendo os
sons, as formas e a luz, flutuando, como em um sonho, da vida para a
morte e da morte para a vida. Eis os que os órficos chamavam o céu de
Saturno. Foi só encarnando-se em planetas cada vez mais densos,
segundo a doutrina de Hermes, que o homem se materializou.
Encarnando-se em uma matéria mais espessa, a humanidade perdeu seu
sentido espiritual. Mas, mediante luta cada vez mais forte com o mundo
exterior, ela desenvolveu poderosamente a razão, a inteligência e a
vontade.
A Terra é o último degrau
dessa descida na matéria,
que Moisés chama de saída do paraíso,
e Orfeu, de queda do círculo sublunar
Daí o homem pode voltar a subir penosamente os círculos emuma série de existências novas e recuperar seus sentidos espirituais, por
meio do livre exercício do intelecto e da vontade. Somente então, dizem
279
os discípulos de Hermes e de Orfeu, o homem adquire, por sua ação, a
consciência e a posse do divino. Somente então ele se torna filho de
Deus. E aqueles que, na Terra, tiveram este nome precisaram, antes de
aparecerem entre nós, de descer e tornar a subir a terrível espiral.
O que é, pois, a humilde Psiquê, em sua origem? Um sopro que
passa, um germe que flutua, um pássaro levado pelos ventos, que
emigra de existência em existência. Entretanto, de naufrágio em
naufrágio, através de milhões de anos, ela tornou-se a filha de Deus e
não reconhece outra pátria além do céu! Eis por que a poesia grega, de
um simbolismo tão profundo e tão luminoso, comparou a alma ao inseto
alado: ora verme da terra, ora borboleta celeste. Quantas vezes tem ela
sido crisálida e quantas vezes, borboleta? Jamais o saberá, mas sente
que possui asas!
Tal é o vertiginoso passado da alma humana. Ele nos explica sua
condição presente e nos permite entrever seu futuro.
Qual é a situação da divina Psiquê na vida terrestre?
A menor
reflexão mostra que seria impossível imaginar algo mais estranho e
mais trágico. Desde que, penosamente, despertou na atmosfera espessa
da Terra, a alma sentiu-se enlaçada nas sinuosidades do corpo. Não
vive, não respira, não pensa, senão através dele. Entretanto, o corpo não
é a alma. À medida que se desenvolve, ela sente crescer em si mesma
uma luz vacilante, algo invisível e imaterial que ela chama seu espírito,
sua consciência. Sim, o homem possui o sentimento inato de sua tríplice
natureza, pois que ele distingue, em sua própria linguagem instintiva,
corpo e alma; a alma e o espírito. Porém a alma cativa e atormentada se
debate entre seus dois companheiros, como no amplexo de uma
serpente de mil anéis e um gênio invisível que a chama, mas cuja
presença só se faz sentir pelas batidas de asas e por clarões fugidios.
Ora, este corpo a absorve a tal ponto que ela só vive através de suas
sensações e paixões. Ela rola com ele nas orgias sangrentas da cólera ou
na grosseira embriaguez das volúpias carnais, até que ela mesma se
espante consigo pelo silêncio profundo do companheiro invisível.
Atraída por este, a alma se perde em tal elevação de pensamento que
esquece a existência do corpo, até que ele lhe recorde sua presença
280
mediante um apelo tirânico. E, no entanto, uma voz interior lhe diz que
entre ela e o hóspede invisível o liame é indissolúvel, enquanto a morte
romperá sua ligação com o corpo. E, sacudida entre os dois em sua luta
eterna, a alma busca inutilmente a felicidade e a verdade. Inutilmente
ela busca a si mesma nas sensações que passam, nos pensamentos que
lhe escapam, no mundo que se modifica como uma miragem. Não
encontrando nada que dure, atormentada, arrastada como uma folha ao
vento, ela duvida de si mesma e de um mundo divino que apenas se
revela por sua dor e sua incapacidade para atingi-lo.
A ignorância humana está escrita nas contradições dos pretensos
sábios, e a tristeza humana, na sede insondável do olhar humano.
Enfim, qualquer que seja a extensão de seus conhecimentos, o
nascimento e a morte encerram o homem entre dois limites fatais. São
duas portas de trevas, além das quais ele nada vê. A chama de sua vida
se acende ao entrar por uma, e se extingue ao sair por outra. Dar-se-ia o
mesmo com a alma? Se não, o que lhe acontecerá?
A resposta que os filósofos já deram a esse problema pungente
tem sido muito diversa. A dos teosofistas iniciados de todos os tempos é
essencialmente a mesma. Está de acordo com o sentimento universal e
com o espírito íntimo das religiões, que exprimiram a verdade apenas
em forma de símbolos ou superstições. A doutrina esotérica abre
perspectivas bem mais vastas e suas afirmações relacionam-se com as
leis da evolução universal.
Eis o que os iniciados, instruídos pela tradição e por inúmeras
experiências da vida psíquica, têm dito ao homem: o que se agita em ti,
o que chamas tua alma, é um duplo etéreo do corpo, que encerra em si
mesmo um espírito imortal. O espírito constrói e tece para si, por sua
própria atividade, seu corpo espiritual. Pitágoras denomina-o o carro
sutil da alma, porque ele está destinado a transportá-lo da terra após a
morte. Este corpo espiritual é o órgão do espírito, seu invólucro
sensitivo, seu instrumento volitivo, e serve para animar o corpo, que
sem ele permaneceria inerte. Nas aparições dos moribundos ou mortos,
esse duplo torna-se visível. Mas isto supõe sempre, no vidente, um
estado nervoso especial. Pag.281)
A sutileza, a potência,
a perfeição do corpo espiritual variam
segundo a qualidade do espírito que ele encerra.
E existe entre as substâncias das almas, tecidas na luz astral masimpregnadas dos fluidos imponderáveis da terra e do céu, nuances mais
numerosas, diferenças maiores do que entre todos os corpos terrestres e
todos os estados da matéria ponderável. Esse corpo astral, embora muito
mais sutil e mais perfeito que o corpo terrestre, não é imortal. como a
Mônada que ele contém. Muda, apura-se, de acordo com os meios que
atravessa. O espírito molda-o, transforma-o perpetuamente à sua
imagem, mas jamais o abandona. Se dele se despoja pouco a pouco, é
para se revestir de substâncias mais etéreas.
Isto ensinava Pitágoras, que não concebia a entidade espiritual
abstrata, a mônada sem forma. O espírito em ato, tanto no fundo dos
céus como na terra, deve ter um órgão. Esse órgão é a alma viva, bestial
ou sublime, obscura ou radiosa, mas com a forma humana, a imagem de
Deus.
O que acontece quando sobrevém a morte? No limiar da agonia, a
alma geralmente pressente sua separação do corpo. Revê toda sua
existência terrestre em quadros resumidos, em rápida sucessão e com
assustadora nitidez. Mas quando a vida se esgota e cessa no cérebro, ela
se perturba e perde totalmente a consciência. Se é uma alma santa e
pura, seus sentidos espirituais já estão despertados pelo desligamento
gradual da matéria. Antes de morrer, de alguma maneira, talvez pela
introspecção de seu próprio estado, ela já teve o pressentimento da
presença de outro mundo. Perante as solicitações silenciosas, os apelos
longínquos, os vagos raios do Invisível, a terra já Perdeu sua
consistência. E quando a alma escapa, enfim, do cadáver frio, feliz por
sua libertação, sente arrebatar-se em meio a uma intensa luz, para a
família espiritual à qual pertence.
Mas o mesmo não acontece com o homem comum, cuja vida se
dividiu entre os instintos materiais e as aspirações superiores. Ele
desperta semiconsciente, como no torpor de um pesadelo. Não tem mais
braços para apertar, nem voz para gritar, mas recorda, sofre, existe em
um limbo de trevas e de pavor. A única coisa que percebe é a presença
de seu cadáver, do qual está desligado, mas pelo qual ainda experimenta
282
uma invencível atração, pois, é por seu intermédio que vivia. E agora, o
que é ele? Procura-se com pavor nas fibras geladas de seu cérebro, no
sangue congelado de suas veias, e não se encontra mais. Está morto?
Está vivo? Queria ver, queria agarrar-se a alguma coisa. Mas não vê,
não toca em nada. As trevas o envolvem. Ao redor dele, nele, tudo é
caos. Vê apenas uma coisa, e esta coisa o atrai e causa-lhe horror... a
fosforescência sinistra de seu próprio despojo... E o pesadelo recomeça.
Este estado pode prolongar-se por meses, anos. Sua duração
depende da força dos instintos materiais da alma. Porém, boa ou má,
infernal ou celeste, essa alma pouco a pouco tomará consciência de si
mesma e de seu novo estado. Uma vez livre do corpo, ela se evadirá nos
sorvedouros da atmosfera terrestre, cujas correntes elétricas
transportam-na de um lado para outro, onde ela começa a perceber os
errantes multiformes, mais ou menos semelhantes e ela mesma, como se
fossem clarões fugazes em uma bruma espessa. Começa então uma luta
vertiginosa, enfurecida, da alma ainda entorpecida, para subir às
camadas superiores do ar, para livrar-se da atração terrestre e alcançar
no céu de nosso sistema planetário a região que lhe é própria e que
somente guias amigos podem mostrar-lhe. Mas até que possa ouvi-los e
vê-los decorre um longo tempo.
Esta fase
da vida da alma
tem recebido nomes diversos
nas religiões e nas mitologias.
Moisés denomina-a Horeb;
Orfeu, Erebo; o cristianismo, Purgatório
ou o vale da sombra da morte.
Os iniciados gregos identificavam-na com o cone de sombra que a terra arrasta sempre atrás de si e que vai até a lua, denominando-a, por esta razão, o abismo de Hécate. Nesse poço tenebroso turbilhonam, segundo os órficos e os pitagóricos, as almas que procuram, por meio de esforços desesperados, alcançar o círculo da lua, e que a violência dos ventos torna a lançar aos milhares para a Terra. Homero e Virgíliocomparam-nas a turbilhões de folhas, a bandos de pássaros enlouquecidos pela tempestade.
A lua desempenhava um grade papel no esoterismo antigo. Em sua face voltada para o céu, supunha-se que as almas purificavam seu corpo astral antes de continuarem sua ascensão celeste. Supunha-se também que os heróis e os gênios permaneciam algum tempo em sua (pag.283) face voltada para a terra, a fim de se revestirem de um corpo apropriado ao nosso mundo antes de se reencarnarem. Também se atribuía à Lua o poder de magnetizar a alma para a encarnação terrestre e de desmagnetizá-la para o céu. De maneira geral, estas asserções, às quais os iniciados atribuíam um sentido ao mesmo tempo real e simbólico, significavam que a alma deve passar por um estado intermediário de purificação e se desembaraçar das impurezas da terra antes de prosseguir sua viagem.
Porém, como descrever a chegada da alma pura em seu mundo?
A Terra desapareceu como um sonho. Um sono novo, um desvanecimento
delicioso envolve a alma, como uma carícia. Ela nada mais vê a não ser
o seu guia alado, que a leva com a rapidez de um relâmpago pelas
profundezas do espaço. O que dizer de seu despertar nos vales de um
astro etéreo, sem a elementar atmosfera, onde tudo, montanhas, flores,
vegetação, se constitui de uma natureza deliciosa, sensível e eloqüente?
O que dizer sobretudo das formas luminosas, homens e mulheres, que a
cercam como uma procissão sagrada, para iniciá-la no santo mistério de
sua nova vida? São deuses ou deusas?
Não, são almas como ela mesma.
E a maravilha está em que o pensamento íntimo delas desabrocha-lhes
na face; que a ternura, o amor, o desejo ou o temor brilham através
daqueles corpos diáfanos numa gama de colorações luminosas. Ali,
corpos e faces não são mais as máscaras da alma, mas a alma
transparente aparece em sua forma verdadeira e brilha no dia claro de
sua verdade pura. Psiquê reencontrou sua pátria divina; pois a luz
secreta onde ela se banha, que dela emana e que volta para ela no
sorriso dos bem-amados e das bem-amadas, aquela luz de felicidade é a
alma do mundo... ela sente ali a presença de Deus! Agora não haverá
mais obstáculos. Ela amará, saberá, viverá, sem qualquer outro limite
que não seja seu próprio impulso. Que felicidade estranha e
maravilhosa! Sente-se unida a todas as suas companheiras por
afinidades profundas. Porque na vida do além aqueles que não se amam
se evitam e só aqueles que se compreendem se procuram. Ela celebrará
com as outras os divinos mistérios em templos mais belos, numa
comunhão mais perfeita. Surgirão poemas vivos sempre renovados,(pag.284)
onde cada alma será uma estrofe e onde cada uma reviverá sua
existência na das outras. Depois, fremente, ela se lançará para a luz do
alto, atendendo ao apelo dos Enviados, dos Gênios alados, daqueles que
se chamam Deuses porque escaparam do círculo das gerações.
Conduzida por estas inteligências sublimes, ela se esforçará para
soletrar o grande poema do Verbo oculto, para compreender o que puder
apreender da sinfonia do universo. Receberá os ensinamentos
hierárquicos dos círculos do Amor divino; procurará ver as Essências
que derramam nos mundos os Gênios animadores; contemplará os
espíritos glorificados, raios vivos do Deus dos Deuses, e não poderá
suportar seu esplendor ofuscante, que faz empalidecer os sóis como se
fossem lâmpadas enfumaçadas! E quando, espantada, ela voltar dessas
viagens resplandecentes – pois estremece diante daquelas imensidões –,
ouvirá ao longe o apelo das vozes amadas e recairá nas plagas douradas
de seu astro, sob o véu róseo de um sono embalador, pleno de formas
brancas, de perfumes e melodia.
Assim é a vida celeste da alma que nosso espírito adensado pela
Terra mal consegue imaginar, mas que os iniciados adivinham, os
videntes vêem e a lei das analogias e das concordâncias universais
demonstra. Nossas imagens grosseiras, nossa linguagem imperfeita
tentam em vão traduzi-la, mas cada alma viva sente-lhe o germe em
suas profundezas ocultas. Se, no estado atual, nos é impossível realizála,
a filosofia do oculto formula suas condições psíquicas.
A idéia de astros etéreos, invisíveis para nós, mas constitutivos de nosso sistema solar e que servem de morada às almas felizes, encontra-se
freqüentemente nos arcanos da tradição esotérica. Pitágoras denomina-a
uma contrapartida da Terra: a antichtone iluminada pelo Fogo central,
isto é, pela luz divina. No final do Fédon, Platão descreve longamente,
embora de forma disfarçada, essa terra espiritual. Diz que ela é leve
como o ar e cercada por uma atmosfera etérea.
Na outra vida, a alma conserva, portanto, toda sua individualidade. De sua existência terrestre, ela só guarda lembranças nobres e deixa as outras caírem no esquecimento que os poetas chamaram as ondas do Lethê. Liberta de suas nódoas a alma humana (pag,285) sente sua consciência retornar. De fora do Universo ela voltou para seu interior. Cibele-Maia, a alma do mundo, retomou-a em seu seio com uma aspiração profunda. Ali Psiquê realizará seu sonho, aquele sonho interrompido a todo o instante e recomeçado sem cessar na Terra. Ela o realizará na medida de seu esforço terrestre e de sua luz conquistada, mas amplia-lo-á ao cêntuplo. As esperanças esmagadas reflorescerão na aurora de sua vida divina.
Os sombrios poentes da Terra se abrasarão em radiosos clarões. Sim, que o homem só tenha vivido uma hora de entusiasmo ou de abnegação, esta única nota pura, arrancada à gama dissonante de sua vida terrestre, se repetirá em seu além em progressões maravilhosas, em harmonias eolianas.
As felicidades fugidias que obtemos dos encantamentos da música, dos êxtases do amor ou dos transportes da caridade são apenas as notas debulhadas de uma sinfonia que ouviremos então.
Será que esta vida é apenas um longo sonho, uma grandiosa alucinação?
Porém o que há de mais verdadeiro
do que aquilo que a alma sente em si mesma
e que ela realiza mediante sua comunhão divina
com outras almas?
Os iniciados, que são idealistas
conseqüentes e transcendentes, sempre pensaram
que as únicas coisas reais e duráveis da Terra
são as manifestações da Beleza,
do Amor e da Verdade espirituais.
Como o Além não pode ter outro objeto que não seja essaVerdade, essa Beleza e esse Amor, para aqueles que deles fizeram o
objeto de sua vida, eles estão persuadidos de que o céu será mais
verdadeiro do que a Terra.
A vida celeste da alma pode durar centenas ou milhares de anos,
de acordo com sua posição e sua força impulsora. Mas cabe apenas às
mais perfeitas, às mais sublimes, àquelas que atravessaram o círculo das
gerações, prolongá-la indefinidamente. Estas não somente atingiram o
repouso temporário, mas a ação imortal na verdade. Criaram suas
próprias asas. São invioláveis, porque são a luz. Governam os mundos,
porque vêem através deles. Quanto às outras, são levadas, por uma lei
inflexível, a se reencarnarem para se submeterem a uma nova prova
elevando-se a um escalão superior ou caindo mais baixo ainda, se
falharem.(pag.286)
Como a vida terrestre, a vida espiritual tem seu começo, seu
apogeu e sua decadência. Quando esta vida se esgota, a alma sente-se
dominada por lentidão, vertigem e melancolia. Uma força invencível a
atrai de novo para as lutas e os sofrimentos da Terra. Esse desejo é um
misto de apreensões terríveis e de imensa dor por deixar a vida divina.
Mas chegou a hora. A lei deve ser cumprida. O peso aumenta, a
escuridão a invade e só vê suas companheiras luminosas através de um
véu, que cada vez mais espesso a faz pressentir a separação iminente.
Ouve seus tristes adeuses. As lágrimas das bem-aventuranças que ama
penetram-na como um orvalho celeste que deixará em seu coração a
sede ardente de uma felicidade desconhecida. Então, com juramentos
solenes, ela promete recordar. . . recordar a luz no mundo das trevas, a
verdade no mundo da mentira, o amor no mundo do ódio. A volta, a
coroa imortal, só existe a este preço!
Ela desperta numa atmosfera espessa. Astro etéreo, almas
diáfanas, oceanos de luz, tudo desapareceu. Ei-la de volta à Terra, no
abismo do nascimento e da morte. Entretanto ela ainda não perdeu a
lembrança celeste, e o guia alado, ainda visível a seus olhos, mostra-lhe
a mulher que será sua mãe. Esta traz dentro de si o germe de uma
criança. E este germe só viverá se um espírito vier animá-lo. Então,
durante nove meses, realiza-se o mistério mais impenetrável da vida
terrestre: a encarnação e a maternidade.
A fusão misteriosa opera-se lentamente, sabiamente, órgão por
órgão, fibra por fibra. À medida que a alma mergulha nesse antro quente
embebido de vapor e pululante, à medida que se sente presa nos
meandros das vísceras de mil pregas, a consciência de sua vida divina
apaga-se e extingue-se; pois entre ela e a luz do alto interpõem-se as
ondas do sangue, os tecidos da carne que a estreitam e envolvem em
trevas. Aquela luz longínqua já não é mais do que um clarão agonizante.
Afinal, uma dor horrível comprime-a, aperta-a num torno. Uma
convulsão sangrenta arranca-a à alma materna e fixa-a num corpo
palpitante. A criança nasceu, miserável efígie terrestre, e grita de pavor.
Mas a lembrança celeste penetrou nas profundezas ocultas do (pag.287)
Inconsciente, e só reviverá pela Ciência ou pela Dor, pelo Amor ou pela
Morte!
A lei da encarnação e da desencarnação
revela-nos pois o
verdadeiro sentido da vida e da morte.
Constitui o núcleo essencial na evolução da alma, e nos permite acompanhá-la para trás e para frente, até o mais profundo da natureza e da divindade; pois essa lei nos revela o ritmo e a medida, a razão e o fim de sua imortalidade. Abstrata ou fantástica, ela torna-a viva e lógica, mostrando as correspondências da vida e da morte.
O nascimento terrestre
é uma morte do ponto de vista espiritual;
a morte, uma ressurreição celeste.
A alternância das duas vidas é necessária ao desenvolvimento da alma, e cada uma das duas é ao mesmo tempo a conseqüência e a explicação da outra. Todo aquele que se penetrou dessas verdades encontra-se no coração dos mistérios, no centro da iniciação.Entretanto, perguntarão, o que nos prova a continuidade da alma,
da mônada, da entidade espiritual através de todas essas existências,
uma vez que delas ela perde sucessivamente a memória?
E o que vos prova, responderemos, a identidade da vossa
personalidade, durante a vigília e durante o sono? Despertais cada
manhã de um estado tão estranho, tão inexplicável como a morte.
Ressuscitais desse nada para recair nele à noite. Era o nada? Não. Pois
sonhastes, e vossos sonhos foram para vós tão reais quanto a realidade
da vigília. Uma alteração das condições fisiológicas do cérebro
modificou as relações entre a alma e o corpo e deslocou vosso ponto de
vista psíquico. Permanecestes o mesmo indivíduo, mas estivestes em
outro meio e vivestes outra existência.
Nos magnetizados, nos sonâmbulos e nos clarividentes, o sono desenvolve faculdades novas que nos parecem miraculosas, mas que são as faculdades naturais da alma desligada do corpo. Uma vez despertos, esses clarividentes não se lembram mais do que viram, do que disseram ou fizeram durante o sono lúcido. Mas em outro de seus sonos recordam-se perfeitamente do que
aconteceu no sono anterior, e predizem às vezes com exatidão matemática o que acontecerá no próximo. Parecem ter duas consciências, duas vidas alternadas inteiramente distintas, cada uma (pag.288) com sua continuidade racional, envolvendo uma mesma individualidade como cordões de cores diversas em torno de um fio invisível. Foi pois num sentido bastante profundo que os antigos poetas iniciados denominaram o sono o irmão da morte.
Um véu de esquecimento
separa o sono da vigília,
como o nascimento da morte.
E assim como nossa existência terrestre divide-se em duas partes semprealternadas, também a alma se alterna, na imensidão de sua evolução
cósmica, entre a encarnação e a vida espiritual, entre a terra e os céus.
Essa passagem alternativa de um plano do Universo para outro, essa
inversão dos pólos de seu ser não é menos necessária ao
desenvolvimento da alma do que a alternativa da vigília e do sono é
necessária à vida corporal do homem. Temos necessidade das ondas do
Lethê ao passar de uma existência para outra. Nesta, um véu salutar nos
esconde o passado e o futuro. O esquecimento porém não é total, e a luz
atravessa o véu. As idéias inatas provam, por si sós, uma existência
anterior. Todavia há mais: nascemos com um mundo de vagas
recordações, de impulsos misteriosos, de pressentimentos divinos.
Em crianças nascidas de pais mansos e tranqüilos às vezes irrompem
paixões selvagens que o atavismo não é suficiente para explicar e que
vêm de uma existência precedente. Nas vidas mais humildes muitas
vezes há inexplicáveis e sublimes fidelidades a um sentimento, a uma
idéia. Não virão elas das promessas e dos juramentos da vida celeste?
Pois a lembrança oculta que dela a alma guardou é mais forte do que
todas as razões terrestres. Conforme se prenda a esta lembrança ou a
abandone, ela vence ou sucumbe.
A verdadeira fé
é aquela muda fidelidade da alma a si mesma.
Compreende-se assim que Pitágoras,como todos os teósofos, tenha considerado a vida corporal como uma
elaboração necessária da vontade, e a vida celeste como um crescimento
espiritual e uma realização.
As vidas sucedem-se e não se assemelham, mas encadeiam-se
com uma lógica impiedosa. Se cada uma delas tem sua lei própria e seu
destino especial, sua seqüência é regida por uma lei geral que se poderia
chamar de repercussão das vidas (8). Segundo esta lei, as ações de uma
vida repercutem fatalmente na seguinte. Não somente o homem (pag.289)
renascerá com os instintos e as faculdades que desenvolveu em sua
precedente encarnação, mas o próprio gênero de sua existência será
determinado em grande parte pelo bom ou mau emprego que ele teria
feito de sua liberdade na vida anterior. Não há palavra, não há ação que
não tenha eco na eternidade, diz um provérbio. Segundo a doutrina
esotérica, esse provérbio aplica-se literalmente de uma vida à outra.
Para Pitágoras, as injustiças aparentes do destino, as deformidades, as
misérias, os golpes da sorte, as infelicidades de todo gênero encontram
sua explicação no fato de cada existência ser a recompensa ou o castigo
da precedente. Uma vida criminosa engendra uma vida de expiação;
uma vida imperfeita, uma vida de provas. Uma vida boa determina uma
missão; uma vida superior, uma missão criadora. A sanção moral, que
se aplica com imperfeição aparente do ponto de vista de uma única
existência, aplica-se, no entanto, com perfeição admirável e justiça
minuciosa na série de existências. Nessa série pode haver progressão
rumo à espiritualidade e à inteligência, como pode haver progressão
rumo à bestialidade e à matéria. À medida que a alma progride, adquire
maior participação na escolha de suas reencarnações.
A alma inferior submete-se.
A alma média escolhe entre aquelas que lhe são oferecidas.
A alma superior, que se impõe uma missão,
elege-a por devotamento.
Quanto mais a alma se eleva, mais ela conserva em suas encarnações aconsciência clara, irrecusável, da vida espiritual, que reina além de
nosso horizonte terrestre, que a envolve como uma esfera de luz e envia
seus raios em nossas trevas. A tradição pretende mesmo que os
iniciadores de primeira linha, os divinos profetas da humanidade,
tenham recordado suas precedentes vidas terrestres. Segundo a lenda,
Gautama Buda, Sáquia-Muni, teria encontrado em seus êxtases o fio das
suas existências passadas. E conta-se que Pitágoras dizia dever a um
favor especial dos Deuses o fato de lembrar-se de algumas de suas vidas
anteriores.
Já dissemos que, na série das vidas, a alma pode retroceder ou avançar, conforme se entregue à sua natureza inferior ou à divina. Daí uma conseqüência importante, cuja verdade a consciência humana sempre sentiu com um estremecimento estranho. Em todas as (pag.290) existências há lutas a sustentar, escolhas a fazer, decisões a tomar, cujos resultados são incalculáveis. Mas, na rota ascendente do bem, que atravessa uma série considerável de encarnações, deve existir uma vida, um ano, um dia, uma hora talvez, em que a alma, alcançando a plena consciência do bem e do mal, pode elevar-se, por um derradeiro e supremo esforço, a uma altura tal que não terá mais de descer, iniciando o caminho dos pináculos.
O mesmo acontece no caminho descendente do mal. Há um ponto do qual a alma perversa pode ainda voltar. Contudo, uma vez transposto esse ponto, a insensibilidade é definitiva.
De existência em existência,
ela rolará até o fundo das trevas
e perderá sua humanidade.
O homem tornar-se-á demônio,
o demônio, animal, e sua indestrutível mônada
será forçada a recomeçar a penosa, assustadora evolução
através da série dos reinos ascendentes
e inumeráveis existências.
Eis o verdadeiro inferno, segundo a lei da evolução. E não éele tão terrível e até mais lógico que o das religiões esotéricas?
A alma pode, portanto, subir ou descer na série das vidas. Quanto
à humanidade terrestre, sua marcha opera-se segundo a lei de uma
progressão ascendente, que faz parte da ordem divina. Esta verdade, que
supomos ser descoberta recente, era conhecida e ensinada nos Mistérios
antigos.
“Os animais são parentes do homem
e o homem é parente dos deuses”,
dizia Pitágoras.
Ele desenvolvia filosoficamente o que ensinavam também os símbolos de Elêusis: o progresso dos reinos ascendentes, a aspiração do mundo vegetal ao mundo animal, do mundo animal ao mundo humano e a sucessão, na humanidade, de raças cada vez mais perfeitas. Esse progresso não se realiza de maneira uniforme, mas em ciclos regulares e crescentes, contidos uns nos outros. Cada povo tem sua juventude, sua maturidade e seu declínio. Ocorre omesmo com raças inteiras: a raça vermelha, a raça negra e a raça branca,
têm reinado sucessivamente no globo.
A raça branca, ainda em plena juventude, não atingiu sua maturidade em nossos dias. Em seu apogeu, ela desenvolverá, no próprio seio, uma raça aperfeiçoada, pelo restabelecimento da iniciação e pela seleção espiritual dos casamentos.
Assim se sucedem as raças, assim progride a humanidade. Os iniciados antigos iam muito mais longe do que os modernos em suas(pag.291)
previsões. Admitiam que chegaria um momento em que a grande massa
dos indivíduos que compõem a humanidade atual passaria a um outro
planeta, a fim de lá começar um novo ciclo.
Na série dos ciclos que constituem a cadeia planetária, a humanidade inteira desenvolverá os princípios intelectuais, espirituais e transcendentes que os grandes iniciados cultivaram em si mesmos já nesta vida, e os levará assim a
uma florescência mais geral. Não é preciso dizer que tal desenvolvimento abrange não somente milhares, mas milhões de anos, e que provocará mudanças inimagináveis na condição humana. Para caracterizá-las, Platão disse que nesse tempo os Deuses habitarão realmente os templos dos homens. É lógico admitir que na cadeia planetária, isto é, nas evoluções sucessivas de nossa humanidade em outros planetas, suas encarnações se tornem de uma natureza cada vez mais etérea, o que as aproximará insensivelmente do estado puramente espiritual, daquela oitava esfera que está fora do círculo das gerações, e pela qual os antigos teósofos designavam o estado divino. É natural também que, não tendo todos o mesmo impulso, pois muitos ficam no caminho ou caem fora, o número dos eleitos vá diminuindo sempre nessa prodigiosa ascensão. Ela causa vertigem a nossas inteligências limitadas pela Terra; mas as inteligências celestes contemplam-na sem medo, como nós contemplamos uma única vida.
A evolução das almas, assim compreendida, não estaria de acordo
com a unidade do Espírito, o princípio dos princípios; com a
homogeneidade da Natureza, a lei das leis; com a continuidade do
movimento, a força das forças? Visto através do prisma da vida
espiritual, um Sistema Solar não constitui somente um mecanismo
material, mas um organismo vivo, um reino celeste, em que as almas
viajam de mundo em mundo como o próprio sopro de Deus que o
anima.
Qual é pois o fim último do homem e da humanidade, segundo a doutrina esotérica? Após tantas vidas, mortes, renascimentos, calmarias
e despertares pungentes, existirá um término para os labores de Psiquê?
Sim, dizem os iniciados, quando a alma tiver definitivamente vencido a
matéria; quando, desenvolvendo todas as suas faculdades espirituais, ela
(pag.292) tiver encontrado em si mesma o princípio e o fim de todas as coisas. Então, não sendo mais necessária a encarnação, ela entrará no estado
divino, mediante sua união completa com a inteligência divina. Se mal
podemos pressentir a vida espiritual da alma após cada vida terrestre, como poderemos imaginar esta vida perfeita que deverá resultar de toda a série de suas existências espirituais?
O céu dos céus será para suas venturas precedentes o que o Oceano é para os rios. Para Pitágoras, a apoteose do homem não era a imersão na inconsciência, mas a atividade criadora na consciência suprema.
A alma transformada em puro espírito
não perde sua individualidade; completa-a,
pois reúne-se a seu arquétipo em Deus.
Ela se lembra de todas as existências anteriores, quelhe parecem outros tantos degraus para atingir o degrau máximo, de
onde ela abrange e penetra o universo. Nesse estado, o homem não é
mais homem, como dizia Pitágoras. É semideus; porque reflete em todo
o seu ser a luz inefável, com a qual Deus preenche toda a imensidade.
Para ele, saber é poder; amar é criar; ser é irradiar a verdade e a beleza.
E esse término, será ele definitivo? A Eternidade espiritual tem
outras medidas além do tempo solar. Mas tem também suas etapas, suas
normas e seus ciclos. Acontece apenas que eles ultrapassam inteiramente as concepções humanas. Porém a lei das analogias progressivas nos reinos ascendentes da natureza permite-nos afirmar que o espírito, tendo chegado a este estado sublime, não pode mais voltar atrás e que se os mundos visíveis mudam e passam, o mundo invisível, que é sua razão de ser, sua fonte e sua embocadura – e do qual participa a divina Psiquê –, é imortal.
Com essas perspectivas luminosas, Pitágoras terminava a história
da divina Psiquê. A última palavra tinha expirado nos lábios do sábio,
mas o sentido da incomunicável verdade permanecia suspenso na
atmosfera imóvel da cripta. Cada um acreditava ter acabado o sonho das
vidas para despertar na grande paz, no doce oceano da vida única e sem
limites. As lâmpadas de nafta iluminavam tranqüilamente a estátua de
Perséfona, em pé, como ceifadora celeste, e faziam reviver sua história
simbólica nas pinturas sagradas do santuário. Às vezes uma sacerdotisa
entrava em êxtase sob o domínio da voz harmoniosa de Pitágoras, e (pag.293)
parecia encarnar nas atitudes e na fisionomia radiante a inefável beleza
de sua visão. E os discípulos, tomados de emoção religiosa, assistiam
em silêncio. Mas logo o mestre, com um gesto lento e seguro, trazia de
novo para a terra a profândida inspirada. Pouco a pouco, seus traços se
descontraíam, ela tombava nos braços das companheiras e caía em profunda letargia, da qual despertava confusa, triste e como que esgotada pelo esforço despendido. Então subiam todos na cripta para os jardins de Ceres, para a frescura da aurora que começava a branquear o mar, sob o céu estrelado.
QUARTO GRAU – EPIFANIA
O adepto. – A mulher iniciada. – O amor e o casamento.Acabamos de atingir, com Pitágoras, o apogeu da iniciação antiga.
Desta altura, a Terra parece inundada de sombra como um astro
agonizante. Dali descortinam-se as perspectivas siderais, desenrola-se,
como um conjunto maravilhoso, a visão de cima, a epifania do
Universo (9). Porém a finalidade desse ensinamento não era absorver o
homem na contemplação ou no êxtase. O mestre levara seus discípulos
a passear pelas regiões incomensuráveis do Cosmo, mergulhara-os nos
abismos do invisível. Da assustadora viagem, os verdadeiros iniciados
deviam voltar à terra melhores, mais fortes e mais preparados para as
provas da vida.
À iniciação da inteligência devia suceder à da vontade, a mais
difícil de todas. Pois trata-se agora de o discípulo deixar a verdade
descer no mais profundo de seu ser, de pô-la em prática durante a vida.
Para atingir este ideal, era preciso, segundo Pitágoras, reunir três
perfeições: realizar a verdade na inteligência, a virtude na alma, a
pureza no corpo. Uma higiene sábia, uma continência moderada deviam
manter a pureza corporal, necessária não como fim, mas como meio.
Todo o excesso corporal deixa um traço e uma nódoa no corpo astral,
organismo vivo da alma, e por conseguinte, no espírito. Pois o corpo
astral concorre para todos os atos do corpo material. É ele mesmo que
os executa, porque sem ele o corpo material não passa de uma massa
inerte. É preciso, portanto, que o corpo seja puro para que a alma o seja
também. É preciso, em seguida, que a alma, incessantemente iluminada
pela inteligência, adquira a coragem, a abnegação, o devotamento e a fé,
em uma palavra, a virtude, e da mesma faça uma segunda natureza que
substitua a primeira. (pag.294)
É preciso, finalmente, que o intelecto atinja a sabedoria pela ciência, de tal sorte que saiba distinguir em tudo o bem e o mal, e ver Deus tanto no menor dos seres como no conjunto dos mundos. A essa altura, o homem torna-se adepto e, se possui energia suficiente, entra na posse de faculdades e poderes novos. Os sentidos internos da alma se abrem, a vontade resplandece nos outros. Seu magnetismo corporal, penetrado dos eflúvios de sua alma astral, eletrizado por sua vontade, adquire um poder aparentemente
miraculoso. Às vezes, cura doentes pela imposição das mãos ou
somente por sua presença. Muitas vezes, penetra nos pensamentos dos
homens apenas com o olhar.
Algumas vezes, em estado de vigília, vê
acontecimentos que ocorrem longe (10). Age à distância pela
concentração do pensamento e da vontade sobre as pessoas que estão
ligadas a ele por laços de simpatia pessoal, e lhes faz aparecer sua
imagem à distância, como se seu corpo astral pudesse transportar-se
para fora do corpo material. A aparição dos moribundos ou dos mortos
aos amigos é exatamente o mesmo fenômeno. Só que a aparição que o
moribundo ou a alma do morto produz geralmente, por um desejo
inconsciente, na agonia ou na segunda morte, o adepto a produz em
plena saúde e em plena consciência. Todavia, ele apenas o consegue
durante o sono e, quase sempre, durante um sono letárgico, Enfim, o
adepto sente-se cercado e protegido por seres invisíveis, superiores e
luminosos, que lhe emprestam sua força e o ajudam em sua missão
Raros são os adeptos,
mais raros ainda aqueles que alcançam este poder.
A Grécia só conheceu três:
Orfeu, na aurora do helenismo;
Pitágoras, em seu apogeu;
Apolônio de Tiana, em seu declínio.
Orfeu foi o grande inspirado e o grande iniciador da religião grega; Pitágoras,o organizador da ciência esotérica e da filosofia das escolas; Apolônio,
o estóico moralizador e o mágico popular da decadência. Mas em todos
os três, apesar dos graus e através das nuances, brilha o raio divino: o
espírito apaixonado pela salvação das almas, a indomável energia
revestida de mansidão e serenidade. Todavia, não vos aproximeis muito
dessas grandes frontes calmas. Elas queimam em silêncio. Sente-se sob
a fornalha uma vontade ardente, mas sempre contida.(pag.295)
Pitágoras representa para nós, portanto, um adepto de primeira
ordem, com o espírito científico e a fórmula filosófica que mais se
aproximam do espírito moderno. Mas ele não podia nem pretendia fazer
de seus discípulos adeptos perfeitos. Uma grande época tem sempre um
grande inspirador em sua origem. Seus discípulos e os alunos de seus
discípulos formam a cadeia imantada e propagam seu pensamento pelo
mundo. No quarto grau da iniciação, Pitágoras se contentava, pois, em
ensinar a seus fiéis as aplicações de sua doutrina à vida. Porque a
Epifania, a visão do alto, dava um conjunto de visões profundas e gerais
sobre as coisas terrestres.
A origem do bem e do mal
permanece um mistério incompreensível
para quem não percebeu a origem e o fim das coisas.
Uma moral que não considera os supremos destinos do homem só seráutilitária e bastante imperfeita. Além do mais, a liberdade humana não
existe de fato para aqueles que são sempre escravos de suas paixões, e
não existe de direito para aqueles que não acreditam nem na alma nem
em Deus, e para quem a vida é um relâmpago entre dois nadas. Os
primeiros vivem na servidão da alma acorrentada às paixões; os
segundos, na servidão da inteligência limitada ao mundo físico. Não
acontece o mesmo com o homem religioso, nem com o verdadeiro
filósofo, e menos ainda com o teósofo iniciado, que realiza a verdade na
trindade de seu ser e na unidade de sua vontade. Para compreender a
origem do bem e do mal, o iniciado contempla os três mundos com os
olhos do espírito. Vê o mundo tenebroso da matéria e da animalidade,
onde domina o inelutável Destino. Vê o mundo luminoso do Espírito,
que para nós é o mundo invisível, a imensa hierarquia das almas
libertadas, onde reina a lei divina, e que são a Providência em ato. Entre
os dois, ele vê numa penumbra a humanidade, que mergulha, pela base,
no mundo natural e que toca, por seus pináculos, o mundo divino. Ela
tem por gênio: A Liberdade. Porque, no momento em que o homem
percebe a verdade e o erro, está livre para escolher: juntar-se à
Providência, cumprindo a verdade, ou tombar sob a lei do destino,
seguindo o erro.(pag.296)
O ato da vontade unido ao ato intelectual
é somente um ponto matemático,
mas desse ponto brota o universo espiritual.
Todo espírito sente parcialmente pelo instinto o que o teósofo compreendetotalmente pelo intelecto: que o Mal é aquilo que faz descer o homem
para a fatalidade da matéria; que o Bem é aquilo que o faz subir à lei
divina do Espírito. Seu verdadeiro destino é subir sempre, cada vez
mais alto e por seu próprio esforço. Para isto, porém, é preciso que ele
seja livre também para descer. O círculo da liberdade amplia-se até o
infinitamente grande, à medida que se sobe; e diminui, até o
infinitamente pequeno, à medida que se desce. Quanto mais o homem
sobe, mais se torna livre, pois penetra mais profundamente na luz, e
mais força adquire para o bem. Quanto mais desce, mais se torna
escravo; pois cada queda no mal diminui a inteligência do verdadeiro e
a capacidade do bem.
O Destino reina, portanto, sobre o passado; a Liberdade, sobre o
futuro; e a Providência sobre os dois, ou seja, sobre o presente sempre
existente, que se pode denominar Eternidade (11). Da ação combinada
do Destino, da Liberdade e da Providência resultam os destinos
inumeráveis, infernos e paraísos das almas. O mal, estando em
desacordo com a lei divina, não é obra de Deus, mas do homem, e só
tem uma existência relativa, aparente e transitória. O bem, estando de
acordo com a lei divina, existe só real e eternamente. Nem os sacerdotes
de Delfos e de Elêusis, nem os filósofos iniciados jamais quiseram
revelar essas profundas idéias ao povo, que poderia compreendê-las
erroneamente e abusar delas. Nos Mistérios, representava-se
simbolicamente essa doutrina pelo esfacelamento de Dionísio. Porém
um véu impenetrável ocultava aos profanos o que se chamava de os
sofrimentos de Deus.
As maiores discussões religiosas e filosóficas rolam sobre a
questão da origem do bem e do mal. Acabamos de ver que a doutrina
esotérica possui-lhe a chave em seus arcanos.(pag.297)
Existe outra questão capital, de que depende o problema social e
político; a da desigualdade das condições humanas. O espetáculo do
mal e da dor tem em si alguma coisa de assustador. Pode-se acrescentar
que sua distribuição, aparentemente arbitrária e injusta, é a origem de
todos os ódios, de todas as revoltas, de todas as negações. Ainda aqui, a
doutrina profunda traz em nossas trevas terrestres sua luz soberana de
paz e esperança. A diversidade das almas, das condições, dos destinos,
pode-se justificar efetivamente apenas pela pluralidade das existências e
pela doutrina da reencarnação. Se o homem nasce pela primeira vez
nesta vida, como explicar os inúmeros males que parecem cair ao acaso
sobre ele? Como admitir que há uma justiça eterna, uma vez que alguns
nascem numa condição que arrasta fatalmente à miséria e à humilhação,
enquanto que outros nascem afortunados e vivem felizes?
Mas, se é verdade que vivemos outras vidas antes e que viveremos outras após a morte, se é verdade que através de todas essas existências reina a lei de recorrência e de repercussão – então as diferenças de alma, de condição,
de destino, apenas serão efeitos das vidas anteriores e aplicações
múltiplas dessa lei. As diferenças de condição provêm de um emprego
desigual da liberdade nas vidas precedentes, e as diferenças intelectuais
provêm de que os homens que atravessam a terra em um século
pertencem a graus de evolução extremamente diversos. Estes graus se
escalonam. desde a semi-animalidade das. pobres raças em regressão até
os estados angélicos dos santos e até a realeza divina do gênio.
Na realidade,
a terra se assemelha a um navio,
e nós todos que a habitamos,
a viajantes que vêm de países longínquos
e se dispersam por etapas em
todos os pontos do horizonte.
A doutrina da reencarnação dá uma razão
de ser, segundo a justiça e a lógica eterna,
aos males mais assustadores e
às felicidades mais almejadas.
O idiota nos parecerá compreensível se raciocinarmos que seu embrutecimento, do qual tem uma semiconsciência e com a qual sofre, é a punição de um emprego criminoso da inteligência em outra vida. Todas as nuances de sofrimentos físicos ou morais, de felicidade e de infelicidade, em suas inúmeras variedades, aparecerão como eflorescências naturais e sabiamente graduais dos instintos e das ações, das faltas e das virtudes de um longo passado, pois a alma conserva em suas profundezas ocultas tudo o que ela acumula em suas diversas existências. De acordo com ahora e a influência, as camadas antigas reaparecem e desaparecem. E o
destino, isto é, os espíritos que o dirigem, proporcionam o gênero de
reencarnação, quanto a seu lugar e sua qualidade. Lísis exprime esta
verdade, ocultando-a sob um véu, em seus versos dourados:(pag.298)
Verás que os males que devoram os homens
São o fruto de sua escolha; e que esses infelizes
Procuram longe de si os bens cuja fonte carregam.
Longe de enfraquecer o sentimento de fraternidade e desolidariedade humana, essa doutrina só pode fortificá-lo. Devemos a
todos ajuda, simpatia e caridade, pois somos todos da mesma raça,
embora em graus diversos. Todo o sofrimento é sagrado, porque a dor é
o cadinho das almas. Toda a simpatia é divina, porque ela nos faz sentir,
como que por um eflúvio magnético, a cadeia invisível que liga todos os
mundos. A virtude da dor é a razão do gênio. Sim, sábios e santos,
profetas e divinos criadores resplandecem com uma beleza mais
comovente para aqueles que sabem que também eles resultam da
evolução universal. Esta força que nos espanta, quantas vidas, quantas
vitórias não foram necessárias para conquistá-la? Esta luz inata do
gênio, de quais céus já atravessados ela lhe vem? Não o sabemos. Mas
estas vidas existiram e esses céus existem. Não está, pois, enganada a
consciência dos povos. Os profetas não mentiram quando chamaram os
homens de filhos de Deus, enviados do céu profundo. Porque sua
missão foi requerida pela eterna Verdade, legiões invisíveis os protegem
e o Verbo vivo fala neles!
Há entre os homens uma diversidade que provém da essência primitiva dos indivíduos. Há uma outra, acabamos de dizê-lo, que provém do grau de evolução espiritual que eles atingiram. De acordo com este último ponto de vista, os homens podem situar-se em quatro classes, que compreendem todas as subdivisões e todas as nuances.(pag.299)
1º. Na grande maioria dos homens, a vontade age sobretudo no
corpo. Podemos chamá-los de instintivos. São próprios não somente
para os trabalhos corporais, mas ainda para o exercício e o
desenvolvimento de sua inteligência no mundo físico;
conseqüentemente, para o comércio e a indústria;
2º. No segundo grau do desenvolvimento humano, a vontade e
portanto a consciência, reside na alma, ou seja, na sensibilidade
acionada pela inteligência, que constitui o entendimento. São os
anímicos e os passionais. Segundo seu temperamento, estão preparados
para se tornarem homens de guerra, artistas ou poetas. Na grande
maioria, os homens de letras e os sábios são desta espécie: vivem nas
idéias relativas, modificadas pelas paixões ou limitadas por um
horizonte pequeno, sem se elevarem até à Idéia pura e à Universalidade;
3º Numa terceira classe de homens, muito mais raros, a vontade
age soberanamente no intelecto puro; desembaraça a inteligência da
tirania das paixões e dos limites da matéria, o que dá a todas as suas
concepções um caráter de universalidade. São os intelectuais. Esses
homens constituem os heróis mártires da pátria, os poetas de primeira
ordem; finalmente, e sobretudo, os verdadeiros filósofos e os sábios,
aqueles que, segundo Pitágoras e Platão, deveriam governar a
humanidade. Nesses homens, a paixão não está extinta, porque sem ela
nada se faz; ela constitui o fogo e a eletricidade no mundo moral. Neles,
porém, as paixões tornam-se servas da inteligência, enquanto que na
categoria anterior a inteligência é, na maioria das vezes, serva das
paixões;
4º O mais alto ideal humano é realizado por uma quarta classe de
homens, que, ao império da inteligência sobre a alma e sobre o instinto,
acrescentaram o da vontade sobre todo o seu ser. Pelo domínio e posse
de todas as suas faculdades, eles exercem o grande poder. Realizaram a
unidade na trindade humana. Graças a esta concentração maravilhosa,
que reúne todas as potencialidades da vida, sua vontade, projetando-se
nos outros, adquire uma força quase ilimitada, uma magia radiante e criadora.(pag.300)
Na história, estes homens receberam nomes diversos. São os
homens primordiais, os adeptos, os grandes iniciados, gênios sublimes
que transformam a humanidade. São de tal maneira raros que se pode
contá-los na história. A Providência semeia-os de tempos em tempos,
com longos intervalos, como os astros no céu (12).
É evidente que esta última categoria escapa a toda regra, a toda
classificação. Mas uma constituição da sociedade humana que não
considere as três primeiras categorias, que não proporcione a cada uma
delas sua função normal e os meios necessários para se desenvolver, é
somente exterior e não orgânica. Numa época primitiva, que remonta
provavelmente aos tempos védicos, os brâmanes da Índia fundaram a
divisão da sociedade em castas com base no princípio ternário. Mas,
com o tempo, essa divisão tão justa e fecunda transformou-se em
privilégio sacerdotal e aristocrático. O princípio da vocação e da
iniciação deu lugar ao da hereditariedade. As castas fechadas acabaram
por petrificar-se, seguindo-se irremediavelmente a decadência da Índia.
O Egito, que conservou, sob o domínio de todos os faraós, a
constituição ternária com as castas móveis e abertas, o princípio da
iniciação aplicada ao sacerdócio, o princípio do exame em todas as
funções civis e militares, viveu cinco a seis mil anos sem mudar de
constituição. Quanto à Grécia, seu temperamento instável fê-la passar
rapidamente da aristocracia para a democracia e desta para a tirania. Ela
girou neste círculo vicioso como um doente que passa da febre à letargia
e volta à febre. Talvez tivesse necessidade desta excitação para produzir
sua obra inigualável, a tradução da sabedoria profunda mas obscura do
Oriente para uma linguagem clara e universal; a criação do Belo pela
Arte, e a fundação da ciência aberta e racional sucedendo à iniciação
secreta e intuitiva. Ela deveu ao princípio da iniciação sua organização
religiosa e suas mais altas inspirações. Social e politicamente falando,
pode-se dizer que viveu sempre no provisório e no excessivo. Em sua
qualidade de adepto, Pitágoras tinha compreendido, do cume da iniciação, os princípios eternos que regem a sociedade e prosseguia, no plano de uma grande reforma, segundo essas verdades. Veremos dentro (pag.301) em pouco como ele e sua escola naufragaram nas tempestades da democracia.
Dos puros pináculos da doutrina, a vida dos mundos se desenrola
de acordo com o ritmo da Eternidade. Esplêndida Epifania! Mas aos
raios mágicos do firmamento desvendado, a terra, a humanidade, a vida
abrem-nos também suas profundezas secretas. É preciso encontrar o
infinitamente grande no infinitamente pequeno, para sentir a presença
de Deus. Isto é o que sentiam os discípulos de Pitágoras, quando o
mestre lhes mostrava, para coroar seu ensinamento, como a eterna
Verdade se manifesta na união do Homem e da Mulher no casamento. A
beleza dos números sagrados que eles tinham ouvido e contemplado no
Infinito, iam encontrá-la no próprio coração da vida, e Deus emergiria
para eles do grande mistério dos Sexos e do Amor.
A antigüidade compreendera uma verdade essencial, que as idades
seguintes menosprezaram. A mulher, para bem cumprir suas funções de
esposa e de mãe, tem necessidade de uma orientação, de uma iniciação
especial. Daí a iniciação puramente feminina, isto é, inteiramente
reservada às mulheres. Ela existia na Índia, nos tempos védicos, em que
a mulher era sacerdotisa no altar doméstico. No Egito, ela remonta aos
mistérios de Ísis. Orfeu organizou-a na Grécia. Até à extinção do
paganismo, vemo-la florescer nos mistérios dionisíacos, assim como
nos templos de Juno, Diana, Minerva e Ceres.
Esta iniciação consistia em ritos simbólicos, cerimônias, festas noturnas, e depois em um ensinamento especial, ministrado por sacerdotisas mais velhas ou pelo grande sacerdote, e que tratava das coisas mais íntimas da vida
conjugal. Davam-se conselhos e regras sobre as relações sexuais, as
épocas do ano e do mês favoráveis às concepções felizes. Dava-se a
maior importância à higiene física e moral da mulher durante a
gravidez, para que a obra sagrada, a criação do filho, se cumprisse
segundo as leis divinas. Em resumo, ensinava-se a ciência da vida
conjugal e a arte da maternidade, que se estendia até muito além do
nascimento. Até a idade de sete anos, os filhos ficavam no gineceu, sob
a direção exclusiva da mãe, e onde o marido não penetrava.
A sábia antigüidade considerava a criança uma planta delicada, que tem (pag.302) necessidade, para não se atrofiar, da quente atmosfera maternal. O pai a deformaria; eram necessários os beijos e carícias da mãe para desabrochar. Era necessário o amor forte, envolvente da mulher, que defendesse dos perigos externos esta alma que a vida assustava. Por cumprir em plena consciência estas altas funções, consideradas divinas pela Antigüidade, que a mulher era verdadeiramente a sacerdotisa da família, a guardiã do fogo sagrado da vida, a Vesta do lar. A iniciação feminina pode, portanto, ser considerada a verdadeira razão da beleza da raça, da força das gerações, da duração das famílias na Antigüidade greco-romana (13).
Estabelecendo uma ala para as mulheres em seu Instituto,
Pitágoras não fez mais que purificar e aprofundar o que já existia antes
dele. As mulheres iniciadas por ele recebiam, com os ritos e os
preceitos, os princípios supremos de sua função. Ele dava assim,
àquelas que eram dignas disso, a consciência de seu papel. Revelavalhes
a transfiguração do amor no casamento perfeito, que é a penetração
de duas almas no próprio centro da vida e da verdade. O homem, em
sua força, não é o representante do princípio e do espírito criador?
A mulher, em todo o seu poder, não personifica a natureza na sua força
plástica, em suas realizações maravilhosas, terrestres e divinas? Pois
bem, quando esses dois seres chegarem a se penetrar completamente,
corpo, alma, espírito, eles formarão juntos um resumo do Universo. Mas
para crer em Deus a mulher tem necessidade de vê-lo viver no homem;
e para isto é preciso que o homem seja iniciado. Só ele é capaz, por sua
inteligência profunda da vida, por sua vontade criadora, de fecundar a
alma feminina, de transformá-la pelo ideal divino. E este ideal, a mulher
amada devolve-lhe multiplicado em seus pensamentos vibrantes, em
suas sensações sutis, em suas profundas adivinhações. Ela envia-lhe sua
imagem transfigurada pelo entusiasmo, torna-se seu ideal, pois o
realiza pelo poder de seu amor em sua própria alma. Por meio dela, ele
se torna vivo e visível, faz-se carne e sangue. Se o homem cria pelo desejo e pela vontade, a mulher, física e espiritualmente, gera por amor.
Em
seu papel
de amante, esposa,
mãe ou inspirada, ela não é menor,
e é mais divina ainda, do que o homem.
Pois amar é esquecer. A mulher que se esquece
e que se entrega em seu amor é sempre sublime.
Ela encontra nesse aniquilamento seu renascimento celeste,
sua coroa de luz e irradiação imortal de seu ser.(pag.303)
O amor reina
como senhor na literatura moderna, há dois séculos.
Não é o amor puramente sensual que se ilumina à beleza do corpo,como nos poetas antigos. Não é o culto insípido de um ideal abstrato e
convencional, como na Idade Média. Não! É o amor ao mesmo tempo
sensual e psíquico que, deixado em total liberdade e em plena fantasia
individual, avança. Mais freqüentemente os dois sexos se guerreiam no
amor. Revoltas da mulher contra o egoísmo e a brutalidade do homem;
desprezo do homem pela falsidade e a vaidade da mulher; gritos da
carne, cóleras impotentes das vítimas da volúpia, dos escravos do
deboche. No meio disto, paixões profundas, atrações terríveis, tanto
mais poderosas quanto mais são entravadas pelas convenções mundanas
e instituições sociais. Daí aqueles amores plenos de tormenta, de
destruições morais, de catástrofes trágicas, sobre os quais se
desenrolam, quase que exclusivamente, o romance e o drama modernos.
Dir-se-ia que o homem, cansado, não encontrando Deus nem na ciência
nem na religião, procura-o perdidamente na mulher. E faz muito bem.
Entretanto, é só através da iniciação das grandes verdades que Ele o
encontra n’Ela e Ela n’Ele. Entre estas almas que se ignoram
reciprocamente e que se ignoram a si mesmas, que às vezes se deixam,
amaldiçoando-se, existe uma sede imensa de se penetrarem e de
encontrar nesta fusão a felicidade impossível.
Apesar das aberrações e dos excessos que disso resultam, essa procura desesperada é necessária. Ela sai de um divino inconsciente e será um ponto vital para a reedificação do futuro. Porque quando o homem e a mulher se
encontrarem a si mesmos e um ao outro pelo amor profundo e pela
iniciação, sua fusão será a força radiante e criadora por excelência.
O amor psíquico, o amor-paixão da alma somente há pouco tempo
entrou na literatura e, por esta, na consciência universal. Mas tem sua
fonte na iniciação antiga. Se a literatura grega mal o deixa transparecer,
era por ser uma exceção raríssima. Isso também decorre do segredo
profundo dos mistérios. Todavia, a tradição religiosa e filosófica (pag.304)
conservou os traços da mulher iniciada. Por trás da poesia e da filosofia
oficiais, algumas figuras de mulheres aparecem meio veladas, mas
luminosas. Já conhecemos a pitonisa Teocléia, que inspirou Pitágoras.
Mais tarde virá a sacerdotisa Corina, rival muitas vezes feliz de Píndaro,
o qual foi o mais iniciado dos líricos gregos. Finalmente, a misteriosa
Diotima aparece no banquete de Platão, para fazer a suprema revelação
sobre o Amor. Ao lado dessas missões excepcionais, a mulher grega
exerceu seu verdadeiro sacerdócio no lar e no gineceu. Sua criação
própria foram justamente os heróis, os artistas, os poetas, dos quais
admiramos os cantos, os mármores e as ações sublimes. Foi ela que os
concebeu no mistério do amor, que os moldou em seu seio com o desejo
da beleza, que os fez desabrochar sob a proteção materna.
Acrescentemos que para a mulher e o homem verdadeiramente
iniciados, a criação do filho tem um sentido infinitamente mais belo, um
alcance maior do que para nós. Quando o pai e a mãe sabem que a alma
da criança preexiste a seu nascimento terrestre, a concepção torna-se um
ato sagrado, o apelo de uma alma à encarnação.
Entre a alma encarnada e a mãe, existe quase sempre um profundo
grau de semelhança. Assim como as mulheres más e perversas atraem
os espíritos demoníacos, assim também as mães ternas atraem os
espíritos divinos. Esta alma invisível que se espera, que está para vir e
que vem tão misteriosamente e tão seguramente, não será ela algo
divino? Seu nascimento, seu aprisionamento na carne será doloroso;
pois se entre ela e seu céu abandonado um véu grosseiro se interpõe, e
se ela deixa de lembrar, ah! ela não poderia sofrer menos! Por isso,
santa e divina é a tarefa da mãe, que deve criar para ela uma nova
morada, dulcificar-lhe a prisão e facilitar-lhe a prova. Assim, o
ensinamento de Pitágoras, que começara nas profundezas do Absoluto
pela trindade divina, terminava no centro da vida pela trindade humana.
No Pai, na Mãe e no Filho o iniciado sabia reconhecer agora o Espírito,
a Alma e o Coração do Universo vivo. Esta última iniciação constituía
para ele o fundamento da obra social concebida à altura e em toda a
beleza do ideal, edifício para o qual cada iniciado devia trazer sua
pedra.(pag.305)
(1). Orígenes acredita que Pitágoras tenha sido o inventor da
fisiognomonia.
(2). Katharsis em grego.
(3). Na matemática transcendental, demonstra-se algebricamente que
zero multiplicado pelo infinito é igual a Um. Zero, na ordem das idéias
absolutas, significa o Ser indeterminado. O Infinito, o Eterno, na linguagem
dos templos, marcava-se por um círculo ou por uma serpente a morder a
cauda. Isto significava o Infinito movendo-se por si mesmo. Ora, no momento
em que Infinito se determina, ele produz todos os números que contém em sua grande unidade e que governa numa harmonia perfeita.
Este é o sentido transcendente do primeiro problema da teogonia
pitagórica, a razão pela qual a grande Mônada contém todas as pequenas e
todos os números brotam da grande unidade em movimento.
(4). Encontra-se doutrina idêntica no iniciado São Paulo, que fala do
corpo espiritual.
(5). Como primeiro dessa série deve-se citar Fabre d'Olivet (Vers dorés
de Pythagore). Esta concepção viva das forças do Universo, atravessando-o
de alto a baixo, nada tem a ver com as especulações vazias dos puros
metafísicos, como, por exemplo, a tese, a antítese e a síntese de Hegel,
simples jogos do espírito.
(6). Em grego: Teleiótés.
(7). Certas definições estranhas, sob forma de metáfora, que nos foram
transmitidas que provêm do ensinamento secreto do mestre, deixam entrever,
em seu sentido oculto, a concepção grandiosa que Pitágoras tinha do Cosmo.
Falando das constelações, ele chamava a grande e a pequena Ursa de: as mãos de Réa-Cibele. Ora, Réa-Cibele significa esotericamente a luz astral que rola, a divina esposa do fogo universal ou do Espírito criador que, concentrando-se nos sistemas solares, atrai as essências imateriais dos seres, apodera-se delas e faz com que entrem no turbilhão das vidas. – Ele chamava também os planetas de os cães de Proserpina. Esta expressão singular só tem sentido esotericamente. Proserpina, a deusa das almas, presidia sua encarnação na (Pag.306) matéria. Pitágoras chamava os planetas de cães de Proserpina porque eles guardam as almas encarnadas como o Cérbero mitológico guarda as almas no inferno.
(8). A lei chamada Karma, dos brâmanes e budistas.
(9). Epifania ou visão do alto; autópsia ou visão direta; teofania ou
manifestação de Deus, são idéias correlatas e expressões diversas para marcar o estado de perfeição no qual o iniciado, tendo unido sua alma a Deus,
contempla a verdade total.
(10). Citaremos dois fatos célebres deste gênero, absolutamente
autênticos. O primeiro passa-se na Antigüidade e seu herói é o ilustre filósofomágico Apolônio de Tiana.
1º fato – Segunda visão de Apolônio de Tiana – “Enquanto esses
acontecimentos (o assassinato do imperador Domiciano) passavam-se em
Roma, Apolônio os via em Éfeso. Domiciano foi atacado por Clemente, ao
meio-dia. No mesmo dia, no mesmo momento, Apolônio discursava nos
jardins junto ao Xisto. De repente ele abaixou um pouco a voz, como se
tivesse sido tomado de um pavor súbito. Continuou o discurso, mas sua
linguagem não tinha a força de sempre, como acontece com alguém que fala
pensando em outra coisa. Depois calou-se como se tivesse perdido o fio do
discurso, olhou assustado para o chão, deu três ou quatro passos para frente e gritou: “Abate o tirano!” Dir-se-ia que ele via não a imagem do fato em um
espelho, mas o fato em si mesmo, com toda a sua realidade. Os efesianos
(Éfeso inteira assistia ao discurso de Apolônio) ficaram muito espantados.
Apolônio deteve-se, como se procurasse ver o resultado de um acontecimento
duvidoso. Finalmente, exclamou: “Coragem, cidadãos de Éfeso, o tirano foi
morto hoje. Eu disse hoje? Por Minerva! Ele foi morto no mesmo instante em
que me interrompi.” Os habitantes de Éfeso julgaram que Apolônio tivesse
perdido a razão. Desejavam ardentemente que tivesse dito a verdade, mas
temiam que algum perigo lhes resultasse desse discurso. . . porém logo os
mensageiros vieram anunciar-lhes a boa nova e testemunhar em favor do
conhecimento de Apolônio. O assassinato do tirano, o dia e a hora em que foi
perpetrado, o autor, todos estes detalhes estavam perfeitamente de acordo com (pag.307) aqueles que os deuses lhes haviam mostrado no dia de seu discurso aos efesianos.” – Vida de Apolônio por Filostrato, traduzida por Chassang.
2º fato – Segunda visão de Swedenborg. – O segundo fato relaciona-se
com o maior vidente dos tempos modernos. Pode-se discutir a realidade
objetiva das visões de Swedenborg, mas não se pode duvidar de sua segunda
visão, atestada por inúmeros fatos. A visão que Swedenborg teve, a trinta
léguas de distância, do incêndio de Estocolmo, teve grande repercussão na
segunda metade do século XVIII.
O célebre filósofo alemão, Kant, mandou fazer uma investigação em Gothenburgo, na Suécia, cidade onde ocorreu o fato, e eis o que ele escreveu a uma de suas amigas: “O fato que segue pareceme ter a maior força demonstrativa e pôr fim a toda espécie de dúvida. Foi no ano de 1759. M. de Swedenborg, lá pelo fim do mês de setembro, num sábado, às quatro horas da tarde, voltando da Inglaterra, tomou a direção de Gothenburgo. M. William Castel convidou-o para sua casa, com um grupo de quinze pessoas. À tarde, às seis horas, M. de Swedenborg, que saíra, voltou ao salão, pálido e consternado, dizendo que naquele mesmo instante tinha grassado um incêndio em Estocolmo em Sudermaln e que o fogo se espalhava com violência na direção de sua casa... Disse que a casa de um dos amigos, cujo nome citou, já estava reduzida a cinzas, e que a sua própria estava em perigo. Às oito horas, depois de uma nova saída, disse com alegria: “Graças a Deus, o incêndio foi extinto na terceira casa antes da minha.” Nessa mesma noite, informaram disso o governador. No domingo pela manhã, Swedenborg foi chamado por este funcionário, que o interrogou a respeito. Swedenborg descreveu exatamente o incêndio, o começo, a duração e o fim. No mesmo
dia, a novidade se espalhou por toda a cidade, que muito se comoveu, tanto
mais porque o governador se ocupara do assunto e muitas pessoas se
preocupavam com bens e amigos. Na tarde de segunda-feira chegou a
Gothenburgo um estafeta que o comércio de Estocolmo havia despachado
durante o incêndio.
Nessas cartas, o incêndio era descrito exatamente da
maneira como fora contado. O que se pode alegar contra a autenticidade deste acontecimento? O amigo que me escreveu examinou tudo isto, não somente em Estocolmo mas por cerca de dois meses em Gothenburgo, mesmo. Ele conhecia ali as famílias mais importantes e pôde se informar completamente na própria cidade, na qual vive ainda a maioria das testemunhas oculares, devido ao pouco tempo decorrido (9 anos), desde 1859.” – Carta à senhorita Charlotte de Knobloch, citada por Matter. Vie de Swedenborg.(pag.308)
(11). Esta idéia ressalta logicamente do ternário humano e divino, da
trindade do microcosmo e do macrocosmo, que expusemos nos capítulos
precedentes. A correlação metafísica do Destino, da Liberdade e da
Providência foi admiravelmente deduzida por Fabre d'Olivet, em seu
comentário aos Vers dorés de Pythagore.
(12). Essa classe de homens corresponde aos quatro graus da iniciação
pitagórica, e constitui a base de todas as iniciações, até a dos franco-maçons
primitivos, que possuíam algumas migalhas da doutrina esotérica. – Ver Fabre
d'Olivet, Les Vers dorés de Pythagore.
(13). Montesquieu e Michelet são quase que os únicos autores a
notarem a virtude das esposas gregas. Nenhum deles mostrou a causa que
indico aqui.(Pag.309)
V
A FAMÍLIA DE PITÁGORAS. A ESCOLA E SEUS DESTINOS
Entre as mulheres que seguiam o ensinamento do mestre, haviauma jovem de grande beleza. Seu pai, natural de Crotona, chamava-se
Brontinos; ela, Teano. Pitágoras aproximava-se então dos sessenta anos.
Mas o grande domínio sobre as paixões e uma vida pura, consagrada
inteiramente à sua missão, haviam conservado intacta sua força viril. A
juventude da alma, aquela chama imortal que o grande iniciado haure
em sua vida espiritual e alimenta mediante as forças ocultas da natureza,
brilhava nele e subjugava a todos os que o cercavam.
O mago grego não estava no declínio, mas no apogeu de sua potência. Teano foi atraída para Pitágoras pela irradiação quase sobrenatural que emanava de sua pessoa. Grave, reservada, ela procurara junto ao mestre a explicação dos
mistérios, que amava sem compreender. Mas, quando à luz da verdade,
ao doce calor que a envolvia pouco a pouco, ela sentiu sua alma
desabrochar do fundo de si mesma como a rosa mística de mil pétalas,
quando ela sentiu que essa eclosão vinha dele e de sua palavra,
apaixonou-se silenciosamente pelo mestre, com um entusiasmo sem
limites e com um amor ardente.
Pitágoras não tinha procurado atraí-la. Sua afeição pertencia a
todos os discípulos. Sonhava apenas com sua escola, com a Grécia e
com o futuro do mundo. Como muitos dos grandes adeptos, tinha
renunciado à mulher para entregar-se todo à sua obra. A magia de sua
vontade, a posse espiritual de tantas almas que ele formara e que a ele
permaneciam ligadas como a um pai adorado, o incenso místico de
todos esses amores inexprimidos que subiam até ele, e esse perfume
delicado de simpatia humana que unia os irmãos pitagóricos – tudo isto
substituía para ele a volúpia, a felicidade, o amor.
Um dia, meditava sozinho sobre o futuro de sua Escola, na cripta
de Proserpina. Viu então aproximar-se séria e resoluta, a bela virgem,
com quem jamais falara em particular. Ela ajoelhou-se diante dele e
abaixou a cabeça,suplicando ao mestre –a ele que tudo podia –que a(pag.310)
livrasse de um amor impossível e infeliz, que consumia seu corpo e
devorava sua alma. Pitágoras quis saber o nome daquele a quem ela
amava. Após longas hesitações, Teano confessou que era ele, mas que,
preparada para tudo, se submeteria à sua vontade. Pitágoras nada
respondeu. Encorajada por esse silêncio, ela ergueu a cabeça e lançoulhe
um olhar suplicante, de onde escapavam a seiva de uma vida e o
perfume de uma alma ofertada em holocausto ao mestre.
O sábio ficou abalado. Seus sentidos, ele sabia vencer, sua
imaginação, ele lançara por terra. Mas, o clarão daquela alma penetrara
a sua. Naquela virgem amadurecida pela paixão, transfigurada pelo
pensamento de um devotamento absoluto, ele tinha encontrado sua
companheira e entrevisto uma realização mais completa de sua obra.
Pitágoras fez a jovem levantar-se com um gesto comovido, e Teano
pôde ver nos olhos do mestre que seus destinos estavam para sempre
unidos.
Por seu casamento com Teano, Pitágoras apôs o selo da
realização à sua obra. A associação, a fusão das duas vidas foi
completa. Um dia perguntaram à esposa do mestre quanto tempo é
necessário a uma mulher para tornar-se pura após ter tido contato com
um homem. Ela respondeu: “Se for com seu marido, ela já está na
mesma hora; se for com um outro, não ficará jamais”. Muitas mulheres
argumentarão, sorrindo, que para dizer estas palavras é preciso ser
mulher de Pitágoras e amá-lo como Teano.
Elas têm razão.
Não é o casamento
que santifica o amor. É o amor
que justifica o casamento.
Teano penetrou tão completamente no pensamento de seu marido que, após sua morte, ela tornou-se o centro da ordem pitagórica, e é citada por um autor grego como autorizada na doutrina dos Números. Ela deu a Pitágoras dois filhos: Arimneste e Telauges, e uma filha: Damo. Telauges tornou-se mais tarde o mestre de Empédocles e transmitiu-lhe os segredos da doutrina.A família de Pitágoras foi para a ordem um verdadeiro modelo.
Chamaram sua casa de o templo de Ceres e seu pátio de o templo das
Musas. Nas festas domésticas e religiosas, a mãe dirigia o coro das
mulheres e Damo, o coro das jovens. Damo foi, em todos os pontos,(pag.311)
digna de seus pais. Pitágoras havia-lhe confiado alguns escritos, sob a
proibição expressa de mostrá-los a quem quer que fosse fora da família.
Depois da dispersão dos pitagóricos, Damo ficou em extrema pobreza.
Ofereceram-lhe então uma elevada quantia pelo precioso manuscrito.
Porém, fiel à vontade do pai, ela sempre recusou entregá-lo.
Pitágoras viveu trinta anos em Crotona.
Em vinte anos este homem admirável adquiriu um poder tal que aqueles que o chamavam de semideus não exageravam. Seu poder era um prodígio. Nenhum outro filósofo obteve algo semelhante. Sua influência não se fazia sentir somente na escola de Crotona e em suas ramificações nas outras cidades das costas italianas, mas também na política de todos esses pequenos estados.
Pitágoras era um reformador
em toda a acepção da palavra.
Crotona, a colônia aqueana, tinha uma constituição aristocrática. Oconselho dos mil, composto das grandes famílias, exercia o poder
Legislativo e supervisionava o poder Executivo. As assembléias
populares existiam, mas com poderes restritos. Pitágoras, que desejava
para o Estado ordem e harmonia, não gostava da opressão oligárquica
nem do caos da demagogia. Aceitando a constituição dórica, ele
procurou simplesmente introduzir nela uma nova organização. A idéia
era ousada: criar, acima do poder político, um poder científico, com voz
deliberativa e consultiva nas questões vitais, tornando-se a chave do
poder, o regulador supremo do Estado. Acima do conselho dos mil, ele
organizou o conselho dos trezentos, escolhidos pelo primeiro mas
recrutados só entre os iniciados. Eram agora em número suficiente para
a tarefa. Porfírio conta que dois mil cidadãos de Crotona renunciaram à
vida habitual e reuniram-se para viver em comunidade, com as mulheres
e os filhos, depois de terem entregue seu patrimônio ao grupo.
Pitágoras queria
pois à frente do Estado um governo científico
menos misterioso, mas também tão elevado
quanto o sacerdócio egípcio.
O que ele realizou por um momento passou a ser o sonho detodos os iniciados que se ocuparam de política: introduzir o princípio da
iniciação e do exame do governo do Estado, e reconciliar, nesta síntese
superior, o princípio eletivo ou democrático com um governo (pag.312)
constituído pela seleção dos inteligentes e virtuosos.
O conselho dos
trezentos formou, então, uma espécie de ordem política, científica e
religiosa, da qual Pitágoras era o chefe reconhecido. O indivíduo
alistava-se nele mediante um juramento solene e terrível de sigilo
absoluto, como se fazia nos Mistérios. Essas sociedades ou hetairias
estenderam-se de Crotona, onde se achava a sociedade-mãe, até quase
todas as cidades da Magna-Grécia, exercendo uma poderosa ação
política. A ordem pitágorica tendia também a tornar-se a cabeça do
Estado em toda a Itália meridional. Tinha ramificações em Tarento,
Heracléia, Metaponto, Regium, Himero, Catânia, Agrigento, Síbaris e,
segundo Aristóxene, até entre os etruscos. Quanto à influência de
Pitágoras no governo destas grandes e ricas cidades, não se poderia
imaginar nada de mais elevado, liberal e pacífico. Em toda a parte onde
aparecia, ele restabelecia a ordem, a justiça, a concórdia. Chamado para
junto de um tirano da Sicília, conseguiu, com sua eloqüência, que ele se
decidisse a renunciar às riquezas mal adquiridas e abdicasse do poder
usurpado. Quanto às cidades, ele as tornava livres e independentes,
depois de terem estado subjugadas umas às outras. Tão benéfica era sua
ação que, quando ele chegava nas cidades, diziam: “Não é para ensinar,
mas para curar”.
A influência soberana de um grande espírito e de um grande
caráter, essa magia de alma e de inteligência excita invejas tanto mais
terríveis, ódios tanto mais violentos, quanto mais ela for inatacável. O
império de Pitágoras durava já um quarto de século. E o adepto
infatigável atingia a idade dos noventa anos, quando veio a reação. A
fagulha partiu de Síbaris, a rival de Crotona. Houve lá um levante
popular e o partido aristocrático foi vencido. Quinhentos exilados
pediram asilo em Crotona mas os sibaritas exigiram sua extradição.
Temendo a cólera de uma cidade inimiga, os magistrados de Crotona
iam atender àquela exigência, quando Pitágoras interveio. A suas
instâncias, recusaram a entregar aqueles infelizes suplicantes aos
adversários implacáveis. Diante desta recusa, Síbaris declarou guerra a
Crotona. Mas a armada de Crotona, comandada por um discípulo de
Pitágoras, o célebre atleta Mílon, derrotou completamente os sibaritas.
Seguiu-se o desastre de Síbaris, A cidade foi tomada, saqueada,
completamente destruída e transformada em deserto.
pag.313
É impossível admitir que Pitágoras aprovasse semelhantes
represálias. Elas violentam seus princípios e de todos os iniciados.
Contudo, nem ele nem Mílon puderam refrear as paixões desencadeadas
de um exército vitorioso, atiçadas por antigas invejas e superexcitadas
por um ataque injusto.
Toda vingança, seja de indivíduos, seja de povos, provoca um
choque em resposta às paixões desencadeadas. A Nêmesis desta foi
terrível. As conseqüências recaíram sobre Pitágoras, e toda a sua ordem.
Após a tomada de Síbaris, o povo pediu a divisão das terras. Não
contente de tê-la obtido, o partido democrático propôs na constituição
uma mudança que retirava do Conselho dos Mil seus privilégios e
suprimia o Conselho dos Trezentos, só admitindo uma única autoridade:
o sufrágio universal. Naturalmente os pitagóricos que faziam parte do
Conselho dos Mil opuseram-se a uma reforma contrária a seus
princípios e que solapava pela base a paciente obra do mestre. Os
pitagóricos já eram objeto daquele ódio surdo que o mistério e a
superioridade sempre excitam na multidão. Sua atitude política
sublevou contra eles os furores da demagogia, e um ódio pessoal contra
o mestre causou a explosão.
Um certo Cílon tinha-se candidatado outrora à Escola. Pitágoras,
bastante severo na admissão dos discípulos, recusou-o por causa de seu
caráter violento e voluntarioso. O candidato recusado tornou-se um
adversário rancoroso. Quando a opinião pública começou a voltar-se
contra Pitágoras, aquele organizou um grupo de oposição aos
pitagóricos, uma grande sociedade popular. Conseguiu atrair os
principais líderes do povo e preparou nas assembléias uma revolução
que começaria pela expulsão dos pitagóricos. Perante uma multidão
agitada, Cílon sobe à tribuna popular e lê trechos extraídos do livro
secreto de Pitágoras, intitulado: A Palavra Sagrada (hiéros logos). Os
textos foram desfigurados e deturpados. Alguns oradores tentam
defender os irmãos do silêncio, que respeitam até os animais.
Respondem-lhes com gargalhadas. Cílon sobe e torna a subir à tribuna,(p.314)
procurando demonstrar que o catecismo religioso dos pitagóricos atenta
contra a liberdade.
“Dizer isto é pouco, acrescenta o tribuno. Quem é esse mestre,
esse pretenso semideus, ao qual se obedece cegamente e basta que dê
uma ordem para que todos os seus irmãos gritem: ‘O mestre disse!’ Não
é ele o tirano de Crotona e o pior dos tiranos, um tirano oculto? De que
é feita esta amizade indissolúvel que une todos os membros das
hetairias pitagóricas, senão de desdém e de desprezo pelo povo? Eles
repetem sempre as palavras de Homero, ou seja, que o príncipe deve ser
o pastor de seu povo. Para eles, então, o povo não passa de um vil
rebanho. Sim, a própria existência da ordem é uma conspiração
permanente contra os direitos populares. Enquanto ela não for destruída,
não haverá liberdade em Crotona!”
Um dos membros da assembléia popular, animado por um
sentimento de lealdade, gritou: “Que se permita, pelo menos, a
Pitágoras e aos pitagóricos que se justifiquem perante nossa tribuna,
antes de condená-los”. Mas Cílon respondeu com altivez: “Esses
pitagóricos não vos roubaram o direito de julgar e decidir os negócios
públicos? Com que direito eles solicitariam hoje serem ouvidos? Eles
não vos consultaram quando vos despojaram do direito de exercer a
justiça! Pois bem, chegou a vossa vez de atingi-los sem ouvi-los!”
Retumbaram aplausos em resposta a estas saídas veementes; os espíritos
se exaltavam cada vez mais.
Uma tarde, quando os quarenta principais membros da ordem
estavam reunidos na casa de Mílon, o tribuno sublevou seus bandos.
Cercaram a casa. Os pitagóricos, e o mestre entre eles, barricaram as
portas. A multidão furiosa ateou fogo ao edifício. Trinta e oito
pitagóricos, os primeiros discípulos do mestre, a nata da ordem, e o
próprio Pitágoras pereceram; alguns nas chamas do incêndio, outros
mortos pelo povo. Arquipo e Lísis foram os únicos que escaparam ao
massacre (1)
Assim morreu aquele grande sábio, aquele homem divino, que tentara aplicar sua sabedoria ao governo dos homens. O assassinato dos pitagóricos foi o sinal para uma revolução democrática em Crotona e no (pag.315)
golfo de Tarento.
As cidades da Itália expulsaram os infelizes discípulos do mestre. A ordem foi dispersa, mas seus remanescentes espalharam-se
pela Sicília e pela Grécia, semeando por toda parte a palavra do mestre.
Lísis tornou-se o mestre de Epaminondas. Depois de novas revoluções,
os pitagóricos puderam voltar à Itália, sob a condição de não mais
constituírem um corpo político. Uma comovente fraternidade nunca
deixou de uni-los; consideravam-se uma mesma e única família. Certo
dia, um deles, na miséria e doente, foi recolhido por um estalajadeiro.
Antes de morrer, desenhou na porta da casa alguns sinais misteriosos e
disse ao hospedeiro: “Fica tranqüilo. Um de meus irmãos pagará minha
dívida”. Um ano depois, passando pelo mesmo albergue, um estrangeiro
viu os sinais e disse ao hospedeiro: “Eu sou pitagórico. Um de meus
irmãos morreu aqui. Dize-me o quanto devo por ele”. A ordem
sobreviveu durante duzentos e cinqüenta anos. Quanto às idéias, às
tradições do mestre, elas vivem até nossos dias.
A influência regeneradora de Pitágoras sobre a Grécia foi imensa,
exercendo-se misteriosa mas seguramente, em todos os templos por
onde ele passara. Vimo-lo em Delfos dar nova força à ciência
divinatória, reafirmar a autoridade dos sacerdotes e formar uma
pitonisa-modelo. Graças a essa reforma interior que despertou o
entusiasmo no próprio coração dos santuários e na alma dos iniciados,
Delfos tornou-se mais do que nunca o centro moral da Grécia. Isso se
comprovou durante as guerras médicas.
Trinta anos apenas tinham decorrido desde a morte de Pitágoras
quando o ciclone da Ásia, predito pelo sábio de Samos, veio estourar
sobre as costas da Hélade. Nessa luta épica da Europa contra a Ásia
bárbara, a Grécia, que representa a liberdade e a civilização, tem à sua
retaguarda a ciência e o gênio de Apolo. É ele que, com seu sopro
patriótico e religioso, agita e faz calar a rivalidade nascente entre
Esparta e Atenas. É ele que inspira os Milcíades e os Temístocles. Em
Maratona, o entusiasmo é tal que os atenienses acreditam ver dois
guerreiros, claros como a luz, combater em suas fileiras. Uns
reconheceram neles Teseu e Equetos; outros, Castor e Pólux.
Quando a
invasão de Xerxes, dez vezes mais formidável do que a de Dario,(pag.316)
avança pelas Termópilas e submerge a Hélade, é a Pítia que, do alto de
seu tripé, indica a salvação para os enviados de Atenas e ajuda
Temístocles a vencer a batalha de Salamina. As páginas de Heródoto
tremem com sua palavra ofegante: “Abandonai as residências e as altas
colinas da cidade construída em círculo..., o fogo e o temível Marte,
montado em um carro sírio, arruinarão vossas torres... os templos
vacilam, de seus muros goteja um frio suor, de seu topo corre um
sangue negro... Devereis sair de meu santuário. Um bosque vos servirá
de muralha e de inexpugnável proteção. Fugi! Voltai as costas aos
infantes e aos cavaleiros inumeráveis! Oh! divina Salamina! Serás
funesta aos filhos da mulher!” (2)
No texto de Ésquilo, a batalha começa por um grito que se
assemelha ao peã, o hino de Apoio: “Logo o dia, com os corcéis
brancos, espalhou sobre o mundo sua resplandecente luz. Nesse
instante, um clamor imenso, modulado como um cântico sagrado, elevase
nas fileiras dos gregos. Os ecos da ilha respondem com mil vozes
vibrantes”. É de se admirar, portanto, que, inebriados pelo vinho da
vitória, os helenos, na batalha de Micália, em face da Ásia vencida,
tenham escolhido como brado de reunir as palavras: Hebe, a Eterna
Juventude? Sim, o sopro de Apoio atravessa essas extraordinárias
guerras dos medas.
O entusiasmo religioso,
que produz milagres domina
os vivos e os mortos, ilumina os troféus
Deus solar disse pela voz do pontífice:
Por ordem do templo, a cidade é evacuada. Os habitantes se
refugiam nas grutas do Parnaso e só os sacerdotes permanecem à
entrada do santuário, com a guarda sagrada. A armada persa entra na
cidade silenciosa como um túmulo. Somente as estátuas olham-na
passar. Uma nuvem negra acumula-se no fundo do precipício. O trovão
ribomba e o raio cai sobre os invasores. Duas enormes rochas rolam do
cume do Parnaso e esmagam grande número de persas. Ao mesmo
tempo, clamores eclodem do templo de Minerva, chamas brotam do
solo sob os passos dos assaltantes. Diante destes prodígios, os bárbaros
apavorados recuam. Sua armada foge enlouquecida. O próprio Deus se
defendera (3).
Teriam estas maravilhas ocorrido, estas vitórias que a humanidade
conta como suas, teriam elas ocorrido se trinta anos antes Pitágoras não
tivesse surgido no santuário délfico para ali reacender o fogo sagrado? É
pouco provável. pag.317
Uma palavra ainda
a respeito da influência do mestre
sobre a filosofia.
Pitágoras fez entrar a moral, a ciência e a religião em sua vasta síntese.
Esta síntese não é senão a doutrina esotérica, cuja plena luz procuramos
encontrar no fundo da iniciação pitagórica. O filósofo de Crotona não
foi o inventor, mas o organizador luminoso destas verdades primordiais
na ordem científica. Portanto, escolhemos seu sistema como o quadro
mais favorável para uma exposição completa da doutrina dos Mistérios
e de verdadeira teosofia.
Aqueles que seguiram o mestre conosco terão compreendido que,
no fundo dessa doutrina, brilha o sol da Verdade-Una. Encontram-se
seus raios espalhados nas filosofias e nas religiões, mas o centro está lá.
O que será preciso para alcançá-lo? A observação e o raciocínio não são
suficientes. Necessita-se ainda, e acima de tudo, da intuição. Pitágoras
foi um adepto, um iniciado de primeira ordem. Possuiu a visão direta do
espírito, a chave das ciências ocultas e do mundo espiritual. Ele foi
buscar, pois, na fonte primeira da Verdade. E como a essas faculdades
transcendentes da alma intelectual e espiritualizada ele acrescentava a
observação minuciosa da natureza física e a classificação magistral das
idéias por sua elevada razão, ninguém melhor do que ele estava
preparado para construir o edifício da ciência do Cosmo.
Na verdade,
este edifício jamais foi destruído.
Platão, que tomou a Pitágoras toda sua metafísica, teve dele uma idéia global, embora a tivesse exposto com menos rigor e nitidez. A escola alexandrina ocupou-lhe os pavimentos superiores. A ciência moderna tomou-lhe o rés-do-chão e consolidou-lhe os fundamentos. Numerosas escolas filosóficas, seitas místicas ou religiosas habitaram diversos de seus compartimentos. Mas nenhuma filosofia jamais abrangeu o seu conjunto. É este conjunto que nos propusemos reencontrar aqui, em sua
harmonia e unidade.
318
(1). Esta é a versão de Diógenes de Laércio sobre a morte de Pitágoras.
Segundo Dicearco, citado por Porfírio, o mestre teria escapado ao massacre
com Arquipo e Lísis. Mas teria caminhado de cidade em cidade, até
Metaponto, onde se deixou morrer de fome no templo das Musas. Os
habitantes de Metaponto pretendiam, ao contrário, que o sábio, acolhido por
eles, tinha morrido pacificamente em sua cidade. Mostraram a Cícero sua
casa, sua cadeira e seu túmulo. É de se notar que, muito tempo depois da
morte do mestre, as cidades que mais perseguiram Pitágoras, por ocasião da
reviravolta democrática, reclamaram a honra de tê-lo abrigado e salvado. As
cidades do golfo de Tarento disputavam as cinzas do filósofo com a mesma
obstinação com que as cidades da Jônia disputavam a honra de serem a cidade natal de Homero. Estes fatos são discutidos no minucioso livro de M.
Chaignet: Pythagore et Ia philosophie pythagoricienne.
(2). Na linguagem dos templos, o termo filhos da mulher designava o
grau inferior da iniciação. A mulher significava a natureza. Acima havia os
filhos do homem ou iniciados no Espírito e na Alma, os filhos dos Deuses ou
iniciados nas ciências cosmogônicas e os filhos de Deus ou iniciados da
ciência suprema. A Pítia chama os persas de filhos da mulher, designando-os
pelo caráter de sua religião. Tomadas ao pé da letra suas palavras não teriam
sentido.
(3). “Vê-se ainda no recinto de Minerva”, diz Heródoto, VIII, 39. – A
invasão gaulesa, que teve lugar 200 anos mais tarde, foi repelida de maneira
análoga. Lá também forma-se uma tempestade, o raio cai várias vezes sobre
os gauleses, o solo treme sob seus pés. Eles vêem aparições sobrenaturais.
E o templo de Apolo fica incólume. Estes fatos parecem provar que os sacerdotes de Delfos possuíam a ciência do fogo cósmico e sabiam utilizar a eletricidade por meio de poderes ocultos, como os magos caldeus. – Vide Amédée Thierry, Histoire des Gaulois, I, 246.
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Fonte:
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