segunda-feira, 20 de junho de 2011

AS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO -Vitor Pedro Calixto dos Santos



 UMA LEITURA A PARTIR DA PSICOLOGIA ANALÍTICA
E SUA VISÃO DE PSICOLOGIA E RELIGIÃO.

Vitor Pedro Calixto dos Santos


"Noli foras ire, redi ad te ipsum
in interiore homine habitat veritas".
Santo Agostinho(i)

"Vocatus atque non vocatus, Deus aderit".
Escrito por Jung na porta de entrada de sua casa(ii)


1 - PSICOLOGIA E RELIGIÃO
- O fenômeno religioso
Para se fazer um estudo da relação existente entre psicologia e religião é preciso antes de mais nada aproximar-se do fenômeno religioso que se apresenta na atualidade marcado por tal complexidade que só pode ser compreendida a partir de uma visão interdisciplinar.

O fenômeno religioso apresenta-se hoje, no limiar do Terceiro Milênio, como uma explosão de religiosidades e espiritualidades provocando um novo interesse pela religião. Dada a complexidade do fenômeno do sagrado e das religiões é preciso estudá-lo segundo pontos de vista diversos a fim de se ter uma imagem mais clara, diferenciada e realista do que está acontecendo.1,2(1,2iii)

Hoje, o termo religião não se refere somente à "relação do ser humano com a divindade e a virtude pela qual tributa a Deus o culto e a adoração que lhe são devidos" mas o fato religioso, enquanto fenômeno humano que tem acompanhado o homem ao longo de sua história e que constitui o objeto da história das religiões e outras ciências atuais.
Assim, a religião sofre na modernidade e pós-modernidade uma crítica em várias níveis:(iv)

1 - A crítica ilustrada - a partir da Iluminismo e a predominância da razão.

2 - A crítica social
- que tem em K.Marx o seu expoente mais forte - a religião como ópio do povo

3 - A crítica antropológica - a religião como obstáculo fundamental para que os homens alcancem o seu ideal - I.Kant, L. Feurbach, F.Nietzsche na filosofia e S.Freud na psicologia. Jung, mesmo com a visão distinta de Freud, fará sua crítica à religião neste nível.

O fato religioso precisa ser estudado ainda sob outros ângulos como por exemplo: o diálogo inter e intra religioso, a fenomenologia da religião, a sociologia da religião e a filosofia da religião.

1.2 - Psicologia e religião
1.2.1 - Indicações históricas(v)
Coloca-se como data do surgimento da psicologia da religião como ciência o ano de 1882 quando G. Stanley Hall (1844-1924) publicou um estudo sobre educação moral e religiosa para crianças. 

No entanto é preciso remontar às fontes desta ciência nas relações entre psicologia e religião encontradas nas tradições religiosas como é o caso das Confissões de Agostinho (354-430); nos escritos dos filósofos como Jonathan Edwards (1703-1758). F. Schleiermacher (1768-1834), S. Kierkegaard ( 1813-1855), A.Ritschl (1822-1889), sendo que se pode chegar aos escritos socráticos e platônicos. Merece ainda destaque D.Hume ( 1711-1776) com a História natural da religião; L.Feuerbach (1804-1872) e A essência do cristianismo (1841).
Temos várias tradições (escolas):

1 - Tradição Anglo-americana - Francis Galton, G.Albert Coe, G.Stanley Hall, William James (1842-1910) e o seu conhecido As variedades da experiência religiosa. Estudos predominantes numa linha filosófica.

2 - Tradição Alemã - F.Schleiermacher com o conhecido Sobre a religião (1799);W.Wundt (1832-1920) com o Mito e Religião (1905-1909); S.Freud (1856-1939) com Ações obsessivas e práticas religiosas (1907) e Totem e tabu, Moisés e monoteísmo, O.Pfister (1873-1956); A.Adler, E.Fromm, Viktor Frankl. Jung tem amplos conhecimentos nesta tradição. Predomina a crítica psicanalítica da religião.

3 - Tradição francesa
- J.M.Charcot (1825-1893), P.Janet (1859-1847), T.Ribot (1830-1916), H.Delacroix (1873-1937), T.Flournoy (1854-1920) com Psicologia religiosa (1910). Predomina a crítica da religião como psicopatologia.

4 - Tradição italiana - Sante De Sanctis (1862-1935), Agostino Gemelli (1878-1959). Predomina a visão psicopedagógica da religião.

1.2.2 - Finalidade e influências da Psicologia da religião
A finalidade da Psicologia da religião é dentre as várias definições " a investigação das experiências, atitudes e expressões religiosas, observando-as e analisando-as com a ajuda das diversas técnicas às quais a toda a psicologia deve recorrer ( análise codificada de documentos pessoais, questionários e escalas de atitudes, testes projetivos, observações sistemáticas de comportamento, entrevistas, escalas de análise semântica e inclusive análise profunda mediante a aplicação de métodos clínicos."(vi)

Encontramos vários ramos neste estudo: a psicologia religiosa evolutiva, a psicologia pastoral, a psicologia da experiência religiosa que não são somente nomes distintos da mesma ciência mas apresentam finalidades diversificadas.
Vemos uma grande influências destes estudos nas mais variadas áreas das ciências que estudam o fato religioso, particularmente a teologia. No que toca à teologia há influências na área da dogmática, da teologia bíblica, da teologia espiritual, da teologia sacramental, da história da Igreja, da teologia da vida religiosa.

2 - PSICOLOGIA ANALÍTICA E RELIGIÃO
2.1 - O problema religioso em C.G.Jung (1875-1961)
Desde sua mais tenra infância, Jung sente-se marcado pelo problema religioso proveniente de sua família já que seu pai era pastor, bem como alguns de seus tios. Para ele este problema apresenta-se polarizado, de um lado, na dimensão objetiva da religião( dogmas, ritos, etc.) e de outro, na sua dimensão subjetiva (experiência religiosa - mistério, fascínio, etc.).(vii)

Esta dimensão religiosa vai acompanhá-lo por toda a sua vida e marcará de forma definitiva sua obra: para ele a problemática existencial formulou-se em imagens religiosas ( simbolismo).

É neste contexto simbólico-religioso que podemos entender a sua visão da psique: os arquétipos, o processo de individuação enquanto coniunctium oppositorum ( re-ligação), etc.

Toda esta visão de Jung assume grande significado no contexto cultural em que vive seja do ponto de vista da psicoterapia seja do ponto de vista da teologia acentuadamente racionalista em sua interpretação da revelação. Jung vai buscar nos humanistas do renascimento e, por conseqüência em Platão e neoplatônicos uma alternativa para o problema humano (religioso) do Ocidente.
Neste sentido, o seu caminho pode ser visto em três etapas:(viii)

1 - Primeiro momento - Jung está ligado à concepção freudiana de religião ( sublimação da sexualidade infantil)

2 - Segundo momento - marcado pela obra Símbolos da Transformação (1911-12) - a distinção entre instintos e arquétipos, sendo a religião colocação no mundo dos arquétipos.

3 - Terceiro momento
- marcado pela obra Psicologia e religião ( 1938) - a partir da análise de séries de sonhos de seus pacientes descobre neles uma característica comum - o fascínio, o terror, o mistério diante do numinoso (linguagem de R. Otto - O sagrado), que para Jung é imagem arquetípica da divindade, do deus interior ( o Self). A religião entendida como experiência religiosa pessoal ( contato com o Self) possui um autêntico valor psicológico no processo de individuação.

2.2 - Influências posteriores
A influência da visão junguiana da religião não se restringe à história das religiões ou à mitologia mas chega até a teologia e a hermenêutica bíblica - é uma renovação da teologia no seu todo.
Assim vemos sua influência em numerosos teólogos protestantes como Hans Schaer, Paul Tillich; católicos como Victor White, Teilhard de Chardin e ortodoxos como Paul Evdokimov.

Hoje percebe-se tal influxo a partir de uma farta bibliografia envolvendo a teologia onde se destacam as obras de John Dourley e de E.Edinger; a cristologia onde se destaca a obra de Hanna Wolff, a Sagrada Escritura onde se destaca Eugen Drewermann; e outras áreas como a mariologia, espiritualidade, teologia moral, liturgia e teologia sacramentária.

3 - AS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO
Tendo considerado o fenômeno religioso e sua relação com a psicologia, a visão de Jung sobre psicologia e religião que possuem íntima relação no processo de individuação passamos à leitura das Confissões de Santo Agostinho.
Lembramos ainda que a escolha dos tópicos da psicologia analítica parte da importância que eles possuem dentro das Confissões, sendo que existem outros aspectos que poderiam ser mencionados mas que aparecem menos no texto, e esta divisão dos temas é meramente didática já que eles se interpenetram como veremos a seguir.

3.1 - Santo Agostinho - dados biográficos
Nasceu em 13 de novembro de 354 em Tagaste, Numídia, filho de Patrício e Mônica, de quem recebeu a educação cristã ainda que ele receberia o batismo somente na Páscoa de 387.

Sua formação acadêmica deu-se em Tagaste, depois Madaura, e Cartago onde em 371 passa a viver com uma mulher e em 372 nasce o seu filho Adeodato. Em 373 depois de ler Hortensio de Cícero desperta para a filosofia e se torna maniqueu.

Desenvolve o seu trabalho como professor em Tagaste e depois em Cartago onde abre uma escola de retórica. Em 383 vai para Roma em busca de fortuna, mas ali fica pouco tempo sendo que em 384 vai para Milão como professor de retórica. Em 385 sua mãe vai a Milão para encontrá-lo e ficar com ele. Em Milão ele descobre a Sagrada Escritura a partir de São Paulo, da pregação do bispo Ambrósio e estuda os neoplatônicos a partir de Plotino.

Sua conversão se dá em 386 e ele renuncia à segunda amante, à noiva e à escola e refugia-se em Cassicíaco com sua mãe, seu filho e amigos. Na Páscoa de 387 é batizado por Ambrósio junto com seu filho e seu amigo Alípio. Logo após, estando em Óstia, esperando a partida para a África, sua mãe morre e ele fica em Roma, partindo para Cartago em 388. Em Cartago, vendo todos os seus bens e passa, com alguns amigos a viver vida monástica e a combater o maniqueísmo.

Em 396 torna-se bispo coadjutor de Hipona e depois bispo de Hipona com a morte do bispo Valério. Escreve as Confissões em 397 e de 399 a 419 exerce intensa atividade como pastor e escritor - escreve A Trindade neste período. Continua com o seu ataque aos maniqueus, aos donatistas e pelagianistas. Entre 413-425 escreve A cidade de Deus.
Morreu em Hipona no dia 28 de agosto de 430, deixando mais de 75 obras. 

3.2 - O que são as "Confissões"
Confissões é a obra-prima e a mais conhecida de Agostinho. Escrita dez anos depois de sua conversão, ela compõe-se de 13 livros. Inicialmente estava composta somente dos nove primeiros livros que são a sua autobiografia, depois foram acrescentados mais alguns livros: o livro X no qual Agostinho faz uma análise psicológica de seu estado de espírito no momento em que escrevia e uma análise e comentário dos primeiro versículos do livro do Gênesis ( livros XI-XIII).(ix)

3.3 - Análise a partir da psicologia analítica
3.3.1 - Imagem de Deus
O tema da imagem tem uma grande importância na psicologia junguiana sendo que é vista como imago termo usado para diferenciar a realidade objetiva de uma pessoa ou coisa, da percepção subjetiva de sua importância, sendo neste caso conseqüência da experiência pessoal, combinada com as imagens arquetípicas do inconsciente coletivo. E como tudo o que é inconsciente, são experimentadas como uma projeção.

Jung considera ainda as imagens arquetípicas ou primordiais( com relação a uma representação de um arquétipo na consciência) e as imagens anímicas que são representações em sonhos ou outra manifestação do inconsciente , da personalidade interior muitas vezes do animus ou da anima. Ainda com sentido às imagens tem grande importância no trabalho de conhecimento do inconsciente a imaginação ativa.

Nas Confissões são muito freqüentes as imagens que Agostinho faz de Deus todas as vezes que o invoca mostrando uma relação com o que vimos acima. Deus para ele é conhecido à medida que o homem se autoconhece e neste processo tem grande importância estas imagens que aparecem no texto das Confissões, caracterizadas segundo o momento em que ele estava vivendo.

3.3.2 - Tipologia junguiana
Falar da tipologia é falar de um sistema de categorias que explicam as diferenças entre as pessoas a partir de atitudes individuais e de padrões de comportamento.
A tipologia junguiana apresenta-se como algo original em relação aos modelos tipológicos anteriores e tem servido de modelo para outras aplicações tipológicas posteriores. 

Isto se deve ao fato de Jung considerar em sua tipologia o movimento da energia e o modo pelo qual habitualmente nos orientamos em nossa vida cotidiana. Esta sua visão distingue-se dos modelos que ele encontrou na literatura, na mitologia, na filosofia e na psicopatologia e que se baseavam nas observações de comportamento temperamental ou fisiológico.

Partindo de métodos empíricos Jung chegou a classificar os tipos em oito grupos diferentes: duas atitudes da personalidade que são a introversão e extroversão e quatro funções que são pensamento, sensação, intuição e sentimento, as quais podem agir, cada uma delas, de modo introvertido ou extrovertido.

Agostinho como tipo era pensamento introvertido e o sua conversão só foi possível com uma transformação psíquica, isto é, com conjunção dos opostos, neste caso a função inferior que é o sentimento e sua manifestação ao mundo pela extroversão.(x)

Ainda que Agostinho tivesse se aproximado da doutrina cristã de modo intelectual existia uma barreira inconsciente que lhe impedia de tornar-se cristão. Jung afirma que para aqueles poucos homens superiores que verdadeiramente se esforçam para seguir a Cristo, a conversão ao cristianismo consistia em sacrificar sua função superior, neste caso de Agostinho, o pensamento.(xi)
Neste sentido de sacrificar a função inferior, Jung dá como exemplo Tertuliano e Orígenes. (xii)

Agostinho sacrifica, na sua conversão, o seu intelecto, isto é, o seu orgulho e soberba e se descobre a si mesmo e a Deus pelo caminho do sentimento, descobre que Deus a quem buscava fora sempre estivera dentro dele. A subjetividade é o lugar por excelência para conhecer a Deus, interior a minha própria interioridade e superior ao máximo que existe em mim.

Assim, a concepção de Deus para Agostinho é de um Deus arquétipo, princípio e fundamento da subjetividade humana, reconhecível, por isto mesmo, a partir da própria interioridade do homem. Trata-se de um princípio que conjuga a suma transcendência e imanência antropológica radical.

Poderíamos resumir esta sua transformação ou conjunção dos opostos como diz Jung falando de sua renúncia ao magistério, sua vida monástica de um lado, mas de outro lado, sua inúmeras obras marcadas por esta visão psicológica da pessoa humana que hoje é considerada por muitos autores como uma visão das profundas para o seu tempo, pelo fato de ter sido chamado o pai da teologia ocidental e pelo princípio teológico que sintetiza a o encontro do homem com Deus, a transcendência e a imanência : intelligo ut credam , credo ut intelligam ( entendo para crer e creio para entender) - o mistério de Deus está no centro de seu pensamento e de seu sentimento.

3.3.3 - Complexos materno e paterno
O conceito de complexo ocupa um lugar central na psicologia junguiana. Para Jung o complexo é um grupo de idéias ou imagens carregadas emocionalmente:(xiii)

Estes complexos se acumulam ao redor de determinados arquétipos como "mãe", "pai" e por isto é que se pode falar em complexo materno, complexo paterno, complexo de poder, complexo parental ( quando envolve os pais), etc.
Os complexos em si mesmo, segundo a visão de Jung não são negativos, podendo ser muitas vezes os seus efeitos. 

O seu efeito negativo aparece normalmente como uma distorção de uma ou outra das funções psicológicas ( sentimento, pensamento, intuição e sensação). Neste sentido é que Jung fala que os complexos é que nos possuem e que se o indivíduo não tem consciência deles, age segundo eles e pode até identificar-se com eles, o que é uma fonte de neuroses.

Quanto à presença do pai, Agostinho fala pouca coisa, acentuando-se mais a sua ausência, mesmo quando presente fisicamente - ele não se preocupava com o filho e tinha para com Agostinho somente preocupações vãs. Agostinho fala ainda de seu caráter violento e de suas infidelidades conjugais.

No que se refere à presença da mãe, Agostinho dedica muito mais tempo, sobretudo porque ela aparece como aquela que lhe dá a educação cristã, que se preocupa com sua conversão e com seu batismo até o extremo. Ela vai a Milão para cuidar dele e lá arruma um casamento que lhe fosse digno convencendo-o a despedir sua concubina. Mostra o seu tipo centralizador em outros momentos como em sua casa, na viagem a Milão, na sua vida cristã em Milão, etc.

Pode-se notar que Agostinho sofreu as influências positivas de seu pai que o queria num lugar de destaque e de sua mãe com sua fé cristã inabalável. No entanto, sofreu também as influências negativas de seu pai de quem herdou sua natureza passional e a falta de uma presença paterna mais atuante. No que diz respeito à sua mãe, nota-se que ela com relação a ele uma atitude centralizadora de tal modo que ele teve seus sentimentos bloqueados e não pode estabelecer uma relação profunda com uma mulher. 

Mesmo vivendo vários anos com uma concubina, por estar preso á sua mãe não se decidiu a casar com ela. Foi sua mãe que lhe escolheu uma noiva de sua classe social e despediu a mãe de seu filho, se bem que, enquanto esperava pela idade de sua noiva, ele arrumou outra mulher. 

Sua mãe tinha um animus negativo e por isto se mostrava impositiva ao colocar sua opinião a seu filho ao qual se apegou já que não se saíra bem em seu casamento. Tão forte era sua imposição que o bispo precisou adverti-la a respeito.

Após sua conversão que acontece 
depois de uma ruptura com sua mãe
de quem ele foge, o seu sentimento, antes a ela ligado, 
volta-se para Cristo e para a Igreja.

3.3.4 - Sonhos
Os sonhos ocupam um lugar de destaque na visão e na prática da psicologia analítica. Jung, inicialmente partindo de Freud, mas depois dele distanciando-se vê nos sonhos uma função do Si-mesmo. Eles refletem sua influência e servem para compensar o estado consciente da pessoa, o que significa que ele questiona a nossa auto-imagem consciente. Isto ocorre quando o sonho traz para a consciência informações, ênfases ignoradas ou abrandadas pelas atitudes conscientes.(xiv)

Também para Agostinho o estudo dos sonhos é um instrumento importante para a compreensão da psique humana na relação com Deus e o mundo espiritual. Isto se deve ao fato de Agostinho possuir uma visão psicológica e epistemológica baseada num sofisticado dualismo psicofísico em que são considerados dois tipos de realidades essencialmente diversas: uma puramente corpórea ou física e outra não-corpórea ou mental cuja natureza provém do plano do espírito.

Por isto que sua visão psicológica da percepção é considerada das mais profundas do mundo antigo e podemos ver exemplos disto em Confissões. Para ele o homem é dotado de olhos externos que recebem e intermediam as impressões sensoriais, e de um olhar interior, que observa e lida com as realidades mentais recolhidas e armazenadas que formam a memória. Assim, por meio de visões, transes e sonhos entra-se em contato com um acervo de lembranças inconscientes e conteúdos autônomos, tendo-se acesso a um mundo chamado na época de domínio do espírito e que Jung chamou de psique objetiva.

Nenhum ser humano tem poder ou controle sobre esse mundo, os conteúdos dos sonhos e visões são tão objetivos e colocados diante do olhar interno quanto o é a experiência sensorial em relação aos olhos exteriores.
Importante é o sonho de Mônica quando Agostinho rejeitava os seus insistentes pedidos de conversão: 

"Nesse sonho, viu-se de pé sobre uma régua de madeira, e um jovem luminoso e alegre lhe foi sorridente ao encontro, enquanto ela estava triste e amargurada. Perguntou-se os motivos da tristeza e das lágrimas cotidianas, não por curiosidade, mas para instruí-la, como acontece muitas vezes. E respondendo ela que chorava a minha perdição, ela a confortou, aconselhando-lhe que prestasse atenção e visse que onde ela se encontrava aí estava também eu. 

Ela olhou e me viu diante de si, de pé, na mesma régua.
Quando ela me contou o sonho, tentei dizer-lhe que ela não devia perder a esperança de um dia vir a ser como eu. Mas ela me respondeu imediatamente, sem hesitação:
 
"Não, não me foi dito: '
onde ele está, aí estarás tu'. 
Mas sim: ' onde estás, aí estará também ele".

Confesso-te, Senhor, tanto quanto posso me lembrar, e nunca o escondi: mais do que o próprio sonho, abalou-me aquela tua resposta, dada por intermédio da solicitude de minha mãe. Ela não se perturbou diante de uma interpretação sutil, porém falsa, e logo percebeu o que devia ser visto e o que eu na verdade não tinha visto antes de ela contar. Por esse sonho, foi anunciada com antecedência, a essa piedosa mulher, para sua consolação na aflição presente, uma alegria que só teria muito tempo depois."(xv)

3.3.5 - Processo de individuação
O processo de individuação ocupa um lugar central dentro da psicologia junguiana como o processo de diferenciação psicológica que tem como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual.
A individuação é um processo que se dá a partir do ideal arquetípico da totalidade e depende da relação vital existente entre o ego e o inconsciente ,quando se dá o que Jung chama a função transcendente e que tem papel decisivo no processo de individuação.(xvi) 

Seu objetivo não é impor-se acima da psicologia pessoal, chegar à perfeição, mas sim, levar à uma consciência da unidade da realidade psicológica, o que apresenta de um lado as forças e limitações pessoais e por outro uma visão mais ampla da humanidade e do mundo.

O processo de individuação quando acontece de forma consciente leva à realização do self como uma realidade psíquica maior que o ego, mas este processo não se conclui de modo a se poder dizer que alguém está completamente individuado, o seu valor encontra-se exatamente naquilo que vai acontecendo durante o mesmo processo.

Como pudemos perceber pela análise já realizada acima das Confissões de Agostinho o que vai acontecendo em sua vida é este processo de individuação até chegar à consciência mais profunda que podia alcançar de si mesmo.
Textos que falam do despertar e da busca de realização:

"Desejando amar, 
procurava um objeto para esse amor, 
e detestava a segurança, as situações
isentas de risco. Tinha dentro de mim uma fome 
de alimento interior - fome de ti, ó meu Deus".
(xvii)

"Como se distribuem na mesma alma a força tão diferente de amores tão variados? Como se pode amar nos outros aquilo que se detesta e não se quer para si, sendo embora igualmente homens?".(xvii)

"Voltei-me então para a natureza da alma, mas a falsa opinião que tinha sobre as coisas espirituais impedia-me de ver a verdade.[...] Não conseguindo percebê-las na alma, julgava impossível ver o meu espírito".(xix)

"Depois de ter lido os livros dos platônicos, que me estimularam a procurar a verdade incorpórea, aprendi a descobrir teus atributos invisíveis através das coisas criadas, e compreendi, à custa de derrotas, qual a verdade que eu, imerso nas trevas, não tinha conseguido contemplar".(xx)

Um dos textos que conta o momento que antecede à sua conversão:
"Então, em meio à grande luta interior que eu violentamente travava no íntimo do coração contra mim mesmo, e transtornado na alma e na fisionomia, corro para Alípio...[...] 

...eu não falava como de costume, 
e minha fronte, minha face, meus olhos,
minha cor, o tom da voz, mais do que as palavras, 
me denunciavam o estado de espírito.[...]. 

Para aí fui ( para um jardim) levado pelo tumulto do coração, onde ninguém podia interferir na luta violenta que travava comigo mesmo, e cujo resultado nem eu mesmo conhecia, somente tu. Eu enlouquecia para recuperar a razão, morria para viver, e estava consciente do meu mal, sem saber do bem que viria pouco depois.[...]

.Eu fremia de violenta indignação contra mim mesmo, por não ceder à tua vontade e à aliança contigo, meu Deus, pela qual todos os meus ossos clamavam, elevando louvores aos céu".(xxi)

Um texto a respeito do seu estado no momento em que escreve as Confissões:
"Mas tu, médico de minha vida interior, mostra-me os frutos deste meu trabalho. A confissão de minhas faltas passadas - que perdoaste e esqueceste para me fazer feliz, transformando-me a alma pela fé e pelo teu sacramento - leva, a quem lê e ouve, a não se entregar ao desespero dizendo: não posso. Que esta confissão desperte nele o amor pela tua misericórdia e pela doçura da tua graça, que fortalece todos os fracos e lhe permite tomar consciência da própria fraqueza. 

Os bons têm prazer em ouvir as faltas passadas de que agora estão livres, não pelo fato de serem faltas, mas porque, tendo existido, já não existem. Senhor, meu Deus, a quem todos os dias a minha consciência se confessa, mais confiante na tua misericórdia do que na sua inocência, mostra-me qual o fruto desta confissão, feita também aos homens na tua presença, não do que fui, mas do que sou agora. Compreendi e já recordei o fruto da confissão do passado. 

Mas muitos, que me conheçam quer não, desejariam saber o que sou agora, no próprio momento em que escrevo minhas confissões. Já ouviram falar de mim, mas seus ouvidos não me auscultam o coração, onde, de fato sou verdadeiramente eu mesmo. Desejariam, pois, ouvir-me confessar quem sou no meu íntimo, que o olhar, os ouvidos, a intuição não podem atingir."(xxii)

"Portanto, quando confessamos nossas misérias e reconhecemos tua misericórdia para conosco, manifestamos o nosso amor por ti, a fim de que leves a termo a nossa libertação que iniciaste, e deixando de ser infelizes em nós, sejamos felizes em ti...".(xxiii)

"...fizeste-nos para ti,
e inquieto está o nosso coração,
enquanto não repousar em ti."

Confissões I,1
(i)Agostinho, Liber de vera religione, XXIX, 72 - Não vá para fora, volte-se para si mesmo, no interior do homem habita a verdade.

(ii)Chamado ou não chamado, Deus se fará presente

(iii)Como exemplo destas abordagens interdisciplinares podemos citar algumas publicações resultantes de Congressos, Semanas de estudos, Seminários, etc.: Cleto. Caliman, (Org.). A sedução do sagrado. O fenômeno religioso na virada do milênio. Petrópolis, RJ. Vozes.1998. que apresenta os estudos da Semana de Estudos promovida entre os dias 27 3 31 de outubro de 1997,pelo Instituto Santo Tomás de Aquino-ISTA- Centro de Estudos Filosóficos e Teológicos dos Religiosos de Belo Horizonte, MG.; Ênio José da Costa Brito; Gilberto da Silva Gorgulho, (Org.). Religião Ano 2000. São Paulo. CRE-PUC-SP. Edições Loyola, 1998.que apresenta estudos dos professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


(xi)Importante este texto de Agostinho, Confissões VI,6 - "Desejava ter, em relação a fatos não demonstráveis, a mesma certeza com que dizia que sete mais três são dez. Não era eu tão insensato a ponto de julgar que mesmo essa verdade fosse incompreensível; queria ter, a respeito de todo o resto, a mesma compreensão que tinha sobre isso, tanto em relação às coisas corpóreas não atingidas pelos sentidos, quanto em relação às espirituais, que eu só podia conceber em termos materiais. Só a fé podia curar-me: desse modo, os olhos da minha inteligência já purificada, se dirigiriam à tua verdade imutável e perfeita". É uma antecipação de seu princípio: intelligo ut credam, credo ut intelligam ( entendo para crer, creio para entender).

(xiii)Um estudo atual e aprofundado sobre este tema pode ser visto em Verena Kast, Pais e filhas, mães e filhos. Caminhos para auto-identidade a partir dos complexos materno e paterno, São Paulo, Edições Loyola, 1997

(xiv)Existe uma vasta literatura sobre os sonhos e seu significado dentro da psicologia analítica, particularmente as várias obras de Marie-Louise von Franz sobre o assunto. Nos serviremos somente daquelas que tocam diretamente o tema da psicologia e da religião: Marie-Louise von Franz, Sguardo dal sogno, op.cit.; Antonio Gentili, Anna Maria Vacca, Te i nostri cuori sognino. Per un´arte cristiana del sognare, Collana Dentro il mistero 3, Milano, Editrice Àncora, 160 p.; Morton T. Kelsey, Deus, sonhos e revelação, Interpretação cristã dos sonhos, Coleção Amor e Psique, São Paulo, Paulus, 1996, 466 p.; James A. Hall, Sonhos, símbolos religiosos do inconsciente, São Paulo, 

Fonte:
SYMBOLON-EstudosJunguianos
http://www.symbolon.com.br/artigos/asconfissoes.htm

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