Rev. E. J. Burton, Londres, Inglaterra
(Reimpresso de O Católico Liberal, fevereiro de
1984)
O autor
nos dá um valioso insight a respeito do verdadeiro significado do ágape e do
uso desta palavra na famosa passagem de São Paulo em Coríntios I, 13. Segue
apresentando o ágape como um poder cósmico tangível operando nos limites de
nosso conhecimento e percepção, não somente na teologia mas ainda na ciência e,
em verdade, através de muitos aspectos de nossas vidas no mundo moderno. Ainda
que alguns pontos tenham sido alterados desde sua publicação original, os
princípios e idéias expostos pelo Bispo James permanecem válidos até hoje. O
Bispo James faleceu em 1996.
O termo
ágape é uma palavra chave no Novo Testamento e no pensamento Cristão.
Usualmente traduzido como "amor", necessita porém cuidadosa
consideração e definição. A palavra "amor" é constante e
convencionalmente ligada a asserções tais como "Deus é Amor", um
slogan tão persistente e, acredito, inconscientemente reiterado que, a menos
que se medite com profundidade no que estamos querendo dizer com
"amor", chega quase a ser uma blasfêmia.
Assim, na
exposição definitiva de São Paulo, a antiga tradução de ágape em
"caridade", e a moderna em "amor", são ambas mal-entendidos.
Esforços bem intencionados de definir ágape como "amor fraternal",
algo distinto do eros emocional e do amor sexual, levaram apenas a maiores
dilemas e ao enfraquecimento da força do ágape. É claro que o erudito,
consultando seus grossos volumes elaborados em torno do ágape e do eros,
amparado também pela contribuição da teologia Cristã, formará sua própria
opinião equilibrada e perceberá alguma realidade significativa na palavra para
contrabalançar o sentimentalismo e emocionalidade populares. Mas e quanto à
massa da humanidade?
O
significado real de ágape
Podemos
iniciar ouvindo o que C. H. Turner, FBA, Doutor em Literatura, LID, Deão da
Irlanda e Professor de Exegese na Universidade de Oxford tem a dizer.
(Mencionamos seus títulos para evidenciar a sua autoridade). Considerando a
frase usualmente transcrita como "Meu Filho bem-amado", Turner sugere
que se a traduzisse como "Meu único Filho". E acrescenta: "Quase
todos os tradutores erraram... não prestando atenção suficiente ao significado
da palavra agapetos no sentido clássico e na versão dos Setenta.
Ágape como 'amor'
é praticamente uma criação da Igreja Cristã pois,
ainda que
esporadicamente encontrada nos Setenta,
não o é de modo algum do grego
clássico.
O verbo e o adjetivo verbal agapetos são ambos clássicos, mas 'amar'
e 'amado' não estão em seus significados próprios" (grifo meu). Turner
traça o uso da palavra desde "aquele com o qual te contentarás" até
"único", "essencial no relacionamento".
Assim é
usada como "filho único". Aristóteles, na Ética, menciona as despesas
de um pai para celebrar a chegada da maioridade de um agapetos ou "filho
único". Mais precisamente, na Retórica, nota que os advogados deveriam
distinguir numa ação legal entre o homem que havia perdido um olho (mantendo o uso
do outro), e o homem que só possuía um olho (tendo perdido o uso do outro) e
então perde este seu remanescente - seu agapetos, o qual lhe é absolutamente
necessário para ver.
Aqui, é
claro, Turner está criando uma controvérsia, na qual não estou interessado
agora, em torno da unicidade do Mestre Jesus. Mas o que ele diz sobre as
origens dos termos agape e agapetos é absolutamente relevante para nosso
entendimento destas palavras, que hoje somos forçados a traduzir como
"amor", ou (como sabiamente em algumas versões modernas) a deixá-lo
em sua forma original como agape. "Agape é paciente e é benigno, agape não
inveja nada...", "Agape suporta todas as coisas... almeja todas as
coisas...", "Se não temos agape, não somos nada", "Mesmo
que possuíssemos todo o conhecimento, todos os poderes de profecia, toda a
ciência; mas sem agape tudo é inútil". E o grande clímax:
"Agora
subsistem a fé,
a esperança, e agape.
Mas a maior de todas é agape."
"Mas
tudo isso é 'mistério'. Pois tudo que percebo, percebo como reflexos num
espelho. Mas um dia eu conhecerei, assim como sou conhecido". Agape o
revelará. Esta qualidade única liga todas as criaturas e as liga ao Divino, e
no curso das idades traz tudo à fruição. Leia-se pois Coríntios I, 13 em
diante, substituindo "amor" por agape. Sim, é um uso magnífico para a
palavra "amor", ainda que sob constante ameaça de degenerar em
emoções sentimentais e idealismo que, embora, "amável", não soa
possível de ser posto em prática. Leia-se com agape, descartando as belezas
convencionais e ritmos da Versão Autorizada, e se torna algo de autoridade e
poder, poder que, embora misterioso, possui força divina, e a palavra em si
mesma, a despeito de suas vogais curtas, tem presença marcante em sua
articulação incisiva. Isso, é claro, não é estritamente relevante - mas é útil
em nossa apreciação.
Depois
Turner nos lembra, por citações do Novo Testamento e escritos posteriores, das
conotações essenciais, particulares e originais da palavra. No uso constante e
crescente da palavra agape pelos primitivos Cristãos, há um persistência
(Turner cita o apelo de Athanasius pela correta compreensão do termo) na
qualidade do seu "amor", a relação única e indispensável entre si e
com Cristo. Como são um com Ele, igualmente são um com o Pai e com o Espírito
Santo, uma relação que transcende todas as outras relações. Isto em verdade
pode santificar e revigorá-las. Quando o idoso João repete sempre e sempre
"Criancinhas, amai-vos uns aos outros", ele não está se referindo,
exceto secundariamente, a gentileza, consideração, lealdade e sentimento, mas a
uma forte e singular relação de unidade, que os liga pelo dever, e intermedia o
poder e a força do divino para fazer frente a todos os perigos e crueldades do
mundo. É uma base universal e essencial para a sobrevivência e realização
enquanto vida e ser. Como São Paulo diz, em efeito, não se pode ser realmente a
menos que sejamos em agape.
Um rio de
luz
Tendo
isso em mente, num relance vemos as conversações comuns da Igreja brilhar com
uma luz penetrante. "Criancinhas, amai-vos uns aos outros" - cada um
de vocês está em uma relação especial e viva com todos os outros. Outra vez,
pelos escritos eloqüentes de Paulo, cujas epístolas são os primeiros documentos
Cristãos que possuímos, conhecemos a linguagem e os atos da primitiva
comunidade Cristã, culminando na magnífica epístola aos Coríntios (capítulo I,
13), na qual agape se torna a vida cósmica, a única essencial que tudo une.
Aqui há um rio de luz que transforma todo nosso entorno, resolve os
questionamentos e traz uma dinâmica e energia novas, quando o significado de
agape é doravante mantido firme na mente.
Posso
repetir estas palavras?
"Ainda que eu tivesse o dom da profecia
e
entendesse todos os mistérios e toda a ciência;
ainda que possuísse toda a fé
de modo que pudesse remover as montanhas,
se não possuir agape" - o que
segue? - "não sou nada".
Ou de
novo,
"Agape nunca falha;
mas onde quer que surjam profecias elas
falharão;
onde quer que falem as línguas, elas cessarão;
onde quer que haja
conhecimento, ele se esvairá.
Porque nós sabemos parcialmente e profetizamos
parcialmente".
Quão clara e absolutamente contemporânea declaração para
nossa consideração de hoje, mirando a futura consumação de todas as coisas,
"quando aquilo que é perfeito chegará e aquilo que é parcial será
desprezado..."
Devemos
ter esperança. Devemos ter fé. Mas acima de tudo devemos ter em nós agape. Esta
é a força coesiva dentro da natureza das coisas, é o poder essencial e a vida.
Isto é o que interliga tudo com a profunda corrente de "amor", a
essência oculta de todo o ser e a realização plena deste ser.
Assim,
por "amor" formamos nossas guildas, nossos grupos de estudo, nossas
sociedades e irmandades, que encontram coroamento na congregação adorante,
unida com o divino, a fonte vital de nossa associação humana. Aqui jaz, em
essência, a justificação para toda organização nacional e política.
Quando o
verdadeiro agape se ausenta da política e das unidades políticas, sociedades,
países, sobrevêm-lhes o embrutecimento e as crueldades de suas guerras. Como os
maiores pensadores têm percebido, a única sociedade que poderia florescer até a
realização completa de todos os seus membros é a teocracia, na qual sobre a
terra buscamos espelhar a natureza divina, e embebida do poder e força unificante
de agape. Isto, mais uma vez, é o essencial.
No trabalho comunitário, a
liturgia,
nós entramos na corrente da vida,
o movimento e a dança da vida
vivificada
pela energia de ÁGAPE.
Do mesmo
modo, em nossas relações humanas, pode haver permanência e completude apenas
quando agape existe e concede aquela realidade unificadora mais profunda.
Em todo
amor humano (eros), a não ser que seja sustentado além do desejo e além da
auto-indulgência por agape, não pode perdurar nenhuma "realidade".
Lermos Coríntios I, 13 num casamento é fútil se associarmos "amor"
meramente com amor humano no sentido comum. O que aquele grande capítulo está
dizendo é que em toda afeição humana, toda atitude, toda qualidade, deve haver
a força diretriz de agape, o amor divino, a ultérrima e eterna qualidade do
ser.
II
A
Dinâmica Cósmica
Ágape,
parece, é aquela corrente interna que leva à expansão, ao desenvolvimento, à
fruição e ao progresso no processo cósmico. Quando os invasores bárbaros estão
a poucos quilômetros de um centro cultural, detêm-se e permanecem ali por
muitos anos até que tenham sido trazidos a um entendimento dos valores que, num
avanço posterior, os fazem respeitar e cultivar o trabalho daquele centro. Tal
foi o caso em Gladstonbury, na idade das trevas. Quando os Saxões chegaram,
eles próprios foram convertidos ao Cristianismo. Foi a partir daquele centro
que a Inglaterra, sob Dunstan, desenvolveu-se educacionalmente, através da
cadeia de centros monásticos que ele organizou.
Um
exemplo da ciência: a temperatura crítica e as condições para o surgimento da
vida na Terra ficam dentro de uma margem tão estreita que as chances de suas
criaturas se estabelecerem (e se manterem) é extremamente reduzida. Ainda assim
esta margem foi preservada. É em estágios críticos da expansão do cosmos que
este impulso extra aparece, um fator inédito e imponderável, que age em prol
deste progresso e o garante.
Ágape é o princípio da incerteza,
que trabalha nos
componentes mensuráveis,
ações e reações, da energia - o imensurável dentro do
mensurável.
Pode ser
discutido que num Universo tão vasto como este em que existimos, a infinidade
de acasos possíveis garantirá, ao menos ocasionalmente, que o mais imprevisível
dos resultados seja encontrado. Que mesmo uma chance em um milhão emergirá como
realidade palpável.
Mas
estamos lidando com eventos na perspectiva relativamente pequena de nosso
próprio planeta. E sua limitada história, e com experiências humanas dentro
desta moldura. Para a maioria de nós, a comprovação desta realidade extra-dimensional
ocorre dentro do período de nossas próprias vidas. O que chamamos de
"coincidências" nos atinge com freqüência suficiente para que não
ignoremos o criativo diálogo de eventos e experiências. Há, portanto, uma
qualidade coesiva adicional e mais sutil que modela nossas vidas, de vários
modos - se nos dispusermos a prestar sensível atenção a ela.
Os
limites do conhecível
A
dificuldade em expressarmos nossas apreensões sobre tais limites do conhecimento
e do pensamento humano foram brilhantemente descritas num artigo fundamental do
Professor de Física da Open University, Russell Stannard (1983). Cito:
"O
que é a luz?
O que é matéria?
Estas são questões cruciais
para uma compreensão
científica do mundo.
Ou não são?
Certamente são questões conhecidas demais para
terem respostas simples. Na verdade, uma experiência recentemente levada a
termo chegou ao ponto de indicar que elas não podem ter respostas de modo
nenhum. Se esta interpretação é correta, a ciência não é o que pensamos dela:
alguém poderia dizer que isso começa parecer um pouco a teologia. Foi
descoberto que a luz, por exemplo, se comporta como uma onda e também como uma
partícula. Ninguém pode conciliar estes conceitos opostos. Niels Bohr divulgou
nesta ocasião sua tese que marcou época (a Teoria dos Quanta - N. do Ed.).
A
ciência não dos diz mais nada sobre o mundo como ele é
- já não pode responder
perguntas como 'O que é...?'
Só pode nos mostrar os caminhos pelos quais
interagimos com o mundo. A extensa controvérsia que se desencadeou teve
Einstein no campo adversário. Mais e mais (cientistas), entretanto, vieram a
compartilhar da concepção de Bohr. Bohr prosseguiu dizendo que nunca teríamos a
capacidade de falar sobre nossas interações; este é o limite do
conhecível."
O que jaz
além, palavras não podem "definir". A habilidade de falar
significativamente de nossas interações não tem apenas uma restrição
temporária. É a fronteira do que pode ser conhecido.
Em
teologia, diz o Professor Stannard, somos novamente confrontados com paradoxos
como a Trindade na Unidade e a Unidade na Trindade, Jesus como Perfeito Deus e
Perfeito Homem, e outros semelhantes. Tentativas de expressão sem paradoxos
empobrecem a experiência. Nós estamos nos limites da expressão.
Gregorius
Palamas, XIV Arcebispo de Tessalônica, enfrentando o paradoxo, concluiu que
Deus é absolutamente incognoscível em sua "essência". Ele é
cognoscível por Suas "energias", reveladas através das Três Pessoas e
sua atividade, em Sua interação conosco e com Seu cosmos. Esta visão (expressa
com mais profundidade e erudição) se tornou justamente a aceita em toda a
Igreja Oriental. Alinha-se com o pensamento expresso tão cuidadosamente por
Dionísio: não podemos dizer o que Deus, a totalidade e o poder criador vivo, é.
Podemos somente dizer o que não é, e sobre suas interações conosco.
Esta
interação é total. "N'Ele nós vivemos e nos movemos e temos nosso
ser". Mas quando tentamos compreender este fundamento, seja de modo científico
ou naquela abordagem mais completa que chamamos religião, então "podemos
achar necessário, como na física moderna, dar um passo atrás em relação aos
objetos de nossa pesquisa, seja ele Deus ou Jesus, ou luz e matéria, e nos
contentarmos em falar nas interações com aqueles objetos" (grifos meus).
Por que
teria eu aparentemente me desviado da consideração do agape? Porque agape
também está nos limites do conhecimento. Porque indica um relacionamento, uma
interação, que é fundamental e essencial, derivando da própria essência do
divino ser e da essência da harmonia cósmica e da vida. É o sine-qua-non.
Há um
segundo propósito em minha aparente digressão - chamar a atenção uma vez mais
para a inadequação da comunicação humana através das palavras. Sim, temos o dom
da fala, o poder potencial da palavra. Sim, é nosso necessário meio de
comunicação e expressão; por nossas repetidas tentativas de definir, nos
acercamos da "verdade".
Mas
jamais conclusivamente. O material básico onde alguns filósofos constroem seus
argumentos é indefinível. Suas estruturas verbais mais e mais complexas nunca
poderão atingir seu objeto. Sim, eles estão eternamente desvendando (talvez)
alguma faceta oculta da realidade assim como ela se apresenta a eles. Mas assim
como se pode olhar sobre livros recentes e resenhas, tão perspicazmente
críticas, anulando-se mutuamente em um reboliço de ingenuidades verbais, também
se pode olhar além e acima em direção aos limites futuros da vida. Lembramos
estudantes de lingüística frustrados e, com eles, concluímos que quando tudo
está dito e feito, a linguagem da poesia reflete mais verazmente nossas
apreensões e com maior inteireza comunica-se com o "real" - o que
quer que isso possa ser.
E dos
fatores em ação que percebemos dentro das energias da vida cósmica, agape nos
alinha com algumas interpretações das coisas "como elas são" e da
vida onipresente que pode ser expressa apenas por contradições aparentes e
paradoxos. "Todas as coisas concorrem para o bem para os que amam a
Deus". Aqui está a energia formadora, a "energia viva" que
sobrepuja e transcende o mundo físico.
Tradução:
Ricardo Frantz .
Li-Sol-30
Fonte:
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