JOSÉ GUILHERME DANTAS LUCARINY
CAPÍTULO 1 – O PROJETO ARQUEOLÓGICO
Enraizamento na epistemologia
Sobre a primeira fase da trajetória de Michel Foucault, Roberto Machado observa que “a história arqueológica (…) produziu uma série de deslocamentos metodológicos para dar conta das ciências do homem, um campo em que os métodos epistemológicos têm se mostrado ineficazes ou insuficientes”.
Eis que a trajetória da arqueologia de Foucault advém de uma posição frente à história epistemológica tal como praticada na França a partir de Bachelard, num progressivo distanciamento das teses epistemológicas. Dessa forma, veremos que essa arqueologia desdobra-se em novos horizontes de análise com a genealogia do poder.
A epistemologia, aqui entendida como pensamento crítico da ciência, tem, na França, terra de Foucault, uma grande tradição. Foucault, a sua história o demonstra, teve sua origem ligada à ciência. Inicialmente estudioso da psicologia, e particularmente bem informado sobre os problemas referentes à psicopatologia e à psicopatologia social, sofre influência de dois pensadores franceses das ciências: Gaston Bachelard (1884-1962) e Georges Canguilhem (1904-1995). Nesses, são as idéias de descontinuidade e historicidade que dominam na interpretação das ciências bem como a necessidade de conceber essa história como uma psicologia da conquista progressiva das reações em seu conteúdo atual, como a mise en forme de genealogias lógicas e, para empregar uma expressão de Bachelard, como um recenseamento de “obstáculos epistemológicos superados”. A perspectiva em que se situam Bachelard e Canguilhem não aceita a existência de critérios de cientificidade válidos universalmente para todos os tempos; como também não aceita a existência de um tempo único e homogêneo da ciência. Isto quer dizer que uma resposta à questão dos critérios de cientificidade não deve ser dada em um nível geral e abstrato, assinalando as condições indispensáveis à elaboração de qualquer conhecimento científico. Não cabe à filosofia enunciar a verdade da ciência. Fazer epistemologia, elucidar o problema do conhecimento científico, não é definir a priori as condições de possibilidade de todo conhecimento possível; é delimitar o que caracteriza a operação científica através da investigação da produção de conhecimentos de uma determinada ciência; é refletir filosoficamente sobre as ciências, privilegiando a questão da formação de seus conceitos.
Já em Foucault não há propriamente uma questão epistemológica; o problema da ciência remete a seu exterior, às condições de possibilidade do surgimento de seu discurso. Muito embora não incompatível com a epistemologia, o deslocamento de Foucault com relação ao problema da ciência remete para uma preocupação com o “saber”, numa preocupação com a formação dos conceitos, uma busca das continuidades e descontinuidades.
Mas talvez esta perspectiva nova de Foucault se deva a outra grande influência: Nietzsche. Foucault foi leitor de Nietzsche e assim facilmente se denuncia pelo “desinteresse por uma obra sistemática, pelo primado da relação sobre o objeto, sobre o papel relevante dado à interpretação, pela importância dos procedimentos estratégicos e pela absorção da noção de genealogia”
Ora, a tese fundamental da epistemologia francesa é a de que a filosofia das ciências possui uma dimensão histórica. Isto se dá porque a ciência coloca uma questão fundamental para a filosofia: a questão da racionalidade (grifo nosso). Mas a razão tem uma história e, assim sendo, só a história das ciências é capaz de demonstrar o lugar próprio do conhecimento e da verdade e indicar o seu itinerário. É, pois, a epistemologia uma filosofia que tematiza a racionalidade através da ciência, por ela considerada atividade racionalista por excelência. Será, portanto, a partir da epistemologia que se deve analisar o deslocamento metodológico operado por Foucault. O ponto de chegada é a “arqueologia do saber”, resultado de um processo também histórico, em que, para se definir, procurou sempre se situar com relação à epistemologia. Depois disso, novos horizontes de análise se abrem com a “genealogia do poder”.
Segundo nos aponta Roberto Machado, o pensamento de Gaston Bachelard é voltado para a problemática da racionalidade porém no sentido de desclassificar toda pretensão de formular um racionalismo geral. Configura-se assim um racionalismo regional e a inexistência de critérios de racionalidade válidos para todas as ciências. Trata ele de uma investigação minuciosa de várias “regiões de cientificidade”, na pesquisa da física, da química, das ciências da natureza (região da natureza ou da matéria).
Georges Canguilhem, por sua vez, retomando Bachelard, interessa-se pela biologia, anatomia e fisiologia, ou seja, pelas ciências da vida, uma outra região de cientificidade.
A arqueologia de Foucault, por fim, comporta análises centradas na questão do homem, numa grande pesquisa sobre a constituição histórica das “ciências do homem” na modernidade, caracterizando uma nova região, uma região ao lado das regiões da natureza e da vida. É, todavia, Georges Canguilhem o epistemólogo de quem Foucault se sente mais próximo; ciências da vida versus ciências do homem, eis a proximidade.
Mas eis que a démarche arqueológica de Foucault não se norteará mais pelos mesmos princípios que orientam a história epistemológica. Aqui, a arqueologia assume em suas análises da racionalidade uma posição bastante diferente: enquanto a epistemologia, pretendendo estar à altura das ciências (postula que a ciência ordena a filosofia, como diz Bachelard) a arqueologia, reivindicando sua independência com relação a qualquer ciência, pretende ser uma crítica da própria idéia de racionalidade (grifos nossos).
Assim, abandonando a questão da cientificidade, que define propriamente o projeto epistemológico, a arqueologia realiza uma história dos saberes de onde desaparece qualquer traço de uma história do progresso da razão (grifo nosso). Trata-se de investigar as condições de existência das ciências do homem enquanto saberes através da análise do que dizem, como dizem e por que dizem. Essa démarche implicará no abandono da ciência como o objeto privilegiado, na conservação da exigência filosófica de realizar uma análise conceitual, e não factual, do discurso. Desaparecem assim as categorias de ciência e epistemologia e aparece um novo objeto: o saber ¾ e um novo método, a arqueologia.
Dentro da arqueologia mesma, entretanto, observa-se uma trajetória. O próprio termo “arqueologia” (a história realizada por Michel Foucault das histórias das idéias) sofre modificações conceituais importantes a ponto de, em cada livro, ter sido definido de modo diferente. Daí a idéia de uma trajetória, como o deslocamento de uma região do conhecimento para o saber.
A arqueologia distingue-se da epistemologia em função das propriedades intrínsecas dos objetos por ela estudados. Será a originalidade da psiquiatria e da medicina que exige a especificidade de um método capaz de esclarecer e reconstituir a sua história. Será a diferença dessas disciplinas com relação aos conhecimentos propriamente científicos como a física ou a química que impede que elas sejam estudadas de modo eficaz em uma perspectiva epistemológica.
Na obra de Foucault observa-se, num primeiro momento, uma arqueologia da percepção ou uma arqueologia do olhar. Num segundo momento, uma arqueologia do saber, mas que, no entanto, não constitui a palavra final.
Em Foucault, qualquer livro seu é, do ponto de vista metodológico, sempre diferente do livro anterior. Uma característica fundamental da arqueologia é justamente a multiplicidade de suas definições: uma pesquisa que, não aceitando fixar-se em cânones rígidos, é sempre instruída pelos documentos pesquisados, numa provisoriedade assumida e refletida pela análise. Aqui, é a própria idéia de método histórico imutável, sistemático, universalmente aplicável, que é desprestigiada.
O primeiro momento
História da loucura, este é o primeiro momento da trajetória da arqueologia de Michel Foucault. Aqui, trata-se de estabelecer as condições históricas de possibilidade dos discursos e das práticas que dizem respeito ao louco considerado como doente mental. Será no final do século XVIII o momento em que se inicia o processo de patologização do louco. O que interessa a Foucault é, através do nível simbólico, analisar uma inquietação própria da época: o aparecimento do louco no âmago da questão da verdade e da razão, como ameaça, irrisão, ilusão. Foucault coloca sob foco o início de um processo de dominação da loucura pela razão, processo esse que comporta a destruição da loucura como saber que expressa a experiência trágica do homem no mundo, em proveito de um saber racional e humanista, centrado na questão da verdade e da moral. Trata-se de uma percepção do indivíduo como ser social pois eis que o estatuto do louco é conferido não pelo conhecimento médico, mas por uma “percepção social”.
A ação é dispersa e produzida por diversas instituições da sociedade como a polícia, a justiça, a família, a Igreja, a partir de critérios que dizem respeito não à medicina, mas à transgressão às leis da razão e da moralidade. O marco institucional da nova etapa: 1656, Paris, criação do Hospital geral que agrupa La Salpêtrière, Bicêtre e outros estabelecimentos. Não se trata, para Foucault, de uma instituição médica, mas de uma estrutura “semi-jurídica”, entidade assistencial e administrativa que se situa entre a polícia e a justiça e seria como que a “ordem terceira da repressão”. Socialmente, trata-se do “Grande Enclausuramento” que assinala a passagem de uma visão religiosa da pobreza que, considerando-a uma positividade mística, a santifica, para uma percepção social que, atribuindo-lhe a negatividade de uma desordem moral e um obstáculo à ordem social, a condena e exige sua reclusão. Economicamente falando, eis duas justificativas da época: em tempo de desemprego, proteger a cidade contra os distúrbios que podiam ser causados pelos ociosos; em tempo de pleno emprego, possibilidade de adquirir mão-de-obra barata. Foucault observa que, na época, o trabalho é menos uma categoria econômica do que uma categoria moral, e que a origem da pobreza era vista não propriamente como sendo o desemprego ou a escassez, mas a falta de disciplina e os maus costumes. O Grande Enclausuramento, para Foucault, assinala o nascimento de uma ética de trabalho em que este é moralmente concebido como o grande antídoto contra a pobreza. É um fenômeno eminentemente moral, instrumento de poder político que não apenas exclui (grifo nosso) da sociedade aqueles que escapam a suas regras e que produz uma população homogênea, a dos internados, um “outro” da sociedade, um estrangeiro aos olhos da razão e da moral, ao mesmo tempo que organiza um domínio novo de experiência que tem unidade e coerência, como diz Foucault: “…uma coerência que não é nem a de um direito, nem a de uma ciência; a coerência mais secreta de uma percepção”.
A maior parte dos motivos de internamento: a sexualidade imoral do doente venéreo ¾ que adquiriu o mal fora da família ¾ na sodomia, prostituição, “devassidão”, “prodigalidade”, “ligação inconfessável”, “casamento vergonhoso”. Uma segunda região: profanação do sagrado, desordem do coração, da alma, desordem moral ou social como a blasfêmia, o suicídio, ou magia, feitiçaria ou alquimia e que são desclassificados como erro, engano, ilusão. O terceiro domínio é formado pela libertinagem que, na época, é irracionalismo e subordinação da razão à não-razão dos desejos do coração. O quarto tipo é representado propriamente pelo louco. Na época, o espaço do louco é o enclausuramento junto com todos os demais excluídos da sociedade, o que significa que ele não é percebido como doente e muito menos como doente mental.
Ocorre que, na época, já existe uma percepção da loucura como doença que interna no hospital. Enquanto os loucos do Grande Enclausuramento seriam doentes ignorados, não localizados por um saber médico emergente, os outros já teriam sido reconhecidos como doentes e tratados em hospital. Porém, importa observar que na época clássica a loucura não era percebida como uma individualização por critérios médicos, em que ela será patologizada como doença mental, mas como integrado ou dissipado em uma massa de que também fazem parte o venéreos, os sodomitas, libertinos, mágicos e alquimistas. Para Foucault, o que é isolado e localizado no internamento clássico sob variadas figuras é a desrazão e esta percepção não é uma percepção médica, mas ética.
Para a medicina, todavia, a loucura será algo bastante diferente: será parte de um saber que vai procurar determinar sua essência, sua natureza. Temos assim, por uma lado, a figura do enclausurado em instituições de reclusão em que a medicina não entra; por outro, a teoria médica que pretende definir a loucura como doença e que em nenhum momento se apóia em uma observação dos loucos, como procurará fazer a psiquiatria. Daí a dicotomia estabelecida por Foucault: “O século XVIII percebe o louco, mas deduz a loucura”. O fato é que a medicina, e a teoria que define o louco como doente mental, em vez de estar na origem, se encontra no fim deste processo.
Será no século XIX que se dará a revolução psiquiátrica, num processo que medicaliza, objetiva, que muda as significações essenciais da loucura e propõe uma nova descrição das relações do homem com as formas ocultas da desrazão: loucura não mais como desrazão mas como alienação. O caminho está preparado para o surgimento da psiquiatria, e o nascimento dessa ciência só pode ser elucidado a partir do tipo de intervenção que a caracteriza. É o nível da percepção e não o do conhecimento que aparece como fundamental quando se trata de estabelecer suas condições de possibilidade. É do lado institucional que Foucault vai sobretudo desenvolver sua análise do nascimento da psiquiatria, psiquiatria como terapêutica, sem uma medicina propriamente.
Em História da Loucura Foucault traça as atitudes do Ocidente com respeito à loucura e suas relações com as normas sociais durante três períodos históricos:
(1) O final da Idade Média e o Renascimento, quando a loucura substitui a lepra como motivo de exclusão e os loucos são ritualmente expulsos para um “exterior” tanto social quanto geográfico, o que é bem representado pelo popular símbolo da stultífera navis (o navio dos loucos). O conceito de loucura substitui a morte como limite absoluto e verdade do mundo e foi expresso de duas formas eventualmente divergentes: (a) nas imagens visuais de Bosch, Brueghel, Dürer e outros artistas que representavam a dimensão sombria e cósmica da loucura como uma experiência trágica do silencioso segredo do mundo; e (b) a representação literária da loucura como a “consciência crítica do homem”, a qual desenvolveu-se a partir da tradição humanística de Erasmo e Brant na qual “a loucura ocupou o universo do discurso” e uma distância irônica se estabeleceu no que parecia como o conhecimento do homem de si mesmo. No final do século XVII, a forma trágica da loucura foi subsumida, ou compreendida, pela experiência da loucura na linguagem e da razão, tendo ambas triunfado sobre a loucura colocando-a “no coração de si mesma, designando-a como um momento essencial de sua própria natureza”.
(2) A Idade Clássica, que começou em meados do século XVII com o advento do Hospital Geral e outras instituições onde os loucos eram confinados juntamente com desempregados, criminosos, libertinos e vários outros tipos que não se enquadravam na ordem econômica e moral da sociedade burguesa ascendente. Esse “grande confinamento” constituia uma vasta e uniforme esfera de “desrazão” que foi localizada e isolada de uma presença concreta no mundo social e silenciada por ser alienada da razão, uma animalidade pura que vinha do que fosse humano no homem. Loucura era puro não-ser; não mais uma contrapartida dialética da razão como havia sido entendida no Renascimento, a loucura existia agora somente na medida em que era ordenada e julgada pela razão como uma falta absoluta percebida principalmente como aquilo que distinguia das estruturas racionais do “não-louco”.
(3) O século XIX e a época recente, período que começou com os movimentos da reforma de Tuke e Pinel, continuando até nossos dias. Nas novas instituições “humanas” criadas especialmente para os loucos, as restrições físicas do período do confinamento foram internalizadas nos pacientes como um senso de temor e de culpa diante da presença de um “outro” autoritário, que simboliza a ordem moral e familiar da sociedade racional, na figura do Doutor, do Juiz e mais geralmente do Pai. A loucura, uma vez mais se torna visível, mas somente como objeto firmado à distância por um sujeito que conhece e, assim o fazendo, a conduz. Esse aspecto do asilo ainda conduz ao modo pelo qual pensamos a loucura no que ela evoluiu no sentido da situação psicanalítica freudiana, com sua ênfase no forte benefício curativo da relação doutor-paciente e na importância subjacente dos temas familiares. A origem histórica dessa situação foi rapidamente soterrada, entretanto, debaixo da pretensão científica pela objetividade e diante do mito do positivismo.
Nossa experiência da loucura hoje, consequentemente, permanece ignorando “o reino soberano da desrazão”, irredutível à loucura e resistente “àquele gigantesco aprisionamento moral” no qual a loucura foi tida no século XIX. Mas a desrazão irrompe ocasionalmente, todavia, em “relâmpagos” como em Nietzsche ou Artaud, em Sade, em Goya, onde a loucura amplifica as “escassas vozes audíveis da desrazão clássica” em “grito e agitação”, adicionando ao não-ser da desrazão “o poder de aniquilar” e assim permitir ao Ocidente “a possibilidade de transcender sua razão com violência”. A loucura do artista moderno não é a origem da arte mas a ausência do trabalho da arte … o lado exterior, a linha de dissolução, o contorno vazio, e através da mediação da loucura, o mundo que se torna culpável … em relação ao trabalho da arte; [o mundo] é agora acusado pelo mundo da arte, forçado a ordenar-se segundo sua linguagem, compelido por ela a uma tarefa de restaurar a razão a partir daquela desrazão e para aquela desrazão.
Conforme escreve no prefácio de História da Loucura, Foucault anuncia que é preciso “renunciar ao conforto das verdades terminais”, abandonar conceitos elaborados pela psicopatologia contemporânea. Tratava-se, como ele declarou, não de fazer a história de uma linguagem, mas, antes, a “arqueologia de um silêncio”, o que implica examinar toda a cultura ocidental. Talvez seja preciso adimitir que a relação razão-desrazão constitui para essa cultura “uma das dimensões de sua originalidade”, que ela se define por essa profundeza que a ameaça, essa região onde importam mais os limites que a identidade de uma cultura. E Foucault, conforme tão bem ilustra a citação seguinte, ancora o seu trabalho na descendência de Nietzsche.
(…) fazer uma história dos limites ¾ desses gestos obscuros, necessariammente esquecidos tão logo se realizam, pelos quais uma cultura rejeita algo que será para ela o Exterior; e ao longo de sua história, esse oco, esse espaço vazio pelo qual ela se isola e designa tanto quanto a seus valores … Interrogar uma cultura sobre suas experiências-limite é questioná-la nos confins da história sobre um dilaceramento que é como o próprio nascimento de sua história. (…) No centro dessas experiências-limite do mundo ocidental explode naturalmente a do próprio trágico ¾ Nietzsche mostrou que a estrutura trágica a partir da qual se faz a história do mundo ocidental outra coisa não é senão a recusa, o esquecimento e a base silenciosa da tragédia.
Uma arqueologia do olhar
Segue-se um segundo momento caracterizado por uma arqueologia do olhar. Em O Nascimento da Clínica, as análises arqueológicas de Michel Foucault voltam-se não mais para a psiquiatria, mas para a própria doença e para a medicina moderna. Trata-se aí de estudar como se deu a inauguração de um conhecimento que se tornou científico quando a medicina se transformou em uma ciência empírica.
Foucault parte da medicina clássica, uma medicina classificatória que se elabora tomando como modelo a história natural, um olhar que não pretende penetrar na profundidade das coisas. Definir uma doença, aí, é enumerar seus sintomas. O conhecimento da doença abstraía o doente. A doença era vista como pura essência.
Seguem-se a proto-clínica do século XVIII, a clínica do final do século XVIII e a anátomo-clínica do século XIX. A princípio, a finalidade do doente era exemplificar a doença. A clínica é a primeira tentativa de fundar o saber na percepção, quando o olhar passa a produzir conhecimento. A doença passa a existir no elemento visível e enunciável, numa percepção de um conjunto de sistemas. Trata-se de ouvir uma linguagem no momento em que se percebe um espetáculo. Na anátomo-clínica observar-se-á o resultado da relação constitutiva da clínica com a anatomia patológica, numa ação voltada para explorar um novo espaço: o espaço tangível do corpo. A doença, assim, se torna corporal. O processo médico torna-se analítico para identificar o patológico; doença como análise; acesso do olhar no interior do corpo doente, olhar de profundidade.
Foucault correlaciona essa mudança da estrutura do conhecimento médico a mudanças contemporâneas na estrutura institucional dos hospitais e no amplo delocamento filosófico do idealismo ao positivismo. Considera que esse deslocamento envolveu uma reorganização fundamental da natureza da percepção que substitui a transparência das coisas, as verdades ideais, e todas as razões de conhecimento do Iluminismo por objetos opacos que deixam transparecer suas verdades particulares somente a medida em que a observação minuciosa do sujeito ( “olhar”) passa sobre eles. Questiona se esse novo tipo de percepção envolveu uma nova relação entre ver e dizer. Enquanto que no começo do século XVIII o conhecimento médico constituia a verdade de uma doença por meio de um discurso enciclopédico que existia a priori e separado da percepção de sintomas, na “anátomo-clínica” a doença sofre uma total redistribuição dentro da esfera do visível por um “olhar loquaz” que via falando e falava vendo. Esse olhar falante foi, todavia, baseado em uma reciprocidade tautológica entre linguagem e mundo porque a linguagem que o olhar captou nos sistemas visíveis da doença foi também a linguagem pela qual ele leu, ambos o seu objeto e sua origem.
Essa tautologia foi resolvida pelo que Foucault chama “a grande ruptura na história da medicina ocidental”, que relocou conexões entre sintomas visíveis da superfície do corpo (constituida como uma linguagem do exame da nova medicina clínica) para as superfícies dos tecidos das membranas do corpo onde a doença ocorria. Essa mudança fez coincidir a duração mórbida da doença com o volume orgânico do corpo, e o olho analítico do observador simplesmente seguiu a trajetória realizada pela doença, ela própria à medida que passava pelo corpo marcando os tecidos em seu curso. Ocorre assim o fato dessa passagem somente ser visível pela autópsia e seu progresso aparente somente ser possível depois de haver cessado a vida. Essa nova análise anátomo-clínica baseia assim seu conhecimento na morte terminal, não mais concebendo, como outrora, morte e doença somente como o negativo da vida. Além do mais, pelo fato de o olhar estar agora proibido de transcender os limites opacos do espaço visível dos corpos no sentido de buscar alguma essência ideal e abstrata da doença, não mais pode usar uma linguagem universal para levar o visível ao legível. Contrariamente, a medicina fez a linguagem se voltar para o concreto, individualizou o percurso da doença quando por ocasião da morte e assim desenvolveu o primeiro discurso científico concernido ao indivíduo.
Uma arqueologia da ciências humanas
Em As palavras e as coisas, Foucault desenvolve uma arqueologia das ciências humanas, num estudo da constituição histórica dos saberes sobre o homem. Trata-se aqui de mostrar porque antes da época moderna não houve, nem poderia ter havido, um saber sobre o homem.
O fato de o homem desempenhar duas funções no saber da modernidade, sua existência como coisa empírica e como fundamento filosófico, o homem não mais considerado como objeto ou sujeito, mas como representação, faz estabelecer uma correlação entre o homem como objeto e o homem como sujeito do conhecimento. Nessa dupla posição, a filosofia moderna passa a ser uma analítica da finitude. A cultura moderna pode pensar o homem porque pensa o finito a partir de si mesmo. Daí a tematização da sociologia, da psicologia e da análise literária e dos mitos.
Na relação do significante com o significado, ligação estabelecida entre a idéia de uma coisa e a idéia de uma outra, está a representação. É no interior da análise da representação que existem e se desenvolvem os saberes sobre os seres vivos, as palavras e as riquezas. Será no aparecimento do homem como empírico e como transcendental, objeto das ciências empíricas e da filosofia moderna, que se dará a condição de possibilidade do aparecimento do homem como representação, tal como é estudado nas ciências humanas.
Trata-se também aqui de assinalar as continuidades sincrônicas e as descontinuidades diacrônicas entre os saberes. O que interessa é estabelecer a rede que define a configuração geral do saber de determinada época, sua emergência e sua transformação.
Em As Palavras e as Coisas, Foucault divide os últimos cinco séculos da cultura ocidental em três épocas, e descreve o paradigma epistemológico ou epistémê que caracteriza cada uma delas: (1) O Renascimento, que percebia a ordem das coisas em função das semelhanças entre elas; (2) a Idade Clássica, que começa no meio do século XVII e baseou o conhecimento numa teoria da representação que ordenou as coisas espacialmente de acordo com a taxonomia geral de identidades e diferenças entre elas; e (3) a Idade Moderna, que começa no século XIX e que entendeu as coisas temporariamente de acordo com sua história ou, de uma forma mais geral, de acordo com sua relação com uma origem que ao mesmo tempo era a essência de seu ser e ainda fundamentalmente “outro” em relação a elas.
Foucault insiste na descontinuidade abrupta e absoluta entre epistémês. Colocando frente a frente as ciências isomórficas da ordem corrente da Idade Clássica ¾ a gramática geral, a história natural e a análise da saúde ¾ com aquelas dos séculos XIX e XX: filologia, biologia, economia política, concentra-se no estado da linguagem dentro de cada epistémê, distinguindo: (1) a identidade entre a linguagem e as coisas que constituiram a “prosa do mundo” no Renascimento; (2) o desaparecimento da linguagem como um objeto do conhecimento na Idade Clássica devido à sua identificação com “o pensar por si mesmo” como um modelo para todos os conhecimentos; e (3) a nova emergência da linguagem na idade moderna como um objeto de conhecimento positivo do mesmo nível que a vida, a saúde e os valores econômicos.
Foucault reivindica para a idade moderna o aparecimento do conceito de “Homem” como “um objeto de conhecimento e como sujeito que conhece”, um “duplo empírico-transcendental” no qual os conteúdos empíricos do conhecimento revelam as categorias transcendentais que tornam o conhecimento possível. Mas acrescenta que, contemporaneamente a esse aparecimento, ocorre o nascimento de seu “gêmeo”, um “não pensado” que é “um pouco a sombra projetada do homem surgindo no saber; um pouco a mancha cega a partir da qual é possível conhecê-lo”.
Foucault situa as ciências humanas, constituídas pela psicologia, sociologia e a história da cultura, dentro dessas enigmáticas “finitudes” que constituem o Homem, caracterizando-as como se estendendo “do que o homem é em sua positividade (vida, linguagem, trabalho) ao que possibilita esse mesmo saber”, tendo em mira “trazer a consciência do homem de volta a suas condições reais”. Foucault privilegia a psicanálise e a etnologia (i.e., antropologia social) como “contra-ciências” porque levam as ciências humanas diretamente para regiões mais enigmáticas do que suas bases epistemológicas ¾ a consciência do indivíduo e a historicidade da cultura ¾ argumentando que essas contra-ciências são integradas de acordo com o modelo formal da linguagem que pretende o conhecimento positivo.
Foucault conclui que o “retorno” moderno da linguagem à transparência do discurso clássico deixa expostos os fundamentos do Homem, ameaçando substituí-lo no papel de figura central do pensamento contemporâneo. Para Foucault, a linguagem entra diretamente no campo do pensamento no fim do século XIX, “poder-se-ia mesmo dizer no século XX, se Nietzsche, o filólogo (…) não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica de uma reflexão sobre a linguagem”.
A importância da linguística assume aqui dimensões ontológicas, uma vez que somos reconduzidos ao lugar que Nietzsche e Mallarmé haviam indicado quando um deles perguntava: “Quem fala?” e o outro “vira cintilar a resposta na própria Palavra”. Eis que a interrogação sobre o que é a linguagem em seu ser reassume tom imperativo. A questão de Nietzsche e a resposta de Mallarmé surgem quando, estando a lei do discurso destacada da representação, o ser da linguagem achou-se como que fragmentado; com Nietzsche e com Mallarmé o pensamento foi reconduzido violentamente para a própria linguagem.
Nesse ponto, onde a questão da linguagem surge novamente com tal força de sobredeterminação, e onde parece sitiar a figura do homem em cada um de seus aspectos, a cultura contemporânea está forçando no sentido de criar uma parte importante do seu presente e talvez do seu futuro; o homem pode estar em um processo de extinção à medida em que o ser da linguagem continua a brilhar sempre mais forte sobre nosso horizonte. E Foucault conclui perguntando:
Que relação há entre a linguagem e o ser, e é realmente ao ser que sempre se endereça a linguagem, pelo menos aquela que fala verdadeiramente? Que é, pois, essa linguagem que nada diz, jamais se cala e se chama “literatura”? (…) Dever-se-á pressentir aí o nascimento, menos ainda, o primeiro vislumbre no horizonte de um dia que mal se anuncia, mas onde já advinhamos que o pensamento (…) vai recuperar-se por inteiro e iluminar-se de novo no fulgor do ser? Não é isso o que Nietzsche preparava, quando, no interior de sua linguagem, matava o homem e Deus ao mesmo tempo e assim prometia, com o Retorno, o cintilar múltiplo e recomeçado dos deuses?
Uma arqueologia do saber
Em 1969, ao publicar A Arqueologia do Saber, Foucault explicava seu método de análise nos trabalhos precedentes, argumentando no sentido de libertar a história do pensamento da sua sujeição à transcendência e da camisa de força da fenomenologia para purificar a história de todo o narcisismo transcendental, desenvolvendo um método de análise livre de todo antropomorfismo. Segundo ele, a história das idéias está condenada, nada mais, do que a uma mudança de um interesse, mascarada em teoria, em um esforço para restituir ao homem tudo que lhe foi incessantemente negado por cerca de uma centena de anos: um refúgio privilegiado para a soberania da consciência e a ilusão de uma continuidade histórica ininterrupta. Em oposição a essa história contínua e à correlata “função fundadora do sujeito”, Foucault propõe a “dispersão do sujeito” através de sua “arqueologia” e de seu objetivo triplo: a articulação das descontinuidades e a diferenciação das diferenças (ao invés de sua supressão); a análise das transformações (ao invés da simples indicação das mudanças); e a descrição das “dispersões das descontinuidades em si mesmas” (ao invés da sua redução a uma origem transcendental unitária).
A rejeição da consciência como origem transcendental de um dizer expressivo permite a Foucault tratar cada discurso como uma pura prática material firmada em um “a priori histórico” que forma suas condições de possibilidade. Como a epistémê, o “arquivo” é a primeira lei do que pode ser dito, e consiste no conjunto total das relações que unem, em um dado período, as práticas discursivas que dão lugar às figuras epistemológicas, às ciências e possivelmente a sistemas formalizados. Consequentemente, apesar de rejeitado o critério de continuidade, coerência e causalidade que governa a historiografia tradicional, a análise arqueológica permanece profundamente histórica, mergulhada na dimensão de uma história geral que procura descobrir o domínio completo das instituições, processos econômicos e relações sociais nos quais uma formação discursiva pode ser articulada; ela procura mostrar como a autonomia do discurso e a sua especificidade, entretanto, não dá a ela o status de pura idealidade e independência histórica total; o que ela pretende desencobrir é o nível particular no qual a história pode dar lugar a tipos definidos de discurso.
A aula inaugural que Foucault pronunciou em 2 de dezembro de 1970 ao assumir a cátedra vacante no Collège de France pela morte de Jean Hyppolite recebeu o título de L’ordre du discours (A ordem do discurso). Segundo observa sua tradutora para a edição brasileira da Loyola[85], “pode ser considerado um texto de ligação entre as obras datadas dos anos 60, como História da Loucura, As Palavras e as Coisas, A Arqueologia do Saber, centradas na análise das condições de possibilidade das ciências humanas, e as que se seguiram a maio de 1968, como Vigiar e Punir, voltadas ao exame da microfísica do poder”.
No texto, Foucault fala de início de sua ansiedade em começar o seu discurso e propõe a hipótese de que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e terrível materialidade. Foucault observa que a sociedade usa três estratégias principais para controlar os discursos: (1) regras de exclusão (grifo nosso) que são fundamentalmente exteriores ao discurso, tais como a proibição de determinadas palavras, a rejeição de certos tipos de discurso tidos como “loucos”, e a “vontade de verdade” (ou “conhecimento”) que privilegia alguns discursos em detrimento de outros que são desconsiderados e tidos como “não verdadeiros”; (2) regras internas ao discurso mesmo, tal como a metodologia do comentário, a noção de “autor”, e os limites regulares e as práticas das “disciplinas”; e (3) as regras ou condições impostas aos indivíduos que se utilizam (ou pretendem utilizar) o discurso: rituais, “solenidades do discurso”, doutrinas, e as mais gerais restrições que governam a “apropriação social do discurso”, tais como os sistemas educacionais.
Foucault observa que a filosofia tem consistentemente tentado omitir a realidade do discurso como evento material através de temas como o do “sujeito fundante”, da “experiência originária”, e da “mediação universal” e insiste que nos coloquemos em oposição a essa “profunda logofobia” aceitando três decisões centrais: “questionar nossa vontade de verdade; restaurar o caráter de evento ao discurso; e abolir a soberania do significante”.
Na parte final de A ordem do discurso, Foucault anuncia a direção em que prosseguirá suas investigações no decorrer dos cursos no Collège de France, apontando para o que denomina o “conjunto crítico” e o “conjunto genealógico” e lança o projeto de estudo das interdições que atingem o discurso da sexualidade.
A démarche de Michel Foucault
Foucault dizia que seu problema estava em substituir a forma abstrata, geral e monótona da “mudança”, na qual se pensa de bom-grado a sucessão, pela análise dos tipos diferenciais de transformação. E isso implicava duas coisas: 1) colocar entre parênteses todas as velhas fórmulas de genérica continuidade, através das quais comumente se atenua o fato selvagem da mudança, e, ao contrário, fazer surgir obstinadamente toda a vivacidade da diferença: estabelecer meticulosamente a separação; 2) colocar entre parênteses todas as explicações psicológicas da mudança e definir com mais atenção as transformações, não que tenham provocado, mas sim constituído, a mudança; em suma, substituir o tema do devir pela análise das transformações em sua especificidade.
Eis que a démarche de Michel Foucault em relação à história das ciências é um processo cuja formação cabe estudar, bem como suas transformações no tempo, e determinar sua trajetória, isto é, tanto os deslocamentos com relação à epistemologia, quanto as modificações internas que conduziram à arqueologia do saber e à genealogia do poder.
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