CAPÍTULO 2 – O PROJETO GENEALÓGICO
O poder
Com a genealogia do poder temos um novo caminho para as análises históricas sobre os saberes. Não invalidando propriamente o passado, Foucault parte agora de outra questão. Na arqueologia, tratava-se de, neutralizando a questão da cientificidade, interrogar as condições de existência dos discursos, mesmo quando os discursos analisados são ou se pretendem científicos. A arqueologia tinha por objetivo escrever conceitualmente a formação dos saberes, sejam eles científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência, e não de validade como na epistemologia.
Já na genealogia, seu objetivo não é principalmente analisar as compatibilidades e incompatibilidades entre saberes e práticas não discursivas a partir da configuração de suas positividades; o que pretende é, em última análise, explicar o aparecimento de saberes a partir de condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, que imanentes a eles, os situam como elementos de um dispositivo de natureza essencialmente política. É essa análise dos saberes, que pretende explicar sua existência e suas transformações situando-os como peças de relações de poder ou incluindo-os em um dispositivo político, que utilizando um termo nietzscheano Foucault chamará genealogia.
Nessas análises, Foucault aponta uma não sinonímia entre Estado e poder. Ele vê uma articulação com poderes locais, específicos, circunscritos a uma pequena área de ação, o que caracteriza muitas formas de exercício de poder diferentes do Estado, poder que intervém materialmente, atingindo a realidade concreta dos indivíduos o seu corpo e que se situa ao nível do próprio corpo social, e não acima dele, penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder. Estamos aí no terreno do controle detalhado, minucioso, do corpo: gestos, atitudes, comportamentos, hábitos, discursos. Aí os poderes se exercem em níveis variados e em pontos diferentes da rede social. Nem o controle, nem a destruição do aparelho de Estado, como muitas vezes se pensa, é suficiente para fazer desaparecer ou para transformar, em suas características fundamentais, a rede de poderes que impera em uma sociedade. Trata-se de um nível molecular de exercício de poder, sem que parta necessariamente do centro para a periferia.
Os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa. Não é propriamente o poder que existe, mas práticas ou relações de poder, relação entendida como luta, resistência dentro da própria rede do poder. Trata-se de uma multiplicidade de relações de força, guerra, disputa, este é o modelo para o poder.
Mas o poder possui uma eficácia produtiva, uma riqueza estratégica, uma positividade, segundo aponta Foucault:
O que lhe interessa basicamente não é expulsar os homens da vida social, impedir oexercício de suas atividades, e sim gerir a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. Objetivo ao mesmo tempo econômico e político: aumento do efeito de seu trabalho, isto é, tornar os homens força de trabalho dando-lhes uma utilidade econômica máxima; diminuição de sua capacidade de revolta, de resistência, de luta, de insurreição contra as ordens do poder, neutralização dos efeitos de contra-poder, isto é, tornar os homens dóceis politicamente. Portanto, aumentar a utilidade econômica e diminuir os perigos políticos; aumentar a força econômica e diminuir a força política.
Uma importante novidade dessas investigações é não considerar pertinente para as análises a distinção entre ciência e ideologia. O objetivo da genealogia é neutralizar a idéia que faz da ciência um conhecimento em que o sujeito vence as limitações de suas condições particulares de existência instalando-se na neutralidade objetiva do universal, e, da ideologia um conhecimento em que o sujeito tem sua relação com a verdade perturbada, obscurecida, velada pelas condições de existência. Para Foucault, todo conhecimento, seja ele científico ou ideológico, só pode existir a partir de condições políticas que são as condições para que se formem tanto o sujeito quanto os domínios do saber. A investigação do saber não deve remeter a um sujeito de conhecimento que seria sua origem, mas a relações de poder que lhe constituem. Não há saber neutro. Todo saber é político. Todo saber tem sua gênese em relações de poder. Em contrapartida, todo saber assegura o exercício de um poder.
Genealogia e história
O conceito de genealogia foi introduzida em Vigiar e Punir que é onde seu sentido aparece mais claramente. Nesta obra, e em Microfísica do Poder, será a vontade de saber que estará no centro da análise. Trata-se de uma genealogia da alma moderna e, sem dúvida, muitas das idéias de Nietzsche são iluminadas pela perspectiva foucaultiana: o ver na filosofia de Nietzsche uma espécie de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem termo, que se desenrolaria sempre mais, uma filologia que nunca estaria fixada de forma absoluta. Assim, Nietzsche filólogo comprova que à existência da linguagem se vinculam a possibilidade e necessidade de uma crítica.
Por outro lado, recuperando a questão da interpretação, ligando-a desta vez à idéia de genealogia, Foucault vai desembocar na teoria nietzschiana das forças. Assim, a genealogia é entendida como análise da proveniência e história das emergências.Para Foucault, a genealogia é cinza, meticulosa, pacientemente documentária, trabalhando com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos. Nela, há um indispensável demorar-se, procurando marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade monótona. Trata-se de espreitar os acontecimentos lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história os sentimentos, o amor, a consciência, os instintos. Em Nietzsche, Foucault vê o emprego da palavra alemã Ursprung em oposição a duas outras: Entstehung e Herkunft
É que Nietzsche recusa em certas ocasiões a pesquisa da origem (Ursprung), posicionando-se contra uma identidade primeira, o escutar a história. Para ele, ao invés de se acreditar na metafísica, ao invés de se procurar atrás das coisas existe algo diferente, o que é freqüentemente buscado na origem, o que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem, mas a discórdia entre as coisas, é o disparate (grifo nosso).
“A história ensina a rir das solenidades da origem”, escreve Foucault.
Gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição; mas o começo histórico é baixo. Procura-se despertar o sentimento de soberania do homem mostrando seu nascimento divino: isto agora se tornou um caminho proibido, pois no seu limiar está o macaco. Trata-se, pois, de não acreditar mais que a verdade permaneça verdadeira quando se lhe arranca o véu. A verdade nada mais é do que espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutado. A verdade e seu reino originário tiveram sua história na história. Trata-se, pois, de fazer, como o fez Nietzsche, uma genealogia dos valores, da moral. O genealogista necessita da história para conjurar a quimera da origem; um pouco como o bom filósofo precisa do médico para conjurar a sombra da alma.
Ao contrário da origem, seguir o filão complexo da proveniência (Herkunft) é descobrir que na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que nós somos não existe a verdade profunda, mas a exterioridade do acidente. Assim, toda a origem da moral, a partir do momento em que ela não é venerável e a Herkunft nunca é crítica.
Já a emergência (Entstehung) quer referir-se ao ponto de surgimento; princípio e lei singular de um aparecimento que se dá em um determinado estado de forças. É que os fins aparentemente últimos nada mais são do que o atual episódio de uma série de submissões. A genealogia restabelece os diversos sistemas de submissão, voltando-se não para a potência antecipadora de um sentido, mas para o jogo casual das dominações. A emergência tem a ver com o estado das forças, embate de forças, relações de forças. Por exemplo, a emergência de uma espécie (animal, vegetal, humana) e sua premanência são asseguradas por um longo combate contra condições constantes e essencialmente desfavoráveis. O triunfo da espécie é o triunfo das forças que lutaram pela sua afirmação contra as forças que lutaram pela sua negação.
Assim, a genealogia é, conforme bem indicou Nietzsche, a Wirkliche Historie (história verdadeira ou efetiva). Aqui, o sentido histórico escapa da metafísica para tornar-se um instrumento privilegiado da genealogia, apoiando-se sobre nenhum absoluto (grifo nosso); trata-se aqui de reintroduzir no devir tudo o que se tinha acreditado imortal no homem. A história efetiva se distingue daquela dos historiadores pelo fato de que ela não se apoia em nenhuma constância. A história será “efetiva” na medida em que ela reintroduzir o descontínuo em nosso próprio ser. O sentido histórico está mais próximo da medicina do que da filosofia: trata-se de olhar perto, como o olhar do médico.
Essa história verdadeira não teme ser um saber perspectivo, assumindo que olha de um determinado ângulo; é um olhar que sabe tanto de onde olha quanto o que olha.
Aqui, o sentido histórico propugnado ¾ em oposição às modalidades platônicas da história-reminiscência, da história-continuidade e da história-conhecimento ¾ consiste do seguinte: uso paródico e destruidor da realidade, uso dissociativo e destruidor da identidade e uso sacrificial e destruidor da verdade.
Trata-se de fazer da história um uso que a liberte para sempre do modelo, ao mesmo tempo metafísico e antropológico da memória. Ao homem confuso e anônimo, que não sabe mais quem ele é e que nome usar, trata-se de oferecer identidades sobressalentes, segundo a história convencional. O genealogista, por sua vez, coloca em cena um grande carnaval do tempo em que as máscaras reaparecem incessantemente. Genealogia, aqui, será como a história de um carnaval organizado. Por outro lado, esta identidade, bastante fraca contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob uma máscara, é apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis nela disputam, os sistemas se entrecruzam e se dominam uns aos outros.
Quando o genealogista estuda a história, se sente “feliz” (Amor Fati? como não lembrar?) ao contrário dos metafísicos, de abrigar em si não uma alma imortal, mas muitas almas mortais nessas, nenhum poder de síntese domina a genealogia pretende aqui fazer aparecer todas as descontinuidades que nos atravessam. E ainda, indaga se não será a paixão do conhecimento que virá matar o homem, se não estamos diante da exigência do sacrifício do sujeito do conhecimento. Isto porque a consciência histórica, apesar de ser aparentemente neutra, despojada de toda paixão, apenas obstinada com a verdade, se ela se interrogar e se de uma maneira mais geral interrogar toda consciência científica em sua história, descobrirá, então, as formas e as transformações da vontade de saber, que é instinto, paixão, obstinação inquisidora, refinamento cruel, maldade. Descobrir-se-á a violência das opiniões preconcebidas com relação a tudo aquilo que há de perigoso na pesquisa e de inquietante na descoberta. Assim,
(…) A análise histórica desse querer-saber que percorre a humanidade faz aparecer tanto que todo o conhecimento repousa sobre a injustiça (que não há no conhecimento um direito à verdade ou um fundamento do verdadeiro), quanto que o instinto de conhecimento é mau: há nele alguma coisa de assassino, e que ele não pode, que ele não quer fazer nada para a felicidade do homem. O querer-saber não se aproxima de uma verdade universal, ao contrário ele não cessa de multiplicar os riscos; ele sempre faz nascer os perigos; abate as proteções ilusórias; desfaz a unidade do sujeito; libera nele tudo o que se obstina a dissociá-lo e a destruí-lo.
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