Antecedentes
A morte de Deus já havia sido formulada no âmbito da filosofia antes de Nietzsche. Hegel (1770-1831) e Feuerbach (1804-1872) já a haviam pensado. Mas Nietzsche é aquele a quem as pessoas mais a associam, talvez pela maneira vigorosa e ao mesmo tempo cheia de novas perspectivas com que ele a formulou.
Hegel, ao dizer “Deus está morto”, sugere, todavia, a sobrevivência de Deus à morte pela via dialética da “morte da morte”. Em Hegel, o termo “morte” quer referir-se tanto à morte em sentido literal e sua significação para as nossas vidas, quanto à morte como possibilidade de uma nova síntese, pela via da “morte da morte”, ou seja, a “negação da negação”, o caminho do espírito. Hegel interessou-se pelas mortes de Cristo e de Sócrates. A morte de Cristo, argumentou ele, tem uma significação teológica e metafísica que falta à morte de Sócrates. Apresenta, numa forma intuitiva, a reconciliação da dicotomia entre Deus e o mundo. Por um lado, Deus apresenta-se em forma finita e sofre uma morte dolorosa, a qual revela que o próprio Deus envolve finitude e negação. Por outro lado, sofrer e depois derrotar a morte a que todos os homens estão sujeitos mostra que o espírito do homem pode triunfar sobre a morte, sendo sua individualidade finita e contingente suprassumida ou transfigurada em universalidade divina.
Hegel considera a teologia moderna como tendo derivado para o formalismo iluminista, que proclama a “morte de Deus especulativa” pela sua conversão no mero alvo de uma aspiração infinita, numa simples representação, e também como tendo derivado para o abandono de Deus para tratar da religião como realidade institucional e cultural.
Feuerbach, por sua vez, estudou teologia em Heidelberg e filosofia em Berlim com Hegel. Aderiu à “esquerda hegeliana” e foi, durante um tempo, o mais destacado e influente representante desta tendência. Mesmo tendo-se afastado posteriormente do mestre, as marcas hegelianas nunca desapareceram completamente de seu pensamento e de seu vocabulário. Feuerbach escreveu em um de seus fragmentos: “Meu primeiro pensamento foi Deus; o segundo, a razão; o terceiro e último, o homem. O sujeito da divindade é a razão, mas o da razão é o homem”. Assim, a teologia, e ainda a própria filosofia, deve converter-se em “antropologia”, em ciência filosófica do homem, única capaz de esclarecer os “mistérios” teológicos e provar que se trata de “crenças em fantasmas”.
Para Feuerbach, “o princípio da filosofia não é Deus, nem o Absoluto, nem o ser como predicado do Absoluto ou a Idéia; o princípio da filosofia é o finito, o determinado, o real”. Feuerbach considerou necessário desmascarar a teologia especulativa de seu antigo mestre pois, a seu entender, é ao fantasma da teologia que recorre de ponta a ponta o pensamento hegeliano. Conforme expressa em sua crítica a Hegel, a filosofia hegeliana é o último refúgio, o último baluarte racional da teologia. Da mesma forma que antigamente, em que os teólogos católicos se convertiam em aristotélicos de fato, também em seu tempo os teólogos protestantes se tornavam hegelianos jurados para poderem combater o “ateísmo”. Para Feuerbach, Deus é obra do homem e não o contrário. O homem cria os seus deuses à sua imagem e semelhança; os cria de acordo com suas necessidades, desejos e angústias. É unicamente na miséria do homem que tem Deus seu lugar de nascimento. Só do homem tem Deus todas suas determinações: Deus é o que o homem aspira ser.
Nietzsche e a morte de Deus
Nietzsche, eis que este anuncia em alto e bom tom a morte de Deus. Nietzsche constata e anuncia isto como um acontecimento histórico. Mas será de forma gradual que em sua obra esta constatação se releva. É fato que em seus primeiros livros, a saber, em O Nascimento da Tragédia, de 1871, As Considerações Intempestivas, de 1873, Schopenhauer como Educador, de 1874, e Richard Wagner em Bayreuth, de 1876, nada há a respeito. Pode-se ver, todavia, em Humano, Demasiado Humano, de 1878, o começo das formas preparatórias daquilo a que Nietzsche mais tarde chamará a morte de Deus uma posição de combate contra a duplicação idealista do mundo, contra a “quimera do Além”.
A tese fundamental é antes esta: as coisas pretensamente chamadas “sobre-humanas” são apenas ilusões demasiado humanas; a vontade metafísica do conhecimento é apenas uma necessidade mascarada, apenas uma necessidade demasiado humana; que aquilo que se considerava Deus é apenas uma dimensão da existência do homem que este projeta para fora de si. Assim, a metafísica se afigura como uma gigantesca ficção, como uma construção de sonho de que o homem dispõe como uma mentira vital de que ele se socorre para ultrapassar a sua natureza perecível e poder dar à sua existência um significado infinito.
Em Aurora, de 1881, e em A Gaia Ciência, de 1882, já se vê Nietzsche cumprir inconfundivelmente uma desmontagem da imagem do homem, desmontagem essa que nasce de uma vontade de desmascaramento que liberta o homem da servidão dos ideais transcendentes representados por Deus, a moral, o ultramundo metafísico.
Segundo Fink, essa libertação opera-se, por um lado, como desmascaramento psicológico no qual o homem é determinado como uma criatura de instintos, na qual uma complexa meada desses instintos o determina, inclusive na figura do artista, do santo e do sábio. Por outro lado, essa libertação opera-se pela negação de significado transcendente das grandes construções do homem, não rejeitando, entretanto, a possibilidade da superação desse mesmo homem.
Mas, eis que, em Aurora e em A Gaia Ciência, o método é profanador, ou melhor, transgressor. Nietzsche transgride o estabelecido, e é aí que a sua filosofia da manhã torna-se cada vez mais iluminada pela luz do meio-dia. O seu discurso torna-se cada vez mais metafórico, mais poético, a sua ciência torna-se “alegre”, e o seu afastamento de um impulso inicial em direção ao positivismo torna-se cada vez mais decidido. E eis que a trangressão não respeita sequer os deuses gregos antigos. Ei-lo numa apreciação da história, ao afirmar que “os deuses gregos também não tinham grande jeito para consolar; quando, por fim, o povo grego caiu, ele, também, doente, arrastou em sua queda semelhantes deuses”.
Transgressão como a de um louco; eis que Nietzsche assume a palavra do insensato.
Nunca ouviram falar de um louco que em pleno dia acendeu sua lanterna e pôs-se a correr na praça pública gritando sem cessar: Procuro Deus! Procuro Deus! (…) Para onde Deus foi? (…) Nós o matamos, vós e eu! Nós todos, nós somos seus assassinos! (…) Os deuses também se decompõem! Deus morreu! Deus continua morto! E nós o matamos! (…) O que nos limpará deste sangue? Com qual água nos purificaremos? (…) Não seremos forçados a tornarmo-nos deuses para parecermos, pelo menos, digno de deuses? E, depois de atirar a lanterna ao chão que se espatifou, apagando-se, disse: Meu tempo não é chegado (…) É preciso tempo para o relâmpago e o raio (…) é preciso tempo para as ações (…) E, penetrando nesse mesmo dia em diferentes igrejas, entoou seu Réquiem e, expulso e interrogado, não cessou de responder a mesma coisa: De que servem estas igrejas se são tumbas e monumentos de Deus?
Transgressão e criação de lutas novas, como aqui nesta constatação.
Depois da morte de Buda, sua sombra se mostrou durante séculos numa caverna; sombra enorme e aterradora. Deus morreu, mas os homens são de tal modo que haverá ainda, talvez, cavernas nas quais sua sombra se mostrará…
Transgressão na constatação aqui expressamente enunciada para os destemidos.
O mais importante dos recentes acontecimentos o fato de “que Deus está morto”, de que a fé no Deus cristão está enfraquecida (…) Com efeito, nós filósofos e “espíritos livres” frente à nova de que “o Deus antigo está morto” sentimo-nos iluminados por uma nova aurora (…) o mar, nosso grande mar abre-se novamente diante de nós e talvez nunca tenha nascido um mar tão “pleno”.
Mas, a filosofia de Nietzsche, como dissemos, ilumina-se cada vez mais pela luz do meio-dia. O Zaratustra, de 1883 e 1885, inaugura uma nova fase em que Nietzsche, com seu pensamento, parece atingir o zênite. Aqui, ele encontra sua verdadeira natureza, ele torna-se o que é. Aqui, no Zaratustra, em primeiro plano temos a morte de Deus, a vontade de potência, o eterno retorno e o super-homem.
A morte de Deus e o super-homem
A morte de Deus pode ser vista como a base, o ponto de partida da filosofia de Zaratustra, pois Zaratustra parte, ao apresentar o super-homem como uma necessidade, da afirmação de que Deus morreu. E será já no Prólogo de Zaratustra que isto é posto.
Zaratustra, que depois de gozar solitário na montanha por dez anos de seu próprio espírito de solidão, vê, de repente, seu coração mudar e se enche de vontade de ir ter com os homens. Zaratustra quer voltar a ser homem para “dar e distribuir tanto, que os sábios dentre os homens voltassem a alegrar-se de sua loucura e os pobres de sua riqueza”. Zaratustra queria ensinar que “o homem é algo a ser superado”, queria ensinar aos homens o super-homem. Mas eis que, antes de chegar a seu destino, depara-se repentinamente com um velho no ermo da floresta, um santo, que ironiza a vontade de Zaratustra, e lhe diz: “Mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança, Zaratustra, despertou Zaratustra; que pretendes, agora, entre os que dormem? Vivias na solidão como um mar e o mar te transportava. Ai de ti, queres ir a terra? Ai de ti, queres novamente arrastar tu mesmo o teu corpo?” E Zaratustra responde: “Amo os homens.” E, responde o santo: “E por que foi que me recolhi à floresta e ao ermo? Não foi porque amei demais os homens? Agora, amo Deus, não amo os homens. Coisa por demais imperfeita é, para mim, o ser humano. O amor aos homens me mataria.” E prosseguiu: “Não lhes dês nada. Tira-lhes de preferência alguma coisa de cima e ajuda-os a levá-la(…) E, se queres dar-lhes alguma coisa, que não seja mais do que uma esmola; e, mesmo assim, só depois que a mendiguem”. Ao que Zaratustra respondeu: “Não, eu não dou esmolas. Não sou bastante pobre para isso”. E Zaratustra indaga: “E o que faz o santo na floresta?” E o santo responde: “Faço canções e as canto; e, quando faço canções, rio, choro e falo de mim para mim: assim louvo Deus”. Zaratustra despede-se do velho. Mas quando ficou só, falou ao seu próprio coração: “Será possível? Esse velho santo, em sua floresta, ainda não soube que Deus está morto?”
O velho encarna o espírito do ressentimento que detesta os homens e se refugia em Deus. Zaratustra encarna o contrário disto. Zaratustra quer ter com os homens, Zaratustra ama os homens, ele não se refugia, ele não se esconde com Deus, e ele quer o seu ocaso, ele quer a superação, ele quer ensinar o caminho da superação, pois ele sabe que este é o caminho, porque Deus está morto.
Morto Deus, o que resta aos homens? Zaratustra tem uma resposta, Zaratustra tem uma sabedoria a esse respeito. Morto Deus, resta aos homens voltarem-se para a terra. “Amo aqueles que, para o seu ocaso e sacrifício, não procuram, primeiro, um motivo atrás das estrelas, mas sacrificam-se à terra, para que a terra, algum dia, se torne do super-homem”. Zaratustra sabe que não há outra vida, que não há outro mundo, mas que pode haver um outro homem. Zaratustra quer ensinar uma saída positiva, afirmativa: o super-homem como sentido da terra. O que Zaratustra quer dizer é, como bem observa Roberto Machado, que os homens não têm mais Deus mas podem muito bem ter um futuro. Zaratustra propõe o super-homem como alvo a ser atingido, como um novo estado a ser buscado, um novo modo de sentir, um novo modo de pensar, um novo modo de avaliar; uma nova forma de vida, um novo tipo de subjetividade.
E eis que Zaratustra chega à praça do mercado e se dirige ao povo para pregar o super-homem. Mas o povo ri de Zaratustra e nada entende do que ele lhe diz. “Lá estão eles rindo”, disse Zaratustra ao seu coração. “Não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos” Zaratustra percebe então que a outra possibilidade que se oferece ao homem, aquela para a qual o povo está a caminho, é o que ele chama de “o último homem”.
A outra alternativa que se coloca para o homem com a morte de Deus, ao invés do super-homem positivo, criador de valores, é o que Zaratustra chama de “o último homem”, esse perigo terrível que é o homem ausente de vontade, ausente de valor, sem amor, sem anseio, que não sabe criar. E Zaratustra inquieta-se porque teme que chegue “o tempo em que o homem não mais arremessará a flecha do seu anseio para além do homem e em que a corda do seu arco terá desaprendido de vibrar!”
Zaratustra teme o tempo do mais desprezível dos homens, que nem sequer saberá desprezar-se a si mesmo. Sim, porque esse último homem parece avançar no seu modo de ser e tem vida longa, é inteligente, é esperto. São esses que “inventaram a felicidade” e sua espécie é inextirpável como o pulgão. Zaratustra teme o último homem que a tudo apequena, esse que quer certeza, quer a facilidade, quer o calor e por isso diz amar o vizinho, porque nele se esfrega. São esses para os quais toda e qualquer inquietação, todo e qualquer adoecer, todo e qualquer desconfiar, é pecado ¾ são esses para os quais seria um tolo quem ainda tropeça em pedras ou homens. Gostam de sonhos agradáveis e sonham com um agradável morrer. Trabalham, é certo, mas o trabalho é um passatempo, e cuidam para que o passatempo não canse. Não almejam tornar-se ricos ou pobres, pois são por demais penosas ambas as coisas. Não almejam governar, sequer obedecer. São de nenhum pastor e de um só rebanho. Todos são iguais e quem se sente de outro modo vai, voluntário, para o manicômio. Têm pequenos prazeres para o dia e seus pequenos prazeres para a noite, mas respeitam a saúde. São os que “inventaram a felicidade”
E eis que o povo pede a Zaratustra que lhes ensine mais a respeito desse último homem o povo gosta do último homem, não do super-homem. Zaratustra se entristece.
Duas alternativas
À cultura moderna, marcada pelo niilismo da morte de Deus ou pela desvalorização dos valores supremos, dois caminhos se abrem: um, afirmativo, outro negativo; uma possibilidade, a do super-homem, outra, a do último homem; uma, saudável, outra, doente. A saúde consistiria, então, em reconhecer que, após a morte de Deus, a ação do homem já não é chamar os deuses nem invocar a santidade. Agora é a relação criadora do homem para com a terra, para com a vida; é a invocação da suprema possibilidade humana, criar. Eis a doutrina do super-homem. O super-homem que sabe que Deus morreu, isto é, que o idealismo transcendente chegou ao fim, reconhece do “Além” idealista apenas um reflexo niilista da terra. A idéia metafísica de um “Além” brota de uma fonte terrestre original; ela é como que um “sonho” pelo qual se procura obter a libertação de um mal.
O espírito de gravidade
O caráter lúdico e arriscado da existência humana evidencia-se com a morte de Deus. Sem Deus, o risco e o jogo são por si mesmos, estão na vida, são a vida, não encontram justificação. Zaratustra vivenciou isso na praça do mercado, quando se dirigiu aos homens. Um equilibrista, que fazia suas demonstrações no alto de uma corda bamba, cai estatelado no chão e morre. O infortúnio fora em conseqüência do ato de um palhaço que desequilibrara o homem com os seus brados. “Que fazes aqui entre as torres?”, gritara o palhaço para o equilibrista. “Dentro da torre é o teu lugar! É lá que deveriam trancar-te, a ti, que impedes a passagem de alguém melhor do que tu!”. Esta provocação causara o espanto do homem e o fizera cair. Zaratustra tudo vê e socorre o homem. “Que diabo fazes aqui?”, disse o moribundo. “Desde muito eu sabia que o Diabo me daria uma rasteira. Agora ele me arrasta para o inferno; pretendes impedí-lo?” Zaratustra lhe responde: “Não existe nada daquilo que disseste: não existe o Diabo nem o inferno. A tua alma estará morta ainda mais depressa do que o teu corpo; portanto não receie nada!” O homem ergueu os olhos desconfiado. “Se o que dizes é verdade”, falou depois, “eu, então, nada perco, ao perder a vida. Não sou muito mais do que um bicho, que ensinaram a dançar à força de pancadas e pouca comida”. E Zaratustra retruca: “Oh, não! Fizeste do perigo o teu ofício, nada há nisso de desprezível. Morres, agora, vítima do teu ofício…”
O caráter lúdico e arriscado da vida humana sofre permanente ameaça não do Diabo, mas do “espírito do negativo”, do “demônio do niilismo”, aqui personificado pelo palhaço provocador, o inimigo mortal de Zaratustra. Esse demônio arrasta os homens para baixo, faz os homens caírem de suas cordas-bambas, entronizam-se tão perversamente nos homens que estes, ao morrerem, sequer esboçam reação, e morrem resignados achando que, afinal, nada perdem. Zaratustra, ao contrário, é positivo, vê um sentido nada desprezível para o moribundo: o sentido de quem fez do perigo o seu ofício.
A morte do homem
“Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo que deve ser superado. Que fizestes para superá-lo? Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si mesmos; e vós quereis ser a baixa-mar dessa grande maré cheia e retrogradar ao animal, em vez de superar o homem?”[68], assim começara o discurso de Zaratustra na praça do mercado. Trata-se de uma morte o que Zaratustra propõe: a morte do homem. Morte como apagamento de um passado, morte-superação, morte-renascimento.
Aqui, fica bem claro por que a morte de Deus implica na morte do homem: uma vez morto Deus, ao homem não resta senão morrer. Pois, não são duas as alternativas que se põem? Tornar-se o último dos homens, isto é, este que já é o fim em si próprio, ou tornar-se diferente do que é. Mais do que trocar de pele, renascer, transmutar-se, ser outro, não mais homem, mas outra coisa, super-homem.
A permanência do vício antigo
Nietzsche não coloca o homem no lugar de Deus: não diviniza nem idolatra a existência finita. Mas colocar o homem no lugar de Deus é o que fez a nossa moral ocidental niilista, a moral do último homem. O ateísmo, assim o fazendo, permaneceu na toada antiga, no velho vício. “Hegel, sobretudo, foi um estorvo por excelência, graças à tentativa grandiosa que fez para nos convencer ainda, afinal de contas, da divindade da existência, com o auxílio de nosso sexto sentido, o sentido histórico.”Permaneceu-se no vício antigo porque, mesmo tendo Deus por morto, o Ocidente permaneceu inconscientemente a reverenciá-lo ao pôr em seu lugar idéias modernas como “humanidade”, “sociedade livre”, “ciência”, “progresso”, “felicidade”. Nesse sentido, observa Nietzsche que, mesmo morto Deus, algo dele triunfou.
“Vê-se o que triunfou do Deus cristão: a própria moral cristã, a noção de sinceridade aplicada com um rigor sempre crescente; é a consciência cristã aguçada nos confessionários e que se transformou até tornar-se consciência científica, a pureza intelectual a todo preço. Considerar a natureza como se fosse uma prova de bondade e da providência divinas; interpretar a história em honra de uma razão divina, como prova constante de uma ordem moral do universo e do finalismo moral, como o fizeram por tanto tempo os homens pios, vendo em toda parte a mão de Deus, que dispensa e dispõe todas as coisas em razão da saúde de nossa alma.”
Algo de Deus triunfou e grassa entre os homens. O cristianismo, como dogma, pereceu; mas o cristianismo, como moral, não. Em A Genealogia da Moral, de 1887, Nietzsche remete a questão para a vontade de verdade. Quando essa vontade de verdade toma “consciência de si mesma como problema”.Para Nietzsche, o ateísmo é, pois, o aperfeiçoamento, o refinamento da vontade de verdade criada pelo platonismo e o cristianismo. O homem moderno perpetra a morte de Deus, mas queda envolvido pela sombra do Deus morto. Ainda é preciso, portanto, livrar-se dessa sombra. O homem precisa desaparecer.
A morte da divindade
Interessante é observar que Nietzsche emprega a idéia da morte da divindade, quer se referindo à morte de Deus, quer à morte dos deuses. Aqui, examinamos três pontos a partir dos quais Nietzsche vê a questão.
O primeiro ponto pode ser associado a uma interpretação histórica nietzschiana, ao ver a ascensão e derrocada dos deuses como associadas a fenômenos históricos humanos, demasiado humanos. Nesta acepção, as eras históricas dos homens engendram seus deuses. A esse respeito, Nietzsche refere-se particularmente a duas transições: a que marcou a desvalorização do Velho Deus dos hebreus, na figura do Pai, e a valorização do Filho; e a transição que marcou a derrocada dos deuses greco-romanos e a ascenção do cristianismo no Ocidente. Fazendo uma alusão a Feuerbach, para quem os deuses são criação dos homens, podemos pensar esta primeira acepção como a de uma visão feuerbachiana da morte de deus.
O segundo ponto é o que acabamos de examinar neste capítulo: a morte de Deus como fenômeno da era moderna, e que implica na morte do homem. Trata-se aqui da seguinte questão: o homem ocidental niilista e ateu só tem uma alternativa: desaparecer. Aqui, duas possibilidades: uma, negativa: o último homem; outra, positiva: tornar-se um criador, deixar de ser homem e transmutar-se em super-homem.
Finalmente, o terceiro ponto deriva do que também já foi examinado: Deus como ilusão da consciência, da razão e da linguagem, morte de Deus como conseqüência da percepção de que se trata de um erro gramatical.
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