CAPÍTULO 2
-LINGUAGEM E LITERATURA
Tragédia e literatura
O Foucault trágico da década de 60 é também o Foucault profundamente interessado na questão da linguagem e da literatura. Pode-se mesmo entender que Foucault privilegia em História da Loucura a relação entre literatura e loucura. Loucura é ausência de obra, quer aí Foucault caracterizar; vale dizer, obra de linguagem, literatura. Já em O Nascimento da Clínica, haverá um deslocamento para a relação entre literatura e morte, conforme iremos ver adiante. Em As Palavras e as Coisas, por outro lado, Foucault privilegia uma contestação da linguagem a partir da própria linguagem literária. Há, pois, três momentos a considerar no Foucault dessa época: um primeiro em que a preocupação com a linguagem se volta para a literatura; um segundo em que se volta para a morte; e um terceiro, voltado para uma ontologia da linguagem.
Pode-se ver ainda no Foucault trágico, vale dizer, no pensador profundamente influenciado por Nietzsche, dois aspectos: um aspecto negativo, marcado pelo momento constituído por um não, ou seja, pela crítica da psiquiatrização, medicalização e internação da loucura; e um aspecto positivo, um sim, constituído pelo elogio da loucura considerando-a como experiência trágica no terreno da literatura.
Com isso, queremos assinalar a importância da linguagem na pesquisa foucaultiana, e é Nietzsche quem mais intensamente ilumina Foucault nesta tarefa. Para bem compreendermos como isso se dá, examinemos o trabalho apresentado por Foucault no colóquio de Royaumont de julho de 1964, dedicado a Nietzsche.
Nietzsche, Freud, Marx
Michel Foucault, em texto intitulado Nietzsche, Freud, Marx, se incumbe a tarefa de apreciar as técnicas de interpretação daqueles pensadores. Neste trabalho, Foucault considera que a partir do século XIX “voltamos a crer que os gestos mudos, as doenças, toda a confusão que nos circunda, podem a pleno título falar ¾ e que mais do que nunca estamos à escuta de toda esta linguagem possível, na tentativa de surpreender, sob as palavras, um discurso mais essencial”.
Na base da discussão de Foucault está a questão da linguagem, questão essa que aparece sobretudo em face de duas suspeitas:
1) a de que a linguagem não diga exatamente o que diz, sendo talvez o sentido que dela se colhe, ou seja, o que é imediatamente manifesto, uma realidade menor e que enclausura algo maior, acabando por ter outro sentido daquele que se queria dar; por baixo da linguagem haveria um sentido mais forte, aquilo que os gregos chamavam allegoria e hyponoia; e
2) a suspeita de que existem muitas outras coisas no mundo que falam e que não são linguagens, como, por exemplo, “aquilo que se pode depreender da natureza, do mar, do farfalhar das árvores, dos animais, dos rostos, das máscaras, das facas cruzadas”, e a suspeita de que talvez exista uma linguagem que se articula de uma maneira não verbal, como aproximadamente entendiam os gregos por semainon.
O século XVI como referência
Para compreendermos o sistema de interpretações fundado a bem dizer em nossa contemporaneidade, Foucault nos remete a um ponto de referência mais distante: o século XVI, ao Classicismo. Nessa época, segundo ele, o que dava lugar à interpretação era a semelhança. Lá, onde as coisas se assemelhavam, qualquer coisa podia ser decifrada. E esse corpus de semelhanças era perfeitamente organizado e comportava cinco noções perfeitamente definidas: a Convenientia, que dizia respeito ao adequamento das coisas entre si; a Sympatheia, que dizia respeito à sua afinidade; a Aemulatio, que dizia respeito ao paralelismo de atributos das coisas; a Signatura, que referia-se à propriedade visível como imagem de algo escondido; e a Analogia, que referia-se à identidade de relações entre duas ou mais coisas.
Com base nessas cinco noções, as coisas do mundo eram comparadas para ver se assemelhavam-se e daí surgia o saber. Dessa forma, na teoria do signo e na técnica de interpretações, dois tipos de conhecimento resultavam: a Cognitio, que era a passagem de um certo modo lateral de uma semelhança à outra; e a Divinatio, que era o conhecimento em profundidade. Assim, as semelhanças manifestavam o Consensus do mundo que as funda, sendo que a este opunha-se o Simulacrum, que é a má semelhança, estando tal oposição fundada naquela entre Deus e o diabo.
Da ruptura do século XIX e das novas possibilidades
Marx (1818-1883), Nietzsche (1844-1900) e Freud (1856-1939) são pensadores do século XIX que vão influenciar enormemente o pensamento do século XX. No seu trabalho, Foucault vai observar que algo comum acontece: todos eles nos remetem incessantemente para novas possibilidades de interpretação, possibilidades essas bem diversas daquelas do século XVI. Nesse sentido é que podem ser entendidas como puras técnicas interpretativas o primeiro livro de O Capital, de Marx, O Nascimento da Tragédia e a Genealogia da Moral, de Nietzsche, e A Interpretação dos Sonhos, de Freud.
Ocorre que nesses trabalhos aí está a grande novidade! há como que um reconhecimento do que o próprio Marx chamava de “hieróglifos”. É que aquilo a ser interpretado nos deixa numa posição incômoda. Agora, somos nós mesmos que passamos a ser objeto da interpretação; o homem, outrora intérprete do mundo, assume agora a posição de interpretador de si mesmo. Interpretador da vida, do trabalho e da linguagem de si mesmo; interpretador de algo extremamente enigmático.
Ao interrogar os intérpretes que foram Freud, Nietzsche e Marx, Foucault vê surgir um jogo indefinido de espelhos que remete a infinitas possibilidades.
Que interessante transformação é essa que tira do homem a certeza da homogeneidade e funda a infinita incerteza dentro do finito de si mesmo! Que interessante movimento de pensamento é esse que sai de um espaço homogêneo de infinitas interpretações e cai numa heterogeneidade completa, infinita, porém dentro da finitude que é o homem!
Eis que, em Nietzsche, o que se manifesta é uma crítica da profundidade da consciência. Em Nietzsche, há uma acusação de que a consciência é uma invenção dos filósofos em busca da “verdade” como algo interior e que implica em resignação, hipocrisia, máscara. Assim, quando percorre os signos para denunciá-los, o intérprete deve descer ao longo de toda a linha vertical e mostrar que o profundo da interioridade é em realidade outro com respeito àquilo que exprime.
Foucault cita Nietzsche observando que há, em primeiro lugar, pensadores superficiais; em segundo lugar, pensadores profundos os que descem à profundeza das coisas, em terceiro lugar, pensadores radicais que vão ao fundo das coisas, o que tem muito mais valor do que simplesmente descer às profundezas! e finalmente pensadores que enterram a cabeça na lama: o que não é, evidentemente, sinal nem de profundidade, nem de radicalidade! São os nossos queridos “pensadores do subsolo”.
Nietzsche sugere que o profundo é bem outro: é preciso imiscuir-se na lama do mundo para captar o mundo. E a lama dá-se na superfície. Eis que a profundidade, que estava recoberta e sepultada, é restituída como segredo absolutamente superficial. Trata-se de uma inversão da profundidade; a descoberta de que a profundidade não era mais do que um jogo, uma prega da superfície, e de que tudo o que tinha constituído a profundidade do homem outra coisa não é do que jogo infantil. Assim, há que se elevar, como o faz Zaratustra ao subir a montanha, para perceber a superficialidade do mundo.
Para Marx, por outro lado, deve-se descer ao nevoeiro para mostrar que de fato não existem monstros nem inimigos profundos, já que tudo quanto é profundo na concessão que a burguesia se faz do dinheiro, do capital, do valor, etc., não é mais que superficialidade.
Em Freud, o homem vive as três grandes feridas narcisísticas da cultura: a ferida copernicana (a Terra não é o centro do universo); a ferida darwiniana (nós descendemos do macaco); e a ferida freudiana (a consciência se funda no inconsciente). Para Freud, o espaço da interpretação é construído na topologia da consciência e do subconsciente e também nas regras sobre a atenção psicanalítica, na decifração do fluxo do falar do analisando; aí há uma espacialidade bastante material a qual Freud atribuía grande importância e que expõe o paciente ao olhar profundo do psicanalista.
Dessa forma, Marx Nietzsche e Freud não propriamente modificam o espaço de repartição onde os signos do mundo se dão. Marx, Nietzsche e Freud sequer multiplicam os signos do mundo ocidental e também não dão propriamente um sentido novo às coisas que já não tinham sentido. Na realidade, o que fazem, segundo nos aponta Foucault, é transformar a natureza do signo, modificando o modo pelo qual este, em geral, pode ser interpretado.
Uma tarefa infinita
Muito embora no século XVI o conhecimento das coisas já se apresentasse ilimitado, se bem que dando-se no terreno homogêneo da semelhança, a partir do século XIX os signos vão-se caracterizar, segundo Foucault, no interior de uma rede inexaurível, também infinita, porém onde os vazios e as aberturas são irredutíveis.
É que a interpretação é sempre incompleta. A incompletude da interpretação, o ser fragmentado dela, o permanecer em suspenso, isso se encontra de modo bastante análogo em Marx, Nietzsche e Freud. Por exemplo, na rejeição de Marx às explicações elaboradas em termos dos propósitos, atitudes e crenças individuais, preferindo considerá-las elas próprias como matéria a ser explicada, postulando que as teorias e modos de pensar individualistas, e particularmente as formuladas em termos de indivíduos abstratos, fora do contexto histórico, são “robinsonadas” expressão por ele cunhada na introdução de Crítica da Economia Política e inspirada no personagem de Robinson Crusoé que ocultam as relações sociais subjacentes, sobretudo as relações de produção, as quais, por sua vez, explicam o pensamento e a ação individuais.
A incompletude da interpretação se encontra na importante distinção para Nietzsche entre início e origem. Encontra-se também no caráter sempre incompleto do andamento regressivo e analítico em Freud.
A região perigosa
Para Foucault, uma experiência importante para a hermenêutica contemporânea é o fato de que quanto mais alguém se embrenha na interpretação, tanto mais se avizinha de uma região absolutamente perigosa, onde não só a interpretação encontra seu ponto de involução, mas onde desaparece como interpretação, provocando talvez o desaparecimento do intérprete mesmo.
A existência do ponto absoluto em direção ao qual a interpretação constantemente procede comportaria a existência de um ponto de ruptura. Pode-se assim depreender do caráter aberto da interpretação em Freud, no Traumdeutung. Aí, Freud interrompe a análise dos próprios sonhos apelando a pudores e para não divulgar um segredo pessoal. Também, na análise de Dora, existe a idéia de que a interpretação deva parar, de que não pode prosseguir até o fim em razão da “transferência”. É através do estudo da “transferência” que vem sustentada a inexauribilidade da análise em virtude do caráter infinito e infinitamente problemático da relação entre analisado e analista, relação essa obviamente constitutiva da psicanálise e que abre o espaço no qual ela se desenvolve incessantemente sem poder nunca se completar.
Em Nietzsche, resulta evidente que a interpretação é sempre incompleta. Para ele, filosofia é um tipo de filologia sempre em suspenso, uma filologia sem fim que se desenvolve andando sempre mais longe, uma filologia que não poderia nunca se estabelecer absolutamente. Para ele, pode ser da constituição básica da existência o fato de alguém se destruir ao conhecê-la inteiramente, ou seja, o fato de quem atingir o conhecimento perfeito encontre o anulamento, muito embora esse conhecimento resida no fundamento do ser.
Também em Freud, nas suas correspondências, podem ser decifradas preocupações constantes que o assaltam justo no momento em que descobre a psicanálise; sendo este o caso de inquirir se a sua experiência não era, no fundo, bastante semelhante àquela de Nietzsche. E nesse ponto Foucault, autor de A História da Loucura, sugere que “no ponto de ruptura da interpretação, no seu convergir em direção a um ponto que a torna impossível, poderia muito bem aproximar-se a questão de qualquer coisa como a experiência da loucura. (…) Esta experiência seria a conseqüência inelutável de um movimento da interpretação que se aproxima ao infinito do próprio centro e afunda carbonizada.”
Da natureza dos signos
Foucault vê, ligados à incompletude da interpretação, outros princípios que se apresentam como postulados da hermenêutica contemporânea. Assim ele os enuncia:
Não há nada a interpretar; no fundo, tudo é já interpretação; cada signo não é por si a coisa que se oferece à interpretação, mas interpretação de outros signos; não existe um interpretandum que não seja já interpretans; na interpretação, o que se estabelece é uma relação, seja de violência, seja de clarificação; na realidade, a interpretação não esclarece propriamente uma matéria que a ela se ofereceria passivamente; o que faz é assenhorear-se, apoderar-se e com violência de uma interpretação já existente e que é revirada, subvertida, destruída a golpes de martelo.
Veja-se, por exemplo, em Marx: este não interpreta a história das relações de produção, mas uma relação que não se apresenta como natureza, mas já como interpretação.
Veja-se em Freud, que não interpreta signos, mas interpretações: sob os sintomas Freud descobre não propriamente os “traumas”, mas os fantasmas, com sua carga de angústia, vale dizer: como um núcleo que é já, per si, no seu próprio ser, uma interpretação.
Veja-se em Nietzsche, para quem não existe um significado original: as palavras mesmas nada mais são do que interpretações; ao longo de toda a sua história, antes de serem sinais, as palavras interpretam no fim, significam, mas só porque não são mais do que interpretações essenciais.
No estudo da origem da palavra grega Agaqos Nietzsche mostra como as palavras são inventadas pelas classes superiores, não significando algo prévio mas impondo uma interpretação. Em conseqüência, somos destinados incessantemente à tarefa de interpretar, não porque existam signos primeiros e enigmáticos, mas porque são meras interpretações, porque assim continuam a ser debaixo de todo o falar do grande tecido das interpretações violentas, este é o motivo, para Foucault, pelo qual existem signos. São signos que nos obrigam a revirá-los do avesso como signos. Estranheza e inquietação, este é o mundo dos signos.
Assim, o que está no fundamento da linguagem e antes dela são a allegoria e a hyponoia dos gregos. Estas são, no dizer de Foucault, aquilo que gerou as palavras, fazendo-as cintilar com uma reverberação que não se fixa nunca.
Em Nietzsche, o intérprete é o verídico, é o verdadeiro, não porque se apropria de uma verdade adormecida para proferi-la, mas porque pronuncia a interpretação que toda a verdade tem a função de encobrir. Existe, pois, segundo nos aponta Foucault, um primado da interpretação sobre os signos, sendo este fato o que de mais decisivo existe na hermenêutica contemporânea. Assim, o signo não é um ser simples e benévolo como no século XVI, quando a abundância de signos, o fato de que as coisas se assemelhavam, era prova da benevolência de Deus, e o signo era separado do significado só por um véu transparente. No século XIX, a partir de Freud, Marx e Nietzsche, o signo converte-se em algo ambíguo, que nos seja uma maneira ambígua e um pouco turva de malquerer, de hostilizar. Os signos são interpretações que tentam justificar-se, e não o contrário. Foucault exemplifica com o dinheiro nas análises da Crítica da Economia Política; também com os sintomas de Freud; e, em Nietzsche, com as palavras, a justiça, e as classificações binárias do bem e do mal. Os signos são máscaras e, dessa forma, perdem a sua essência simples de significante que ainda tinham na época do Renascimento.
São duas as conseqüências importantes que derivam do fato de a interpretação encontrar-se diante da tarefa de interpretar-se ao infinito:
1) a interpretação será sempre, enfim, interpretação de alguém. Assim, cumpre sempre perguntar: interpretação de quem? — quem pôs a interpretação? — o princípio da interpretação não é outro que o intérprete;
2) a interpretação deve interpretar sempre a si mesma e disso não pode evitar de retornar a si.
Assim, conclui Foucault, em oposição ao tempo dos signos, que foi o tempo das trocas, e em oposição ao tempo da dialética, que malgrado tudo é linear, existe um tempo circular da interpretação. Crer que existam signos que preexistam originários, reais, como marcas homogêneas, pertinentes e sistemáticas, isto é a morte da interpretação. A vida da interpretação é, assim, crer que nada existe além de interpretações.
Como aqui não lembrar de Nietzsche? Do eterno retorno que o tempo é um círculo , e da morte de Deus a inexistência do absoluto.
O visível e o dizível
No ano de 1963, anterior ao colóquio de Royaumont, Foucault havia publicado um livro em que discute os trabalhos de um escritor parisiense, Raymond Roussel, nascido em 1877, pelo qual muito se entusiasmara. Pode-se considerar esse livro como fazendo parte de um “ciclo literário”, ciclo esse que durou de 1962 a 1966 no qual Foucault elaborou também uma série de artigos sobre escritores. No livro, Foucault discute o trabalho de Roussel em termos do “processo” descrito em seu Comment j’ai écrit certains de mes livres (de como escrevi alguns de meus livros), traçando paralelos metafóricos entre a loucura e a morte do escritor e sua técnica literária. Foucault questiona se as obsessões irracionais de Roussel, e sua morte real dentro de um quarto trancado, não refletem suas explorações narrativas baseadas nas diferenças semânticas entre frases proximamente homógrafas o procedimento do “processo” e a origem/limite daquele processo no espaço vazio entre as palavras e as coisas que elas representam.
Foucault concorda com a reivindicação de Roussel de que o processo é o princípio constitutivo de seus quatro trabalhos centrais, mas acrescenta que esse processo também revela as técnicas básicas de Roussel em outros trabalhos. Foucault mostra como, nesse contexto, os trabalhos mais antigos de Roussel jogam o visível contra o dizível, usando elementos daquelas duas esferas alternadamente. O trabalho de Roussel opõe o visível ao dizível, descobrindo na diferença entre eles um vazio a ser preenchido com a curiosa potencialidade ontológica da palavra. No trabalho final Nouvelles impressions, Roussel abandona a esfera das coisas, voltando-se diretamente para o “espaço vazio” que “ecoa dentro dos mais profundos recessos da linguagem mesma”. Foucault conclui que, em Roussel, a exploração daquele vazio e a “agonia do significante” que o caracteriza prevê a verdade central de nossa linguagem contemporânea: “o significar” não é inadequado; os signos, esses sim, o são. Assim, a representação do mundo revela-se uma inevitável “falência”, porque existe muito mais significados do que signos. Foucault sustenta todavia que essa “falha” da capacidade representativa é a fonte do grande poder dos “signos”.
O ser da linguagem
Será pensando o ser da linguagem que Foucault irá em 1966 apresentar outras interessantes reflexões a respeito do tema. Estamos aqui nos referindo à temática de As palavras e as Coisas e também do texto correlato de O pensamento do exterior. Neste texto, Foucault observa que a origem do que se entende por “literatura” não pertence à ordem da interiorização senão para uma visão superficial; trata-se muito mais de um trânsito ao “exterior”. É que aqui a linguagem escapa do modo de ser do discurso, ou seja, da “dinastia da representação”, e a palavra literária se desenvolve a partir de si mesma, formando uma rede.
Para Foucault, a literatura não é a linguagem que se identifica consigo mesma mas sim a linguagem distanciando-se o mais possível de si mesma. Assim, o “sujeito” da literatura não seria tanto a linguagem na sua positividade quanto o vazio em que se encontra seu espaço quando se enuncia. E esse espaço se enuncia no puro falar. “Falar” põe à prova toda a ficção moderna, ensina Foucault. E, a que extrema sutileza, a que ponto singular e tênue chegaria uma linguagem que quisesse reivindicar-se na despojada forma do “falo”? indaga Foucault, conjecturando assim a respeito: “A menos, precisamente, que o vazio em que se manifesta a exigüidade sem conteúdo do ‘falo’ não seja uma abertura absoluta por onde a linguagem possa se propagar ao infinito, enquanto que o ‘sujeito’ o ‘eu’ que fala se fragmenta, se esparrama e se dispersa até desaparecer neste espaço vazio”. Sem efeito, a linguagem só tem lugar na soberania solitária do “falo”, ninguém tem direito de limitá-lo nem aquele ao qual se dirige nem a verdade daquele que diz, nem os valores ou os sistemas representativos que utiliza; numa palavra, já não é discurso nem comunicação de um sentido, mas a exteriorização da linguagem no seu ser bruto, pura exterioridade elucidada; e o sujeito que fala não é responsável pelo discurso (aquele que o detém, que afirma e julga mediante ele, representando-se às vezes sob uma forma gramatical disposta a estes efeitos), como a inexistência em cujo vazio se prolonga sem descanso o derramamento indefinido da linguagem.
Hoje, o que importa é pensar esta ficção quando antigamente o que importava era pensar a verdade. Hoje, “falo” põe à prova toda a ficção moderna do mesmo modo que “minto” o paradoxo de Epimênedes fez estremecer a verdade grega antiga, e talvez a verdade da época medieval. Hoje, falar “minto” não representa paradoxo algum se compreendermos esse “falar” como uma pura exterioridade. Falo, e assim fazendo digo “minto”. Digo “minto” assim como poderia dizer qualquer outra coisa, inclusive “falo”. Aqui, não se trata mais de se prender ao fato de que o sujeito que fala é o mesmo que aquele do qual se fala e, logo, exigir dele uma coerência, uma verdade. Mas sim, de que o falar se refere a um discurso que, ao mesmo tempo que lhe oferece um objeto, lhe serve de suporte. Sendo assim, observa Foucault, “este discurso está ausente; o ‘falo’ não é o dono de sua soberania mais do que na ausência de qualquer outra linguagem; o discurso do que falo não preexiste a nudez enunciada no momento em que digo ‘falo’; e desaparece no mesmo instante em que me calo.”
Para Foucault, o “falo” funciona como o revés do “penso”. “Este conduzia (…) à certeza indubitável do Eu e de sua existência; aquele, pelo contrário, afasta, dispersa, apaga esta existência e não conserva dela mais do que sua citação vazia.” Terá sido então, observa Foucault, o pensamento do pensamento, na tradição antiga que a filosofia nos ensinou, o que nos conduzia à interiorização profunda, assim como a palavra da palavra nos conduz pela literatura, mas talvez por outros caminhos, a esse exterior de onde desaparece o sujeito do qual se fala. Pensar o ser da linguagem é, pois, pôr em risco a evidência do “existo”.
Foucault considera que assim evidencia-se o ocaso de uma incompatibilidade na transição para uma linguagem em que o sujeito está excluído. Trata-se da incompatibilidade entre a aparição da linguagem em seu ser e a consciência de si em sua identidade. Não há, pois, mais alguma incompatibilidade entre a linguagem e a consciência de si se admitirmos nessa linguagem a supressão do sujeito.
Foucault observa que, de repente, nos encontramos diante de um hiato que durante muito tempo tinha sido ocultado: o ser da linguagem não aparece por si mesmo mais do que no desaparecimento do sujeito.
Como ter acesso a esta estranha relação? Talvez mediante uma forma de pensamento do que a cultura ocidental não fez mais do que esboçar, em suas margens, sua possibilidade contudo incerta. Este pensamento que se mantém fora de toda a subjetividade para fazer surgir como do exterior seus limites, enunciar seu fim, fazer brilhar sua dispersão e não obter mais do que sua irrefutável ausência e que ao mesmo tempo se mantém no princípio de toda positividade, não tanto para extrair seu fundamento ou sua justificativa, quanto para encontrar o espaço em que se desvincula o vazio que lhe serve de lugar, à distância em que se constitui e na qual se dissipam, desde o momento em que é o objeto da mirada, suas certezas imediatas, este pensamento, com relação à positividade do nosso saber, constitui o que poderíamos chamar em uma palavra “o pensamento do exterior”.
Encontrar as categorias fundamentais desse pensamento do exterior, bem como encontrar o vestígio de seu trajeto, para buscar de onde provém e a que direção leva, eis a tarefa. Nesse sentido Foucault considera que poder-se-ia muito bem supor que ele tem sua origem no pensamento místico que habitou o cristianismo sob as formas de uma teologia negativa: colocar-se “fora de si” e seguir a Palavra de Deus, onde ser é palavra e ”mais além de toda linguagem, silêncio, mais além de todo ser, nada”.
Mas Foucault observa também que talvez o pensamento do exterior “se rompe até nós” no que ele considera o “monólogo insistente de Sade”, e isto se dá num momento em que a interiorização da lei da história e do mundo (tratava-se da época de Kant e Hegel) era imperiosamente requerida. Para Foucault, Sade não deixa que fale, como lei sem lei no mundo, “mais que a mudez do desejo”. Será também na poesia de Hölderlin que “se manifestava a ausência resplandecente dos deuses e se enunciava como uma nova lei a obrigação de esperar, sem dúvida até o infinito, a enigmática ajuda que provém da ‘ausência de Deus’”.
E Foucault então conjectura se “pôr a nu o desejo no murmúrio infinito do discurso” e “descobrir o subterfúgio dos deuses no efeito de uma linguagem em vias de perder-se”, se isso não se trata já de depositar no nosso pensamento para o século vindouro a “experiência do exterior”, muito embora de maneira resumida. Para Foucault, essa experiência reaparece na segunda metade do século XIX e “no seio mesmo da linguagem” em Nietzsche, em Mallarmé, em Artaud, em Bataille, em Klossowski. Em Nietzsche quando este “descobre que toda a metafísica do Ocidente está ligada não somente à sua gramática (…) senão àqueles que, apropriando-se do discurso, detenham o direito da palavra”; em Mallarmé quando “a linguagem aparece como o ócio daquele que nomeia e como o movimento no qual desaparece aquele que fala” para Foucault, Mallarmé mostra bem como o jogo próprio e autônomo da linguagem vem se alojar lá onde precisamente o homem desaparece; em Klossowski, “com a experiência do duplo, da exteriorização dos simulacros, da multiplicação teatral e demente do Eu”.
A conjunção linguagem, conhecimento e morte
Em Naissance de la clinique: une archéologie du régard médical (O nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico, 1963), Foucault descreve a emergência da medicina clínica na França no fim do século XVIII. Traça a consequente evolução do conceito médico de doença a partir de sua base nos sistemas abstratos nosográficos, nos quais as doenças eram classificadas, no século XVII, e aparecem através do corpo, em função de um lugar no espaço material do corpo, corpo esse literalmente aberto pela anatomia patológica nos primeiros anos do século XIX.
Assim é que a medicina baseada na anátomo-clínica constrói um conhecimento do homem sobre a base de sua própria finitude, autorizando-o a compreender-se dentro de sua linguagem (…) somente pela abertura criada com sua própria eliminação. A medicina é, assim, fundamental para todas as ciências humanas porque é a que mais se aproxima da estrutura antropológica que as sustenta; nela temos a conjunção paradoxal de linguagem, conhecimento e morte que constitui o indivíduo tanto como objeto quanto como sujeito do conhecimento positivo.
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