CAPÍTULO 3 –
DA MORTE DE DEUS E DA MORTE DO HOMEM
Da morte de Deus
Será em Préface à la Transgression (Hommage à G.Bataille), de 1963, que podemos obter importantes observações de Foucault sobre as conseqüências da morte de Deus. Para Foucault, todos os nossos gestos se dirigem à essa ausência, numa “profanação” que a designa, a conjura, se abate nela e se acha enviada por ela à uma pureza vazia de transgressão.
A morte de Deus retira de nossa existência o limite do Ilimitado e nos reconduz a uma experiência onde nada pode anunciar a exterioridade do ser uma experiência por conseqüência interior e soberana. Para Foucault, com a morte de Deus passamos do “limite do Ilimitado” ao “ilimitado do limite”, este infinito de nós mesmos.
Assim, com a morte de Deus, resta-nos traçar o limite em nós, desenhando-nos, nós mesmos, como limite. Resta-nos o interior, nesta experiência onde reside o impossível: uma vontade de ir além transgredindo. Para Foucault, a transgressão concerne ao limite; e o jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples: a de ultrapassar, vencer, superar; a transgressão não cessa de assim o fazer.
A transgressão leva o limite até o limite de seu ser. Libertá-la de seus parentescos com a ética, libertá-la do que é escandaloso ou subversivo, é libertá-la do que é animado pela potência do negativo. Não se trata de uma negação generalizada, mas de uma afirmação que não afirma nada: plena ruptura de transitividade. E será aí, ao limite, que se chega à decisão ontológica. Contestar é ir ao coração vazio onde o ser tem o seu limite e onde o limite define o ser.
A transgressão se abre, pois, sobre um mundo cintilante e sempre afirmado, um mundo sem sombra, sem crepúsculo, sem esse “escorregamento do não” da dialética que corrói os frutos do mundo e crava em seu coração o espírito da contradição. Ela, a transgressão, é o avesso solar da negação satânica; assim, ela tem parte com o divino, ou antes, ela abre o sagrado a partir desse limite o sagrado, espaço onde se dá o divino.
Substituir a experiência do divino no coração do pensamento é o que, segundo Foucault, a filosofia, desde Nietzsche, sabe ou bem deveria saber. E, acrescenta: interrogar uma origem sem positividade e uma abertura que iguala as “potências do negativo”.
É nesse sentido que Foucault conjectura se o pensamento de Nietzsche não seria, assim, uma Crítica e uma Ontologia, um pensamento que penetraria na finitude do ser. Para nos acordar do sono da dialética e da antropologia, observa Foucault, foi preciso as figuras nietzschianas do trágico e de Dionísio, da morte de Deus, do eterno retorno, do martelo do filósofo, do super-homem…
Da morte do homem
Em Les mots et les Choses Une archéologie des sciences humaines (As Palavras e as Coisas, 1966), Foucault mostra de que peças e de que partes o homem foi composto no final do século XVIII e início do século XIX. Foucault assim o diz , ressaltando que procurou nesse trabalho “caracterizar a modernidade dessa figura”, o homem. Tratava-se de mostrar o seguinte: não é tanto por ter tido um cuidado moral com relação ao ser humano que se teve a idéia de conhecê-lo cientificamente mas, ao contrário, porque se construiu o ser humano como objeto de um saber possível que são desenvolvidos em seguida todos os temas morais do humanismo contemporâneo. Porém, o humanismo não se sustenta.
Para Foucault, o movimento humanista data do fim do século XIX, e quando se observam mais de perto as culturas dos séculos XVI, XVII e XVIII verifica-se que, nelas, o homem não tinha literalmente nenhum lugar. A cultura de então era ocupada por Deus, pelo mundo, pela semelhança das coisas, pelas leis do espaço, pelos corpos, pelas paixões, pela imaginação. Mas o homem, ele mesmo é ausente.
Para Foucault, ao humanismo vai suceder uma cultura não dialética que está se formando e é ainda bastante incipiente. Essa cultura, para ele, começa com Nietzsche “logo que ele mostrou que a morte de Deus não era a aparição mas o desaparecimento do homem, que o homem e Deus tinham estranhas relações de parentesco, que eram a uma vez irmãos gêmeos e pai e filho um do outro, que uma vez Deus morto o homem não pode não desaparecer, deixando atrás de si um medonho e horrível anão”. Mas essa cultura não dialética aparece também em Heidegger, quando ele procura resgatar a relação fundamental do ser associando-o a um retorno à origem grega. Também aparece em Russell quando ele faz a crítica lógica àfilosofia, em Wittgenstein, quando ele coloca o problema das relações entre lógica e linguagem, e também nos lingüistas, e nos antropólogos como Lévi-Strauss.
Para Foucault, deve-se tratar de descobrir a forma própria e absolutamente contemporânea deste pensamento não dialético. Enquanto que a razão analítica do século XVII se caracterizava pela sua referência à natureza e a razão dialética do século XIX desenvolveu-se sobretudo em referência à existência, ou seja, ao problema das relações do indivíduo com a sociedade, da consciência com a história, da práxis com a vida, do sentido com o não-sentido, do vivente com o inerte, o pensamento não dialético de agora tem por objeto próprio o saber. Sua posição será de interrogar a respeito da relação que pode ter, de uma parte, entre os diferentes domínios do saber e, de outra parte, entre saber e não-saber.
A antropologia como analítica do homem teve para Foucault indubitavelmente um papel constituinte no pensamento moderno. Ela se tornou necessária a partir do momento em que a representação perde o poder de determinar o jogo de suas sínteses e de suas análises. “Era preciso que as sínteses empíricas fossem asseguradas em qualquer outro lugar que não na soberania do eu penso”. Passaram a ser requeridas precisamente na finitude do homem finitude da consciência, do indivíduo que vive, fala, trabalha. A filosofia moderna passa a ser caracterizada por uma preocupação com o homem e eis que aí adormeceu um sono novo; não mais o Dogmatismo de outrora, mas o da Antropologia. É como se a configuração antropológica da filosofia moderna desdobrasse o dogmatismo da análise do que é o homem em sua essência para convertê-la na análise de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem.
Para despertar o pensamento desse sono antropológico, não há outro meio que abandonar seus fundamentos. Foucault considera que todos os esforços para pensar de novo investem contra ele: trata-se de atravessar o campo antropológico e apartar-se dele a partir do que ele enuncia, para reencontrar uma ontologia purificada ou um pensamento radical do ser, bem como, colocando fora do circuito o psicologismo e o historicismo, assim como todas as formas do preconceito antropológico, tentar reintegrar os limites do pensamento e reatar com o projeto de uma crítica geral da razão.
O escoar do devir, com todos os seus recursos de drama, de olvido, de alienação, será captado numa finitude antropológica que aí encontra em troca sua manifestação iluminada. A finitude, com sua verdade, se dá no tempo: e, desde logo o tempo é finito. O grande devaneio de um termo da História é a utopia dos pensamentos causais, como o sonho das origens era a utopia dos pensamentos classificadores.
No elogio de As Palavras e as Coisas, podemos ver o quanto Foucault admira e se inspira no Nietzsche “incendiário” das formas estáveis da dialética e da antropologia.
Essa disposição foi por longo tempo constringente; e, no fim do século XIX, Nietzsche a fez cintilar uma última vez, incendiando-a. Retomou o fim dos tempos para dele fazer a morte de Deus e a errância do último homem; retomou a finitude antropológica, mas para fazer fulgir o arremesso prodigioso do super-homem; retomou a grande cadeia contínua da História, mas para curvá-la no infinito do retorno.
A morte de Deus, a iminência do super-homem, a promessa e o terror do grande ano se esforçam em vão por retornar, como que termo a termo, os elementos que se dispõem no pensamento do século XIX e formam sua rede arqueológica, mas não é menos certo que inflamam todas essas formas estáveis, desenham com seus restos calcinados rostos estranhos, impossíveis talvez; e, a uma luz de que não se sabe ainda ao certo se reaviva o último incêndio ou se indica a aurora, vê-se abrir o que pode ser o espaço do pensamento contemporâneo. Foi Nietzsche, em todo o caso, que queimou para nós, e antes mesmo que tivéssemos nascido, as promessas mescladas da dialética e da antropologia.
Desenraizamento da antropologia, é o que Foucault sugere, considerando que talvez o primeiro esforço nesse sentido tenha sido feito por Nietzsche através de uma crítica filológica, ao reencontrar o ponto onde o homem e Deus pertencem um ao outro, onde a morte do segundo é sinônimo do desaparecimento do primeiro, e onde a promessa do super-homem significa a iminência da morte do homem. Para Foucault, Nietzsche propõe-nos esse futuro ao mesmo tempo como termo e como tarefa, marcando o limiar a partir do qual a filosofia contemporânea pode recomeçar a pensar.
CONCLUSÃO
Para nós, pensar a morte dos deuses parece constituir-se numa maneira bastante interessante de se compreender a transição das épocas históricas e das mudanças na forma de ver e de explicar o mundo. Este trabalho, assim orientado, pode subsidiar o próprio estudo da história das idéias, tornando mais rica a filosofia.
Terá sido o estudo dos tempos remotos de nossa civilização, da língua grega e da Grécia Antiga, em particular, o que possibilitou, talvez, uma primeira compreensão deste fato: de que, por detrás das mortes dos deuses, encontramos as rupturas, as transições, as mudanças históricas.
Outrora, existiu na Grécia uma maneira de ver e de explicar o mundo que não é mais a de hoje. Essa maneira mudou. Outrora, múltiplos eram os deuses, fortes, guerreiros eles eram tais quais os homens gostariam de ser, e governavam o mundo, ou melhor, aspectos do mundo, assim constituindo seu fundamento. Nos tempos mitológicos contados por Hesíodo e Homero, o que prevalecia era a força, o embate, a luta, o empenho aventureiro, a espontaneidade do herói, a coragem, o jogo. E esses deuses morreram? “Morreram de rir, ao ouvir um Deus dizer que era único” ironizava Nietzsche. Mas o fato é que morreram. Os imortais morreram. Os deuses gregos, que também foram os deuses dos romanos, a uma certa época viram-se enfraquecidos, esquecidos, destronados, mortos. No seu lugar, assume o Deus cristão.
Com a vitória da Judéia sobre Roma, são os deuses do Olimpo, sobretudo, que perdem importância e morrem. E eis que um novo deus surge, um deus que parece ter sido arquitetado para todos, um deus de aceitação universal. Contrariamente ao antigo deus hebreu, vingativo e forte, esse apresenta-se fraco, sem pecado, sem vontade. Um deus que morre na cruz, um deus à imagem e semelhança de um povo escravo. No entanto, esse deus venceu, passou a ser aquele a ser imitado, um mito Jesus Cristo, o crucificado, o que morreu na cruz para nos salvar.
Sem dúvida, a ascensão do cristianismo na história da humanidade é concomitante com a ascensão de uma nova maneira de ser e de ver o mundo: niilismo, culpa, ressentimento, racionalismo, eis as marcas do novo tempo. Eis que a mentalidade do homem europeu racional desenvolve-se na era cristã, eivada de uma vontade de nada, de ressentimento e culpa, o que caracteriza enorme decadência em contraposição ao pensamento dos gregos antigos, pura afirmação do devir.
Mas trata-se do homem racional segundo nós nos temos, ou melhor, tivemos. Ora, a racionalidade, aquilo que se coloca como a essência do homem, revela-se um instrumento engendrado por ele para que possa obter uma “salvação” dos perigos da vida e das aparências do instante. O homem, para se “salvar” das incertezas, do caos e do devir que sente, antes de tudo, dentro de si mesmo, no pulsar de suas veias e no rodopiar de seu próprio coração, o homem engendra um terreno novo, um terreno como que “mapeado”, e, assim, mais conhecido e menos temível. Este terreno situa-se no plano das idealidades, no mesmo plano onde veio se situar o Deus cristão.
Ocorre que esse plano não se dá propriamente na vida, está fora da vida, está fora da phýsis grega (natureza), constituindo-se numa metafísica. Ora, admitir esse plano, querer metafísica, é de alguma forma querer fugir da vida, é negar a vida, é negar as aparências da vida. O que possibilita isto é a racionalidade. Nietzsche mostrou muito bem como isto se dá, considerando a consciência, a razão na linguagem, bem como a metafísica e termos correlatos como “ser”, “coisa em si”, “unidade”, “identidade”, “substância”, “alma”, como enredados num mesmo erro: um erro da razão.
Mas, eis que, constituída a metafísica, é a própria razão que se vê por ela fundada, a razão, obra de Deus, a Palavra Primeira. Eis a metafísica e eis a racionalidade tão intimamente imbricadas, tal qual irmãs siamesas.
Suspeitar da racionalidade é indagar se não será ela a marca maior da fraqueza humana, da queda, da decadência. O homem racional, não estaria ele procurando uma escora para se apoiar ou uma capa para se proteger ou se acautelar? Uma proteção feita de palavras, de argumentos, de arrazoados, de frases, de idéias, tudo para fugir, ou melhor, para se resguardar de algo temível e no entanto mais básico e de mais valor: a vida, a concretude da vida em toda a sua crueza, gratuidade e inocência? Será, no entanto, diante da tragédia que se dá no plano da vida ¾ que todo o trabalho elocubrativo da razão cai por terra. Diante da tragédia não há palavras, toda razão é vã. A razão não resiste à tragédia.
Mas é a própria razão que vemos endeusada explícitamente a certa altura da história, talvez no ápice de sua fé lembremos da deusa Razão do Iluminismo a ocupar papel central nos cultos religiosos da França da Revolução, e lembremos também da tragédia que se sucedeu. Mas não terá sido antes, bem antes do Iluminismo, que Deus começou a morrer? Mas quando, exatamente? Eis aí uma boa questão.
Mas, eis o fato: apesar de todas as peripécias desvalorizadoras da figura de Deus que se pode observar na história da filosofia, foi Nietzsche quem, no final do século XIX, em alto e bom tom, proclamou a sua morte. Deus morreu, é fato, constata Nietzsche. Deus não é mais o fundamento, isso é fato. E essa transição ocorre na Era Moderna. Substitui-o o homem. Mas será também Nietzsche quem irá suspeitar que, em conseqüência da morte de Deus, também o homem morrerá.
Ora, matar Deus, como o homem o fez, é negar a dimensão última da própria racionalidade, da Palavra, daquilo que, em última instância, a fundamenta. O que o homem fez foi ficar só com sua palavra. Mas é isso que parece não se sustentar. Metafísica e racionalidade, uma implica a outra; o fim de uma parece implicar o desmoronamento da outra, a existência de uma parece exigir a outra. Eis, assim, o porquê da suspeita de Nietzsche de que por detrás da morte de Deus está a morte do homem: morte do homem racional, morte deste homem, tal qual o é o homem ocidental moderno, o último homem.
Será sobre essa questão, ainda com tantos aspectos a explorar, que Foucault irá se concentrar: a questão do homem sem Deus. O Foucault, leitor de Nietzsche, parece a cada momento querer demostrar o que Nietzsche apenas esboçara: que o homem, com sua razão, vai desaparecer; que a razão parece não se sustentar; que aí configura-se uma falência; que isso que fundamenta o homem não é algo tão sólido quanto se pensava outrora.
Esse “outrora” foucaultiano refere-se a uma época relativamente recente, época em que não mais Deus, mas já o próprio homem constitui-se como fundamento. É nesta perspectiva que Foucault irá trabalhar. Foucault situa-se na era do último homem nietzschiano.
Concluindo As Palavras e as Coisas, Foucault escreveu:
Em nossos dias, e ainda aí Nietzsche indica de longe o ponto de inflexão, não é tanto a ausência ou a morte de Deus que é afirmada, mas sim o fim do homem (…) uma vez que é na morte de Deus que ele fala, que ele pensa e existe, seu próprio assassinato está condenado a morrer; deuses novos, os mesmos, já avolumam o Oceano futuro; o homem vai desaparecer. Mais que a morte de Deus ou antes no rastro dessa morte e segundo uma correlação profunda com ele, o que anuncia o pensamento de Nietzsche é o fim de seu assassino; é o esfacelamento do rosto do homem no riso e o retorno das máscaras; é a dispersão do profundo escoar do tempo, pelo qual ele se sentia transportado e cuja pressão ele suspeitava no ser mesmo das coisas; é a identidade de Retorno do Mesmo.
Será Kant quem marca, para Foucault, o início da modernidade, ao ser o primeiro a perceber que é o sujeito cognoscente que, ao levantar-se das ruínas da metafísica, prescreve-se a si mesmo. Mas isso se dá já dentro de uma consciência de que as forças do homem são finitas, muito embora seu projeto de conhecimento seja infinito. Sobrecarrega-se, assim, o sujeito, que cai numa forma antropocêntrica de conhecimento, o que caracteriza o surgimento das ciências humanas. Estas, por sua vez, configuram perigosa fachada de um saber universal, escondendo, porém, um turbilhão de vontades que desejam, em última instância, não mais que o poder do conhecimento.
Foucault irá realizar, dessa forma, um trabalho intenso e obstinado de exame da racionalidade moderna, estudo esse pela via daquilo que mais a põe em cheque: estudar a razão, como ele dizia, em seus limites, abandonar o conforto das verdades terminais e interrogar sobre as experiências limites.
Estudar a história da loucura para, de uma certa forma, anistiar a desrazão e constatar que esta irrompe ocasionalmente, permitindo-nos a possibilidade de transcender a razão, salvando-nos com violência.
Estudar a história do olhar médico, para constatar que aí se dá, pela primeira vez, o conhecimento do homem sobre si mesmo, com base em sua própria finitude, dentro de uma linguagem criada pela abertura de sua própria eliminação.
Estudar autores literários que caracterizam a falência da linguagem, manifestação da razão, autores esses que exploraram o vazio, a agonia do significante na busca de parcos signos para apontar significados múltiplos e infinitos.
Estudar as ciências humanas, e ver sua constituição dentro de enigmáticas finitudes que constituem o homem. Estudar a história do saber humano, e rejeitar a consciência como origem transcendental de um dizer expressivo, propondo a dispersão do sujeito.
Estudar as interdições que atingem o discurso do homem e sobretudo o discurso da sexualidade. Estudar o poder, e ver que o homem é simples joguete, à mercê de relações de forças, que se dão no âmbito de uma microfísica onde se encontra inserido socialmente.
Foucault, a cada momento, parece querer demonstrar que a racionalidade, agora vista estritamente pelo ângulo da modernidade, confirma a precariedade, a fraqueza, a decadência, o disparate que Nietzsche já acusara. Mas Foucault também, a cada momento, parece querer resgatar a experiência trágica da loucura para o seu lugar de nobreza, como que a honrar Nietzsche em seu final de vida, Nietzsche louco, Nietzsche criança, última máscara afinal Nietzsche e todos os loucos que fizeram da loucura uma libertação.
Nietzsche, com sua filosofia, propugnara a saída positiva do Übermensch (Super-Homem), o além-do-homem, o homem-superação, o homem-devir, o homem trágico. Para tal, será necessária a efetuação de uma transvaloração de todos os valores; uma transvaloração tal, que o pensamento trágico prevaleça sobre o pensamento racional.
O homem, herói trágico lançado na vida, amante das aparências e desprezador das verdades, criança afinal, deverá viver por pura criação estética, fazendo da vida uma obra de arte, eis Nietzsche. Foucault, por sua vez, nos fala de sua suspeita, apontando para a epistémê moderna, e assim ele escreve concluindo Les mots et les choses:
(…) a epistémê moderna aquela que se formou por volta do fim do século XVIII e serve ainda de solo positivo ao nosso saber, aquela que constituiu o modo de ser singular do homem e a possibilidade de conhecê-lo empiricamente toda essa epistémê estava ligada ao desaparecimento do Discurso e de seu reino monótono, ao deslizar da linguagem para o lado da objetividade e ao seu reaparecimento múltiplo. Se essa mesma linguagem surge agora com insistência cada vez maior numa unidade que devemos mas que não podemos ainda pensar, não será isto o sinal de que toda essa configuração vai agora deslocar-se, e que o homem está em vias de perecer, na medida em que brilha mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem?
Mas, o que será mesmo que Foucault quer dizer com este perecer do homem “na medida em que brilha mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem”? É que Foucault viu um fato novo entrar no campo do pensamento no fim do século XIX e que jamais poderá ser doravante desprezado: um fato novo com Nietzsche a perguntar: “Quem fala?”; e com Mallarmé a responder: “O que fala é a própria palavra”. Não quererá, então, isso dizer que, doravante, toda e qualquer pretensão de verdade da linguagem revela-se vã, pretensão esta que se estende ao dizer do homem sobre si mesmo? Que, doravante, na linguagem, o que pode ser considerado é tão somente a sua aparência? E, considerar a linguagem pela sua aparência, não será tão somente tê-la por arte? literatura?
Vida-literatura, dizer-se de si na infinita maneira de interpretar o mundo, poesia?
Vida-literatura, vida-vazio, vida-transgressão, vida-salto, vida-loucura, é o que Foucault parece intuir para o futuro do homem. Não mais o homem como o reconhecíamos, não mais a pretensão de verdade no dizer, mas o vazio, o permanente estado de suspensão, o salto do dizer.
E, para lembrar Nietzsche uma vez mais: “flechas de anseio pela outra margem” não será isto que Foucault está querendo dizer? Uma metafísica de artista.
Haverá filosofia mais bela?
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