domingo, 24 de outubro de 2010

JESUS - Paulo Leminski

 

JESUS
Paulo Leminski


 George Braque

O PROFETA EM SUA TERRA

Jerusalém, urgente — Na tarde de ontem, alguém que atende pelo nome de Jesus invadiu as dependên­cias do Templo, agredindo e expulsando toda a casta de vendedores que ali exercia seu ofício.

O lunático, galileu pelo sotaque, entrou, subita­mente, chutando as mesas dos mercadores de pombas e outros animais destinados ao sacrifício. Na confusão que se seguiu ao incidente, entre as moedas que rolavam pelas escadas, gaiolas quebradas, pombas que voavam, acorreram os guardas, que não conseguiram deitar as mãos no facínora.

O tal Jesus desapareceu no meio da multidão, que o acoberta, porque nele acredita ver um profeta. A reportagem apurou que o referido é natural de Nazaré, na Galiléia, filho de um carpinteiro.

Arrebanhou inúmeros seguidores entre os pesca­dores do Mar da Galiléia. Dizem que opera milagres. E descende, por linha direta, do rei Davi.

Entre os seus, fala aramaico, dominando, porém, o hebraico dos textos sagrados, que cita com frequência, chegando mesmo a discutir com os doutores da lei, fariseus e saduceus. Muitos vêem nele o Messias. As autoridades estão prontas para fazer frente a qualquer nova alteração da ordem provocada pelo tal Jesus ou por seus seguidores.

CAPÍTULO 1

NEM SÓ DE PÃO

“Ouçam, céus, e, terra, abra as orelhas que Yahweh falou.”

(Isaías, 1,2)

O Oriente Médio era o lugar, culturalmente, mais rico da Antiguidade. Ponto de cruzamento da influên­cia dos primeiros impérios, de civilizações letradas e complexas (egípcios, mesopotâmios, hititas, fenícios, lídios), passagem obrigatória de mercadorias entre a Ásia e o mundo mediterrâneo, a chamada Ásia Menor (Turquia, Síria, Líbano, Israel, países árabes) foi a pátria de algumas das maiores “conquistas” da humanidade.

A começar pelo alfabeto, invenção dos mercadores fenícios, a partir dos hieroglifos egípcios.

A moeda, também, nasceu aí, na Lídia, hoje, parte da Turquia. Nessa região, porém, não nasceram só inovações materiais. Nela, surgiram os mitos mais fundantes que informam o imaginário do Ocidente até hoje.

Essa parte do globo, afinal, foi berço do judaísmo, do cristianismo e do Islam, as religiões de Moisés, Jesus e Maomé.

Não nos deixemos iludir pelas aparentes diferenças entre essas três confissões religiosas, nem por seus conflitos históricos. Com variantes de detalhes, as três afirmam, no fundo, os mesmos princípios: o tribal monoteísmo patriarcalista, o moralismo fundado em regras estritas, a tendência ao proseli­tismo expansionista, a intransigência.

“Não haverá outros deuses diante de ti”, parecem dizer as três, afirmando Javé, Jesus e Alá.

Trata-se, como se percebe, de uma religiosidade semita, de beduínos dos desertos e oásis da Arábia, como foram, a princípio, hebreus, babilônios, assírios, arameus e árabes, pastores nômades de ovelhas, dispondo do cavalo, do camelo e do dromedário como instrumentos de transporte.

Os primeiros semitas a se sedentarizarem em centros urbanos estáveis, constituindo civilizações, foram os babilônios, os assírios e os fenícios. O comércio e as guerras fizeram o resto, tornando o Oriente Médio um nó górdio de influxos cruzando de todas as partes: mercadorias, principalmente. Mas, também, idéias. Instituições. Conceitos. Mitos. Jesus é parte dessa história.

Como se conhece Jesus?

Tudo que se sabe dele nos chegou através de coletâneas de textos conhecidos pelo nome grego de “Evangelhos”, literalmente, “boa mensagem”, palavra que, claro, Jesus nunca conheceu. Era um judeu da Galiléia, falante do aramaico, um dialeto semita, aparentado ao hebraico, a língua corrente na Palestina, depois do cativeiro da Babilônia (quando viveu, o hebraico já era, há séculos, apenas, o idioma sagrado dos textos religiosos, uma língua morta, portanto).

Em seu mundo sobrepunham-se três idiomas: o aramaico do povo, o grego das classes cultas das grandes cidades da Ásia e o latim do dominador romano.

De grego e latim, certamente, Jesus nunca soube uma palavra.

Suas parábolas, frases e ditos memoráveis foram formulados em aramaico, esse dialeto semita, menos conciso que o hebraico, mas que chegou a ser língua comum em todo o Oriente Médio (até a correspon­dência da chancelaria assíria saía em assírio e aramaico).

Como Buda e Sócrates, Jesus não deixou nada escrito.

Tudo que sabemos dele nos foi reportado por esses evangelhos, que nos chegam da Igreja Primitiva, depois que comunidades judaico-cristãs se espalharam por todas as grandes metrópoles helênico-romanas do Mediterrâneo (Éfeso, Antióquia, Mileto, Tessalônica, Tarso, Alexandria, Roma).

São textos tardios (o Evangelho de João deve ter tido sua redação final, mais ou menos, cem anos depois da morte de Jesus). Houve centenas de evangelhos. Cada Igreja local devia ter o seu. Fora quatro dentre eles, canonizados pela Igreja, quando esta se organizou como poder, os demais evangelhos foram condenados e negligenciados. Seus textos só chegaram até nós fragmentariamente. Ou através de vagas notícias dos escritores cristãos dos três ou quatro primeiros séculos da nossa era. São os apócrifos, o Evangelho dos Hebreus, o Evangelho dos Doze ou dos Ebionitas, o Evangelho dos Adversários da Lei e dos Profetas, o Evangelho de Pedro, o Evangelho da Perfeição e outras coletâneas perdidas ... Os evan­gelhos ditos canônicos atribuem-se a Mateus, Marcos, Lucas e João, discípulos diretos ou discípulos dos discípulos de Jesus.

São textos escritos em grego. Não o grego de Platão ou dos grandes escritores da Atenas de quatro séculos atrás.

É um grego meio popular, conhecido como koinê (= “comum”), o grego que se tornou língua franca em todo o Oriente depois da conquista do Império Persa por Alexandre da Macedônia, língua de merca­dores e administradores, falado por fenícios, judeus, persas, lídios, cilícios, e, naturalmente, romanos.

Nenhum evangelho é em aramaico. Jesus já se nos aparece traduzido. Tradição muito antiga quer que o evangelho atribuído a Mateus tenha sido escrito, originalmente, em língua semita, hebraico ou aramaico. Os evangelhos de Mateus e Marcos parecem, com efeito, representar uma camada mais antiga da tradição do que os textos de Lucas e João, visivelmente, elaborações posteriores da Igreja (ou das igrejas) já organizadas litúrgica e teologicamente.

Ao que tudo indica, o de Marcos talvez seja o mais antigo de todos, seu autor, um judeu convertido, vivendo numa comunidade romanizada, talvez, na própria Roma. Seu aproach é o mais popularesco de todos. Em Marcos, Jesus é sobretudo um taumaturgo, um fazedor de milagres, curando a lepra, a febre, a paralisia, a cegueira e expulsando demônios dos possessos.

E a parte propriamente doutrinária, em Marcos, (o pensamento, digamos assim, de Jesus) é sempre expressa numa imagética muito material, ligada ao mundo físico das classes populares da Galiléia.

Já em João, são atribuídas a Jesus teorizações teologicamente tão complexas que sempre se suspei­tou, nelas, influências da filosofia grega tardia, desen­volvida nos círculos mais cultos de Alexandria, no Egito, a capital intelectual do Mediterrâneo de então.

Como se vê, estamos lidando com uma documen­tação heterogênea, advinda de várias fontes, frequen­temente contraditórias.

Como achar o verdadeiro Jesus por trás dessa floresta de versões sobre sua pessoa, feitos e ditos?

Parece óbvio que os evangelhos representem a compilação de tradições transmitidas oralmente no interior da (s) igreja (s) primitiva (s), “feitos e ditos do Senhor”, passados de boca a boca, de orelha a orelha, evidentemente, ampliados e deformados pela imaginação oriental, tão afeita a prodígios.

O próprio caráter fragmentário e descosturado dos evangelhos, enquanto textos, confirma essa hipótese.

Os episódios evangélicos são ligados, praticamente, pela conjunção “e”, o que faz deles uma obra aberta, onde outros episódios poderiam ser insertados, sem dano do conjunto.

“E Jesus disse”. “E Jesus foi”. “E Jesus veio”.

Não resta, porém, a menor dúvida de que, por trás desses ditos e feitos, existiu uma pessoa real, de carne e osso, um rabi da Galiléia, que mudou o mundo como poucos.

A ser verdade tudo o que dizem os Evangelhos, não há nenhum personagem da antiguidade sobre qual saibamos tanto quanto sobre Jesus. Infância, família, formação: detalhes mínimos, que não temos sobre Péricles, Sócrates, Alexandre, César, Augusto, Cícero ou Virgílio.

O impacto que sua vida e doutrina provocaram nos contemporâneos atingiu tal intensidade que, hoje, ainda, vibra.

Talvez, ser Deus seja, apenas, isso.

CAPÍTULO 2

A VOZ GRITANDO NO DESERTO

“Voz clamando no deserto: Preparar a via do Senhor: Retas fazer suas sendas.”
(Isaías, 40, 3, e Mateus, 3, 3)
O essencial da mensagem de Jesus parece ser o anúncio do iminente advento de um certo “Reino de Deus”. Na maior parte dos casos, depois desta vida. Mas, também, às vezes, nesta vida.
Um dia, esta vida será o depois desta vida.
Esta pro-jeção, Jesus herdou dos profetas hebreus, dos quais ele foi o maior, inventando o futuro, já que o presente histórico é insuportável. Foram os profetas que inventaram o futuro, assim como os poetas inventarão o presente e os homens de ação inventam o passado sem cessar.
Os profetas bíblicos (Isaías, em primeiro) surgem quando o povo hebreu, depois de algum fastígio entre os pequenos principados da Ásia Menor, perde a autonomia política, esmagado entre as potências do Egito e da Assíria.
A palavra “profeta”, porém, é grega. E não dá conta de toda a riqueza de significados do original hebraico, nabi.

Em grego, a palavra “pro-feta” quer dizer “o que fala para a frente”, o que adivinha o futuro, portanto. Como Tirésias, a Pítia ou a Sibila.
Ora, um nabi era mais que isso.
Era uma espécie de “louco de Deus”, desfrutando das imunidades das crianças, dos muito velhos ou dos bobos da corte. E seus riscos. Muito semita, a cate­goria nabi tem sua correspondência entre os árabes, nos conceitos islâmicos imam e mahdi.
Imani, mahdi, são indivíduos, possuídos por Alá, que Alá envia, periodicamente, entre os homens, para purificar a fé. Para restaurar uma pureza das origens. Para exagerar.
Não é de admirar que, entre os “pro-fetas”, estejam os maiores poetas dessa literatura hebraica que o Ocidente chama de Antigo Testamento. A começar por esse extraordinário Isaías, que Jesus, superpoeta, gostava de citar.
Para Isaías, o exercício da profecia, como entre os antigos hebreus, era singularmente facilitado por uma característica da língua hebraica, onde não há tempos. Mas modos.

Idioma flexional, como o grego e o latim, o hebraico tem uma forma de verbo que pode significar, ao mesmo tempo, prestígio e futuro. A palavra amarti, em hebraico, pode significar tanto “eu disse como “eu direi.
E para imaginar as possibilidades de ambiguidades proféticas dos hazon (visões), que se expressavam numa língua onde você não sabe se se está falando de feitos passados ou eventos por ocorrer.
Trocando em miúdos: se um profeta hebreu diz “cairás, cidade maldita”, pelo tempo do verbo, você não pode garantir se a cidade já caiu ou vai cair.

Muito difícil, para nós, vivenciar ou mentalizar um universo onde as coisas que já existiram e as que vão existir estão situadas no mesmo plano.
Graças a essa característica da língua hebraica, o profeta bíblico parecia se situar num tempo especial, um extratempo, onde todo o por ocorrer já teria ocorrido. Algo como se a ficção científica coincidisse com o realismo socialista. Ou vice-versa.
Nisso, Isaías é o máximo. Pela extrema criatividade imagética, vôos quase surrealistas de fantasia, vigor e pujança de expressão e formulação, Isaías tem de ser contado entre os grandes poetas da humanidade, no time de Homero, Virgílio, Dante, Shakespeare, Bashô, Goethe.
Ao profeta Jeremias, atribuem-se as Lamentações, longo poema elegíaco sobre a queda de Jerusalém nas mãos da Babilônia, em linguagem maneirista: cada verso começa com uma letra do alfabeto hebraico, até perfazê-lo todo, num imenso acróstico.
No Antigo Testamento, o Tanach hebraico (Tanach é uma sigla, reunindo a inicial T, de Torah, N, de Neviim, e Ch de Chetuvim, nomes hebraicos para os demais livros) brilham em poesia os textos atribuídos a dezessete profetas. Os primeiros viveram e atuaram por volta do século VII a.C, no auge das agruras que afligiram o povo hebreu, estraçalhado entre os poderes do Egito e da Babilônia-Assíria, culminando com a deportação quase integral dos judeus para a Mesopotâmia, no chamado Cativeiro da Babilônia.
Nesse quadro, os profetas exerceram agudo papel político, como assessores e conselheiros dos reis de Judá e Israel. Alguns pagaram com a vida esse envol­vimento direto com a História. Quer a lenda que Isaías, aos cem anos de idade, por intrigas de cortesãos, foi acusado de alta traição, condenado à morte e serrado ao meio.
O profeta Jeremias, pelos mesmos motivos, teria ido passar seus últimos dias no Egito, em exílio.
Outro dos grandes poetas/profetas de Israel foi Ezequiel, entre cujas visões consta uma de veículos extraterrestres, onde os aficionados do gênero acha­ram por bem ver relatos sobre a visita de discos voadores ao nosso pobre planeta.
Pitoresco o livro do profeta Jonas, engolido pela baleia. Jesus o cita para anunciar sua morte e ressur­reição, depois de três dias no ventre da morte, um dos mitos mais tocantes da Igreja primitiva, reflexo dos mitos de Osíris/Átis/Adônis, milenares na bacia do Mediterrâneo.
Depois de Míriam, irmã de Moisés, e Samuel, que ungiu Davi como rei, o primeiro profeta que a Bíblia menciona é Elias, que atuou nos tempos de Acab, rei de Israel, lá por volta do século VIII a.C. Sua gesta, narrada no Terceiro Livro dos Reis, guarda assinaladas semelhanças com a de Jesus.
Como Jesus, Elias é um taumaturgo. Ressuscita o filho da viúva de Sarepta, assim como Jesus ressus­citou Lázaro. Multiplica a farinha, como Jesus multiplicou os pães. E, como um xamã índio, faz cair a chuva.
Célebre sua disputa de poderes mágicos com os profetas do deus Baal, divindade cananéia que sempre tentou Israel.
Como Jesus, Elias foi perseguido pelo ímpio rei, Acab, que, conforme a Bíblia, “tinha passado a fio de espada todos os profetas”.

A profecia sempre foi uma profissão perigosa.

Sucessor de Elias, foi Eliseu, que o profeta encon­trou lavrando com seus bois e consagrou-o profeta, prefigurando o que João faria com Jesus e o que Jesus faria com os pescadores de Galiléia, que trans­formou em apóstolos e portadores de suas palavras e parábolas.
Eliseu abandona seu arado, como Pedro e os demais largam suas redes depois de ouvir o apelo do Rabi.
Na aparência, Elias parece pro-fetizar João, o Batista. No Quarto Livro dos Reis, Elias é descrito como “um homem de barba espessa e cabelos longos, cingido sobre os rins com uma cinta de couro”. Espantosa a fábula de seu fim.
Elias caminhava ao lado de seu discípulo Eliseu, “eis que um carro de fogo e uns cavalos de fogo os separaram, e Elias subiu ao céu, no meio de um redemoinho”.

No século XX, os devotos dos discos voadores não deixam de suspeitar, no episódio, a passagem de veículos extraterrenos.
Com Eliseu, ficam o manto e os poderes miracu­losos do profeta, demonstrados, a seguir, numa série de prodígios.
Elias persistiu na memória do povo durante séculos.
Assim, ele comparece no episódio da Transfigu­ração de Jesus, no capítulo 17 de Mateus, gesta que, para nós, do século XX, tem também um indisfarçável odor extragaláctico de ficção científica.
O episódio merece ser transcrito na íntegra: “Tomou Jesus consigo Pedro, Tiago e seu irmão João e levou-os a um alto monte, e transfigurou-se diante deles. E seu rosto ficou refulgente como o sol e as suas vestiduras tornaram-se brancas como a neve.

E eis que lhe apareceram Moisés e Elias falando com ele.
E Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: “Senhor, bom é estarmos aqui, se queres, façamos aqui três tabernáculos, um para ti, um para Moisés e um para Elias”.
Estando ainda a falar, eis que uma nuvem resplan­decente os envolveu e eis que da nuvem saiu uma voz que dizia...”

No episódio, uma superposição das imagens de Elias, e Jesus, quase até à coincidência. Ao trocadilho. Elias aparece na vida de Jesus, por fim, no trágico equívoco de uma má interpretação linguística, quando das últimas palavras, agonizando na cruz.

Conforme o evangelho de Marcos, momentos antes de expirar, Jesus, em desespero, exclamou, em aramaico, “Eli, Eli, Iamá sabachtani?”, “meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?”.
Marcos registra: “ouvindo isto, alguns dos circuns­tantes diziam: ele chama por Elias”.

Jonas (em hebraico loná, a pomba), que profetizou lá pelo século VI a.C, era natural de Get de Zabulão, ao norte de Nazaré, na terra de Jesus, portanto.
Dentre os dezessete profetas cujas visões (hazon) foram escritas e chegaram até nós, destaca-se, pela antiguidade, Abdias (em hebraico, Abd-lahu = o servo de Deus, o equivalente de Abd-Ala, em árabe). Seu texto parece ser, lingüisticamente, o mais antigo de todos.
Nem só nos textos, porém, se revela a originalidade dos nabi. Sua vida, também, sempre trouxe o selo da estranheza e do exagero. Do excesso, da excentri­cidade e do milagre.
Jesus foi um nabi. Antes dele, deve ter havido milhares.
Conforme os evangelhos, imediatamente antes, surgiu João, chamado o Batista. Suas relações com Jesus parecem ter sido muito próximas: a tradição quer até que ele seja primo de Jesus. Depois das lendas relativas ao nascimento, os Reis Magos, o massacre das crianças por Herodes, a fuga da Sagrada Família ao Egito, todas pesadamente tingidas do fantástico oriental (o que não quer dizer que não haja resquícios e indícios de dados reais por trás da fábula), Jesus aparece, adulto, apresentando-se diante de João, para ser, por ele, batizado no rio Jordão.
De João, Mateus tira uma fotografia impressionante. É um eremita meio selvagem, vivendo no deserto, no depoimento de Mateus, “com vestimenta de pele de camelo, com uma cinta de couro, seu alimento era gafanhotos e mel silvestre”.
Quase dá pra ver o tipo, um daqueles furiosos loucos de Deus, a boca cheia de pragas e maldições contra todos os que pareceram trair a original pureza de uma fé. Reacionários, saudosos de um passado? Revolucionários, querendo novas coisas e novos códigos? Cada um escolha o adjetivo que combine melhor com a tanga de pele de camelo do profeta João.
O fato é que Jesus o procurou para se submeter a um ritual seu, o batismo. A palavra é grega, e significa apenas “banho”.
Seu caráter simbólico é o mais óbvio possível, a tradução material de uma atitude espiritual. O batis­mo de João estava articulado com a confissão dos pecados, com a categoria ascética da penitência.
A água lava o corpo, a boa vontade lava a alma.
O ritual da “lavagem espiritual”, em riachos, rios e mares, é universal, como o caráter sacro das águas vivas.
Mas, entre os judeus, esse rito parece que começou a competir com o da circuncisão, a ablação do prepúcio, que sempre foi, desde Abrão, a marca distintiva do Ham Israel. Na realidade, a circuncisão é uma prática encontradiça em todo o Oriente Antigo, a operação constando de gravuras egípcias das primeiras dinastias. Jesus, claro, era circuncisado. Donde veio aos hebreus o rito do batismo?
A história dos conflitos originais entre o judaísmo e o cristianismo poderia ser, liturgicamente, enten­dida como uma luta entre os ritos da circuncisão e do batismo.
É aqui que entram em cena os essênios, uma estranha seita judaica que viveu em mosteiros, subme­tida a uma regra monástica própria, chegando a produzir sua própria literatura à margem do judaís­mo oficial.


Há inúmeras menções aos essênios na literatura antiga, tanto judaica, quanto grega. Nenhuma, porém, nos evangelhos.
As mais célebres ruínas de um mosteiro essênio situam-se em Qumran, às margens norte do Mar Morto, numa paisagem quase lunar, pedra, sol e areia.
Nas proximidades das ruínas, foram descobertos manuscritos, datando do século I a.C., depositados em grandes urnas, ocultas em grutas e cavernas das elevações circundantes.
A descoberta dos chamados Manuscritos do Mar Morto é um dos capítulos mais emocionantes da arqueologia do século XX.
Em pergaminhos (e até papiros) conservados pela secura do clima, os maguilot ou rolos do Mar Morto são a biblioteca do mosteiro essênio de Qumran, escondido às pressas diante da arrasadora invasão romana do ano 70, conduzida por Tito.
Na literatura essênia, descoberta nas grutas dos arredores de Qumran, os testemunhos de uma vida espiritual intensa.
E uma surpresa.
Os essênios parece que cultivavam a memória de um “Mestre da Justiça”, um superior da ordem essênia, que teria sido sacrificado pelas autoridades na capital, em Jerusalém. Como Jesus!
Acontece que as evidências arqueológicas e textuais dos Manuscritos do Mar Morto apontam para mais de um século antes de Cristo. Teria havido um Jesus essênio, antes de Jesus?
A riqueza dos signos é feita da abundância das interpretações.
Para sairmos desse impasse, nada melhor que recitar um dos Hinos da Ação de Graças dos essênios:

Graças, Senhor,
porque me colocastes no escrínio da vida
e me cobristes contra
as armadilhas da fossa.
Homens violentos quiseram me matar,
eu me apoiava sobre tua aliança.
Esses, bando da mentira, horda do demônio,
não sabem que de ti
vem minha glória
e que em tua bondade
me salvarás,
pois diriges os meus passos.
(..........................)

Esse o mais bem conservado hino essênio de Ação de Graças, na tradição dos Salmos, em particular do Salmo 1.
Nos rolos, os especialistas identificaram, além de textos dos livros de Moisés e dos profetas, uma literatura especificamente essênia. O Manual de Disciplina, regra da ordem essênia. Comentários sobre o texto dos profetas. Hinos rituais próprios, os Hinos de Ação de Graças. E — mais espantoso — uma espécie de “apocalipse”, chamado A Guerra Dos Filhos da Luz contra os Filhos das Trevas.
Como eram, afinal, esses essênios?
Ao que tudo indica, uma das três seitas em que se dividia o judaísmo na época de Cristo, com os fariseus e os saduceus.
Os essênios procuravam preservar o judaísmo em sua máxima pureza mosaica, numa época em que as influências gregas e romanas seduziam os espíritos.
A comunidade essênia funcionava, pois, como um profera: Qumran é uma voz clamando no deserto.
No mosteiro essênio, cultivava-se a comunidade de bens, a santificação da comida em comum e o celibato, tudo coisas que vamos encontrar na doutrina de Jesus e no cristianismo primitivo.
Em Qumran, os arqueólogos descobriram a piscina que servia para as abluções e lustrações rituais: o rito do batismo é, com certeza, de extração essênia.
O que havia de essênio em João e em Jesus, fica difícil de analisar dois mil anos depois.
O que não se pode duvidar é que eram homens do seu tempo, atravessados por idéias e conceitos que circulavam no meio em que viveram.
Batizado por João, num episódio que a lenda evangélica cumulou de prodígios (fogo sobre a água, descida do Espírito Santo), Jesus começa sua missão, repetindo João. Jesus. João. João. João.
Mateus reporta o apelo inicial de João: “façam penitência, aproximou-se o Reino de Deus”. Pois é com essa mesma frase que Jesus começa sua atuação. O processo lembra muito a passagem da autoridade nos mosteiros zen, do Extremo Oriente, de mestre a mestre, registrado num livro chamado A Trans­missão da Lâmpada.
Complexa a luz dessa lâmpada que João passa a Jesus. Mas, ao mesmo tempo, muito simples.
Jesus veio para exagerar a pureza da doutrina de Moisés.
Nenhuma razão para duvidar que não estivesse sendo sincero, ao dizer:

Nem pensem que vim
para dissolver a lei
ou os profetas.
Não vim dissolver,
mas realizar.
Amém vos digo,
até passar o céu e a terra
da lei, não vai morrer um jota
nem uma vírgula.

Está na hora de fazer as pazes com a palavra fariseu.
Na origem, fariseu vem de um radical hebraico, que quer dizer separado. Os fariseus eram, antes da destruição da Palestina pelos romanos, um grupo de judeus particularmente zelosos das leis judaicas. Com a destruição do reino e do Templo e a dispersão dos judeus pelo mundo, essênios e saduceus desapa­receram.
O judaísmo, desde então, obedece a diretrizes farisaicas.
A partir dos evangelhos, a palavra fariseu adquiriu conotações negativas: Jesus se opõe, Constantemente, a eles, acusando-os de ritualismo vazio e formalismo religioso.
Acontece que os fariseus não são coisa tão simples assim. Por uma ironia da História, é possível dizer que Jesus era fariseu. Quando Jesus viveu, vivia, na Babilônia, um rabi judeu chamado Hilel, fariseu, que interpretava Moisés e a Lei da maneira liberal, tal como Jesus fazia. Contra Hilel e a linhagem de seus filhos e netos, levantou-se o rabi Shaddai, fariseu exigindo o exato cumprimento da Lei, ao pé da letra.
Não se pode pensar Jesus fora do quadro da religiosidade judaica do início da era cristã.
Nem se pode deixar passar o dado de que os fariseus, no evangelho, sempre abordam Jesus cha­mando-o de Rabi, o título devido ao mestre.
Jesus, porém, é duro com eles.
Em sua ira de poeta/profeta, lança-lhes na cara:

Ai de vocês, escribas
e fariseus hipócritas!
sepulcros pintados,
lindos por fora,
por dentro,
cheios de ossos de mortos
e podridão!

Evidentemente se referia aos fariseus que conhecia, que encontrava nos lugares que frequentava, os fariseus da sua circunstância imediata.
No fundo, Jesus e fariseus queriam a mesma coisa: uma vida de pureza ritual e densidade espiritual, conforme a lei de Moisés, a Mitzvah, o mandato.
Os caminhos propostos é que diferiam.
Jesus parece propor uma interiorização radical dos gestos rituais, em cuja prática consiste isso que é ser judeu de religião.
Entre Moisés e Jesus, há, pelo menos, um bom milênio.
Natural que, em mil anos, a religiosidade judaica tenha evoluído para exigências mais sofisticadas e formas mais complexas e abstratas de expressão.
Afinal, quando Moisés formulou a Lei, os hebreus eram um povo de beduínos nômades, recém-fugido do cativeiro no Egito, onde os faraós da XXIII Dinastia os empregavam, como escravos, entre deze­nas de outros povos, na edificação dos templos e palácios que fizeram a glória do país do Nilo.
Depois disso, o povo hebreu passou por uma extraordinária peripécia histórica, conquistando Canaã, constituindo-se em Estado, triunfando com o rei Davi, prosperando com seu filho Salomão, vivendo, enfim, toda a complexidade política e militar dos reinos semitas do Oriente Médio, primeiro, estra­çalhado entre as superpotências egípcia e assíria, depois, invadido por persas, gregos macedônios e, enfim, romanos.
Por bem ou por mal, a Palestina e o povo hebreu se viram envolvidos pela imensa onda de helenismo que desabou sobre a Ásia com a invasão de Alexandre.
A doutrina de Jesus representa uma resposta criativa aos novos tempos que o povo judeu vivia.
Assim, não admira que tenha se defrontado, diretamente, com a Lei de Moisés:

Vocês ouviram
o que foi dito aos antigos:
não matarás.
Quem matar,
seja réu de juízo.
Eu, porém, contradigo:
quem se irritar com seu irmão,
seja réu de juízo.

Jesus não está negando Moisés. Está, apenas, conduzindo a crueza da lei mosaica a extremos de interiorização e sutileza, exigidos por uma época mais sofisticada, de maior concentração interna do reper­tório espiritual e ético próprio do povo hebreu, de maior troca de informações com outros universos culturais de grande riqueza sígnica (gregos, romanos). Com exageros utópicos, inclusive:

Vocês ouviram
o que foi dito aos antigos:
olho por olho, dente por dente.
Eu, porém, contradigo:
não resistam ao mal.
Se alguém bater em vocês
num lado do rosto,
ofereçam a outra face.

Numa ocasião, Jesus chegou a paralisar a execução de um ritual mosaico.
Foi quando fariseus e sacerdotes trouxeram ante sua presença uma mulher, surpreendida em flagrante adultério.
Conforme a lei mosaica, a adúltera deveria ser apedrejada pelo povo até a morte.
No relato, Jesus estava acocorado, escrevendo no pó do chão.
É o único lugar do evangelho em que Jesus aparece escrevendo.
Os evangelhos não reportam o que estaria escre­vendo, naqueles belos caracteres quadrados com que se escreve o hebraico literário, que Jesus lia nas sinagogas.
Ou estaria apenas desenhando um navio, um peixe ou um rosto?
Uma lenda da Igreja primitiva quer que estivesse escrevendo o nome da adúltera. Madalena?
Os fariseus que, conforme os evangelhos, “o tentavam”, arrastam a adúltera, a mulher surpreen­dida fazendo amor com quem não era o legítimo marido.
Diante de Jesus, os fariseus lançam a perigosa pergunta:

É uma adúltera.
Conforme Moisés,
deve ser apedrejada.
O que você diz?

Jesus, sem tirar os olhos da escrita que produzia no pó do chão, fulminou:

Quem não tiver pecado,
atire a primeira pedra.

Homem assim não ia ter vida longa nem morrer na cama.
Ia ter um fim como João, seu “guru” e batista, que teve a cabeça cortada por Herodes.
Isaías, serrado ao meio. Jeremias, exilado no Egito. João, decapitado. A vida de um nabi não era muito segura.
Não se brinca, impunemente, com os poderes deste mundo.
Jesus chegou a tocar no sacrossanto repouso do sábado, talvez, com a circuncisão, os dois ritos fundamentais do judaísmo.
É extraordinariamente minucioso o elenco de proibições, interditos e tabus do sábado judaico, o dia em que se repete, ritualmente, o descanso de Iavé, no sétimo dia, depois de criar o universo.
No sábado judeu, as atividades são reduzidas a um mínimo.
Rabinos extremamente meticulosos, ao longo dos séculos, foram legislando os gestos que violam o sábado, indo do trabalho à alimentação da vida diária à sexual, limitando até o número de passos lícitos, nesse dia de não fazer nada.
Ora, sucedeu que, num sábado, discípulos de Jesus passavam ao lado de um campo de trigo. Esta­vam com fome, agarraram espigas e as comeram.
Fariseus estavam presentes e, escandalizados, interpelaram Jesus:

Teus discípulos
violam o sábado.
É proibido
colher nesse dia.

Jesus arrasou:
O sábado foi feito para o homem,
não o homem para o sábado.





copyright © Paulo Leminski

Sugestão e motivo de capa e ilustrações:
Paulo Leminski

Capa:Takashi Fukushima
Diagramação:Moema Cavalcanti
Ilustração final:-Emílio Damiani
Revisão:José W. S. Moraes- Nely P. Figueiredo
Fragmento do Evangelho Segundo Domingos:
Domingos Pellegrini

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