A CRÍTICA À CONSCIÊNCIA, À LINGUAGEM E À RAZÃO
Nietzsche, por sua crítica ¾ crítica de filólogo e, como tal, de grande intimidade com as palavras e seu poder de sedução ¾, é aqui visitado no sentido de buscarmos um encadeamento e prepararmos uma compreensão do Foucault, leitor de Nietzsche, em sua concepção da linguagem e, por essa via, do conceito da supressão do sujeito ou, como queiram, da morte do homem.
Pensamento, consciência e linguagem
Voltado para o problema da consciência, ou mais exatamente da consciência de si, Nietzsche observa que o mesmo só se apresenta a nós quando compreendemos em que medida poderíamos dispensá-la, ou seja, passar sem isso que chamamos consciência.Pois, segundo nota, podemos muito bem pensar, sentir, querer, lembrar, agir sem que tenhamos consciência disso. A rigor, a vida inteira poderia decorrer sem que se visse no espelho da consciência. Dessa forma, Nietzsche pergunta: “para que servirá a consciência se para tudo que é essencial é supérflua?” E, já como resposta, observa que a força da consciência sempre lhe pareceu estar em relação com a faculdade de comunicação e com a necessidade de comunicação de um indivíduo. A consciência, assim, ter-se-ia desenvolvido tão-somente sob a pressão da necessidade de comunicação, consistindo, em suma, numa rede homem-homem. Para reforçar sua tese, observa que foi apenas enquanto tal que a consciência se viu forçada a desenvolver-se. Consciência e comunicação desenvolveram-se par-e-passo. O homem solitário e o animal de rapina poderiam dispensá-la.
Teria sido então pela terrível conseqüência de uma necessidade que dominou longamente o homem pois este era o animal que corria mais perigos, tinha necessidade de ajuda e proteção, tinha necessidade de seus semelhantes (necessitava exprimir seus anseios, seus alarmes e seus socorros) que desenvolveu-se nele a “consciência”, pois precisava “saber” o que lhe faltava, saber qual era sua disposição de espírito e o que pensava.
Para Nietzsche, o homem, como qualquer ser vivo, pensa ininterruptamente mas não o sabe; o pensamento que se torna consciente é apenas a menor parte, a parte pior e mais superficial pois esse pensamento só é consciente quando se efetua com palavras, em signos de comunicação.
Palavras e signos de comunicação, eis a base da linguagem, expressão da “consciência” do homem; o homem diz, fala, expressa sob a forma de signos aquilo que lhe é consciente. Curiosamente, não é só a linguagem assim constituída que serve de intermediária entre os homens, mas também o olhar, a pressão, o gesto.
Mas a consciência das impressões de nossos sentidos, a faculdade de podê-los fixar e determinar, aumentaram na medida em que crescia a necessidade de comunicá-los aos outros através de signos. É, pois, o homem, ao mesmo tempo inventor de signos e aquele que toma consciência de si mesmo e do mundo; e isso se dá de modo cada vez mais agudo: animal social, o homem aprende a tornar-se consciente de si mesmo.
Isso posto, torna-se perfeitamente plausível admitir que a consciência não faz propriamente parte da existência individual do homem, mas sim do que nele provém da natureza da comunidade e do rebanho e que, conseqüentemente, não é desenvolvida de modo sutil senão relativamente à sua utilidade para essa mesma comunidade e rebanho. A linguagem do homem é, assim, do e para o rebanho, não propriamente a linguagem de si. “A linguagem e os preconceitos em que se assenta colocam múltiplos obstáculos ao aprofundamento dos fenômenos internos e dos instintos”.
É que isso que lhe provém de fora acresce-se ao seu próprio pensamento pelo caráter próprio da consciência, pelo que Nietzsche chama de “gênio da espécie” que o comanda e é retransmitido na perspectiva sempre do rebanho. Isso ocorre de forma que, apesar de todos os nossos atos serem no fundo incomparavelmente pessoais, únicos, desde que os transcrevemos na consciência não mais parece que assim seja… É que essa natureza da consciência quer que o mundo do qual podemos ter consciência seja apenas um mundo de superfícies e de signos, um mundo generalizado e vulgarizado, que, conseqüentemente, tudo que se torna consciência seja chão, pequeno, generalização, signo, marca do rebanho. Dessa forma, assim que o pensamento se torna consciência, produz-se uma grande corrupção fundamental, uma falsificação, um achatamento, uma vulgarização, um empobrecimento desse pensamento.
E esse pensamento, tornado consciência, torna-se palavra, o instrumento de nossa comunicação.
Não nos estimamos mais o bastante, quando nos comunicamos. Nossas vivências mais próprias não são nada tagarelas. Não poderiam comunicar-se, se quisessem. É que lhes falta a palavra. Quando temos palavras para algo, também já o ultrapassamos. Em todo falar há um grão de desprezo. A fala, ao que parece, só foi inventada para o corte transversal, o mediano, o comunicativo. Com a fala já se vulgariza o falante. De uma moral para surdos-mudos e outros filósofos.
Linguagem, sentimento e moral
A linguagem por meio de signos é, pois, para Nietzsche, uma via de comunicação pobre, restrita.
A linguagem não nos foi dada para comunicar nossos sentimentos, percebe-se esse fato ao verificar que todos os homens simples têm vergonha de procurar as palavras para suas emoções mais profundas: eles só as deixam transparecer por meio de seus atos, enrubescendo ao ver que os outros lhes percebem os motivos. Entre os poetas, a quem geralmente a divindade nega esse pudor, nota-se, todavia, entre os mais nobres, um certo laconismo na linguagem do sentimento, deixando transparecer algum embaraço: ao passo que os verdadeiros sacerdotes do sentimento são freqüentemente, na vida prática, os mais sem-vergonha.
Para Nietzsche, a linguagem insiste e “continua a falar em oposições onde há somente degraus e uma sutil gama de gradações”, muito “embora a arraigada tartufice da moral, que agora pertence de modo insuperável a ‘nossa carne e nosso sangue’ chegue a nos distorcer as palavras na boca”. Não será, pois, a “moral” que nos faz dizer o que ela quer, e não o que queremos? Por acaso falamos o que queremos e o que sentimos? Se não, quem fala? Quem é o “sujeito” desse falar? O que, por mim, fala?
Conhecimento e idéia
Referindo-se à questão do conhecimento, Nietzsche observa que não dispomos propriamente de órgãos para o mesmo, para a “verdade”. Nós simplesmente “sabemos” (ou pelo menos acreditamos saber, nós nos figuramos) até o ponto em que pode ser útil ao rebanho humano, à espécie, sendo que mesmo a “utilidade” não é afinal de contas mais que uma crença, produto da imaginação e talvez essa “estupidez nefasta que um dia nos fará morrer”.
Para Nietzsche, o que está por trás do desejo de conhecimento é o desejo de descobrir entre as coisas estranhas, inabituais, incertas, algo que não nos inquiete mais será, pois, o medo, enquanto instinto, que nos leva a conhecer.
Referindo-se às filosofias do idealismo, observa que considerar o mundo como “conhecido” assim que nos conduza à “idéia” é ter na “idéia” algo conhecido, habitual, algo do qual se tem muito menos medo. É que as filosofias da “idéia” acreditam que aquilo que é conhecido pode ser mais facilmente reconhecido que aquilo que é estranho trata-se de partir do “mundo interior” e dos “fatos da consciência”, pois lá está o mundo que conhecemos. Conhecemos? Para Nietzsche, estamos aqui diante de um grande equívoco, pois o que é tido por conhecido é o mais habitual e o habitual é aquilo que há de mais difícil de reconhecer como problema, como coisa desconhecida. O habitual é nossa interioridade, essa que é objeto da psicologia e da crítica dos elementos da consciência enquanto ciência. O fato da grande superioridade das chamadas “ciências naturais” (biologia, física, química, etc…) em relação às ciências voltadas para nossa interioridade (ciências humanas) consiste no fato de que aquelas tomam por objeto elementos estranhos, ou seja, exteriores, ou ainda, não habituais. Essa superioridade serve para demonstrar a dificuldade de conhecer o que é mais habitual, ou seja, o interior.
Eu penso, eu quero
Quanto às crenças nas certezas imediatas como o “eu penso” ou ainda o “eu quero”, Nietzsche observa que trata-se de pura ingenuidade. Para ele, “certeza imediata”, “coisa-em-si” envolve uma contradictio in adjeto . Devemos nos livrar da sedução das pala-vras, sugere ele. Pois, no caso de “eu penso”, como pode haver cer-teza imediata? Onde está a fundamentação de que sou eu que pensa? Por que deve haver necessariamente um algo que pensa? Por que pensar é atividade e efeito de um ser que é pensado como causa? Existe um “Eu”? O que é pensar? Qual a diferença entre pensar, sentir e querer?
Nietzsche conclui que a afirmação “eu penso” pressupõe uma comparação com outros estados que de mim conheço para determinar o que é. Devido a essa referência retrospectiva a um “saber” de outra parte, este saber “eu penso” não tem para mim, de todo modo, nenhuma “certeza” imediata. A rigor, para mim, nenhum saber é imediatamente certo. Em mim, se algum saber há, ele terá sido tão mediatizado por outros saberes, será tão fluido e instável, que a rigor nunca poderei chamá-lo de “certo” e muito menos de “imediato”. No lugar dessa “certeza imediata”, deparamo-nos com uma série de questões de metafísica; questões de consciência para o intelecto, que são: de onde retiro o conceito de pensar? Por que acredito em causa e efeito? O que me dá o direito de falar de um “Eu”, e até mesmo de um “Eu” como causa, e por fim de um “Eu” como causa de pensamentos? Como posso dizer “eu penso” se um pensamento vem quando “ele” quer e não quando “eu” quero? Assim, parece ser um falseamento da realidade efetiva dizer: o sujeito “eu” é a condição do predicado “penso”. O que ocorre aí é uma interpretação do processo (pensar) e não o processo mesmo. O equívoco, segundo Nietzsche, está em concluir pelo hábito gramatical de que “pensar é uma atividade, toda atividade requer um agente, logo… “[38]
Verdade e aparência
Para Nietzsche, o caráter errôneo do mundo onde acreditamos viver é a coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode apreender. Assim, não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais valor do que a aparência. A esse respeito, Nietzsche observa que se quisesse abolir por inteiro o mundo “aparente”, também da “verdade” não restaria nada. Nada nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”. Para Nietzsche, basta a suposição de graus de aparência, e como que sombras e tonalidades do aparente, mais claras e mais escuras diferentes valores, para usar a linguagem dos pintores.
Nesse sentido, ele nos pergunta: por que não poderia o mundo que nos concerne ser uma ficção? Mas a ficção não requer um autor? Por quê? Esse “requer” também não pertenceria à ficção? Por que não usar de alguma ironia com relação ao sujeito, como em relação ao predicado e ao objeto? Por que o filósofo não poderia erguer-se acima da credulidade da gramática? E Nietzsche ironiza, lembrando que aprendemos a língua, a gramática e as ficções nela incorporadas com as babás, governantas e preceptoras (como era comum no seu tempo), de modo que o filosofar tradicional estaria preso à “fé das governantas”. E, mesmo pedindo todo o respeito àquelas respeitáveis profissionais, incita-nos a abjurarmos dessa fé. Antigamente acreditava-se na “alma”[40], observa Nietzsche, assim como se acreditava na gramática e no sujeito gramatical: dizia-se que “eu” penso é condição; “penso” é predicado e condicionado a pensar é uma atividade para a qual um sujeito tem que ser pensado como causa. Tentou-se então, com tenacidade e astúcia dignas de admiração, enxergar uma saída nessa teia. E então Nietzsche pergunta se não seria verdadeiro fazer o contrário: admitir o “penso” como condição e o “eu” como condicionado ¾ o “eu” seria uma síntese feita pelo próprio pensar.
As palavras e as idéias
Nietzsche salienta que a observação inexata que nos é habitual tende a nos fazer tomar grupos de fenômenos como unidades e chamá-los de fatos (ou acontecimentos). Ocorre também que entre um e outro fato costuma-se representar um espaço vazio. Tendemos a isolar cada acontecimento ou fato do mundo e vê-los de per-se. Mas, na realidade, o conjunto de nossas atividades e de nosso conhecimento não é uma série de fatos com espaços intermediários vazios, mas um fluxo contínuo, um devir. Nietzsche exemplifica repudiando a crença no livre arbítrio que, para ele, é incompatível com a concepção de um fluxo contínuo, homogêneo, comum, indivisível, porque supõe que toda ação particular é isolada e indivisível; trata-se aqui de um atomismo no domínio do querer e do saber, escreve. Da mesma forma que nós compreendemos inexatamente os caracteres, fazemos o mesmo com os acontecimentos: nós falamos de caracteres idênticos, e de fatos idênticos: entretanto, não existe nem um nem outro. E não seria demais acrescentar que tudo é diverso no mundo, o mundo é constituído por singularidades e diferenças.
Mas nós mesmos tendemos a isolar não somente o fato particular mas também a eles agregamos os grupos de pretendidos fatos idênticos (e a eles damos nomes, como por exemplo bondade, maldade, piedade, inveja, etc…) São, porém, a palavra e a idéia o que, para Nietzsche, nos fazem crer nesse isolamento de grupos de ações. Exemplificamos isso da seguinte maneira: ao falarmos “cadeira”, atribuímos a essa palavra uma idéia que trazemos conosco, idéia essa que ambiciona abarcar todas as cadeiras que existem; a partir daí, julgamos deter a “verdade” do que é “cadeira”. Ledo engano, Nietzsche nos diria a esse respeito, pois, a rigor, não existem duas cadeiras iguais no mundo… Segundo ele, as palavras nos servem não somente para designarmos as coisas ¾ ela nos fazem crer que originariamente, por elas, nos assenhoreamos da “verdade”. Verdade? Mas que verdade, se tudo é aparência? Mesmo as cadeiras da mais padronizada produção, se repararmos bem, se nos aparecem cada uma de um jeito. Mesmo se tomarmos uma única, se olharmos bem, veremos que muda de aparência de instante a instante. É que estão sujeitas à ação do tempo, ou melhor, são, como todas as coisas, puro devir.
As palavras e as idéias nos induzem, pois, a representar constantemente as coisas como mais simples do que são, separadas umas das outras, indivisíveis, tendo cada uma existência em si e por si. Assim é que Nietzsche vai considerar que existe, oculta na linguagem, uma mitologia ¾ uma mitologia filosófica que a cada instante reaparece: a crença nos fatos idênticos e nos fatos isolados. E será na linguagem que essa crença vai encontrar um apóstolo e um advogado perpétuo.
Perigo da linguagem para a liberdade do espírito de cada palavra é uma presunção.
Uma bela doidice
Mas será Zaratustra quem, ao cabo de sete dias sem comer nem beber, convalescente, dirá essas belas e inspiradas palavras sobre a linguagem para seus animais que o conclamavam a sair da caverna e ir ao encontro do mundo:
Ó meus animais, continuais a tagarelar assim e deixai que vos escute. Traz-me tamanho conforto ouvir-vos tagarelar; onde se tagarela, já o mundo é ali, para mim, como um jardim. Como é agradável que existam palavras e sons; não são, palavras e sons, arco-íris e falsas pontes entre coisas eternamente separadas? Toda alma tem o seu mundo, diferentes dos outros; para toda alma, qualquer outra alma é um trasmundo. É entre as mais semelhantes que mente melhor a aparência; pois a brecha menor é a mais difícil de transpor. Para mim ¾ como haveria algo exterior a mim? Não existe o exterior! Mas esqueçamos isso a cada palavra; como é agradável que o esqueçamos! Não foram as coisas presenteadas com nomes e sons, para que o homem se recreie com elas? Falar é uma bela doidice: com ela o homem dança sobre todas as coisas. Quão grata é toda a fala e toda a mentira dos sons! Com sons dança o nosso amor com coloridos arco-íris.
Aqui, vemos Nietzsche colocar na boca de seu personagem, Zaratustra, toda uma concepção do que é falar. Falar é uma bela doidice, escreve ele. Falar é tagarelar, é dançar sobre todas as coisas, e essas coisas estão em mim, fazem parte do meu mundo. Assim, não existe exterior, ou melhor: exterior e interior são uma coisa só, constituem um mundo! E cada indivíduo tem seu mundo, havendo entre os mais semelhantes a maior diferença. As minhas palavras para as minhas coisas, esse é o meu mundo; as tuas palavras para as tuas coisas, este é o teu mundo ¾ e como são diversos! Não há um mundo igual ao outro, muito embora esqueçamos disso a cada palavra proferida, observa Nietzsche.
Um ato de autoridade
Mas, como se cunham os nomes e as palavras? Quem o faz? Cunhar nomes para os valores é obra de quem cria valores ¾ que lhes importa a utilidade do rebanho! Este é um ato de autoridade. Exemplificando, ao buscar a fonte do conceito “bom”, Nietzsche foi observar que “foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar, plebeu”. Assim, para Nietzsche,
O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem ‘isso é isto’, marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas.
Pesquisando sob o ponto de vista etimológico as designações para a palavra “bom” cunhadas pelas diversas línguas, Nietzsche descobre que todas elas remetem à mesma transformação conceitual ¾ que em toda parte, “nobre”, “aristocrático”, no sentido social, é o conceito básico a partir do qual necessariamente se desenvolveu “bom” no sentido de “espiritualmente nobre”, “aristocrático”, de “espiritualmente bem-nascido”, “espiritualmente privilegiado”: um desenvolvimento que sempre corre paralelo àquele outro que faz “plebeu”, “comum”, transmutar-se finalmente em ruim.
Assim, Nietzsche constata que, nas palavras e raízes que designam o “bom”, “transparece ainda com freqüência a nuance cardeal pela qual os nobres se sentiam homens de categoria superior”. São os “ricos”, “os possuidores”, e também segundo um traço típico de caráter, “os verazes”. A palavra criada para este fim pelos gregos antigos é esqlos (ésthlós), que significa segundo sua raiz, alguém que é, que tem realidade, que é real, verdadeiro, nobre ¾ para diferenciar do homem comum, mentiroso.
Associar a linguagem ao poder dos senhores é, para Nietzsche, associar as palavras ao poder de criação de valores, atributo dos nobres, aqui entendidos como os de espírito superabundante, os ricos de espírito. Quanto ao fraco, ao ressentido moralista, a este, já que não detém o poder da criação, resta a distorção. Diante da linguagem, o que faz é subvertê-la, torcê-la, inverter a equação de valores aristocrática (bom=nobre=poderoso=belo=feliz=caro aos deuses). E assim o fazem, dizendo que os miseráveis somente são os bons, apenas os pobres, impotentes, baixos são bons, os sofredores, necessitados, feios, doentes são os únicos beatos, os únicos abençoados, que unicamente para eles há bem-aventurança ¾ mas vocês, nobres e poderosos, vocês serão por toda a eternidade os maus, os cruéis, os lascivos, os insaciáveis, os ímpios, serão também eternamente os desventurados, malditos e danados!
Precisamente o oposto do que sucede com o nobre, que primeiro e espontaneamente, de dentro de si, concebe a noção básica de “bom”, é o que acontece com o fraco ressentido. Esse, mirando-se no outro, diz: tu és mau, logo eu sou bom. Assim, é “o ‘homem manso’, o incuravelmente medíocre e insosso”, é esse que faz crer como “verdade” que “o sentido de toda cultura é amansar o homem, reduzí-lo a um animal manso e civilizado, doméstico.”
As ovelhas têm rancor das aves de rapina, Nietzsche observa. Assim, elas dizem: “essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, e sim o seu oposto, ovelha este não deveria ser bom?” No que, as aves de rapina, em tom zombeteiro, dirão para si: “nós nada temos contra essas boas ovelhas, pelo contrário, nós as amamos: nada mais delicioso do que uma tenra ovelhinha”.
Exigir da força que não se expresse como força, que não seja um querer-dominar, um querer-vencer, um querer-subjugar, uma sede de inimigos, resistências e triunfos, é tão absurdo quanto exigir da fraqueza que se expresse como força. Um quantum de força eqüivale a um mesmo quantum de impulso, vontade, atividade melhor, nada mais é senão este mesmo impulso, este mesmo querer e atuar, e apenas sob a sedução da linguagem (e dos erros fundamentais da razão que nela se petrificaram), a qual entende ou mal-entende que todo atuar é determinado por um atuante, um ‘sujeito’, é que pode parecer diferente. Pois assim como o povo distingue o corisco do clarão, tomando este como ação, operação de um sujeito de nome corisco, do mesmo modo a moral do povo discrimina entre a força e as expressões da força, como se por trás do forte houvesse um substrato indiferente que fosse livre para expressar ou não a força. Mas não existe um tal substrato; não existe ‘ser’ por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é uma ficção acrescentada à ação ¾ a ação é tudo.
A razão na filosofia
Sócrates, o pensador da Antigüidade, mestre de muitosoutros inclusive de Platão: Nietzsche observa que o mesmo fascinava, pois parecia ser médico, um salvador. Mas nele havia um erro: a sua crença na racionalidade a todo preço; Sócrates foi um mal-entendido; a inteira “moral-da-melhoria”, também a cristã, foi um mal-entendido.
A luz do dia mais crua, a racionalidade a todo preço, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, oferecendo resistência aos instintos era, ela mesma, apenas uma doença, uma outra doença e de modo nenhum um caminho de retorno à “virtude”, à “saúde”, à “felicidade”…Ter de combater os instintos eis a fórmula para a décadence: enquanto a vida se intensifica, felicidade é igual a instinto.
Para Nietzsche, hoje, na exata medida em que o preconceito da razão nos coage a pôr unidade, identidade, duração, substância, causa, coisidade, ser, vemo-nos enredados no erro, necessitados ao erro. Nesse sentido, aqui temos a nossa linguagem como constante advogado.
Deixemos, por fim, nosso filósofo-filólogo Nietzsche-Zaratustra falar longamente sobre a linguagem por esse texto de Crepúsculo dos Ídolos que se segue ele é de muita beleza e resume e atinge a nossa questão central: a morte de Deus.
A linguagem pertence, por sua origem, ao tempo da mais rudimentar forma de psicologia: entramos em um grosseiro fetichismo, quando trazemos à consciência as pressuposições fundamentais da metafísica da linguagem, ou, dito em alemão, da razão. Essa vê por toda parte agente e ato: essa acredita em vontade como causa em geral; essa acredita no “eu”, no eu como ser, no eu como substância, e projeta a crença na substância-eu sobre todas as coisas somente com isso cria o conceito “coisa”… O ser é por toda parte pensado-junto, introduzido sub-repticiamente; somente da concepção “eu” se segue, como derivado, o conceito “ser”… No início está a grande fatalidade do erro, de que a vontade é algo que faz efeito de que a vontade é uma faculdade… Hoje sabemos que é meramente uma palavra…
Muito mais tarde, em um mundo mil vezes mais esclarecido, a segurança, a certeza subjetiva na manipulação das categorias da razão, chegou, com surpresa, à consciência dos filósofos: concluíram que elas não poderiam provir da empiria a empiria inteira, mesmo, está em contradição com elas. De onde então provêm? E nas Índias como na Grécia se fez o igual equívoco: “É preciso que já alguma vez tenhamos habitado um mundo superior (em lugar de: um mundo inferior, o que teria sido a verdade!), é preciso que tenhamos sido divinos, pois temos a razão!…” De fato, nada até agora teve uma mais ingênua força persuasiva do que o erro do ser, tal como foi, por exemplo, formulado pelos eleatas: pois esse erro tem a seu favor cada palavra, cada proposição que nós falamos! Até mesmo os adversários dos eleatas sucumbiram à sedução de seu conceito-de-ser: Demócrito entre outros, quando inventou seu átomo… A “razão” na linguagem: oh, que velha, enganadora personagem feminina! Temo que não nos desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática…
Eis a morte de Deus: desvencilharmo-nos dessa fé na gramática, penetrarmos no ser da linguagem e indagarmos sobre um outro sentido deste ser. Conforme iremos ver nos capítulos que se seguem, esta parece ser a preocupação de Foucault.
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